folha de s paulo
Bruno Boghossian: Governo submete sistema de inteligência a interesses particulares
Bolsonaro pode monitorar adversários e ampliar os poderes de vigilância de órgãos de informação
Salvar a própria família e blindar aliados foi só um capítulo da história. Depois de interferir em órgãos de investigação para evitar problemas para seu grupo, o governo Jair Bolsonaro avançou sobre a estrutura oficial de inteligência do país em busca de benefícios políticos.
Com desembaraço, o presidente e seus auxiliares parecem dispostos a explorar esse aparato de informações para servir aos interesses específicos do Palácio do Planalto. Nas últimas semanas, o governo usou essas ferramentas para monitorar adversários e ampliar os poderes de vigilância desses órgãos.
O dossiê sigiloso sobre integrantes de organizações críticas a Bolsonaro, elaborado dentro do Ministério da Justiça, é uma amostra grátis desse trabalho. Em junho, o governo decidiu listar servidores da área de segurança que eram identificados como participantes de um “movimento antifascista” e enviou seus nomes para órgãos de investigação, como revelou o repórter Rubens Valente.
Ninguém quis explicar por que a estrutura estatal foi utilizada para produzir algo que pode ser classificado como um catálogo de perseguição. O ministro André Mendonça tentou se esquivar da responsabilidade. Se ele não sabia da confecção do documento, perdeu as condições de permanecer no posto. Se sabia, deve responder fora do cargo.
Bolsonaro demonstra apetite por um aparelho de informações que funcione a seu favor. Na semana passada, ele editou um decreto que mudou a estrutura da Abin e criou um Centro de Inteligência Nacional para executar ações “voltadas ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. A descrição é vaga o suficiente para dar superpoderes ao órgão.
Na famosa reunião ministerial de 22 de abril, Bolsonaro reclamou do aparato de informações do governo depois de citar “pessoas aqui de Brasília” que se reuniam “de madrugada, pra lá, pra cá”. Ele disse contar com um sistema próprio: “O meu particular funciona”. Aos poucos, a estrutura oficial pode se tornar particular.
Pablo Ortellado: Politização da vacina pode comprometer imunização
Pesquisas têm mostrado correlação entre posicionamento político e disposição a tomar vacina contra Covid
Se tudo der certo, entre dezembro e janeiro, o Brasil poderá começar a imunizar a população, seja com a vacina de Oxford e da AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, seja com a vacina da Sinovac, em parceria com o Instituto Butantã.
Para que as vacinas nos tirem da crise, porém, não será necessário apenas que elas se mostrem eficazes na terceira fase dos testes clínicos, será necessário também que uma população politicamente polarizada se disponha a ser vacinada.
Depois de meses de uma extenuante política de distanciamento social, seria de se esperar uma população ansiosa para se vacinar e retomar a normalidade. Mas não é isso o que mostram estudos em diferentes países.
Uma pesquisa coordenada pela Universidade de Hamburgo mostrou que a disposição a se vacinar contra a Covid na Alemanha caiu de 70% em abril para 61% em junho (com um preocupante índice de 52% na região da Bavária). Nos Estados Unidos, pesquisa do YouGov realizada em julho mostrou que 25% dos americanos não tomariam a vacina e 28% não tinham certeza se tomariam.
Um elemento particularmente preocupante das pesquisas é como a disposição a se vacinar contra a Covid correlaciona com posições políticas. Na pesquisa do YouGov, eleitores democratas são mais propensos a se vacinar (61%) do que republicanos (45%). O índice baixa para 34% entre os que pretendem votar em Donald Trump.
A contaminação política funciona também no sentido oposto: pesquisa da Reuters/ Ipsos de maio mostrou que 36% dos americanos tenderiam a não se vacinar se a vacina fosse recomendada pelo presidente Trump.
Não temos ainda pesquisas no Brasil medindo a disposição a se vacinar contra a Covid e correlacionando essa disposição com posicionamento político e crença em boatos —mas está na hora de investigar o problema, já que há risco concreto de uma baixa adesão à vacina comprometer uma saída segura da quarentena.
