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Elio Gaspari: Bolsonaro criou uma crise do nada

Houve presidentes que amansavam a onça da crise; Jair Bolsonaro e Paulo Guedes inovaram: eles criam a crise do nada

Houve presidentes que amansavam a onça da crise. Ela entrava rosnando no Planalto e saía miando. Foi assim com Michel Temer (salvo quando ele conversava com Joesley Batista no Jaburu) e com Fernando Henrique. Com Dilma Rousseff, ela entrava miando e saia rosnando. Jair Bolsonaro e Paulo Guedes inovaram: eles criam a crise do nada.

No domingo passado, o secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, deu uma entrevista ao repórter Alexandro Martello propondo uma girafa: congelar por dois anos os benefícios da Previdência Social.

Ela foi para a rede no fim da tarde. Sabe-se lá o que estavam fazendo os doutores, mas ninguém se lembrou de jogar água fria no assunto. Era uma ideia ruim, nada mais que isso. Era também mais um balão de ensaio da ekipekonômika. Tratando-se de matéria que exigiria emenda constitucional, suas chances eram nulas.

Passou a segunda-feira, e nada. Alguém, inclusive o doutor Waldery, poderia ter colocado os pingos nos is. Na terça de manhã, com a fúria de Zeus, Bolsonaro foi para as redes sociais com um vídeo e matou a proposta, mandou ao arquivo qualquer conversa sobre o programa Renda Brasil e ameaçou botar na rua quem lhe trouxer o assunto. Sendo presidente da República, poderia ter usado o aparelho do governo para cuidar do assunto.

Sendo um animador de vídeos, poderia ter argumentado com mais simplicidade e elegância. Preferiu se apresentar como defensor dos pobres e dos paupérrimos, impondo mais uma humilhação ao çuperministro Paulo Guedes e colocando a prêmio a cabeça do doutor Waldery. Logo ele, cujo governo tentou, e continua tentando, tungar o Benefício de Prestação Continuada dos miseráveis e quis taxar o seguro dos desempregados.

Bastariam dois telefonemas e uma frase para que o governo derrubasse a girafa do doutor Waldery, que além de ser apenas um plano, era inexequível. Sobrou para o burocrata a quem Guedes deu poderes excepcionais, pois sua secretaria é aquilo que outrora foi o Ministério da Fazenda. (Isso foi parte do projeto de concentração teórica de poderes do çuperministro. Na prática, está dando no que se vê.)

Waldery Rodrigues é um burocrata eficiente que na cadeira se tornou também onisciente. Olhando para a macroeconomia, achou boa ideia avançar no orçamento dos segurados do INSS. Olhando para a microeconomia da geladeira do doutor Rodrigues, ele foi outro. Como servidor qualificado do Senado Federal, ganhava R$ 35 mil mensais. Aceitou uma secretaria especial que rendia apenas R$ 10,3 mil. Os costumes de Brasília permitiram que fosse para os conselhos do Banco do Brasil e do BNDES e, tchan, passou a receber mais R$ 14 mil. (Como ele, outros 333 servidores civis e 12 militares estão agraciados pela velha prebenda dos conselhos.)

Bolsonaro disse que não quer mais ouvir falar em Renda Brasil e passou a iniciativa para o Congresso. Ganha uma visita a uma fábrica de cloroquina quem apostar que daí sairá a próxima crise.

O Guedes de Machado
Miguel (“Migalhas”) Matos, estudioso da obra de Machado de Assis, achou um Guedes no mundo do Bruxo. Ele apareceu numa crônica de julho de 1885.

Machado contou que “há trinta anos, ou quase, que o Guedes espreita um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre que fosse, para falar a própria linguagem dele. Ultimamente, lá se contentava com uma semana, um dia, e até uma hora, uma só hora de popularidade, de andar falado por salas e esquinas.”

“Se realmente quer popularidade, abra mão de planos complicados.”

Machado apontava um caminho para que Guedes conseguisse a popularidade:

“A gente não tem remédio senão recorrer à única cultura em que não há concorrência de boa vontade, que é plantar batatas.”

Matos trabalha num livro sobre as relações de Machado de Assis com o Direito. Lateralmente, cuidará da paternidade do Bentinho do conto “Dom Casmurro”. Segundo uma fofoca secular, Machado de Assis seria o pai de Mário, filho de Georgiana Cochrane, mulher do romancista José de Alencar.

Problema fabricado
A humilhação a que o INSS vem submetendo centenas de milhares de pessoas que precisam de perícias médicas para receber os benefícios a que têm direito era pedra cantada.

No ano passado os çábios transferiram os médicos do quadro de funcionários do INSS para um órgão exclusivo, chamado Perícia Médica Federal. Com a mudança, os servidores foram dispensados do registro eletrônico de presença.

Em março, quando a pandemia chegou ao Brasil, o INSS anunciou “novas medidas em função da pandemia do coronavírus no Brasil.”

As coisas ficariam assim:

“A partir de agora, o INSS, em conjunto com a Perícia Médica Federal, dispensará o segurado da necessidade de comparecer em uma agência para a perícia médica presencial. Dessa forma, os segurados que fizerem requerimentos de auxílio-doença e Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoa com deficiência devem enviar o atestado médico pelo Meu INSS, aplicativo ou internet. A medida tem por objetivo assegurar a saúde dos cidadãos, em especial a dos idosos.”

Contem outra, doutores.

O ativismo de Bolsonaro
Nos últimos dias de sua campanha pela Presidência, Jair Bolsonaro fez a mais apocalíptica de suas promessas: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil.”

Estimulou duas novas formas de ativismo. De um lado deu espaço aos agrotrogloditas com seus incêndios. Em agosto do ano passado, eles criaram o Dia do Fogo, com 478 queimadas. De cada dez incendiários, menos de seis foram autuados.

A esse ativismo correspondeu outro, contrário. Os três maiores bancos brasileiros se afastaram dos desmatadores. Um documento assinado por 230 empresas e organizações ambientais pediram-lhe que controle os agrotrogloditas. Entre as empresas estão a Klabin, a Maggi e a Unilever. Além disso, os governos de Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Dinamarca, Holanda, Noruega, Reino Unido e Bélgica mandaram uma carta ao governo dizendo que a piromania atrapalha até mesmo os negócios.

Não chore, Rio
No Rio de cinco governadores levados ao cárcere, outro afastado e substituído por um vice filmado ao chegar com uma mochila para um encontro com um larápio confesso, o prefeito Marcelo Crivella é protegido por milicianos e se ligou perigosamente a uma quadrilha que garfava o carnaval.

Se tudo isso fosse pouco, vem aí a eleição para prefeito. Um dos candidatos é Eduardo Paes, que esteve na cadeira de 2009 a 2016. Ele seria o novo. Na sua equipe brilhava o marqueteiro Marcello Faulhaber.

O Ministério Público descobriu que, entre junho de 2017 e agosto de 2018, o doutor trocou 11,2 mil mensagens com Rafael Alves, poderoso operador de Crivella no mundo do samba. Nas suas palavras:

“Quem manda sou eu e ponto. A caneta é minha, não é de A ou B, e sim só minha”.


Elio Gaspari: A demofobia da ekipekonômika

Bolsonaro recolocou Waldery no seu quadrado

Em menos de 24 horas Jair Bolsonaro impôs mais um vexame aos çábios de sua ekipekonômika.

Na segunda-feira o secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, saiu-se com mais um lance de demofobia. Ele queria congelar por dois anos as aposentadorias e benefícios da Previdência Social e defendia a ideia com um argumento que poderia ter saído de um camelódromo:

“A desindexação que apoiamos diretamente é a dos benefícios previdenciários para quem ganha um salário mínimo e acima de um salário mínimo. (…) O benefício hoje sendo de R$ 1.300, no ano que vem, ao invés de ser corrigido pelo INPC, ele seria mantido em R$ 1.300. Não haveria redução, haveria manutenção.”

