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Elio Gaspari: Fritada de morcego no menu

Ganha uma fritada de morcego do mercado chinês de Wuhan quem for capaz de mencionar uma só fala de Jair Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional desde o começo da pandemia do coronavírus.

Mesmo quando ele fez um arremedo de conserto, dizendo que, “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”, estava iludindo a boa-fé do público. Um dia antes ele havia dito que “não vou tomar a vacina e ponto final”.

“gripezinha” e a cloroquina tornaram-se símbolos do amargo folclore do capitão. A eles juntam-se outros, como o estímulo ao desmatamento, as “rachadinhas” de Fabrício Queiroz e o orgulho de seu chanceler ser um “pária” no cenário internacional. Nunca na História do Brasil o trem parou e o maquinista queria andar para trás. Ele parava, mas se discutia quando voltaria a andar para a frente.

Há em Bolsonaro uma perigosa mistura de ignorância pessoal com autoritarismo político. Ele pode ter acreditado na gripezinha ou mesmo nos efeitos milagrosos da cloroquina. Chamou a possibilidade de segunda onda de “conversinha”, e na quinta-feira (17) voltou-se ao registro de mil mortes por dia. Talvez tenha apenas apostado, mas nesse caso estaria apenas exercitando a ignorância de outra maneira. O perigo mora na mistura com o mandonismo.

Bolsonaro irradiou esse comportamento pela sua administração, produzindo apenas uma bagunça arrogante. Por exemplo: em outubro o general-ministro Eduardo Pazuello disse que “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. No dia seguinte, Bolsonaro acordou cedo e respondeu no Facebook que a vacina “NÃO SERÁ COMPRADA”. Como se viu, será comprada e oferecida, pois o capitão ficou preso num cadeado do governador João Doria.

O general Pazuello disse a parlamentares: “Não falem mais em isolamento social”. Pensou que falava a uma plateia de tenentes. Ele perguntou “para que essa ansiedade, essa angústia?” e depois explicou que sua frase foi tirada do contexto, desculpando-se. É o caso de se perguntar qual medicação está tomando desde que teve alta da Covid.

Já um diplomata de carreira designado para embaixada junto à Organização das Nações Unidas em Genebra recusou-se a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu dizendo que não estava “mandatado” para isso. Tomou um contravapor do senador Major Olimpio e perdeu o cargo. Foi rejeitado por 37 votos contra 9. (Afora o mau português, podia ter respondido de outra forma, mesmo sem dizer nada.)

Trabalhando com um chanceler que se orgulha de ser “pária”, o embaixador levou a excentricidade para o lugar errado. A pandemia expôs a bagunça diante de uma dificuldade que daqui a pouco terá matado 200 mil pessoas. Os brasileiros ligam as televisões e veem cenas de imunização nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Arábia Saudita. Como lembrou Fernando Gabeira, só em Pindorama a vacinação virou tema de debate.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota, nunca tomou vacina nem vai tomar. Por isso também acha que o Supremo Tribunal Federal tomou “uma medida inócua”.

O que o cretino não entendeu foi outra frase de Bolsonaro: "Quando se fala em vacinação e saúde, tem que ter uma hierarquia".

Eremildo torce para que o presidente explique como funcionará essa hierarquia e se dispõe a ir de casa em casa levando cloroquina para quem ficar de fora.

Eu apalpo, você fica nervosa

O deputado Fernando Cury (Cidadania) apalpou sua colega Isa Penna (PSOL) ao vivo e a cores diante da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de São Paulo. (Ela estava de costas.)

Depois do episódio, o presidente da Casa, Cauê Macris, disse que não poderia liberar as imagens. Pressionado pela deputada com um discurso e pelas lideranças partidárias, mudou de ideia.

Casado, Cury foi à tribuna, reiterou um pedido de desculpas e disse que jamais tomou intimidades indevidas com mulher alguma. O doutor tem o benefício da dúvida e empenhou sua palavra.

A porca torce o rabo quando se vê que, no dia seguinte, Cury foi à tribuna e, explicando-se, disse que depois de ter sido apalpada, sua colega “estava nervosa”, “ficou brava” e diante de uma nova tentativa de pedido de desculpas, “ela começou a gritar, a me xingar”. ​

Certo mesmo é que Fernando Cury se defende recriminando a conduta de uma mulher, nervosa, brava, xinguenta e gritona. Está tudo na rede: o vídeo da apalpada, o discurso da deputada e a explicação de Cury.

Forster e Biden

Os trechos conhecidos dos telegramas mandados pelo embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, depois da vitória de Joe Biden ilustram a bagunça que o orgulhoso pária Ernesto Araújo impôs à Casa do Barão.

Forster foi aplicado ao mostrar que Donald Trump pretendia contestar a vitória de Biden. Nesse sentido, fez seu serviço. Em nenhum momento o embaixador sugeriu que Bolsonaro cumprimentasse o vencedor. Poderia ter feito, mas também não sugeriu o contrário.

Os Estados Unidos não são uma ilha perdida, para que o cumprimento ao eleito dependa de sugestão do embaixador. Quem levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden foi Jair Bolsonaro. Forster foi para a linha de tiro pelas convicções bolsonaristas que o levaram ao cargo.

O PREÇO DA XENOFOBIA

A Alemanha bloqueou a entrada da Turquia na Comunidade Europeia por diversos motivos, entre os quais o discreto racismo de uma parte de sua população contra imigrantes.

Há décadas a Alemanha não fazia uma boa figura no mundo da tecnologia como a que conseguiu agora com a vacina desenvolvida pelo seu laboratório BioNtech, para a Pfizer americana. Sediado em Mainz, foi criado por um casal de turcos. Ele, nascido em Iskenderun, ela, filha de uma médico que emigrou.

PROMOÇÕES MILITARES

A bagunça bolsonariana funciona até quando o capitão volta atrás. Três dias depois de ter acabado com as promoções por antiguidade de oficiais aos postos de coronel ou capitão de mar e guerra, ele revogou o ato. O decreto revogado não era um jabuti.

A ideia do fim da promoção por antiguidade nessa patente ampara-se em bons argumentos e foi proposta por autoridades militares que entendem do assunto.

A piada tem um século, mas, quando um oficial disse ao major Joseph Veller, da missão militar francesa, que um colega aprenderia com a experiência, ele respondeu: “O burro do duque de Saxe assistiu a mais de cem batalhas e continuou sendo um burro”.

CONTEM OUTRA

Há algo no ar além do vírus. Quatrocentos empresários tinham marcado para a quinta-feira um almoço em homenagem ao presidente Jair Bolsonaro e seu antecessor, Michel Temer.

No domingo o ágape foi cancelado, diante do aumento do número de casos de Covid. Contem outra. Dias antes do cancelamento, quando os convites circulavam, pela média móvel semanal estavam morrendo 544 pessoas.

BOLSONAVAC

governador João Doria continua sob os efeitos de sua Bolsonavac. Em uma semana, limitou-se a dar uma breve resposta às provocações de Bolsonaro. Preferiu presenciar o desembarque de vacinas.


Elio Gaspari: Bolsonaro e Mourão mostram o caos

O general e o capitão tiveram posições diferentes, mas fazem parte do mesmo pandemônio

Pelos mais diversos motivos, 57 milhões de pessoas votaram em Jair Bolsonaro. O general da reserva Hamilton Mourão fez mais que isso, aceitando ser o seu vice-presidente. Hoje os dois mal se falam e não se ouvem.Mourão tinha grandes expectativas para si e para o governo. Nas suas palavras:-- Eu me vejo como um assessor qualificado do presidente, um homem próximo ali, junto dele, dentro do Planalto, ali do lado dele, nossas salas serão juntas. Não seremos duas figuras distantes, como já aconteceu, um para o lado e o outro para o outro lado. Aquelas reuniões que ocorrem ali, eu estarei presente.Ou ainda:-- Posso atender à necessidade de coordenar trabalhos que sejam interministeriais. Ele pode me delegar essa tarefa. Por exemplo, em projetos de infraestrutura, de parceria público-privada, coisas que a gente tenha algum conhecimento.