Nas mídias sociais e no WhatsApp, há algumas semanas circula desinformação sobre as vacinas para a Covid com forte teor político. Boa parte desses boatos e rumores mentirosos se apoia na postura antichinesa que o bolsonarismo tem adotado.
Se a vacina desenvolvida pela Sinovac vingar, poderemos ver uma intensificação das campanhas de desinformação promovidas pelo bolsonarismo que antagoniza tanto com a China, como com o governador João Doria, responsável pelo Instituto Butantã.
Em termos muito concretos: pode ser que não cheguemos à imunidade de rebanho com uma campanha de vacinação que tenha vacina com eficácia de 75% e adesão de apenas 60% da população.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Cristina Serra: Aras e o aparelhamento do MPF
O procurador-geral da República e Deltan Dallagnol são faces do aparelhamento político das instituições de Estado
O procurador-geral da República, Augusto Aras, abriu guerra contra a força-tarefa da Lava Jato e a hipertrofia dos procuradores federais comandados por Deltan Dallagnol na “República de Curitiba”. Aras e Dallagnol, no entanto, são faces da mesma moeda: a do aparelhamento político das instituições de Estado.
O sempre necessário e importante combate ao crime encontrou na vocação messiânica e na agenda política dos procuradores e do juiz Sérgio Moro terreno fértil para distorções, abusos e excessos da operação que pretendia acabar com a corrupção no país.
Não acabou. E deixou vasto legado de desrespeito a marcos legais. Moro divulgou ilegalmente um grampo telefônico envolvendo a então presidente Dilma, o que mereceu apenas uma reprimenda do STF ao juiz.
Este pediu “escusas” e ficou por isso mesmo. A Vaza Jato, do site The Intercept, mostrou como o juiz orientou os procuradores, tornando-se parte da acusação e violando seu compromisso ético e legal de imparcialidade.
Deu no que deu. A Lava Jato teve impacto decisivo na chegada de Bolsonaro ao poder, trazendo Moro a tiracolo, não por acaso. Como o mundo dá voltas, o candidato que se beneficiou do “lavajatismo” foi o mesmo presidente que deu a rasteira em Moro e agora comanda a ofensiva contra a “República de Curitiba”.
Ao atacá-la, Aras faz um favor ao centrão e ao chefe, que andam de braços dados desde que Bolsonaro entendeu que precisava de um escudo no parlamento, depois da prisão do amigão Fabrício Queiroz. Aras, porém, pode não ter calculado bem um efeito colateral de sua truculência. A perseguição à Lava Jato poderá levar Moro a disputar com o ex-chefe a narrativa do combate à corrupção, acirrando a concorrência no campo da direita nas eleições de 2022.
Há, contudo, uma pedra no caminho de Moro. A Segunda Turma do STF precisa terminar o julgamento, iniciado em 2018, sobre a suspeição do magistrado na condução da Lava Jato. Ao que parece, suas excelências não estão com a menor pressa.
Hélio Schwartsman: Estupro jurisdicional
É fácil ver que o caminho escolhido por Alexandre de Moraes, no caso das fake news, não passa no teste kantiano da universalização da regra
É preocupante a pretensão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de fazer com que suas decisões no chamado inquérito das fake news valham não apenas para a operação brasileira de empresas como Facebook e Twitter mas também para a internacional. Aqui, o ministro extrapola sua jurisdição e o faz com um viés autoritário.
É fácil ver que o caminho escolhido por Moraes não passa no teste kantiano da universalização da regra.
Em vários países da África e do Oriente Médio, a homossexualidade é crime. Se juízes dessas nações podem estender sua jurisdição para aplicativos sediados no exterior, então teríamos de aceitar como legítima a ordem de um magistrado da Arábia Saudita para derrubar sites americanos de pornografia e de encontros. A moral prevalecente na internet seria a da mais retrógrada das nações.
Obviamente, esse raciocínio não vale apenas para questões relativas a sexo, aplicando-se também a opiniões políticas, estudos científicos, peças artísticas etc. Se é o Taleban que está no poder no Afeganistão, então até o site do Louvre poderia ser censurado, já que traz imagens de estátuas que, na interpretação das autoridades judiciais daquele país, seriam ilegais.