Na manhã de terça Bolsonaro recolocou-o no seu quadrado: “Eu já disse há poucas semanas que jamais vou tirar dinheiro dos pobres para dar para os paupérrimos. Quem porventura vier propor a mim uma medida como essa, eu só posso dar um cartão vermelho para essa pessoa”.

Na essência, Bolsonaro lida com um velho problema da condução da política econômica. Os çábios pensam que mandam e tentam atropelar o Planalto com entrevistas capazes de criar fatos consumados. Foi assim com o vazamento do primeiro plano do Renda Brasil, mandado ao lixo pelo capitão. O doutor Waldery repetiu a receita e deu-se mal.

A ekipekonômica quer tirar dinheiro de quem não o tem porque não quer ir ao bolso de quem o tem. No projeto original de reforma da Previdência tungavam-se os miseráveis que vivem com o Benefício de Prestação Continuada. Depois tentaram taxar quem recebe o seguro-desemprego.

O raciocínio do doutor Waldery era indigente.

É sabido que a inflação bate com mais força no andar de baixo. Num exemplo extremo, se um cidadão comprava cinco quilos de arroz por R$ 15 e hoje paga mais de R$ 30, o valor de seu benefício pode ser mantido, mas sua capacidade de comprar arroz será reduzida.

A tunga dos aposentados dependia da aprovação de uma emenda constitucional. Suas chances de aprovação eram menores que as da existência de uma Brasília em Vênus. Ela tinha a barbicha, as quatro patas e o mau cheiro dos bodes. A proposta surgiu no mesmo dia em que reapareceu problema da falta de atendimento nas agências do INSS. Num caso havia uma má ideia. No outro, serviço malfeito.

A adesão de Bolsonaro à eficiência do programa Bolsa Família expôs o primitivismo das ideias de sua ekipekonômika. Todos, inclusive ele, demonizavam o programa petista, mas, na hora do vamos ver, não tinham coisa melhor para botar no lugar. Com a pandemia, jogaram bilhões para custear o necessário benefício emergencial. Como é coisa de emergência, não exige contrapartida, enquanto o Bolsa Família estimula a busca por educação e saúde.

O doutor Paulo Guedes e seus çábios estão presos numa armadilha. Venderam um programa liberal a um capitão intervencionista e insistem em morder o andar de baixo. Tudo isso para deixar a coisas como estão e, se possível, fazê-las andar para trás.

O atraso tem um preço. O economista Thomas Piketty disse tudo quando falou com Luciano Huck. “O Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolver.”

Isso começou há muito tempo, no século XIX o Visconde de Sinimbu informava: “A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo”.

Deu no que deu.


Elio Gasparí: Os e$quemas do $istema $

Assim é o Sistema S. Faz homenagens e tem uma bela caixa, pela qual ao longo dos tempos já passou muita gente boa

Em dezembro de 2018, durante aquele doce período que antecede a posse de um governo, o doutor Paulo Guedes disse que era preciso “meter a faca” no Sistema S. Falava daquele conglomerado de instituições que tiram da veia do sistema produtivo até 2,5% do valor das folhas de pagamento das empresas, um ervanário que vai cerca de R$ 18 bilhões anuais.

Esse era o tempo em que Guedes acreditava ser um superministro. Em agosto de 2019 o presidente Jair Bolsonaro foi ao Piauí e inaugurou a Escola Jair Messias Bolsonaro. De quem era a escola? Do Sesc, uma das joias do Sistema S. Valdeci Cavalcante, presidente do Sesc-PI, esclareceu: “Não estamos homenageando o Bolsonaro. Ele é que irá nos homenagear se aceitar colocar seu nome em nossos anais.”

Assim é o Sistema S. Faz homenagens e tem uma bela caixa, pela qual ao longo dos tempos já passou muita gente boa. Em dois anos de ministério, Paulo Guedes não meteu sequer um canivete por esse lado sombrio do andar de cima nacional.

Felizmente, graças à Lava-Jato do Rio, e à colaboração do mandarim Orlando Diniz que começou a mandar na Fecomércio do Rio em 2004, destampou-se um dos panelões do Sistema S no Rio. Ali fraudavam-se contratos com escritórios de advocacia para corromper magistrados, fiscais, e quem estivesse a fim de receber um dinheirinho fácil.

Quando a Polícia Federal cumpriu 50 mandados de busca e apreensão em cinco Estados e em Brasília, numa operação denominada Esquema $, a Ordem dos Advogados do Brasil viu na diligência uma “clara iniciativa de criminalização da advocacia”. A menos que um anjo da guarda do Supremo Tribunal diga o contrário, houve uma confusão na redação da nota, pois o que houve foi uma clara investigação das atividades criminais de 22 advogados, um auditor do Tribunal de Contas e um jornalista (Sérgio Cabral).

A Operação Esquema $ foi socorrida pela colaboração de Orlando Diniz. No século passado ele começou com um pequeno açougue em Copacabana, presidiu o Sindicato do Comércio Varejista de Carnes do Rio, foi vizinho de Sérgio “O Gestor” Cabral e tornou-se um dos mandarins do Sistema S do Rio, em cujos domínios há até um chateau francês, com direito a chef. Meteu-se em uma encrenca com os marqueses da Confederação Nacional do Comércio e, em 2018, passou um tempo na cadeia e deixou o cargo.

Suas malfeitorias, bem como a conexão com Cabral e a advogada Adriana Ancelmo, são conhecidas desde 2013. Graças às informações que reuniu e aos atos que ratificou, Diniz deu à Lava-Jato o mapa da mina das roubalheiras embutidas em falsos contratos de advocacia.

A denúncia de 510 páginas do Ministério Público tem de tudo, parentes de magistrados, advogados de personalidades e até mesmo a cozinheira de Cabral contratada por um braço do Sistema S. Quem já bebeu águas barrentas saídas da Lava-Jato deve se acautelar à espera de sentenças judiciais. Até lá, a Operação Esquema $ poderá ajudar Paulo Guedes a “meter a faca” nessa forma de oneração da mão de obra nacional.

Todas as fraudes denunciadas, envolvendo pelo menos R$ 151 milhões, destinavam-se a proteger o Sistema e seu maganos. Em um raciocínio cínico, admita-se que uma empreiteira distribuiu R$ 10 milhões na obra de uma ponte. Tudo bem, mas a ponte foi entregue.

A Fecomércio do Rio, socorrida por suas irmãs do Sistema, torrou R$ 151 milhões para nada. Se um “mano” fizer isso no Morro do Borel, amanhece com a boca cheia de formigas. Os marqueses do Sistema S dizem que cuidam de centros culturais e escolas de aprendizado técnico. Vá lá, mas isso custa em torno de 20% do que gastam. Os 80% pagam pirâmides como o prédio da Fiesp y otras cositas más.

Uma coisa é certa, se algum dia o doutor Paulo Guedes meter a faca no Sistema S, o Sesc do Piauí não botará seu nome numa escola.

A terceira vaga

Em novembro o ministro Celso de Mello deixará o Supremo Tribunal Federal e, em junho do ano que vem, será a vez de Marco Aurélio. Assim, o calendário dará a Jair Bolsonaro o direito de preencher duas vagas na Corte.

Até agora, a corrida pelos lugares tem ofendido as regras do esporte. Primeiro porque o presidente criou a qualificação de “terrivelmente evangélico” para o preenchimento de um cargo laico. Depois, pela atividades de André Mendonça, atual ministro da Justiça. Em poucos meses, sua pasta meteu-se em ações tão espetaculares quanto ridículas, processando chargistas e intimando supermercados para justificar o preço do arroz.

A escolha dos ministros do Supremo compete ao presidente, e os candidatos têm o direito de se comportar como bem entendem. Poderiam acreditar nos próprios currículos, mas tentam lustrá-los.