Deu em nada. Hoje, Mourão reconhece que "faz algum tempo" que não conversa em particular com Bolsonaro. Era apenas ilusão de um general ajudando a campanha do capitão. Mourão sempre soube onde se metia.

O grande Stanislaw Ponte Preta ensinou que o vice-presidente acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. Marco Maciel (vice de FHC) e José Alencar (vice de Lula) seguiram a lição, cada um à sua maneira.

Mourão agora revela que está "pronto para acompanhar Bolsonaro caso ele deseje e vá ser candidato em 2022, porque tudo é possível daqui para lá".

Tudo é possível, mas com recessão, uma pandemia e tanta maluquice solta por aí, o que o país menos precisa é de uma crise entre o presidente e seu vice. Michel Temer detonou Dilma Rousseff, mas sua origem e força política estavam no Congresso. Mourão veio da caserna e, como muitos militares, entrou numa campanha e caiu num governo que pouco tem a ver com o que esperava. O general Eduardo Pazuello não sabia o real tamanho da encrenca em que se meteria. Militar, ele é capaz de achar que manda em quem o ouve e obedece ao que determina o presidente. Melhor destino teve o paisano Nelson Teich, que aceitou o ministério da Saúde e foi-se embora 28 dias depois, salvando sua biografia de médico.Tudo é sempre possível, mas há o tudo indesejável. O capitão Bolsonaro governa criando conflitos.Sua última proeza foi a construção de uma briga sanitária que, se não for aplacada, caminha para um desfecho desfavorável ao Planalto no Supremo Tribunal Federal. Supremo esse no qual ele já achou que poderia "intervir".

O vice-presidente tornou-se um personagem secundário nessa usina de conflitos, mas é parte dela. Bolsonaro pode ter exagerado quando disse que "Mourão é mais tosco do que eu", mas os dois se conhecem melhor do que a maioria das pessoas que votou neles.

Em dois anos de coabitação palaciana, o general e o capitão tiveram algumas posições diferentes mas, no essencial, fazem parte do mesmo pandemônio. Bolsonaro não fez de Hamilton Mourão um "assessor qualificado" e o general deslizou para uma condição de eventual contraponto.

Como ensinou o poeta, no vasto mundo das confusões de Bolsonaro, se ele se chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução.


Elio Gaspari: A Chernobyl pessoal de Bolsonaro

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil

Em abril, o general Luiz Eduardo Ramos disse o seguinte:

“No jornal da manhã, é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite, é caixão, corpo e número de mortos. (…) Não tá ajudando. Ninguém aqui está dizendo que tem que esconder. Os senhores (jornalistas) têm que também… Eu conclamo e peço encarecidamente, tem tanta coisa positiva acontecendo”.

Naquele dia, a Covid havia matado 165 pessoas, e o total dos caixões já passava de 20 mil. Notícia boa, se houvesse, deveria ser procurada na patética reunião ministerial daquele mesmo dia, durante a qual Jair Bolsonaro emparedou Sergio Moro, o ministro da Educação propôs a prisão dos “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal, e o da Economia sugeriu o retorno da jogatina de grife.

Ramos falou com a alma. Ele realmente acreditava que as sepulturas incomodavam, mas acreditava também que com menos imagens de caixões mudava-se a natureza do problema. Passaram-se oito meses, e as imagens são outras. Pessoas sendo vacinadas na Inglaterra, e governos anunciando o início de programas de imunização para as próximas semanas. No Brasil, só caixões, brigas e o general-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atarantado.

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil.

Apesar das enormes diferenças entre as duas tragédias, a conduta pessoal do capitão Bolsonaro e dos generais Ramos e Pazuello diante do coronavírus guarda uma triste semelhança com a reação dos comissários soviéticos em Chernobyl.

A explosão ocorreu na madrugada de 26 de abril de 1986. Quando o chefe da Defesa Civil da usina mostrou ao diretor que a radiação chegara a níveis intoleráveis, o burocrata expulsou-o da sala: “Seu medidor está quebrado”. Pela manhã, o vice-presidente do conselho de ministros disse que religaria o reator, e o ministro da energia da Ucrânia explicou-lhe:

— Não existe mais reator.

— Você é um alarmista — respondeu o comissário.

“Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, disse Bolsonaro, em março, quando 165 pessoas já haviam morrido. Dias antes, ele dissera que a pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde “não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.

O negacionismo seguiu cursos diferentes na fase seguinte, ambos estimulando a inércia. Em Chernobyl, quando o chefe da Defesa Civil mencionou a necessidade de evacuar a população da cidade, um comissário da região foi breve: “Sente-se. Isso não é da sua conta”. O Ministério da Saúde concordava com ele.

Em Pindorama, Bolsonaro chamou os governadores que defendiam o isolamento social de “destruidores de empregos”, e o general Pazuello ainda acha que não se deve falar nisso.

A cidade próxima ao reator Chernobyl só foi evacuada no dia seguinte. Trinta e seis horas depois da explosão não haviam sido disparadas as medidas previstas nos protocolos da Defesa Civil. Vídeos mostram cenas de um casamento e de vida normal em vários lugares.

Quando Bolsonaro falava em gripezinha, o presidente mexicano, Manuel López Obrador, dizia que a Covid “não equivalia a uma gripe”, e o primeiro ministro inglês, Boris Johnson, desdenhava o perigo. Johnson foi parar numa UTI, abandonou o negacionismo e pediu desculpas por ter dado informações erradas. Obrador orgulhosamente anunciou seu plano de imunização dos mexicanos, começando neste mês pelos profissionais de saúde.

Como os burocratas soviéticos, Johnson e Obrador pensavam que mandavam e disseram besteiras, mas corrigiram-se. Bolsonaro ainda não entendeu o que está acontecendo e continua brincando com os diminutivos.

No dia em que o número de mortos pela “gripezinha” havia chegado a 179 mil, com a média móvel em alta, ele disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.

Seu governinho tem uma dificuldadezinha com a realidade.

Temer no aquecimento

O nome de Michel Temer entrou na roda dos possíveis convidados para um ministério modificado. Ele iria para o Itamaraty, substituindo o cataclísmico Ernesto Araújo.

Um retorno de Temer a Brasília como chanceler seria êxito garantido, porque depois de Araújo qualquer coisa serve. O ex-presidente nunca se meteu em fantasias diplomáticas, teve uma boa relação com Joe Biden e o chinês Xi Jinping. Ambos sabem que o doutor não é pancada.

Biden esteve no Brasil em 2016, como vice-presidente, e reuniu-se com Dilma Rousseff por duas horas. Temer, então vice, foi deixado de fora e, a convite de Biden, visitou os EUA meses depois.

Temer é um pajé do centrão e vem ajudando nas costuras para a presidência do Senado. Quando o governo de Dilma Rousseff começou a fazer água, ela o colocou na coordenação política do Planalto. Temer costurou acordos e foi fritado pelo comissariado petista. Deu no que deu.

À época, ele se queixava de que fazia combinações usando seu crédito e foi deixado ao sol. A prudência recomenda que corte seu cartão caso retorne a Brasília.

BRETAS E NYTHALMAR

Só o juiz Marcelo Bretas sabe quão próximas eram suas relações com o advogado Nythalmar Dias Ferreira. Surfando a onda da Lava-Jato, esse doutor formou um plantel de clientes que foi do ex-deputado Eduardo Cunha ao empresário Fernando Cavendish.

Dependendo da proximidade, Bretas precisará de um bom advogado. Nythalmar é investigado pela Polícia Federal e poderá achar conveniente colaborar com a Viúva.

Não seria desejável que o magistrado deixasse a narrativa em mãos alheias.

FUX NA VACINA

Se Bolsonaro continuar encrencando com a CoronaVac, em janeiro a questão da vacina acabará chegando ao Supremo Tribunal Federal, e os litígios cairão no colo do ministro Luiz Fux, plantonista da Corte durante o recesso.

Fux e sua assessoria já estão estudando o assunto.

CÂMARA

A qualidade da preferência do Planalto na disputa pela presidência da Câmara pode ser avaliada por um fato singelo.