Não há dúvida de que certas fake news e radicalismos, incluindo falas de bolsonaristas, são socialmente nocivos. Por vezes, constituem crimes, que podem e devem ser combatidos. Se a ofensa for séria o suficiente, será um ilícito em qualquer nação, abrindo caminho para a cooperação judicial entre países.
Caso contrário, acabarão prevalecendo as normas das nações mais liberais, pois é nelas que as empresas globais de internet tendem a estabelecer-se. E esse é um dos milagres da rede. Ela cria uma espécie de concorrência entre legislações nacionais capaz de gerar um círculo virtuoso de promoção da liberdade e do cosmopolitismo. A pretensão de Moraes de enquadrar o Facebook é a negação disso.
Leandro Colon: O jogo seletivo de Aras
PGR fala em "caixa de segredos" da Lava Jato, mas se cala diante da usurpação da AGU
A reunião do Conselho Superior do Ministério Público Federal na sexta-feira (31) é o símbolo deprimente da crise entre o chefe da PGR, Augusto Aras, e um grupo de procuradores que lhe faz oposição.
Temos visto, rotineiramente, ataques mútuos, egos inflados e desvios da liturgia exigida para a função de procurador da República.
Anti-lavajatistas, dentro e fora do Ministério Público, celebram a disposição de Aras em enfrentar a força-tarefa de Curitiba, liderada há alguns anos por Deltan Dallagnol.
Nos bastidores, cresce a certeza de que Aras deve desmantelar ou ao menos fatiar as atribuições do grupo que comanda a Lava Jato.
Seria demonstração de força do chefe da PGR que pode enfraquecer Deltan e a equipe que conduziram as investigações da maior operação anti-corrupção que o país já viu.
Decerto que razões existem (e sobram) para contestar, apurar e repudiar os atropelos legais e o método policialesco que a Lava Jato adotou em muitos casos até aqui.
Assim como é inegável o serviço prestado por ela ao desmantelar um esquema de corrupção nefasto na Petrobras, colocando na cadeia políticos e figurões empresários que assaltaram os cofres públicos.
A questão aí é qual o jogo real de Aras, devoto da cartilha do presidente da República que o escolheu fora da tradicional lista tríplice da classe.
Aras se indigna com o que chama de "caixa de segredos" da Lava Jato, mas se cala diante da usurpação das atribuições da AGU e do Ministério da Justiça no governo Bolsonaro.
Isolado no MPF, ensaia uma dobradinha com o STF. Aliou-se a Dias Toffoli para ter acesso ao material sigiloso da Lava Jato —isso depois de tentar obtê-lo na marra.
Em recente declaração, Aras disse que, durante seu mandato, não vai permitir que "haja um aparelhamento" do Ministério Público.
Espera-se a mesma disposição do chefe da PGR em investigar no inquérito que ele abriu para apurar o aparelhamento do comando Polícia Federal por parte de Jair Bolsonaro.
Celso Rocha de Barros: Mendonça e Aras são cabo e soldado de Bolsonaro em novo ataque à democracia
Ministro da Justiça produziu dossiê contra 'antifascistas' e procurador-geral da República faz guerra contra Lava Jato
O ministro da Justiça, André Mendonça, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, são o cabo e o soldado de pés chatos que Bolsonaro usa em seu novo ataque à democracia brasileira.
Mendonça, que virou ministro da Justiça quando Moro deixou o cargo, vem se destacando na perseguição contra adversários do governo.
Produziu um dossiê contra “antifascistas” que incluía dois acadêmicos respeitados, Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, bem como policiais de esquerda, que poderiam vir a ser um obstáculo ao aparelhamento das polícias.
Aras, por sua vez, faz guerra contra a força-tarefa da Lava Jato e tenta centralizar os instrumentos de investigação para usá-los no interesse do golpismo. Enquanto Mendonça briga para prender antifascistas honestos, Aras briga para manter fascistas corruptos em liberdade.
A guerra bolsonarista contra a Lava Jato vem produzindo cenas curiosas. Na semana passada, por exemplo, o bolsonarista Alexandre Garcia usou as revelações da Vaza Jato para criticar a turma de Curitiba.