A novidade está no aparecimento da teoria da “terceira vaga”. Pelas regras do jogo, a próxima vaga no STF só surgirá em maio de 2023, quando Ricardo Lewandowski completa 75 anos. A “terceira vaga” surgiria oferecendo-se uma embaixada a algum titular do Tribunal.

É coisa feia, nem tanto para quem oferece, mas para quem a aceita.

Fonte de perigo
Policiais argentinos cercaram a casa do presidente Alberto Fernández numa manifestação por aumento de salários.

Polícia e milícias são a nova forma de desestabilização das instituições na América Latina. A deposição de Evo Morales na Bolívia começou com a ação de milicianos, progrediu com uma revolta da polícia de Santa Cruz de la Sierra e desembocou no fim do mandarinato do presidente.

O Tribunal da Cidadania

Quando o Superior Tribunal de Justiça se intitula “Tribunal da Cidadania” parece marquetagem, mas sua 6ª Turma tomou uma decisão que confirma o título. Acompanhando o voto do relator, Rogerio Schietti, ela concedeu um habeas corpus coletivo que beneficiou cerca de 1.100 presos primários com bons antecedentes, sem ligações com grupos criminosos, condenados por tráfico de drogas à pena mínima de um ano e oito meses de prisão.

Quem vê essa decisão pode pensar que o STJ mandou soltar traficantes de drogas. Eram pessoas pobres, quase sempre negras, metidas com pequenas quantidades de drogas. O que o STJ fez foi travar o punitivismo do Tribunal de Justiça de São Paulo, que colocava esses condenados à pena mínima em regime fechado, nas universidades do crime que são os cárceres do estado. Agora, como acontece aos larápios brancos e abonados, eles poderão ir para o regime aberto.

O Tribunal paulista considerava “crime hediondo” esse tráfico. Vale repetir as palavras do subprocurador da República Domingos Sávio da Silveira: “Hedionda é essa jurisprudência, essa insistência em manter o corpo do pobre, do preto, do periférico nas masmorras do estado de São Paulo.”

Fux sabia
O ministro Luiz Fux deixou para o final de seu discurso a referência ao pai, Mendel, um judeu romeno fugitivo do nazismo, porque sabia que choraria.

E assim foi.


Elio Gaspari: FHC reconheceu a ruína que criou

Quando o governante pode ser reeleito, trabalha de olho nesse prêmio

Com sete palavras Fernando Henrique Cardoso reconheceu a ruína política que provocou buscando a própria reeleição: “Devo reconhecer que historicamente foi um erro”.

Foi mais que um erro, foi um crime, e ele sabia disso desde a primeira hora, há 25 anos.

Na noite de 11 de julho de 1995, diante do nascimento da manobra da reeleição, FHC disse ao gravador que guardava suas memórias:

“Assunto delicado, acho difícil por causa da cultura política brasileira e não me comprometo a ser candidato. Vejo uma vantagem: a de que assim os outros se assustam e não lançam uma candidatura desde já.”

A cultura política brasileira não tinha nada a ver com isso. Em qualquer país ou clube de futebol e em qualquer época, quando o governante pode ser reeleito, trabalha de olho nesse prêmio. Hoje, FHC diz que “tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos”. OK, mas no seu artigo autocrítico ele diz que “visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a eleição é ingenuidade”. Ingenuidade de quem, Grande Chefe Branco? Depois de ter praticado um ruinoso populismo cambial para ajudar sua reeleição até novembro de 1998, FHC desvalorizou o real em janeiro de 1999.

Fernando Henrique Cardoso governou o país por oito anos. A ele se deve um novo tempo na economia, um padrão de moralidade pessoal e uma tolerância que hoje fazem falta. Seu ruinoso legado político foi a instituição do princípio da reeleição. Ele envenenou presidentes, governadores e prefeitos. Em 1995 FHC chegou a dizer que “não penso nisso, o sacrifício é muito grande”. Pensava, queria, conseguiu, e a conta do sacrifício foi para os outros.

Enquanto o tucanato fabricava o veneno, FHC conseguiu dar a impressão de que estava acima da manobra. Tentando tirar a meia sem tirar o sapato, cortou a proposta de um referendo popular para ratificar a decisão do Congresso. Conseguiu, mas um quarto de século depois deu-se conta de que deixou o sistema político brasileiro de tamancos.

Não se trata de um veneno “visto de hoje”. A República brasileira resistiu a esse veneno. Nenhum presidente tentou receitá-lo, nem os da ditadura. Amparado na popularidade e no tacape do regime, o general Emílio Médici (1969-1974) poderia ter conseguido do Congresso uma prorrogação de seu mandato ou até mesmo o direito de candidatar-se numa eleição direta. Médici humilhou os çábios palacianos que armavam a manobra.

A reeleição de FHC foi a cabeça de um bicho que nasceu em 1994, quando o andar de cima, horrorizado com as pesquisas que davam a Lula 40% das preferências, encurtou o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Essa cabeça desmiolada deu oito anos a FHC, 13 ao PT de Lula e Dilma, mais quatro ao ex-capitão Jair Bolsonaro. Que tal oito?

Quando FHC diz que “historicamente” a reeleição foi um erro, embaralha seu legado. Ela era evitada porque sabia-se que era venenosa. Instituída, deu no que deu, e hoje não há vacina contra seus efeitos.

Antes de entrar no Planalto, todos os candidatos dizem que são contra a reeleição. Lula e Bolsonaro diziam, mas mudaram de ideia.


Elio Gaspari: O miliciano Marcelo Crivella

Prefeito do Rio contratou funcionários para constranger cidadãos que reclamam da má qualidade do serviço de saúde do município

Deve-se à paciência e ao destemor dos repórteres Chinima Campos, André Maciel, Diego Alaniz, Sabrina Oliveira e Paulo Renato Soares a exposição da milícia contratada pelo prefeito Marcelo Crivella para constranger cidadãos que reclamam da má qualidade do serviço de saúde do município.

Quando Crivella diz que seus Guardiões estavam nas portas dos hospitais para ajudar quem precisava do serviço de saúde, sabe que está mentindo. Caso raro de pessoa capaz de mentir diante de vídeos.

As milícias políticas já apareceram nas cercanias do Planalto, constrangendo enfermeiros, e em Goiás policiais militares intimidaram pessoas que faziam faixas contra Bolsonaro. Crivella foi exposto na sua magnitude. Seus milicianos, Marcão da Ilha, Dentinho, Jogador, bem como os outros nove comparsas custavam à prefeitura R$ 79.594 por mês. Isso num governo que teve a luz cortada pela Light por falta de pagamento.

As milícias de Crivella e de todos os seus similares têm suas raízes na História da violência política, mas foram os “squadristi” de Benito Mussolini que a transformaram numa força relevante. Adolfo, aquele aquarelista austríaco, adaptou o modelo. (Uma vez no poder, Hitler passou nas armas a liderança de seus camisas-pardas. Na Itália, o líder da milícia, tonitroante e larápio, foi fuzilado em 1945.)

Pela vontade popular, o Rio teve a infelicidade de passar por cinco governadores encarcerados. O sexto, Wilson Witzel, está a caminho do impedimento e, provavelmente, da cadeia.

A distribuição de “boquinhas” para milicianos e até mesmo para maganos fascina beneficiários e amantes de soluções autoritárias. Começam hostilizando quem reclama da política e acabam usando milicianos para inibir quem reclama de falta de atendimento num hospital. Começam contratando o fiel ex-PM Fabrício Queiroz e acabam contratando a mãe do ex-capitão-miliciano Adriano da Nóbrega chefe do Escritório do Crime.

Mussolini tinha uma milícia e algumas ideias. No Brasil e sobretudo no Rio de Janeiro há milícias e todas estão ligadas a uma forma de crime. Ideias, nem ruins.