Podendo sinalizar interesse pela candidatura da deputada Tereza Cristina, atual ministra da Agricultura, Bolsonaro deixou a bola passar.

Os De Gaulle e os Kennedy

É excelente a biografia do general Charles De Gaulle (1890-1970) escrita por Julian Jackson.

Ele governou a França por dez anos, até 1969. Tinha uma filha e um filho longe da política.

Outra filha, Anne, nasceu em 1928 com síndrome de Down. Mal enxergava e não falava. De Gaulle nunca se afastou dela, e os dois brincavam por horas.

Já o milionário americano Joseph Kennedy mandou sua filha Rosemary, uma adolescente com distúrbios nervosos, para ser submetida a uma lobotomia. Deu tudo errado.

Anne De Gaulle morreu em 1948. “Agora ela ficou como as outras”, disse De Gaulle. Um ano depois, Rosemary Kennedy foi escondida numa casa de religiosas. Ela sobreviveu aos pais e aos irmãos John e Robert. Morreu em 2005, aos 86 anos.


Elio Gaspari: A nova Revolta da Vacina

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde

Depois de ter dito que a Covid era uma “gripezinha” que o brasileiro tiraria de letra e que a cloroquina era remédio eficaz, Jair Bolsonaro não deve esperar da plateia que ela lhe dê ouvidos. Já morreram mais de 178 mil pessoas, número superior ao dos mortos de Hiroshima em 1945. Contra bomba atômica não há vacina, mas contra a Covid haverá. Enquanto o processo de imunização segue um curso de racionalidade pelo mundo afora, em Pindorama o jogo político contaminou a discussão.

O governador João Doria anunciou que começará a oferecer vacinas a partir do dia 25 de janeiro. Pintada para a guerra, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária apressou-se para informar que “não foram encaminhados dados relativos à fase três, que é a fase que confirma a segurança e eficácia da vacina, esse dado é essencial para a avaliação tanto de pedidos de autorização de uso emergencial quanto pedidos de registro”.

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde. A vacina só será oferecida em janeiro aos índios, quilombolas e profissionais de saúde. Quem anda pelas ruas de São Paulo não costuma cruzar com índios nem quilombolas. Restam os profissionais de saúde. Admitindo que esse burocrata existe, seria ridículo vê-lo dizendo ao doutor David Uip que não pode tomar a CoronaVac. Até as pedras sabem que os tribunais derrubarão quaisquer tentativas para impedir a aplicação das vacinas. Países andam para trás: em 1904, houve no Rio uma revolta contra a vacina obrigatória, o desconforto da Anvisa estimularia em 2020 uma revolta contra a vacina voluntária.

Bolsonaro falava em “menos Brasília, mais Brasil”. Pois é disso que se precisa. Se o almirante da Anvisa ou o general do Ministério da Saúde tiverem argumentos para bloquear a aplicação da CoronaVac, que coloquem a cara na vitrine dando suas razões. Há poucas semanas, a Anvisa meteu-se num vexame suspendendo testes a partir da morte de um voluntário que se havia suicidado.

Bolsonaro e Doria acusam-se de fazer política no meio da pandemia. É verdade, mas um detalhe os separa. Um faz política com a “gripezinha”, o outro oferece uma vacina.

A CoronaVac só será oferecida para quem tem mais de 75 anos a partir de 8 de fevereiro. Jair Bolsonaro, se quiser, só poderá ser vacinado a partir de 21 de março, quando completará 65 anos.

O negacionismo de Bolsonaro levou-o a uma armadilha. Continuar na linha que adota desde março será apenas falta de juízo. A Anvisa e o Instituto Butantan têm profissionais qualificados para discutir as qualidades ou os defeitos da CoronaVac. Um finge que se deve respeitar o rito burocrático; e o outro finge que respeita esse mesmo rito, impondo-lhe um prazo de validade.

O ministro da Saúde, general Pazuello, fez fama como um especialista em logística. Reunido com governadores, disse a João Doria: “Não sei por que o senhor diz tanto que ela [a vacina] é de São Paulo. Ela é do Butantan”. Ganha uma viagem a Caracas quem souber a importância disso. Do jeito que o general fala, se a logística do desembarque na Normandia estivesse nas suas mãos, em agosto de 1944 os Aliados não estariam em Paris. Os alemães é que teriam chegado a Londres.


Elio Gaspari: Júnior conhece a caixa-preta da saúde

Ministro Luís Roberto Barroso poderá homologar a papelada da colaboração do empresário José Seripieri Júnior, da Qualicorp, feita à Procuradoria-Geral da República (PGR)

Nesta semana, o ministro Luís Roberto Barroso poderá homologar a papelada da colaboração do empresário José Seripieri Júnior, da Qualicorp, feita à Procuradoria-Geral da República (PGR). Há mais de uma semana, a repórter Bela Megale revelou que Júnior, como ele é conhecido, concordou em pagar R$ 200 milhões à Viúva pelas transações em que se meteu, alimentando caixas de políticos. Em julho, ele passou três dias na cadeia, e sua colaboração foi antecedida pela de um sócio.

Chegando a valer cerca de R$ 4 bilhões, a Qualicorp tornou-se uma campeã organizando planos coletivos de saúde. Como uma jabuticaba, ela nunca foi uma operadora, mas Júnior tornou-se um bilionário trabalhando num mercado onde se misturam capilés para políticos que colocam jabutis nas leis e azeitam-se promiscuidades com as agências reguladoras.

Finalmente, o Ministério Público acercou-se desse mercado. A Lava-Jato chegou perto, mas distraiu-se. Deltan Dallagnol, ex-coordenador da força-tarefa, recebeu pelo menos R$ 580 mil fazendo palestras para plateias da Unimed. Ele explicou que repassava os valores a entidades filantrópicas.

Quando a colaboração de Júnior for conhecida, será possível avaliar a sua profundidade. A operação Lava-Jato começou com muito menos, pois nela o fio da meada foi puxado a partir de um posto de gasolina que lavava dinheiro. A memória da Qualicorp, ou de qualquer grande operadora, guarda muito mais que isso. Os procuradores de Curitiba puxaram os fios e deu no que deu. A PGR está com o novelo na mão. Sabe-se que negociou uma multa milionária, mas a questão está também em outro lugar: na máquina desse mercado.

Pode-se dar de barato que a colaboração de Júnior levará para a mesa alguns políticos, provavelmente figurinhas fáceis de outros escândalos, alguns confessos, ou notoriamente mentirosos. Pelo cheiro da brilhantina, cairá na roda um doutor que queria cobrar os serviços do SUS.

O valor da colaboração de Júnior poderá ser avaliada se ela tratar do funcionamento da porta giratória pela qual maganos saem do mercado e vão para as agências reguladoras, ou fazem o caminho inverso, sempre enriquecendo. Noutra vertente, pode-se vir a saber como se enfiou um jabuti numa Medida Provisória de 2015. Ele reduzia o valor unitário das multas aplicadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar quando o volume passasse de certos limites. Em bom português: quem delinquir muito pagaria menos que quem delinquiu pouco. Dilma Rousseff vetou o jabuti. Trata-se de perguntar, ouvir, anotar o nome do magano e chamá-lo a depor. Se for o caso, remetê-lo à carceragem.

Seripieri Júnior fez todo o caminho do mercado, conheceu suas vísceras e no ano passado começou a montar uma empresa fechada. Nela, ao contrário das operadoras que cobrem despesas com centenas de médicos, laboratórios ou hospitais, as operadoras fechadas têm suas listas e, sobretudo, seus hospitais. Graças a isso, controlam seus custos e acabam cobrando menos.

A PGR está diante da oportunidade de abrir a caixa-preta dos planos de saúde. Basta expandir a operação abrindo um capítulo em que se fazem perguntas estranhas ao ritual, porém essenciais para o propósito da investigação. Assim foi com a Lava-Jato e assim foi com a investigação da Receita Federal e do FBI americano, que detonou as roubalheiras da cartolagem internacional do futebol.

A ideia segundo a qual se combate a corrupção com multas milionárias é pobre. Acaba criando uma espécie de pedágio, caro, porém imunizante.