Quando o Intercept Brasil publicou as denúncias, Garcia estava entre os que atacaram os jornalistas. Pesquise o artigo “Estranhas Coincidências”, publicado em 30 de julho de 2019, em que Garcia repete a mesma lista de mentiras que os bolsonaristas lançavam na época contra Glenn Greenwald e sua família.
Na esquerda, que perdeu uma, e talvez duas Presidências da República no auge do lavajatismo, há gente comemorando a guerra de Aras contra Curitiba. Pode ser compreensível, mas é um erro.
Ninguém ficaria surpreso se, enquanto tenta desmontar a Lava Jato, Aras requentasse uma delação contra Lula para acalmar os bolsonaristas que ainda mentem que se preocupam com corrupção.
Na direita tradicional também tem gente querendo ver no desmonte da Lava Jato uma espécie de acomodação de Bolsonaro com o centrão, o que, por um raciocínio meio tortuoso, poderia ser visto como aceitação da política institucional.
A política brasileira vem sendo isso, um esforço para que um sujeito que causou cem mil mortes aceite ser menos golpista se a gente ajudá-lo com uns problemas que ele tem com a polícia.
E mesmo isso me parece otimismo demais. Não acho que o acordão vai parar o golpismo.
Bolsonaro ficou com raiva da polícia e do Judiciário porque eles pegaram Queiroz e atrapalharam seu autogolpe. Quando Judiciário e polícia tiverem sido aparelhados, Bolsonaro voltará à carga.
Talvez por isso MDB e DEM tenham saído do bloco parlamentar do centrão semana passada. A manobra parece ter sido pensada para enfraquecer Bolsonaro na eleição para a presidência da Câmara. Se for isso, MDB e DEM estão certíssimos.
Não se pode entregar o controle da presidência da Câmara, que com Rodrigo Maia foi um dos pontos de resistência ao autoritarismo, a quem se tenha vendido a Bolsonaro.
Da mesma forma, o leilão da vaga no STF para quem fizer a maior oferta de golpismo tem que acabar. É preciso ficar claro que o Senado não aprovará o vencedor da disputa.
De qualquer forma, cabo Mendonça e soldado Aras são bem mais fáceis de combater do que os cabos e soldados com quem Bolsonaro ameaçava o Brasil um mês atrás. Mas são um sinal importante para quem acreditava que Bolsonaro havia se tornado mais moderado nesse mês que ficou em casa apanhando de ema.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Vinicius Torres Freire: Dólar cai pelas tabelas e pode levar o juro brasileiro junto
Economia brasileira está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro
Dólar a R$ 5 já foi motivo de meme. Agora, além do Banco Central e dos povos dos mercados, pouca gente fala no assunto, talvez porque faltem reais até para os remediados, porque os importados sumiram dos supermercados de bairro rico, dada a carestia, e porque não se pode viajar para fora.
De março a junho, a despesa dos brasileiros com viagens internacionais foi de US$ 1,25 bilhão. No mesmo período do ano passado, de US$ 5,8 bilhões. No tempo em que "empregada doméstica ia para Disneylândia, uma festa danada", segundo Paulo Guedes, o gasto era de US$ 8 bilhões (em 2013 e 2014).
Mas o assunto aqui não é a mentalidade doméstica do ministro da Economia e sim o dólar, que cai pelas tabelas.
Depois do pico do pânico financeiro de março, a moeda americana perdeu valor, baixando ao menor nível desde 2018 em relação ao dinheiro de seus parceiros comerciais. Está longe ainda, uns 20%, do fundo do poço de 2011-12, mas se tornou assunto da finança, até porque as taxas de juros americanas de prazo mais longo também foram ao chão.
Seria um indício ou expectativa de que a recuperação da economia dos Estados Unidos pode ir para o vinagre. A epidemia está descontrolada também por lá e talvez não sejam renovados pacotes de socorro, em particular para os desempregados, o que se tornou um problema por causa dos senadores do Partido Republicano de Donald Trump.
De resto, há o temor de que o Nero Laranja queira melar o resultado da eleição presidencial de novembro.