Moro miava
O pior negócio que o juiz Sergio Moro fez na vida foi meter-se com Jair Bolsonaro. O ferrabrás de Curitiba foi moído pelo capitão e a divulgação de sua troca de mensagens com o presidente mostra que ele se prestou a uma fritura inédita na História republicana.

No dia 12 de abril, reclamando de uma reportagem, Bolsonaro disse-lhe: “Todos os ministros, caso queira contrariar o PR, pode fazê-lo, mas tenha dignidade para se demitir.”

Noves fora a má relação com o idioma, Bolsonaro disse-lhe que devia pedir para sair. Moro fingiu que não ouviu. Uma semana antes fingiu não ter ouvido outra indireta: “Algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando demais. (…) A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona”.

Moro manteve-se em olímpico silêncio durante a tétrica reunião ministerial de 22 de abril. No dia seguinte, diante da notícia de que pedira demissão, manteve-se em silêncio quando o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Netto, desmentiu a informação. Era verdade.

Quando um presidente sugere que um ministro deve pedir demissão, ele a pede ou diz que pode ser demitido. Fora daí, o que há é dissimulação, dos dois.

No dia 12 de outubro de 1977 o presidente Ernesto Geisel disse ao ministro Sylvio Frota que não estava se entendendo com ele e sugeriu que pedisse para ir embora. Frota recusou-se. Geisel demitiu-o, na hora. A conversa durou poucos minutos, e à noite o general estava no avião de carreira, a caminho de sua casa no Rio.

Eremildo, o Idiota
Eremildo é um idiota e está pronto para falar bem do prefeito Marcelo Crivella.

Qualquer dinheirinho serve.

Para mostrar sua disposição o cretino garante:

Desde Estácio de Sá o Rio não teve governante melhor. (Um maldito índio flechou-o e ele se foi.)

Ministro supremo
Semana que vem o ministro Luiz Fux assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal em sessão virtual.

Essa será uma investidura determinada pelo calendário. Na vida real, pelo movimento dos processos do bolsonarismo que estão no armário do ministro Gilmar Mendes, ele será o Supremo Ministro.

Patrono contra a vacina
O capitão Jair Bolsonaro diz que ninguém pode ser obrigado a tomar a vacina contra a Covid-19. Tudo bem. Quem não quiser não toma. A obrigatoriedade erradicou a febre amarela e não há como impedir que um libertário contaminado passe o vírus para os outros.

Países andam para trás. O Império Romano que o diga. No Brasil, em 1904, jornalistas, políticos e militares estimularam a maior revolta da História da cidade, contra a vacina obrigatória. O presidente Rodrigues Alves defendeu a lei, mandou atirar e manteve a ordem.

Entre os mortos ficou o general Silvestre Travassos, um dos chefes da revolta militar.

Ele comandava uma marcha em direção ao palácio presidencial, tomou um tiro em Botafogo e morreu dias depois.

É possível que tenham morrido mais brasileiros na atual pandemia do que em todas as epidemias dos séculos XIX e XX.

Pesadelo petista
Há alguns meses o pesadelo dos petistas era sair da eleição municipal sem chegar ao segundo turno em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Em São Paulo, o crescimento de Guilherme Boulos (PSOL), na intelectualidade e no meio artístico, bem como o fortalecimento das alianças de Bruno Covas (PSDB), sugerem que esse resultado parece inevitável.

Num cenário catastrófico, Boulos pode até conseguir mais votos que o comissário Jilmar Tatto.

Roupa suja
Se metade do que as facções em que está dividido o Ministério Público diz for verdade, a corporação precisa de uma Lava-Jato.

Até quarta-feira
O ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, entraram no bloco da marchinha carnavalesca “Até Quarta-Feira”.

Em qualquer tempo, sempre que a economia expõe um indicador catastrófico, os çábios anunciam que a bonança está logo ali: “Este não ano vai ser igual àquele que passou”.

A pandemia já havia chegado, e o doutor Guedes previa um crescimento do PIB de 1%. Veio o tranco da contração de 9,7% do segundo trimestre, e ele promete um crescimento de 4,5% para o ano que vem. Campos oferece mais de 4%.

Nota de peso
Lançada no meio de uma pandemia, na semana em que se soube de uma contração do PIB de 9,7% e ilustrada com um lobo-guará parecido com uma hiena, a nota de R$ 200 arrisca entrar para o folclore das moedas que dão peso.

Nos Estados Unidos as notas de dois dólares pegaram essa urucubaca. Acredita-se que a superstição tenha nascido no século passado, quando políticos compravam votos com essas cédulas. Entre outras utilidades, as notas de R$ 200 fazem menos volume nas malas de maganos.


Elio Gaspari: A Casa de Rui Barbosa não merece isso

Quem é o cachorro da Suprema Corte Cachorral?

A Casa de Rui Barbosa merece respeito. O repórter Lauro Jardim revelou o teor de uma mensagem de sua presidente, Letícia Dornelles.

Nela, dizia o seguinte: “Sua excelência, o ilustre ministro Cachorro, da Suprema Corte Cachorral, prepara habeas corpus para seus nobres colegas cachorrinhos poderem latir em paz. Liberdade de expressão cachorral.”

Ainda não se sabe a qual “cachorro” do Supremo Tribunal ela se dirigia. Sabe-se que a senhora foi nomeada pelo ministro Osmar Terra, comendador da Ordem da Covid, médico e ex-secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, famoso por ter previsto, em abril passado, que o coronavírus mataria, no máximo, duas mil pessoas no Brasil. Já matou 120 mil.

A presidente da Casa de Rui é uma carta do baralho bolsonarista na qual estiveram um ministro da Educação para quem “brasileiro viajando é um canibal, rouba coisas nos hotéis”. Foi sucedido por outro que chamou os ministros do Supremo de “vagabundos”. Na Secretaria de Cultura o bolsonarismo colocou um cidadão que entrou no cargo parafraseando Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler. Para seu lugar foi a atriz Regina Duarte, que infelicitou sua biografia com uma entrevista na qual relativizou os assassinatos praticados durante a ditadura.

Na Educação e na Cultura, o bolsonarismo mostra a diferença entre o conservadorismo e o atraso. A Casa de Rui foi dirigida de 1939 a 1993 pelo historiador Américo Jacobina Lacombe. Era um conservador da cepa de Hélio Vianna. Trabalhava em cima de arquivos e, assim, deu corpo ao acervo da Casa que dirigiu. Em 1964, quando nos comícios gritava-se “Reforma agrária na lei ou na marra”, ele assinou um manifesto contra a edição de uma “História nova” pelo Ministério da Educação. Criticava-a porque era esquerdista, mas também porque era ruim. Meses depois, o governo de João Goulart foi deposto, e o marechal Castello Branco assumiu a Presidência. Ele era cunhado de Hélio Vianna que, como Lacombe, havia militado no movimento integralista, uma contrafação nacional do fascismo italiano. Nenhum dos dois associou-se ao terror cultural do regime. (Por justiça, diga-se que o próprio Castello Branco condenava os excessos que se praticavam.) Eram todos conservadores, mas não eram atrasados, muito menos ignorantes.

Aquilo que hoje se chama de Nova Direita tem um dente envenenado com a cultura e outro com o Poder Judiciário. Quando os bolsonaristas investem contra o Supremo Tribunal, ecoam as táticas dos húngaros de Viktor Orbán e dos poloneses do partido Lei e Justiça. Ambos detestam também a imprensa, mas essa é outra conversa. A raiva bolsonarista, como a da presidente da Casa de Rui, vem dessa raiz, mas a senhora Letícia não percebeu que a Casa que dirige tem o nome do patrono dos advogados brasileiros.

No mês passado completou um ano a publicação de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia gastar R$ 3 bilhões na compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets para escolas da rede pública. Um colégio que tem 255 alunos receberia 30.030 laptops. A Controladoria-Geral da União apontou esse vício e vários outros. O edital foi cancelado.

Até hoje não se sabe quem botou o jabuti na árvore.