A turma dos planos de saúde, acossada pela perda de clientes e pela reação aos reajustes selvagens, já tentou dois saltos triplos. Num, no escurinho de Brasília, queriam mudar a lei que regula seu mercado. A elas, tudo, aos consumidores, nada. Noutro, querem privatizar serviços do SUS. Isso durante uma pandemia na qual tentaram negar cobertura para os testes de coronavírus.

Madame Natasha e o general

Madame Natasha não perde entrevistas do general Eduardo Pazuello e admira os momentos em que ele fica calado. Outro dia, falando a parlamentares, o ministro da Saúde incomodou a senhora quando disse coisas assim:

“Se o processo eleitoral nas cidades, com todas as aglomerações e eventos, não causa nenhum tipo de aumento da contaminação, então não falem mais em afastamento social.”

 “Precisamos compreender de uma vez por todas que nós só aplicaremos vacinas no Brasil registradas na Anvisa.”

Com décadas de serviço nos quartéis, o general Pazuello aprendeu a falar como comandante. Como ministro da Saúde, deveria aprender que não manda nas suas audiências. Dizer a quem quer que seja que não deve mais falar em afastamento social é uma indelicadeza, se não for uma bobagem. Quando ele diz que “precisamos compreender de uma vez por todas” que o governo só patrocinará vacinas aprovadas pela Anvisa, diz uma platitude. O problema é outro: cadê a vacina federal?

Natasha recomenda gentilmente ao general entender que seu desempenho terá uma avaliação cronológica. A vacina chegará a diversos países em janeiro, inclusive à Inglaterra e ao México, cujos governos foram negacionistas. Pazuello não sabe precisar o mês do início da vacinação no Brasil e acha razoável que metade da população de Pindorama só consiga ser imunizada no segundo semestre do ano que vem. Em São Paulo, a vacinação vai começar em janeiro, a menos que Pazuello e Bolsonaro queiram atrapalhar, metendo-se numa ridícula Revolta da Vacina 2.0.

Quando Natasha era uma mocinha e os generais se metiam onde não deviam, ela teve que ir a Montevidéu para ver o filme “Último Tango em Paris”. (Achou-o muito chato.)

Natasha morre de medo de ter que viajar ao exterior para ser vacinada.

Kerry e os agrotrogloditas

A nomeação do ex-senador John Kerry para a posição de czar na política de meio ambiente do governo de Joe Biden deve acender um sinal de alerta no Planalto.

Ex-secretário de Estado, Kerry não conhece agrotrogloditas, mas tem boas relações com alguns ambientalistas brasileiros.

Seria útil que os çábios do bolsonarismo parassem de pressionar empresas multinacionais que pararam de comprar soja plantada em áreas de conflito ambiental. As filiais comunicam essas pressões às suas matrizes.

Coisas de Pindorama

Um marciano passou pelo Brasil em 1821 e gostou das gazetas que defendiam a independência da Colônia. Voltou em 1823 e soube que ela fora proclamada, com o filho do rei de Portugal coroado imperador.

Imortal, o marciano foi ao comícios das Diretas de 1984 e encantou-se. Voltou em 1985 e soube que a campanha havia resultado na eleição indireta de Tancredo Neves, mas quem estava na Presidência era José Sarney, presidente do partido do governo em 1982.

O marciano resolveu nunca mais voltar ao Brasil. Ele vive em Washington e soube que o doutor Sergio Moro é novo sócio-diretor da firma em cujo portfólio de clientes está a Odebrecht com seu processo de recuperação judicial.


Elio Gaspari: De Marechal.Bittencourt para Pazuello: 'Vosmicê está sendo frito'

O senhor está numa situação rara nos anais militares, responde a um comando confuso e a um Estado-Maior inerte

Estimado general Eduardo Pazuello

O senhor sabe que sou o patrono da arma da Intendência, mas só alguns oficiais lembram quem fui. Menos gente recorda que sou o único marechal do nosso Exército que morreu literalmente defendendo o poder civil.

Na tarde de 4 de novembro de 1897 acompanhei o presidente Prudente de Moraes ao desfile da tropa que voltava vitoriosa de Canudos. Um anspeçada avançou com uma garrucha, ela falhou e ele avançou com uma faca contra Sua Excelência. Interpus-me, embolamo-nos e ele me feriu no peito, na virilha e numa das mãos. Morri pouco depois.

O lugar onde caí, em frente ao Arsenal de Guerra, que hoje é o Museu Histórico Nacional, foi demarcado com uma placa de bronze e dois mourões. Puseram um busto meu do outro lado da rua e minhas luvas ensanguentadas ficavam numa vitrine do museu.

O busto saiu de lá, os mourões foram derrubados e hoje a placa fica embaixo dos chassis dos carros que lá estacionam. O Exército pouco fala do meu gesto. Marechal-ministro que morre defendendo um presidente civil é coisa esquisita. Afinal de contas, desde 1897, generais depuseram três presidentes. A memória das gentes é bastante seletiva.

Deixemos de velharias, general Pazuello. Escrevo-lhe para dizer que vosmicê está sendo frito, como se diz hoje. Consigo fritam-se os militares. O senhor substituiu dois médicos e levou pelo menos 20 oficiais para o Ministério da Saúde. No dia da sua posse os mortos da pandemia eram 15 mil. Hoje passaram dos 170 mil. Nossa Arma não tem parte nisso, mas fomos metidos na fabricação de cloroquina e acompanhamos um negacionismo irracional. A máquina da administração civil estoca testes que arriscam perder a validade dentro das caixas.

Seu comandante já disse que a pandemia talvez seja “a missão mais importante de nossa geração”. Que seja.

Conheci os casacas dos primeiros anos da República. Quando disseram que eu era o “Marechal de Ouro”, queriam contrapor-me ao Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro”, com que me dou muito bem. Os casacas não mudam e digo-lhe que muitos colegas nossos, deixando o serviço ativo, encasaqueiam-se.

Não me cabe dizer como, mas digo-lhe que deve impedir o prosseguimento de sua fritura. Na semana passada o mundo bateu o recorde de mortes provocadas pela pandemia. Vem aí o desafio logístico da aplicação de uma vacina. Não vislumbro um dedo de racionalidade no planejamento dessa operação.

O senhor está numa situação rara nos anais militares. Responde a um comando confuso, a um Estado-Maior inerte e tem que aguentar fogos inimigos e dos amigos.

Na Revolta da Vacina de 1904, na qual meteram-se alguns generais atraídos pelos casacas, o presidente da República deu mão forte ao doutor Oswaldo Cruz. Rodrigues Alves engrandeceu a medicina brasileira apoiando seu colaborador. Vossa fritura não tem motivo para apequenar nossa arma.

Outro dia estive com meu colega Cordeiro de Farias. Ele me contou o que disse ao presidente Castello Branco quando ele decidiu aceitar a candidatura do marechal Costa e Silva à Presidência: “Não quero ter parte nisso” (A frase só foi conhecida décadas depois).

Atenciosamente, do seu companheiro de Arma

Marechal Carlos Machado Bittencourt

O holofotismo de Lewandowski ao dar prazo para um plano de vacinação

O ministro do STF não disse qual vacina será aplicada e não explicou o que o tribunal tem a ver com uma atribuição do Poder Executivo.

O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, deu 30 dias de prazo ao governo para apresentar um plano de vacinação contra a Covid.

Não disse, nem poderia dizer, qual vacina será aplicada. Também não disse como. Não explicou o que o tribunal tem a ver com uma atribuição do Poder Executivo.

Lewandowski se zangaria se um cabo lotado no Planalto desse 30 dias de prazo aos ministros do Supremo para conceder ou negar uma liminar a quem a pede.