A economia americana afundou menos do que a dos países da zona do euro nesta primeira metade do ano. Caiu 1,3% no primeiro trimestre (em relação ao anterior) e outros 9,5% no segundo. Na eurozona, as baixas foram respectivamente de 3,6% e de 12,1%. No Brasil, mero lembrete, foi de 1,5% no primeiro trimestre e, estima-se, deve ter sido de 11% no segundo. A China já zerou as perdas no ano, melhor que todo mundo.
Há, no entanto, mais elogios e esperanças para a Europa, que conteve a epidemia, vê seu euro se valorizar e está com um desemprego menor que o americano. Na zona do euro, a taxa de desemprego passou de 7,5% em 2019 para 7,8% na medida mais recente; nos EUA, de 3,7% para 11%.
A União Europeia acaba também de dar sinal de coesão e vontade de superar a crise de modo algo mais civilizado, com um pacote inédito de endividamento coletivo (como se fosse um país) equivalente a R$ 4,6 trilhões, para ajudar os mais avariados do bloco.
E daí?
No que interessa de mais imediato, o Banco Central do Brasil dizia que um dos problemas de baixar ainda mais a taxa básica de juros (Selic) era o risco de desvalorização extra do real, o que teria efeitos contraproducentes (seria um desestímulo econômico).
Hum. Parece que esse risco pelo menos diminuiu. Como a inflação prevista para 2021 está abaixo da meta, a economia está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro, conviria não dar chance para o azar (economia deprimida com inflação baixa).
Em segundo lugar, a lerdeza americana deve levar o Fed a manter seus juros básicos a quase zero por tempo a perder de vista e recorrer a medidas mais heterodoxas para reduzir juros de prazos mais longos. É outra ajudazinha para mantermos os nossos juros aqui também miudinhos.
Não é bom, claro, que a economia americana azede. Mas temos de levar em conta o fato da baixa do dólar e das taxas de juros por lá. A propósito, nesta semana tem decisão de juros do Banco Central daqui."
Hélio Schwartsman: A catástrofe
Obras como a de Richard Horton é com o que de melhor podemos contar na pandemia
Richard Horton é o editor-chefe do periódico médico britânico “The Lancet”, no qual foram publicados alguns dos mais importantes estudos sobre a Covid-19. Se há alguém que acompanhou de perto e em detalhe o surgimento e a evolução da pandemia, é ele. É dessa posição privilegiada que ele escreveu “The Covid-19 Catastrophe”, um dos primeiros “instant books” sobre a epidemia.
A principal vantagem desse tipo de obra é que ajuda a organizar o caos. Se o jornalismo é o primeiro rascunho da história, os “instant books” são sua versão ampliada e passada a limpo. Oferecem um relato mais ordenado e holístico de eventos ainda em andamento.
Para Horton, o mundo falhou, daí o termo “catástrofe” que consta do título do livro. Os riscos de uma pandemia viral são conhecidos pelo menos desde os anos 80, com a eclosão da Aids. Ainda assim, fizemos pouco para aprimorar a vigilância epidemiológica, que, para funcionar, precisa ser uma iniciativa global e não de nações isoladas.
E, se o mundo inteiro errou, o fracasso é ainda mais vexaminoso para alguns países ricos, normalmente funcionais e cientificamente avançados, como os EUA e o Reino Unido. Eles tiveram o privilégio de observar antes o que aconteceu na China e em algumas regiões da Europa e, ainda assim, preferiram não acreditar no que estava por vir e não se prepararam adequadamente para enfrentar a doença.
Horton tenta encontrar as razões para tantas falhas e apontar caminhos para melhorarmos. Nada de revolucionário, apenas mudanças de bom senso.
O ponto fraco de livros instantâneos reside justamente no fato de que os acontecimentos ainda estão em curso. Horton entregou os originais no fim de maio e há coisas no livro que já ficaram velhas. Seja como for, até que a Covid-19 se torne oficialmente um evento pretérito e objeto de estudo de historiadores, obras como a de Horton é com o que de melhor podemos contar.