Elio Gaspari: A caótica fritura de Paulo Guedes

Como superministro, ele foi uma invenção marqueteira

O “Posto Ipiranga” entrou num humilhante processo de fritura. Felizmente, essa figura nunca existiu. Se existisse, o perigo seria enorme, pois é impossível fritar um posto de gasolina. Pode-se explodi-lo, mas o quarteirão vai junto. Paulo Guedes como superministro foi uma invenção marqueteira, que jamais ficou em pé. O doutor acumulou poderes sem ter um projeto viável, acreditou na própria lenda, achou que estava chegando ao paraíso, confiou em velhos truques e em menos de dois anos deu-se conta de que é o presidente quem manda.

Quando Bolsonaro mandou ao lixo seu projeto para o Renda Brasil, deu-lhe uma lição: “Não posso tirar dos pobres para dar para paupérrimos”. Na mosca, pois era isso que Guedes propunha, tirar recursos do abono que beneficia 23 milhões de pessoas com renda inferior a dois salários mínimos, para quem não tem nem isso.

Essa foi a boa notícia. A má é que Paulo Guedes vem sendo perseguido por outro fantasma marqueteiro, chamado “Pró-Brasil”. Ele apareceu intitulando-se um “Plano Marshall” para o país. Era coisa de quem não sabia o que foi o plano de recuperação econômica da Europa depois da Segunda Guerra Mundial.

Piorando, é também coisa de quem não sabe o que quer, além do elementar avanço sobre a bolsa da Viúva. Nesse bloco brilha o ministro Rogério Marinho. Quando ele estava na ekipekonômica de Guedes, defendeu a taxação compulsória das pessoas que recebem auxílio-desemprego. Não se tratava de tirar do pobre para dar ao paupérrimo, mas de tirar de quem está sem trabalho para reforçar a caixa do governo.

Promovido a ministro do Desenvolvimento Regional (e candidato ao governo do Rio Grande do Norte), tornou-se um defensor da necessidade de investimentos “no capital humano e na infraestrutura”. Nada mais sensato. Marinho defendeu essa tese na tenebrosa reunião ministerial de 22 de abril. Amparou-se no exemplo da audaciosa e clarividente decisão do chanceler alemão Helmut Kohl para custear a reunificação do país no final do século passado. (Nessa reunião, Jair Bolsonaro fritava seu ex-superministro Sergio Moro.) Marinho poderia ter prosseguido no exemplo alemão: Kohl foi apanhado num escândalo de arrecadação ilegal de dinheiro de campanha, perdeu o cargo, sua mulher matou-se e ele morreu no ostracismo, em 2017.

Guedes acreditou em muitas fantasias. Achou que o mercado lhe dava tanta força que podia advertir o presidente da República. No último dia 11 ele disse o seguinte:

“Os conselheiros do presidente que estão aconselhando a pular a cerca e furar teto e vão levar o presidente para uma zona de incerteza, uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal. E o presidente sabe disso e tem nos apoiado.”

Passaram-se 15 dias e tomou o troco. O “tem nos apoiado” era uma doce ilusão.

A turma que frita Guedes apresenta-se como “ala desenvolvimentista”. Antes fosse. Passou o tempo e tudo voltou ao dia em que disseram ao marechal Castelo Branco que se formava uma aliança contra o “inimigo comum”. Ele perguntou quem seria esse inimigo e disseram-lhe que era ele.

—Eu, não. É o Erário.

Recordar é viver
No século passado, quando o presidente José Sarney fez o Plano Cruzado e pareceu ter acabado com a inflação, o empresário Dilson Funaro tornou-se o ministro da Fazenda mais popular de todos os tempos.

O Cruzado fazia água e falava-se que o ministro popular poderia deixar o governo. No Planalto repetia-se que Funaro só sairia se quisesse.

Um dos ministros mais poderosos do governo avisava:

“Ele vai sair, mas só depois de termos quebrado todos os seus ossinhos.”

Desossado, ele saiu em abril de 1987.

Como salvar uma escola
As coisas boas também acontecem. Com a pandemia e a recessão, milhares de colégios particulares estão lutando pela vida. Em julho, a Escola Espaço Ratimbum de Morungaba, pequena cidade próxima a Campinas, parecia condenada. Sua fundadora, Viviane Catapani, foi buscar ajuda na comunidade. Aos empresários, pediu que adotassem alunos com bolsas de estudo. Ao pais das crianças, ofereceu descontos a quem pudesse adiantar as mensalidades.

Dono de uma fazenda na região, o empresário Fernando Carramaschi ajudou a mobilização da professora e, em menos de dois meses, a comunidade salvou a escola. Seis mães de alunas, o dono do posto Shell e pessoas ligadas às empresas Alpina Têxtil e Agropecuária Purininha salvaram a Ratimbum. A escola recebeu R$ 17 mil, e tem apalavrados outros R$ 41 mil. Dos 52 alunos do colégio, dez terão bolsas de estudo.

Ressaca
Em uma semana a polícia, o Ministério Público e o Superior Tribunal de Justiça mostraram o tamanho de embustes que estavam embutidos na onda moralista de 2018.

A polícia acusa a deputada Flordelis de ter matado o marido-pastor Anderson do Carmo. O Ministério Público acusou o Pastor Everaldo de ter avançado sobre recursos destinados a combater a pandemia e o ministro Benedito Gonçalves mandou-o para a cadeia.

O mesmo ministro afastou o ex-juiz Wilson Witzel do governo do Rio. Eleito em nome da moralidade num estado que teve cinco governadores encarcerados, Witzel dificilmente voltará ao Palácio Guanabara. Benedito Gonçalves poderia ter dado um toque de humor à sua decisão exigindo que o doutor usasse a ridícula faixa azul que mandou confeccionar no dia de sua posse.

Numa trapaça da História, no dia em que o Senado afastou a presidente Dilma Rousseff, o Pastor Everaldo batizava nas águas do Rio Jordão o deputado Jair Bolsonaro. Além do que seria a fé, Bolsonaro e Everaldo conviveram no Partido Social Cristão, presidido pelo pastor.

Biden pelado
Donald Trump passou quatro anos apanhando. No seu discurso aos republicanos, começou a atirar em Joseph Biden, e o candidato americano virará vidraça nos próximos meses.

Noves fora as trapalhadas de seu filho, a turma que lhe dava segurança quando era vice-presidente conta que o ilustre sexagenário tinha o hábito de tomar banho de piscina nu.

Os agentes do Serviço Secreto que protegem o presidente americano e seu vice adoram os republicanos, santificam Ronald Reagan, detestam Jimmy Carter e odeiam Hillary Clinton. Mesmo assim, não falam mal de Barack e Michelle Obama (codinomes “Renegado” e “Renascença”). Ela fazia questão de ser chamada pelo primeiro nome.

Wassef e a JBS
Quem conhece o valor dos honorários de advogados acha que os R$ 9,8 milhões que a JBS pagou ao advogado Frederick Wassef podem até ser razoáveis, desde que estejam vinculados ao êxito nos litígios.

Nos próximos dias o procurador-geral Augusto Aras saberá quais eram os exitosos caminhos de Wassef


Elio Gaspari: Por que Queiroz depositou R$ 89 mil?

O MP não tem pressa, só perguntas

Em 2018 Jair Bolsonaro era o presidente eleito quando teve que explicar um depósito de R$ 24 mil feito pelo faz-tudo Fabrício Queiroz na conta de sua mulher. À época ele disse que esse dinheiro se relacionava com uma dívida de R$ 40 mil que o ex-PM tinha com ele.

O senador Flávio Bolsonaro conversou com Queiroz e deu-se por satisfeito: “Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não há nenhuma ilegalidade”.

O vice-presidente eleito Hamilton Mourão acrescentou o essencial elemento de dúvida: “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro.(…) Algo tem, aí precisa explicar a transação.”