Em 2014 o ministro era um campeão de rapidez nesse quesito (17 dias). Um colega seu demorava 74 dias para fazer o mesmo serviço.​

LORD MARADONA

Já se disse tudo sobre Maradona. Resta o seu momento de cavalheirismo. Depois de ter feito um dos maiores gols da história do futebol, driblando cinco ingleses numa corrida de dez segundos e 55 metros, ele homenageou suas vítimas: “Eu duvido que conseguisse a mesma coisa jogando contra outro time. Eles teriam me derrubado”.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e tornou-se um admirador do prefeito Bruno Covas porque ele disse que “coloco minha mão no fogo” pelo seu vice, Ricardo Nunes. O cretino viu em Covas um corajoso altruísta. Afinal, coloca as próprias mãos no fogo, não as dos outros.

Negacionismo do governo tomou conta da cabeça de Paulo Guedes

Enquanto Bolsonaro diz que a segunda onda é conversinha, ministro vai adiante: a evidência empírica é que a doença diminuiu

Em março, quando a pandemia ainda não havia matado gente no Brasil, o ministro da Economia, doutor Paulo Guedes, disse que os dados que lhe chegavam eram “alarmantes”. Em poucos dias coordenou uma bem sucedida operação de resgate dos “invisíveis” com o auxílio emergencial.

Passaram-se os meses e o negacionismo do governo tomou conta da cabeça do economista. Enquanto Bolsonaro diz que a segunda onda é “conversinha”, ele vai adiante: “A evidência empírica é que a doença diminuiu”.

No dia em que ele disse isso a média móvel de mortes estava em 496. No início do mês era de 420.

Pode ser que não haja segunda onda, mas diminuindo a doença não está.

BANCO CENTRAL

O projeto de autonomia do Banco Central subiu no telhado da atual legislatura da Câmara dos Deputados.

MANICÔMIO

Se alguém dissesse que um dia o governo brasileiro arrumaria uma encrenca com o seu maior parceiro comercial, passaria por doido. Se esse maluco dissesse que a retórica do confronto seria alimentada por teorias da conspiração, seria internado.

Os Bolsonaro acreditam que o atual embaixador da China está no Brasil para derrubar o capitão. Ele mesmo disse isso ao ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Nas suas palavras, no livro “Um Paciente Chamado Brasil”, reproduzindo uma conversa que teve com o capitão em abril:

“Ele acreditava na teoria de que a China tinha inventado a pandemia, de que o embaixador chinês estava aqui para derrubá-lo e que esse mesmo embaixador havia sido o promotor dos protestos de rua em 2019 no Chile contra o presidente Sebastián Piñera, e tinha trabalhado para que o Mauricio Macri perdesse a eleição na Argentina. O embaixador chinês era um agente para desestabilizar a direita na América do Sul e promover a volta da esquerda, e ninguém tirava isso da cabeça dele. O coronavírus era parte do plano”.

Esse estado de espírito disseminou-se no entorno do Planalto e o tenente-coronel indicado para uma diretoria da Agência de Vigilância Sanitária já curtiu uma mensagem na qual um empresário chamava o governador João Doria de “China boy”.

Para complicar o quadro, o embaixador Yang Wanming é um diplomata barulhento e arrogante que subscreve notas redigidas em péssimo português.


Elio Gaspari: Os comandantes e o tenente Andrea

Violência policial se manifesta também nos motins de PMs que recebem o beneplácito de hierarcas

A cena, gravada em setembro num quartel da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, está na rede. O segundo-tenente André Luiz Leonel Andrea derruba e espanca uma mulher algemada (pelo menos sete socos e dois chutes). Outro PM segura a senhora enquanto ela é esmurrada, até que uma policial militar contém o oficial. O comando da corporação diz que só soube do episódio semanas depois e tirou o tenente do comando do pelotão da cidade de Bodoquena. Quanto à senhora, explicou o comando, era uma desordeira, estava bêbada e desacatou os policiais. Era por isso que estava detida e algemada. Admitindo que essa versão é verdadeira, só faltava que apanhasse porque foi comprar cloroquina.

Também está na rede outro vídeo, de março. Nele, o tenente Andrea explica à população de Bodoquena as regras do toque de recolher imposto pela pandemia. É outro homem. Fala pelo menos 15 vezes em leis ou decretos, cita a Constituição e, em 13 ocasiões, pede bom senso a todos. Vendo-o, sente-se uma ponta de orgulho pelo agente da lei.

A Polícia Militar não tem generais, mas há muitos deles na cúpula de um governo que estimula a violência do Estado num país de maricas. A eles e aos coronéis das Polícias Militares, cabe cuidar da ordem dentro de suas corporações. Qual tenente Andrea querem formar? O que fala em leis e bom senso ou o que esmurra uma mulher algemada?

Na tarde de 31 de março de 1964, o tenente Freddie Perdigão Pereira tinha 28 anos e comandava os tanques mandados para os portões do Palácio das Laranjeiras para proteger o governo do presidente João Goulart. Tornou-se um torturador do DOI e esteve nas cenas da prisão do deputado Rubens Paiva, em 1971, e do atentado do Riocentro, dez anos depois. Perdigão era um tipo alterado, mas virou o que virou pela tolerância e pelo estímulo dos comandantes militares da ocasião.

Passou o tempo, mudou o regime, e todo o entulho dos crimes praticados pela ditadura foi para a biografia de tenentes, capitães e majores. Fritaram a gaveta de baixo. Quando muito, disseram que os ampararam “sub-repticiamente”.

A violência policial já foi terceirizada com milícias particulares de empresas cujos diretores circulam em Davos dando aulas ao mundo. Na estrutura da segurança pública, ela continua no cotidiano das periferias das cidades ou em salas de delegacias e de quartéis como o de Bodoquena. Há anos ela se manifesta também nos motins de policiais militares que recebem o beneplácito de hierarcas e são invariavelmente perdoados por anistias votadas pelo Congresso ou pelas Assembleias Legislativas.

Será difícil convencer um jovem tenente a respeitar um preso se seus superiores levam semanas para examinar um vídeo gravado no quartel e protegem-no dentro do limite do possível.

Faz tempo, um oficial que fez fama num DOI caiu num comando do general Antônio Carlos de Andrada Serpa, e ele lhe disse que aquela função poderia trazer problemas para sua carreira. Em 2014, o oficial relembrou: “Eu respondi que fiz tudo direito, só recebi elogios e fui condecorado, portanto o Exército cuidaria de mim. Ele me disse: ‘Deus queira que você tenha razão’. Hoje eu me dei conta de que ele sabia do que falava”.


Elio Gaspari: Há racismo e também demofobia

Desigualdade não explica assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre

Só na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.

Como disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.

Esse tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da rede Carrefour prendeu duas mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem internacional do Carrefour.

Pelos critérios americanos do século 19 e sul-africanos do 20, Mourão é uma “pessoa de cor”. A escrava de Thomas Jefferson com quem ele se acasalava era mais branca que o general.

Segundo o vice-presidente e muita gente boa, no Brasil não existe racismo, existe desigualdade. O que pretende ser uma explicação é um agravo. Desigualdade não explica esse tipo de assassinato. Eles são produto da demofobia, onde o racismo tem um papel funcional, pois a cor identifica as pessoas sem direitos. Se Mourão tivesse razão, a coisa funcionaria assim: se você é pobre, ferra-se, se ainda por cima é negro, dana-se. Pelo menos um dos três mortos de Volta Redonda era branco.

Brincando com computadores

O presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luiz Fux, anunciou que “nós precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos, principalmente porque estamos lançando, pelo CNJ, o Juízo 100% Digital.”

Atrás desse nome bonito está a ideia de colocar todos os processos do país numa rede de computadores. Coisa de sonho. Como ensina a cartilha do CNJ: “Os magistrados poderão dar vista às partes para que digam se concordam com a tramitação de ação já distribuída de acordo com o rito do ‘Juízo 100% Digital”.

Entre a ficção de Brasília e a realidade de Pindorama, o projeto perfilhado por Fux equivale a uma cerimônia na qual o prefeito de Macapá anuncia um novo sistema de iluminação pública para a cidade.

O sistema foi exaltado durante a primeira reunião do Comitê de Segurança Cibernética do Poder Judiciário, criado do dia 11 de novembro. A porta havia sido arrombada uma semana antes, quando a rede do Superior Tribunal de Justiça foi invadida e a corte ficou vários dias fora do ar. Quatro dias depois o computador do Tribunal Superior Eleitoral engasgou, atrasando por algumas horas o resultado da eleição de domingo.