Janio de Freitas: Cada vez mais longe
Os que têm potencial e brigação de reagir tratam o avanço neofascista como mais um fato cotidiano
Com um largo passo, afastamo-nos mais da democracia, dos nossos direitos civis e da vigência plena da Constituição. E como se isso não acontecesse ou, se percebido, não fosse importante. A falta de reação proporcional é tão grave quanto o passo a que fomos empurrados.
Todos os governos de índole fascista começam a torná-la realidade por três ou quatro medidas que tolhem a liberdade de discordância.
Uma dessas medidas clássicas da derrubada de democracias é a identificação, fichamento e vigilância sigilosa de reais ou potenciais opositores ao autoritarismo. Uma das primeiras providências do gorilismo de 1964, por exemplo, foi a criação do SNI, serviço de espionagem interna mais tarde chamado de monstro pelo próprio criador, o sinistro general Golbery.
Tem essa mesma finalidade a função atribuída à Seopi, Secretaria de Operações Integradas, pelo recém-ministro da Justiça, André Mendonça, não muito menos sinistro na sua fisionomia sem expressão.
As atuais revelações do ex-repórter especialíssimo da Folha e hoje encontrável em blog no UOL, Rubens Valente, partem de um dossiê da Seopi, datado de junho.
São os dados e às vezes fotos obtidos em sua “ação sigilosa sobre 579 servidores federais e estaduais de segurança, e três professores universitários, identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’”.
Título do dossiê: “Ações de Grupos Antifas e Policiais Antifascismo”. Antifas é como se denominam os adversários ativos do fascismo em qualquer das suas formas.
O título explicita, portanto, o propósito da ação e do dossiê contra os defensores do regime democrático em vigor, como são, no caso e por definição, os antifas e os policiais antifascismo. Logo, trata-se de uma ação, sob ordens do próprio ministro da Justiça, mais do que inconstitucional, contra a Constituição em seu teor e vigência.
A Constituição não admite ações ou pregação contra o regime nela formulado. Tem a sabedoria da prevenção. Porque o início contra servidores e alguns professores, se não recebe a reação proporcional e legal, será, logo, estendido a outras linhagens da cidadania. Se ainda não foi.
E os que têm o potencial e a obrigação de reagir, até como defesa de si mesmos, trataram o revelado avanço neofascista como mais um fato cotidiano. Sim, os de sempre, jornais e TV, juristas, advogados, professores, intelectuais, artistas, políticos democratas — os visados.
O confronto entre os dallagnois de Curitiba e o procurador-geral Augusto Aras teve a preferência, brigas têm mais sensação. Acusada de caixa de segredos, a Lava Jato rebateu com a afirmação de que os seus arquivos “são avaliados por diversos entes, incluindo toda a sociedade”. Se isso não fosse mentira, não haveria o choque público por recusa do compartilhamento de dados pretendido pela Procuradoria-Geral.
Os dallagnois explicaram ainda as 38 mil pessoas e empresas constantes no seu arquivo, motivo de suspeitas de Aras. São menções em relatórios do Coaf, órgão de alegado controle da Receita Federal, mandados à Lava Jato para verificar suspeitas de lavagem de dinheiro.
Mas a Lava Jato não tem poderes para se meter em buscas a granel das vidas financeiras de pessoas e empresas. Fazê-lo é mais um dos seus habituais abusos de poder.
Executor dos objetivos da Lava Jato, Sergio Moro defende-o: “A operação sempre foi transparente e teve suas decisões confirmadas pelos tribunais de segunda instância e também pelas cortes superiores”. Mentira também. Até a segunda instância no Tribunal Regional em Porto Alegre, ainda que a contragosto, derrubou decisões da parceria Moro/Dallagnol. Nas cortes superiores, Moro recorreu até a pedido de desculpa, para evitar vexame maior.
Mas não faltará um registro simpático: os generais do bolsonarismo são pais dedicados. E dedicados até a simples amigas. Buscam-lhes bons cargos no serviço público, apesar de não terem habilitação. Como a nova representante do Ministério da Saúde em Pernambuco, Paula Amorim, nomeada pelo mérito de ter “relação de amizade e confiança” com o general Eduardo Pazzuelo. Os generais falavam de imoralidade dos políticos.