Passaram-se dois anos, e nada aconteceu de bom para os Bolsonaros. O depósito de R$ 24 mil podia até ser parte da quitação de uma dívida de R$ 40 mil. Mas o ervanário depositado pelos Queiroz foi de R$ 89 mil. Bolsonaro não gosta de ouvir essa pergunta, mas precisa se habituar a conviver com ela. A ideia de “meter a porrada” em quem a faz é inútil, porque ela virá muitas vezes do Ministério Público. Os procuradores não têm pressa, só perguntas, e até hoje os Bolsonaros não contribuíram para o esclarecimento do que seriam seus rolos com Queiroz.

O que, em 2018, eram movimentações financeiras estranhas de um faz-tudo virou coisa mais pesada. Onze servidores alocados nos gabinetes dos Bolsonaros faziam depósitos nas contas de Queiroz. Entre eles estavam a ex-mulher e a mãe do ex-PM Adriano da Nóbrega, um miliciano foragido, que foi morto numa operação policial no interior da Bahia. Queiroz nunca deu uma explicação convincente para seus rolos. Sumiu e apareceu na casa de Atibaia do advogado Frederick Wassef. O doutor defendia os interesses de Flávio Bolsonaro. Todas as conexões de Queiroz tinham o aspecto comum às malfeitorias da pequena política do Rio de Janeiro, até que os repórteres Luiz Vassalo, Rodrigo Rangel e Fabio Leite revelaram que o doutor Wassef recebeu R$ 9 milhões para defender os interesses da JBS junto à Procuradoria-Geral da República e aos tribunais de Brasília. Em outubro passado, meses antes da manhã em que Fabrício Queiroz foi preso em sua casa, Wassef estava a serviço da empresa. Atravessaram a rua para entrar no Caso Queiroz.

A JBS é hoje a maior empresa do país em receita, superando a Petrobras. Produzindo alimentos, ela foi uma das “campeãs nacionais” durante o consulado petista e tornou-se uma vaca leiteira para as criaturas que habitam aquilo que o doutor Paulo Guedes chamou de “pântano político, (com) piratas privados e burocratas corruptos”. Em 2017 Joesley Batista, um de seus controladores, quase derrubou o governo de Michel Temer gravando uma conversa escalafobética que teve com ele para azeitar o acordo de colaboração que fecharia com o procurador-geral Rodrigo Janot.

Em 2018, quando o Coaf desconfiou das contas de Queiroz, puxando os fios chegava-se aos Bolsonaros e às pizzarias de Dona Raimunda, mãe do miliciano Adriano da Nóbrega. Passaram-se dois anos, nenhuma pergunta foi respondida e, puxando o fio do ex-PM faz-tudo dos Bolsonaros, bateu-se em Wassef, que teve como cliente a JBS, uma das maiores empresas de alimentos do mundo.


Elio Gaspari: Livro mostra como artistas construíram o rosto de Tiradentes

Sete anos de pesquisas, com a consulta de 300 imagens, permitiram mostrar como foi construído o rosto que está em monumentos, quadros, cédulas, moedas e selos

Quando a vida voltar ao normal chegará às livrarias “Em busca de um rosto — A República e a representação de Tiradentes”, de André Figueiredo Rodrigues e Maria Alda Barbosa Cabreira. É uma valiosa pesquisa histórica, verdadeira viagem pela criação dos artistas que desenharam ou esculpiram o alferes e pela cabeça das épocas em que ele foi retratado. Ninguém sabe como era o rosto de Joaquim José da Silva Xavier. Vai daí, construiu-se uma imagem e, dependendo da época, ela muda. O Tiradentes mais conhecido está de bata, com os cabelos e a barba compridos. É uma licença poética, pois ele foi da cadeia ao patíbulo com a cabeça raspada.

Sete anos de pesquisas, com a consulta de 300 imagens, permitiram mostrar como foi construído o rosto que está em monumentos, quadros, cédulas, moedas e selos.

O primeiro Tiradentes, com barba, apareceu num busto de 1881, mas ele se perdeu. Um ano depois o abolicionista republicano Luiz Gama comparou-o a Jesus Cristo. Os martírios fundiram-se em 1890, num desenho de Décio Villares e no traço do grande jornalista Angelo Agostini, pai da “Revista Illustrada”. O Tiradentes de Agostini ecoa o “Cristo carregando a cruz” do pintor van Dyck (1599-1641). No desenho aparece, anexa, uma corda. E há ainda um corpo sem cabeça.

Visto que nada se sabe da fisionomia do alferes, a corda passa a ser um elemento revelador na construção de sua imagem. Com ela, é um revolucionário; sem ela, pode ser um mártir ou até um militar fardado. O traço de Agostini inspirou o escultor italiano Virgilio Cestari para esculpir o Tiradentes que desde 1894 está na Praça de Ouro Preto, com 2,85 metros de altura e corda no pescoço.

Noutra fusão, Pedro Américo pintou em Florença, em 1893, o seu magnífico “Tiradentes supliciado”. Lá estão a corda, o seu corpo esquartejado e, ao lado da cabeça, um crucifixo.

Em 1926, Francisco Andrade fez o monumento que está em frente ao Palácio Tiradentes, no Rio. A corda sumiu, e o condenado está numa posição quase penitente, com as mãos sobre o peito.

Em 1963, a fisionomia do Tiradentes de Agostini foi (sem corda) para a cédula de cinco mil cruzeiros, mas no verso o condenado está diante do carrasco Capitania. Hoje ele aparece na moeda de cinco centavos, sem corda, com a barba que não tinha quando foi enforcado.

O historiador André Figueiredo Rodrigues já publicou um minucioso trabalho sobre o patrimônio dos inconfidentes. Nos próximos anos, publicará o resultado de suas pesquisas sobre Joaquim Silvério dos Reis. Vale a pena esperar, pois tudo indica que a República, tendo criado um Cristo (Tiradentes), precisou criar um Judas: Silvério, como se ele tivesse sido delator da conspiração. Não foi bem assim.

Maia deu um basta aos planos de saúde
Deve-se ao deputado Rodrigo Maia a trava imposta aos planos de saúde que tentavam aumentar as suas mensalidades em até 20% num país onde uma pandemia já matou mais de 110 mil pessoas. Algum dia será contada direito a voracidade das operadoras. Começaram se recusando a refrescar a vida dos inadimplentes, vá lá. Em seguida, tentaram negar cobertura para testes sorológicos e se livraram dessa despesa por alguns meses. Tudo isso se movendo no escurinho de Brasília.

Na semana passada, elas começaram a cobrar reajustes de até 25%. Com a crise, essas empresas perderam 400 mil clientes, mas uma série de circunstâncias permitiu que aumentassem seus lucros. Uma grande operadora lucrou 150% acima do mesmo período do ano anterior. A essa bonança somou-se uma queda da inadimplência. Mesmo assim, tiveram autorização da Agência Nacional de Saúde para empurrar os reajustes.

Maia travou a tunga com um basta: “Aumentar um plano em 25% é um desrespeito com a sociedade.” Ameaçou votar na terça-feira um projeto que proíbe o tasco. Numa época em que o Legislativo está debaixo de chumbo, o presidente da Câmara mostrou que às vezes ele é a última trincheira para a defesa dos interesses da sociedade.

Com suas complexas e astutas conexões, as operadoras de planos de saúde sempre mostram que podem muito. Felizmente, não podem sempre.

Bannon
Steve Bannon, o guru de Donald Trump e inspirador dos Bolsonaro, foi preso, acusado de ter metido a mão no dinheiro de doadores que colaboraram para a campanha pela construção de um muro na fronteira dos Estados Unidos com o México.

Bannon superou os larápios latino-americanos e os sobas da África. Nesses casos, avançam sobre dinheiro do Erário. O ideólogo da Nova Direita avançava sobre doações de gente que pensa como ele. Bem feito.