O problema seria despiciendo se não tivesse sido precedido por promessas megalomaníacas de pontualidade que chamavam o equipamento de “supercomputador”. Investigado, o acidente revelou-se consequência de um atraso na entrega de máquinas que deveriam ter chegado em março e só vieram em agosto.

Um Judiciário 100% digital é boa ideia, mas precisa de muita transparência e pouca pressa. Essa panela está no fogão do CNJ desde o ano passado e começou a andar depressa em julho, no meio da pandemia.

A iniciativa depende da utilização de um programa de integração das varas, criando um padrão que deverá ser seguido por todos os tribunais. Não se conhece o detalhamento da demanda. É coisa grande e tramita no sistema de reuniões virtuais dos ministros. Felizmente, a ministra Maria Thereza Assis Moura, corregedora nacional de Justiça, pediu que assunto fosse discutido numa reunião presencial. Ela deve se realizar na terça-feira (24).

O escurinho de Brasília já produziu um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores, laptops e notebooks para os alunos da rede pública. A Advocacia-Geral da União mostrou que a licitação estava viciada e que os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Até hoje não se sabe quem botou esse jabuti na árvore.

O “Juízo 100% Digital” precisará de software. Sem ameaçar a segurança da rede, o CNJ tem meios para divulgar as exigências técnicas para equipá-lo. Além disso, está embutida na ideia um discutível encanto pelo trabalho remoto.

Fux tem toda razão quando diz que “precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos”. Quem já comprou um computador ou já contratou um serviço sabe que a melhor maneira para fazer isso é estudar direito as propostas, para cantar vitória depois. Em Brasília cultiva-se outro modelo: havendo um problema, lança-se um novo projeto.

Até tu, OAB?

A Ordem dos Advogados do Brasil se mete em tudo. Agora a Operação Biltre da Polícia Federal bateu em doutores que mexiam com processos do Tribunal de Ética e Disciplina da sua seccional paulista. Segundo as denúncias, a tarifa era de R$ 250 mil.

Diante dos mandados de busca e apreensão a seccional informou que “em razão da investigação a que tivemos notícia nesta data foi determinada a imediata apuração interna sendo que a OAB e o seu Tribunal de Ética e Disciplina estão cooperando com as autoridades competentes”.

Ótimo, mas o uso da expressão “está cooperando” tornou-se uma girafa desde quando foi usada pela Odebrecht.

No caso da Odebrecht, como se viu, o problema estava no fato de que a colaboração só começou quando chegaram os homens da Federal.

Para o bem de todos, a OAB de Raymundo Faoro não deixará essa história sair a preço de custo.

MADAME NATASHA

Natasha não perde uma fala de Bolsonaro e acredita que ele merece uma sugestão astroidiomática. A senhora acredita que deve pensar duas vezes antes de usar diminutivos.

Na metade de março, quando a Covid havia matado menos de dez pessoas, ele falou em “gripezinha” e “resfriadinho”. Na sexta-feira, 13, quando já haviam morrido mais de 160 mil pessoas, ele disse que “agora tem essa conversinha de segunda onda”. Na véspera a pandemia teve um pico, com 908 mortes.

Natasha é supersticiosa e suspeita que os diminutivos do capitão chamam desgraças.


Elio Gaspari: Foi o dedo de Frei Orlando

A fala de Pujol, acompanhada por manifestações dos comandantes da Marinha e da Força Aérea, foi um sinal necessário

Três dias antes do naufrágio eleitoral da jangada de Jair Bolsonaro, o comandante do Exército, general Edson Pujol, disse que a tropa não se mete na política e que a política não deve entrar nos quartéis. Essa coincidência só pode ser atribuída a uma interferência de Frei Orlando, o capelão franciscano do 11º Regimento de Infantaria que tomou um tiro na Itália em fevereiro de 1945, dias antes do ataque a Monte Castelo, e tornou-se patrono da assistência religiosa do Exército. Se Pujol tivesse dito o que disse quatro dias depois da eleição de domingo, a leitura seria toda outra.

Em dois anos de governo, Bolsonaro levou as Forças Armadas do paraíso ao purgatório. Décadas de distanciamento e relativo silêncio foram substituídas por militâncias desconexas em torno de um presidente errático, nepotista, com um pé na superstição. Laboratórios do Exército receberam ordem para fabricar cloroquina. Felizmente, o capitão desistiu da promessa de visitar, nos Estados Unidos, a empresa de militares aposentados que pesquisava a transmissão de energia elétrica sem fio. Para quem acredita em lendas da floresta, essa mágica teria impedido o apagão do Amapá.

A fala de Pujol, acompanhada por manifestações dos comandantes da Marinha e da Força Aérea, foi um sinal necessário, cuja eficácia dependerá do prosseguimento de um exercício diário de chefia e disciplina.

O vírus da atividade política entrou nas Forças Armadas, sobretudo no Exército, durante o governo de Michel Temer e o comando do general Eduardo Villas Bôas. Naqueles dois anos tumultuados, ele teve mais protagonismo público que seu antecessor, Enzo Peri, em oito.

Pujol teve o apoio do vice-presidente Hamilton Mourão. Bom sinal, vindo dele. Em 2015, Mourão perdeu o importante comando do Sul e foi mandado por Enzo Peri para a mesa da Diretoria de Finanças porque se meteu em política. Em 2017, quando reincidiu, foi poupado por Villas Bôas. Mourão destacou-se defendendo ou justificando extravagâncias. Associando-se ao deputado Jair Bolsonaro, ele e 57 milhões de eleitores aderiram a uma candidatura que prometia muitas coisas, sobretudo tirar o PT do palácio. Conseguiu-se, mas o cotidiano produziu um governo que expeliu o juiz Sergio Moro e incorporou negacionismos na saúde pública, no meio ambiente e nas relações internacionais.

Um oficial que ralou nas escolas militares pode apoiar um governo porque não gosta de seus adversários, ou mesmo porque algum amigo ou parente conseguiu um cargo público. Mais difícil é acertar o passo chamando pandemia de “gripezinha” e combatendo a vacinação obrigatória.

Andar para a esquerda é uma coisa, andar para trás, bem outra. A primeira tentativa de imposição da vacina obrigatória contra a varíola foi instituída em 1846, ao tempo de D. Pedro II. Artigo 29 do decreto de 17 de agosto: “Todas as pessoas residentes no Império serão obrigadas a vacinar-se, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado, e condição”.

Para azar de quem não se vacinou, o decreto não colou, e 25 anos depois a varíola matou 1.200 pessoas no Rio.

Em 1906, dois anos depois da Revolta da Vacina e da inflexibilidade do presidente Rodrigues Alves e do doutor Oswaldo Cruz, morreram nove.


Elio Gaspari: Tempestade numa proveta

Um dia se saberá o que aconteceu na Anvisa entre as 15h e as 21h25m de segunda-feira, quando ela suspendeu os estudos clínicos que avaliavam a Coronavac

Um dia se saberá o que aconteceu na Anvisa entre as 15h e as 21h25m de segunda-feira, quando ela suspendeu os estudos clínicos que avaliavam a Coronavac. Uma rede de computadores fora do ar e uma comemoração de Jair Bolsonaro transformaram um suicídio numa lastimável tempestade de proveta.

A polícia achou o corpo do voluntário na tarde de 29 de outubro. No dia seguinte, uma sexta-feira, o centro de pesquisas do Hospital das Clínicas informou à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, e ao Instituto Butantan.

O médico Jorge Venâncio, coordenador da Conep, disse à repórter Constança Tasch que conversou com pesquisadores “duas vezes por dia” e decidiu não suspender os testes. Ele explicou o motivo: “O voluntário tomou a segunda dose da vacina 22 dias antes, não tinha nenhum problema de saúde e chegou a fazer um check-up particular, com uma batelada de exames, pouco depois.”