Em regime neofacista as mentiras e as imoralidades ficam mais fáceis. Justifica-se, pois.
El País: Bolsonaro e a receita húngara para acabar com a imprensa crítica
'A Máquina do Ódio', de Patrícia Campos Mello, mostra como o presidente segue o manual de Viktor Orbán para silenciar a mídia. Leia um trecho do livro da Companhia das Letras
“Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção.”
A frase de Jair Bolsonaro ainda pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem filtros.PUBLICIDADE
Outro dia, num raro acesso de bom humor com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.
Bolsonaro segue à risca o manual húngaro “Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e filantropo George Soros.
Por mídia independente, entenda-se jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.
A primeira lição do manual de combate à imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, “os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.
Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3 bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos, Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita publicitária on-line.
No Brasil, números sobre a divisão do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7% e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e rádio se manteve estável, com 4,6%.
A queda da circulação dos grandes jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo, Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).
Acrescente-se a essa fragilidade estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.
Na Hungria, Orbán baixou uma série de leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não alinhada ao partido no poder.
No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são líderes de audiência.
Embora detentora do maior ibope do país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e, em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para 16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora, 42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.
Também foram adotadas na Hungria várias medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.
Bolsonaro baixou medidas tendo em vista se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.
A publicação de balanços é fonte importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até 31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de 2019.
O presidente brasileiro não deixou dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.
Ameaçou o Valor Econômico em especial, dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E, logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era uma boa ideia.
Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, em outubro.
O Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do governo.
Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”, afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”
Patricia Campos Mello é jornalista da ‘Folha de S.Paulo’ e lançou às vésperas da eleição presidencial de 2018 uma série de reportagens sobre financiamento de disparos em massa de notícias falsas em redes sociais. Desde então tornou-se alvo de milícias digitais estimuladas pelo chamado Gabinete do Ódio, instalado no Palácio do Planalto. ‘A Máquina do Ódio', da editora Companhia das Letras, é o seu segundo livro.
Demétrio Magnoli: Vírus ainda mais contagioso controla os portões escolares, a política eleitoral
Um ano sem aula cobrará preço devastador em vidas intelectuais e profissionais amputadas
Vejo, melancólico, as fotos de Adriano Vizoni, das escolas públicas fechadas (Folha, 27.jul). Lembro das primeiras escolas em que dei aulas, em Carapicuíba e Caucaia do Alto, nos idos de 1978. A placidez com que o Brasil encara a interrupção eterna do ano escolar é um retrato em preto e branco do desprezo nacional pelos pobres —e pela educação.
Cito os estudos científicos sobre as escolas básicas suecas, que nunca fecharam, e alemãs, reabertas em maio? Eles mostram o risco irrisório do retorno parcial às aulas, sob os conhecidos protocolos sanitários, durante o declínio das infecções. Menciono a orientação do Centro de Controle de Doenças dos EUA —são médicos, não agentes de Trump— de próximo retorno às aulas (bit.ly/30ac7AZ)? Melhor não.
"Você quer matar as crianças, os professores, os pais e os avôs!"; "arauto da necropolítica!"; "genocida!". As réplicas rituais surgem, aos gritos, de quem jamais lerá estudo algum —mas não cansa de empregar a palavra "ciência".
Falar em escolas já produziu até uma nova especialidade acadêmica. Um matemático da FGV criou um modelo profético que garantia a morte de milhares de crianças em poucas semanas de aulas. Depois, voltou atrás, alegando "empolgação", reconhecendo equívocos de comunicação e estratosféricas incertezas estatísticas. Com o vírus, ao lado da Matemática Pura e da Aplicada, nasceu a Matemática Empolgada.
"Uma única vida perdida", porém, seria suficiente para manter as escolas fechadas, concluiu o matemático, jogando no lixo seu monumento estatístico em ruínas. De acordo com o modelo mental hegemônico entre governantes e especialistas fechados na bolha da alta classe média, crianças sem aula foram isoladas em tubos de vácuo: não brincam nas ruas, não retornam às suas casas e, portanto, não transmitem o vírus.