Zona de perigo
Não é só o governador Wilson Witzel (Rio) quem está com a cabeça a prêmio.

Ele rala um processo de impedimento e poder vir a ser assombrado por novas revelação e diligências.

Os governadores Carlos Moisés (Santa Catarina) e Wilson Lima (Amazonas) precisam de bons advogados para defendê-los no Superior Tribunal de Justiça.

Nos três casos, as administrações dos doutores estão metidas em malfeitorias relacionadas com o dinheiro que deveria ter ido para o combate à pandemia e pode ter ido para os bolsos de espertalhões.

Os dossiês de Mendonça
O melhor que pode acontecer com os dossiês do ministro André Mendonça é a sua exposição à luz do sol, o melhor dos detergentes.

Noves fora as questões legais, a exposição do conteúdo dessas arapongagens permitirá que se avalie a qualidade de suas informações.

Quem apostar que reúnem banalidades temperadas com insinuações e comentários destinados a agradar as chefias, ganhará um dinheiro fácil.

Em 1975, os serviços de inteligência resolveram estudar o livro “Autoritarismo e democratização”, do professor Fernando Henrique Cardoso, “reconhecidamente comunista”, segundo um dossiê do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). Até aí, tudo bem, pois até hoje há pelo menos um general (da reserva) que garante isso.

O livro de FH foi analisado por quatro braços da inteligência da ditadura: a Secretaria de Segurança de São Paulo, o Cisa, o Serviço Nacional de Informações e a Polícia Federal. Todos acusavam FH de “instigar a violência”. O exame desses pareceres permite afirmar que o SNI, o Cisa e a Federal fizeram um trabalhoso “copia e cola” em cima do texto da secretaria paulista.

Petrobras tucana
Na sua 72ª fase, a Lava-Jato voltou às malfeitorias praticadas na Petrobras.

Nas 71 etapas anteriores ela se concentrou nas atividades do comissariado petista. Desta vez, estão diante de uma oportunidade para conhecer o que acontecia por lá durante uma parte do mandarinato tucano.

O jogo de licitações viciadas e aditivos milionários começou bem antes. A escala era menor, mas a metodologia era a mesma.


Elio Gaspari: Um terreno baldio chamado Palocci

O comissário petista avacalhou as delações

Não foi por falta de aviso. Em 2018, quando se falava numa eventual colaboração de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e quindim da banca, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, da Lava-Jato, dizia que aquilo que poderia ser uma delação do “fim do mundo” estava mais para “fim da picada”. Palocci negociava com o Ministério Público, mas sua colaboração foi rebarbada. O doutor estava na cadeia, onde cultivava uma pequena horta. Começou a conversar com a Polícia Federal e com ela conseguiu fechar um acordo que o levou para casa. Passaram-se alguns meses, e Carlos Fernando voltou à carga: “O procedimento de delação virou um caos”.

De nada serviram as advertências. O caos prosperou, e a colaboração de Palocci, com suas 86 páginas, foi astuciosamente divulgada pelo juiz Sergio Moro dias antes do primeiro turno da eleição de 2018.

Olhada de longe, foi explosiva. Examinada de perto, assemelhava-se à cabeça daqueles que Tancredo Neves queria maltratar: “Parece um terreno baldio, onde as pessoas que passam jogam o que querem”. Naquele terreno baldio havia lixo, mas lá estavam também coisas que poderiam ser investigadas. A ajuda do ditador líbio Muamar Kadafi às primeiras campanhas de Lula, por exemplo. Palocci indicou como o dinheiro teria chegado ao PT, mas não se conhece providência para puxar esse fio.

Num dos 39 anexos, Palocci contou à Polícia Federal que Lula acertou com o banqueiro André Esteves (BTG) uma conta-propina de R$ 10 milhões que seria abastecida pelos ganhos com informações privilegiadas. O comissário indicou detalhadamente como o banco foi favorecido. A PF quebrou sigilos, ouviu operadores e dois personagens que estavam colaborando com a Justiça.

Conclusão: “As afirmações feitas por Palocci parecem todas ter sido baseadas em dados públicos, sem acréscimo de elementos de corroboração, a não ser notícias de jornais”.

A Polícia Federal colheu o depoimento, Moro jogou-o no ventilador, e agora a própria PF concluiu que ali havia muito pirão e nenhuma carne.

A estrepitosa colaboração de Palocci incriminou algumas das maiores empresas do país, constrangeu cidadãos, alimentou vinditas e ações espetaculosas. O encanto que o andar de cima teve pelo então ministro da Fazenda permite supor que ele mantivesse relações promíscuas com alguns maganos. O médico que o PT elegeu prefeito de Ribeirão Preto em 1992 acumulou considerável patrimônio, devolveu uma parte, ralou uma cadeia e hoje está preso em casa. Tornou-se símbolo do “fim da picada” e do “caos” previstos e denunciados pelo procurador Carlos Fernando. Sua colaboração, liberada durante a campanha eleitoral pelo juiz que desafortunadamente viria a aceitar o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, caminha para ser o que sempre foi: uma ardilosa construção para tirá-lo da carceragem de Curitiba.

Palocci transformou em realidade a piada do advogado que, na madrugada de 24 de agosto de 1954, teria sido chamado para atender um cliente preso com uma faca ensanguentada, saindo de um quarto de pensão do Catete onde estava, morta, uma mulher. O advogado não sabia o que fazer, até que, às oito e meia da manhã, um rádio anunciou o suicídio de Getúlio Vargas.

O rábula virou-se para o delegado e disse: “Doutor, esses dois eventos são conexos.”


Elio Gaspari: Epidemia de descaso na educação

Esse Enem será um massacre para os jovens do andar de baixo, e não há educateca ilustre preocupado com isso

Se faltasse uma cena capaz de mostrar que Brasília é uma ilha de fantasias e o governo de Jair Bolsonaro vive no mundo da Lua, mostrou-se perfeita a posse do professor Milton Ribeiro no Ministério da Educação. Os estudantes brasileiros estão sem aulas presenciais desde março e, em janeiro, 5,8 milhões de jovens que concluíram o ensino médio irão para o Enem sem o preparo necessário. A respeito dessa desgraça, nem uma palavra.

Ribeiro contou que sua Universidade Mackenzie foi a primeira a receber filhos de escravos e que estudou na rede pública. Bolsonaro lembrou que fez toda a vida em escolas da Viúva. Nenhum dos dois percebeu que, de acordo com dados de 2008, três em cada dez jovens que concluíam o ensino médio não tinham acesso à internet. Sem ela e sem aulas, resta saber como podem se preparar direito. Os jovens Milton e Jair provavelmente estariam ferrados no Enem de janeiro.

Esse Enem será um massacre para os jovens do andar de baixo, e não há educateca ilustre preocupado com isso. Sabe-se lá o que pode ser feito, mas a triste realidade é que eles nem fingem estar preocupados.

A única coisa que se fez foi colocar em circulação a cloroquina pedagógica do ensino à distância. Na teoria, resolve qualquer problema, na prática, resolve os problemas de alguns espertalhões.

Amanhã, Ribeiro estará sentado de ministro. Pode começar sua gestão perguntando como foi preparado o edital 013 de 21 de agosto de 2019. Ele mexia exatamente com a informatização da rede pública de ensino. Pretendia jogar R$ 3 bilhões para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks. A Controladoria-Geral da União apontou a maracutaia.

Repetindo: a Escola Municipal Laura de Queiroz, de Minas Gerais, receberia 30.030 laptops para seus 255 estudantes. Na Chiquita Mendes, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG), cada aluno ganharia cinco laptops. Duas das empresas que mandaram orçamentos ao FNDE enviaram cartas com o mesmo erro de português: “Sem mais, para o momento, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessária”. Noutra coincidência, as duas empresas pertenciam à mesma família.

O edital foi cancelado. De lá para cá, o FNDE (R$ 58 bilhões no cofre) teve três presidentes, e ninguém contou como o jabuti foi parar na árvore.