Numa outra pista, correu a notificação do Instituto Butantan à Anvisa. Ela foi emitida no dia 6 de novembro, informando na sua parte conclusiva que a morte do voluntário não tinha a ver com o teste da vacina. Segundo a Agência, seu sistema de computadores estava fora do ar e a comunicação do dia 6 não havia sido lida.

Às 15h do dia 9, segunda-feira da semana passada, a Anvisa pediu ao Butantan informações sobre os “eventos adversos graves inesperados” ocorridos desde 30 de outubro.

Segundo uma cronologia divulgada pelo Butantan, às 18h13m o pedido foi reiterado e 11 minutos depois as informações que haviam sido mandadas no dia 6 foram reenviadas. Os fatos que subsidiaram a decisão da Conep estavam todos lá. Só faltava a palavra suicídio. Segundo uma linha do tempo da Anvisa, ela chegou “sem nenhum detalhe”.

Às 20h47m a Anvisa convocou a equipe do Butantan para uma reunião de emergência no dia seguinte, sem agenda especificada.

No entanto, 13 minutos depois, em outra mensagem a Anvisa suspendeu os testes daquilo que Bolsonaro chama de “a vacina chinesa do governador João Doria”.

Às 21h25m a Anvisa informou que suspendera os estudos clínicos da Coronavac.

Por motivos que podem ser compreensíveis, durante três dias a Anvisa ficou fora do lance, mas, como ela revelou, sabia “por meio de contato informal com o Ministério da Saúde e com a Conep” que um “evento adverso grave teria ocorrido”. Entre as 15h e as 21h25m criou-se uma crise sanitária, alavancada no dia seguinte pelo capitão, que viu na sua decisão “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.

Na sua entrevista de terça-feira o contra-almirante Antonio Barra Nunes, que é médico, repetiu à exaustão que fez tudo de acordo com o manual e que a decisão foi dos técnicos, funcionários de carreira. O diretor do Butantan, Dimas Covas reclamou: “Um telefonema teria resolvido”. Juntando-se as peças, a Anvisa revelou que soubera “informalmente” da ocorrência de um “evento”. Ela, que estivera fora do ar, decidiu suspender os testes sem não falar com o Butantan e muito menos com a Conep, que avaliara o caso.

Barra Nunes fez tudo pelo manual, que não prevê telefonemas. Aparecer numa manifestação diante do Palácio do Planalto à qual incorporou-se o presidente Bolsonaro também não seria coisa do manual, mas deixa para lá.

Achando que seguia o manual, em 1941, o comandante da frota americana do Pacífico menosprezou as advertências que lhe chegavam sobre a possibilidade de um ataque japonês e deixou parte de seus navios atracados na base de Pearl Harbor. Na manhã de 7 de dezembro, de uma janela, viu o ataque. A sorte tinha mandado três porta-aviões ao mar.

Dez dias depois o almirante Kimmel perdeu o comando e duas das quatro estrelas que tinha.

BolsonaVac

Antes mesmo da certificação da CoronaVac, o governador João Doria parece ter descoberto a BolsonaVac.

Durante quatro dias, enquanto a Anvisa estava metida na encrenca dos testes da vacina e Bolsonaro falava de um país de “maricas” ele se manteve no mais absoluto silêncio, como se praticasse um distanciamento político.

Doria pode ter descoberto uma vacina contra bate-bocas com gotículas viróticas e contagiosas.

Chapman precisa se cuidar

O embaixador americano Todd Chapman precisa puxar o freio de mão. Ele incluiu uma homenagem aos seus fuzileiros navais no portal da repartição sem qualquer segunda intenção. Mesmo assim, com menos de dois anos no posto, apareceu bastante, coloriu-se demais e deixou que Washington organizasse uma ridícula viagem do secretário de Estado Mike Pompeo a Roraima. Na quinta-feira, reuniu-se com o embaixador argentino para tratar de uma política que levava em conta a vitória de Joe Biden. Como palitar dentes à mesa, poder, pode.

Em julho, quando a Covid já havia matado mais de 63 mil pessoas no Brasil, Chapman deu um almoço para Bolsonaro e seus hierarcas. Nenhum maricas, todos sem máscara, inclusive ele. William Tudor, o segundo representante do governo americano no Brasil chegou ao Rio em 1827 e em 1830 morreu de febre amarela. Seu túmulo só foi achado em 1944.

Chapman tem à mão a boa memória de outro antecessor. Jefferson Caffery ficou no posto de 1937 a 1944, atravessando a turbulência do Estado Novo durante a Segunda Guerra Mundial. Foi um craque na profissão pelo que fazia em pé, Chapman pode seguir seu exemplo.

Erro

O ministro Gilmar Mendes informa que estava errada a informação aqui publicada segundo a qual “não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas”.

Diz e prova: A Corte Constitucional alemã divide-se em dois Senados, um cuida dos processos de controle de constitucionalidade e o segundo cuida de conflitos entre os entes federativos e questões eleitorais. A Suprema Corte do Reino Unido tem 12 juízes mas nem todos se manifestam em todas as decisões.

Eremildo, o idiota

Eremildo é muito macho, não usa máscara e vai a Brasília para presentear o capitão com uma garrafa de sua caipirinha de açaí com cloroquina.

O cretino foi a única pessoa que entendeu a metáfora da pólvora. Ela pode ser usada pelos agrotrogloditas para explodir as árvores que não queimarem.

Mesmo que o capitão estivesse ameaçando Joe Biden com um uso da pólvora, Eremildo também acha a ideia ótima. Ele pretende se alistar na primeira tropa para combater os americanos. Espera ser feito prisioneiro e levado para Nova Jersey onde abrirá uma franquia de chocolates caso consiga ficar por lá.

Houve aviso

Paulo Guedes está frustrado por não ter conseguido privatizar coisa alguma. Nem a estatal do trem-bala o governo Bolsonaro conseguiu fechar.

Aviso não faltou. Antes mesmo da posse o economista Mansueto Almeida avisou-o que suas metas de privatizações, eliminação do déficit e venda de imóveis da União eram voo de anjo.


Elio Gaspari: Diplomacia sem cloroquina

Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países

Donald Trump está oferecendo ao mundo uma cena de desequilíbrio explícito recusando-se a admitir sua derrota eleitoral. Problema dos americanos. O Brasil nada tem a ver com isso. Desde o fim da semana passada, criou-se uma saia justa porque o presidente Jair Bolsonaro não felicitou Joe Biden pela sua vitória. É um bom tema para alimentar conversas, mas sua relevância é igual à da cloroquina para a cura da Covid. Pode, no máximo, ser um silêncio descortês, mas, nesse negócio de reconhecimento indevido, a medalha está com a diplomacia americana, que, em 1964, reconheceu o deputado Ranieri Mazzilli como presidente, enquanto João Goulart ainda estava no Brasil. Pior, fizeram isso sem consultar o presidente Lyndon Johnson.

No dia 20 de janeiro, Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. No limite, Trump deixará a cidade antes disso. Tudo bem. Em 1801, John Adams foi-se embora e não participou da posse de Thomas Jefferson. Talvez Trump fique de cara fechada na limusine que o levará, ao lado de Biden, da Casa Branca ao Capitólio. Tudo bem de novo. Em 1953, o general Eisenhower e o presidente Truman mal trocaram algumas palavras durante o percurso. Malquerenças à parte, no dia seguinte Jefferson e Eisenhower governavam os Estados Unidos, e, a partir da tarde do dia 20, Joe Biden assinará seus primeiros papéis na Casa Branca.

Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países. Bolsonaro e Biden têm opiniões diferentes em relação ao meio ambiente, uma ninharia se comparadas a divergências anteriores, como a do Acordo Nuclear que o Brasil assinou com a Alemanha, e o governo americano ostensivamente ajudou a detonar. Salvo a ação de agrotrogloditas nacionais e de suas milícias piromaníacas, há um imenso campo para o entendimento com os Estados Unidos e as grandes nações europeias em relação à floresta. Até há bem pouco tempo, o Brasil não era um pária. Se passou a sê-lo, com um chanceler que se orgulha disso, o problema é do atual governo. Assim foi com a agenda dos direitos humanos no século passado. Ela era um espinho no pé da ditadura, não de Pindorama. Nunca é demais lembrar que a famosa frase “o Brasil não é um país sério” jamais foi dita pelo presidente francês Charles De Gaulle. Seu autor foi o embaixador brasileiro em Paris.