Sindicatos de professores concorrem, em corporativismo, com associações de policiais. A simples menção à hipótese longínqua de reabertura escolar deflagra ameaças de greves. Dirigentes das entidades querem evitar a volta às aulas até o advento da vacina. O fenômeno é mundial: um manifesto do sindicato de professores de Los Angeles lista dezenas de pressupostos para a reabertura, inclusive a implantação de um sistema universal de saúde nos EUA. Esqueceram de exigir a prévia abolição do papado.
O Plano São Paulo prevê a retomada de aulas apenas um mês depois de todas as regiões atingirem em uníssono a etapa amarela. Por que uma escola paulistana não pode reabrir enquanto ainda pesam restrições sanitárias em Araçatuba? João Gabbardo, do centro de contingência, explicou que o obstáculo não decorre de critérios epidemiológicos, mas de uma norma de uniformidade da Secretaria de Educação.
De fato, um outro vírus, ainda mais contagioso, controla os portões escolares. O nome dele é política eleitoral.
Os pais têm medo, um sentimento compreensível, em parte derivado da "empolgação" jornalística. Nos dias em curso, a notícia lateral de que a França foi obrigada a fechar novamente algumas dezenas de escolas soterra a informação sobre a reabertura em segurança de 40 mil escolas. Nesses tempos, apesar do elogio editorial à ciência, um matemático empolgado ganha as manchetes que ignoram pesquisas epidemiológicas baseadas em evidências.
Na escola, as crianças aprendem a aprender. Um ano sem aula cobrará preço devastador em vidas intelectuais e profissionais amputadas. Bons professores sabem disso —e não precisam curvar-se às ordens dos chefões sindicais.
Como os médicos e enfermeiros, eles têm o dever cívico de levantar as mãos, declarando-se prontos a enfrentar riscos muito menores. De minha parte, vai aqui uma mensagem de voluntariado ao governo estadual: estou pronto a voltar a meus 19 anos, substituindo professores recalcitrantes em qualquer escola pública —até a vacina.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Julianna Sofia: Guedes adere ao vale-tudo para recriar CPMF
Por inabilidade ou dissimulação, a equipe econômica insiste não se tratar de reempacotamento da CPMF
No vale-tudo de Paulo Guedes (Economia) para desinterditar o debate sobre a recriação da CPMF, o ministro usa técnicas de um diversionismo pouco sofisticado para sugestionar a opinião pública, majoritariamente contrária ao novo (antigo) tributo.
Nas investidas mais recentes, o economista de Jair Bolsonaro vincula a instituição do imposto, a um só tempo, à desoneração de 25% da folha de salários das empresas, à ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda e ao financiamento de parte do novo Bolsa Família (Renda Brasil).
Com as finanças públicas exauridas, Guedes não abre mão do dinheiro grosso que poderia amealhar com uma alíquota mínima de 0,2%: R$ 120 bilhões. Há planos por uma taxação de até 0,4%. Joga iscas ao empresariado, à classe média e à população de baixa renda para capturar o mundo político —atmosfera na qual nunca orbitou.
Por inabilidade ou dissimulação, a equipe econômica insiste não se tratar de reempacotamento da CPMF, pois o novo tributo incidiria sobre pagamentos, sobretudo compras no e-commerce. Das falas desencontradas e dos vazamentos seletivos de informações, conclui-se, porém, que a intenção vai além de criar um “imposto do Rappi”, restrito ao ambiente digital, de cunho moderno e elitizado.
Pagamentos de qualquer tipo, compras inclusive em dinheiro, estariam sujeitos à tributação devido ao registro digital —hoje válido até para o pãozinho na padaria. Impostos sobre transações vigoram atualmente apenas em uma dúzia de países, como Paquistão, Venezuela, Argentina e Sri Lanka.
A aversão do Congresso é liderada por Rodrigo Maia, para quem a contribuição trava a economia: "Minha crítica não é se é CPMF, se é microimposto digital, se é um nome inglês para o imposto para ficar bonito, para tentar enrolar a sociedade”. A despeito das reações, com o centrão a tiracolo e sem mover um músculo, Bolsonaro autoriza Guedes a se aventurar mais uma vez na busca por apoio.