Ribeiro anunciou que é homem do diálogo. Pode começar perguntando de onde saiu o edital. Se sobrar tempo, pode tentar saber o que é possível fazer pelos jovens que ficaram sem aulas e não têm acesso à rede.

A delegada perdeu
Depois de mais de três anos de litígio, o juiz Elder Fernandes Luciano, da 10ª Vara Federal Criminal, absolveu o repórter Marcelo Auler no processo que lhe movia a delegada Erika Mialik Marena por ter publicado um artigo em que lhe atribuía possíveis vazamentos de informações relacionados com a Operação Lava-Jato. Mais: o juiz disse que “não é necessário prolongar a ação penal com instrução processual em virtude de poder reconhecer que o fato narrado evidentemente não constitui crime.”

Marena considerou-se ofendida e queria uma indenização de R$ 8 mil. Em 2016, a delegada da Polícia Federal conseguiu uma ordem judicial para tirar do ar dez reportagens de Auler. Um mês depois, a decisão foi revogada. Ela foi um dos pilares do período de esplendor da Lava-Jato em Curitiba e deu nome à operação. No filme “A lei é para todos”, Marena foi interpretada pela atriz Flávia Alessandra.

No dia 14 de setembro 2017, a delegada comandou a espetaculosa Operação Ouvidos Moucos, que investigava fraudes nas contas da Universidade Federal de Santa Catarina. O reitor, Luiz Carlos Cancellier, foi preso. Libertado, estava proibido de circular no campus da escola e escreveu um artigo contando “a humilhação e o vexame” a que foi submetido: “Uma investigação interna que não nos ouviu; um processo baseado em depoimentos que não permitiram o contraditório e a ampla defesa; informações seletivas repassadas à Polícia Federal.”

Sete dias depois, o professor matou-se atirando-se do alto de um shopping de Florianópolis.

O TCU inventou que pode tudo
Está nas livrarias “O soberano da regulação — O Tribunal de Contas e a infraestrutura”, dos advogados Pedro Dutra e Thiago Reis. É um trabalho jurídico, frio e devastador. Mostra como o TCU, um organismo que deveria assessorar o Legislativo como uma Corte de Contas, transformou-se num Tribunal, seus conselheiros viraram ministros e expandiram suas atividades, metendo-se em tudo. Atribuem-se poderes que nem o Supremo Tribunal tem. Por exemplo: avaliar a economicidade de uma praça de pedágio ou definir os “processos de desestatização”.

É um livro técnico, útil para ser discutido, sobretudo quando expõe que se formou um corpo burocrático interessado em “alavancar o potencial de controle do TCU em matérias regulatórias”. (Palavras de um documento de um braço da instituição.)

Faz tempo que o Tribunal de Contas vai além de suas chinelas, mas deve-se reconhecer que o chão de Brasília está cheio de cacos de vidros y otras cositas más. Foi o TCU quem detonou a maluquice do trem-bala durante o comissariado petista.

Rodrigo Maia
Quem conhece a Câmara acredita que o deputado Rodrigo Maia está caindo numa armadilha ao tentar se reeleger para a presidência da Casa.

Os inimigos que pretendem fritá-lo alimentam-no com a ideia de que conseguirá passar pelo Supremo Tribunal e terá os votos para a recondução. Enquanto ele acredita nisso, fica prisioneiro da agenda de todos os cleros da Casa.

Crise engorda
Quem já viu como as crises engordam mesmo em jejum, garante que o caso da representação dos comandantes militares contra o ministro Gilmar Mendes precisa ser descascado logo.

Nessas horas, quando alguém sugere esperar mais um tempinho, está apostando no agravamento da encrenca.

Alerta no Rio
Pelo cheiro da brilhantina, a Procuradoria-Geral entendeu-se com o Ministério Público do Rio e destravaram-se várias investigações que estavam travadas há meses.

Má notícia para pelo menos cinco desembargadores do Tribunal de Justiça.

Joe Biden
Se o Brasil tivesse chanceler, já teria seguido o conselho que John Bolton, o ex-assessor para segurança nacional de Trump, transmitiu pela repórter Beatriz Bulla: Bolsonaro deve abrir canais de conversas com a equipe do candidato democrata Joe Biden.

Essa é uma tarefa para a espécie de diplomatas que o ministro Ernesto Araújo detesta: experientes, relacionados e hábeis.

Biden pôs dois dígitos de vantagem sobre Trump e, ao contrário do que fez Hillary Clinton há quatro anos, flerta com os republicanos de centro com a mesma habilidade que Ronald Reagan cultivou os democratas moderados em 1980.

Ócio
Nos próximos quatro domingos, o signatário vai se dedicar ao ócio, pesquisando, por pura curiosidade, os efeitos da cloroquina sobre seja lá o que for.


Elio Gaspari: A fala de Gilmar acordou um vírus

Crises fazem parte da vida, golpes precisam de golpistas

Em abril do ano passado, quando era ostensiva a participação de militares na administração civil de Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão disse o seguinte:

“Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”

Entregar o que prometia, o capitão sabe que não entregará. A pandemia e suas superstições confirmaram sua previsão de março: “Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.”

Mourão acredita que o ministro Gilmar Mendes “forçou a barra” quando disse que, com a conduta do governo diante da pandemia, “o Exército está se associando a esse genocídio”. Gilmar tem uma queda pelo exagero. Se tivesse dito que o Exército está sendo associado a uma ruína, o vice-presidente não poderia se queixar, pois estaria seguindo o raciocínio que ele enunciou há um ano.

O Ministério da Saúde não tem titular. O general Eduardo Pazuello é um interino e na sua equipe há 24 militares. Com suas certezas epidemiológicas, Bolsonaro jogou-os na fogueira. Nelson Teich, paisano, foi-se embora.

Pinçado, o trecho da fala de Gilmar foi repelido pelo ministro da Defesa e pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Força Aérea: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana.”

Se o caso ficasse nisso, seriam salvas trocadas, mas o Ministério da Defesa informa que representará contra Gilmar Mendes junto à Procuradoria-Geral da República.

Foi assim que nasceu o Ato Institucional nº 5. Uma conspiração palaciana manipulou um discurso (irrelevante) do deputado Marcio Moreira Alves para que o governo pedisse licença à Câmara para processá-lo. No dia 12 de dezembro o plenário negou o pedido e no dia seguinte o marechal Costa e Silva baixou o Ato. Foram dez anos de ditadura escancarada, torturas e extermínio. No Ministério da Justiça estava um tatarana. A cabeça militar dessa urdidura foi a de um general miúdo, conspirador incorrigível. Jayme Portella de Mello foi para escanteio anos depois, sem ter conseguido a quarta estrela.

Como a manobra de 1968 deu certo, ela foi reciclada sete anos depois. Num discurso, o senador Leite Chaves protestou pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog: “Hitler, quando desejava praticar atos tão ignominiosos como os que estamos presenciando, não se utilizava do Exército, mas sim das forças da SS.” O ministro Sylvio Frota foi ao presidente Ernesto Geisel e, supondo falar em nome do Alto Comando, exigiu a cassação do senador. (O Ato 5 estava em vigor.)

Quando Frota entrou no gabinete de Geisel, esta foi a cena, nas suas palavras:

“Merda! Merda! Vocês querem criar um problema! Eu não quero ser ditador! A ser ditador, que seja um de vocês!”

Frota miou, propôs uma representação contra Leite Chaves e nem isso conseguiu. Com a ajuda do senador Petrônio Portella, um marquês do Império a serviço da República, capaz de tirar a meia sem tocar no sapato, o episódio foi diluído.

As duas semanas de recesso do Judiciário permitem que se jogue água nas cabeças quentes. Mesmo assim, a fala de Gilmar pode ser usada para alimentar uma crise. Para isso, os golpistas precisam dizer que o que eles querem é uma ditadura.