Como perguntou o documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal revelado pelo repórter Mateus Vargas: “Será que vale a pena a troca de provocações nas Relações Internacionais?”.

Joe Biden é um dos poucos presidentes eleitos americanos que estiveram no Brasil. Isso garante que ele não pensa que a capital do país seja Buenos Aires. George Bush não sabia que aqui há negros, e em 1945 Franklin Roosevelt achava que Getúlio Vargas fosse um general. Ao contrário de Trump, o presidente eleito dos Estados Unidos tem uma relação racional com o Departamento de Estado, e pode-se esperar que pratique uma diplomacia ouvindo os profissionais. Em 2015, ele cruzou com o venezuelano Nicolás Maduro numa reunião em Brasília. Tudo pronto para um piti, Biden cumprimentou-o e disse que, se tivesse a cabeleira do colega, seria presidente dos Estados Unidos. Mesmo com uns poucos fios transplantados, conseguiu.

Quem preferir algum tipo de diplomacia temperamental jogará para seu público interno.


Elio Gaspari: O mundo inseguro das boquinhas de TI

Às 15h de terça-feira, o sistema de computadores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi invadido, e os trabalhos da Corte só voltarão ao normal nesta semana

O episódio mostra que os computadores da Viúva continuam sendo administrados de forma leviana. No mundo das altas competências, no século passado o governo brasileiro já pagou o mico de ter um sistema de criptografia das embaixadas protegido por equipamentos de uma fábrica suíça que tinha um sócio oculto, a Central Intelligence Agency americana. No governo Dilma Rousseff, descobriu-se que algumas de suas comunicações também estavam grampeadas.

Não se sabe o propósito dos invasores do STJ, pois achar que o tribunal tem meios ou recursos para pagar um resgate não faz sentido. Sabe-se, contudo, que a rede oficial de informática está contaminada por dois vícios elementares, que nada tem a ver com altas competências. É pura incompetência. Em muitas áreas, quando muda o chefão, ele troca a equipe de tecnologia. Mesmo em áreas onde isso nem sempre acontece, os hierarcas usam seus endereço da rede oficial para tratar de assuntos pessoais. Nos Estados Unidos a secretária de Estado Hillary Clinton pagou caro por isso. Assuntos oficiais e comunicações pessoais são coisas diversas. Se essa banalidade não é respeitada, só se pode esperar que o sistema esteja bichado em outras trilhas.

Essa incompetência não acontece por causa da herança escravocrata. Ela é produto de uma indústria da boquinha em quase tudo que tem a ver com informática. Prova disso é que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação armou uma licitação viciada de R$ 3 bilhões há mais de um ano, foi apanhado, cancelou a maracutaia, mas até hoje não explicou como o edital foi concebido.

Na compra de equipamentos, pode-se pegar o jabuti quando ele quer mandar 117 laptops para cada um dos 255 alunos de uma escola. Quando as contratações vão para escolha de operadores, manutenção e até mesmo programação entra-se num mundo complexo, atacado por amigos que têm conexões, mas não têm competência.

No caso da invasão das máquinas do STJ, surgiu um perigoso efeito colateral. Com um presidente que não confia nas urnas eletrônicas, mas até hoje não provou que tenha ocorrido fraude na sua eleição, estende-se o tapete vermelho para que terraplanistas comecem a alimentar conspirações em relação ao pleito de 2022. O STJ ainda estava fora do ar quando o capitão Bolsonaro voltou a defender o voto impresso. Logo ele, que tratava assuntos de Estado com o ministro Sergio Moro na sua conta privada.

Trump dividiu os republicanos

O calor que Donald Trump tomou no Arizona mostra que ele dividiu até os republicanos. No estado em que o Homem de Marlboro teve um rancho, os democratas elegeram para o Senado o ex-astronauta Mark Kelly. Ele é o marido de Gabrielle Giffords, a deputada que em 2011 foi baleada na cabeça por um maluco. (A bala atravessou seu crânio, mas ela recuperou parcialmente a fala e anda com bengala.)

Até a noite de sábado, Joe Biden liderava a eleição do Arizona. Fatores demográficos contribuíram para essa mudança no estado que produziu Barry Goldwater, o campeão do conservadorismo republicano nos anos 60 do século passado. Contudo, a grosseria megalômana de Donald Trump contribuiu para isso. Ele ofendeu o senador John McCain (1936-2018), um político respeitado pela biografia e pela decência. Filho de almirante e piloto de bombardeiro, McCain foi abatido no Vietnã, ralou seis anos de prisão e torturas em Hanoi e nunca recuperou completamente os movimentos dos braços. Candidato a presidente em 2008, perdeu para Barack Obama. Tendo contrariado Trump numa votação, tomou um dos insultos típicos do presidente: “Ele não é um herói, foi capturado”. (Trump nunca vestiu um uniforme.)

Quando McCain morreu, Trump ignorou-o e foi jogar golfe. Na campanha, o troco veio de Cindy, a viúva, herdeira da maior distribuidora da cerveja Anheuser-Busch no país. Em setembro ela apoiou Biden: “Somos republicanos, mas, acima de tudo, somos americanos.”

Trump não precisava ter sido grosseiro com McCain, mas sua natureza falou mais alto.

Médici, Geisel e Bolsonaro

Nenhum presidente brasileiro teve uma relação tão próxima com seu colega americano como o general Emílio Médici com Richard Nixon, a quem visitou em 1971. Quando Nixon se atolou no caso Watergate e acabou perdendo o cargo, Médici, fora do governo, não disse uma só palavra.

Nenhum presidente brasileiro detestava seu colega americano como Ernesto Geisel detestava Jimmy Carter. Enquanto esteve na Presidência, nunca disse uma palavra contra ele. Fora dela, recusou-se a encontrá-lo e não atendeu o telefone quando ele ligou para sua casa.

A bomba Wassef

De um advogado que conhece os processos relacionados com o Bolsonaro e suas “rachadinhas”, ao saber que seu colega Frederick Wassef tentou operar o depoimento da ex-assessora Luiza Souza Paes:

“Esse pessoal está chamando urubu de ‘meu louro’.”

Luiza Souza Paes mostrou ao Ministério Público os comprovantes de que, entre 2011 e 2017, o faz-tudo Fabrício Queiroz bicou cerca de R$ 160 mil do salário que recebia no gabinete de Flávio Bolsonaro.

A protelação tem nexo

Por mais que se façam trapalhadas no varejo com o processo das “rachadinhas” dos Bolsonaro, no atacado a manobra da defesa tem nexo e poderá dar certo.

Com 15 denunciados num processo de competência indefinida, é quase certo que não se chegue a uma sentença antes da eleição de 2022.

Tio Sam e Jeca Tatu

Relação especial é assim:

Neste ano, o Brasil importou 30 mil toneladas de soja dos Estados Unidos.

Pindorama é o maior exportador de soja do mundo.

Neste governo, os americanos foram dispensados de pedir visto de entrada no Brasil. Não passa pela cabeça dos Estados Unidos oferecer reciprocidade.

O presidente brasileiro torce pela reeleição de seu colega americano. Mesmo quando despejava dinheiro nas eleições de Pindorama, nenhum presidente americano fez declaração pública de apoio um candidato brasileiro.

Baker saiu de perto

Aos 90 anos, o texano James Baker, articulador da vitória eleitoral de George Bush na Corte Suprema contra Al Gore em 2000, afastou-se da teoria da eleição roubada antes mesmo do patético discurso de Donald Trump na quinta-feira.

Baker coordenou três campanhas presidenciais de republicanos, foi secretário do Tesouro e de Estado.

Trump e Napoleão

Quem viu o discurso de Trump deve se lembrar que em 1840, quando os restos mortais do Imperador saíram da ilha Santa Santa Helena para um mausoléu em Paris, num só hospício da cidade havia 14 pessoas garantindo que eram Napoleão Bonaparte.