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Elio Gaspari: Bolsonaro deve mostrar seu jogo

Ganha uma viagem à Pensilvânia quem souber que cartas o presidente tem

Às segundas, quartas e sextas, o ministro Paulo Guedes briga com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Às terças, quintas e sábados, fazem as pazes. Todo dia, Guedes briga com Rogério Marinho, seu colega do Desenvolvimento Regional. Insatisfeito com as brigas que arrumou, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, insulta o chefe da Secretaria de Governo, general da reserva Luiz Eduardo Ramos. Do alto de sua erudição, num discurso em que se disse poeta e falou até em grego, o chanceler Ernesto Araújo disse ao mundo que “o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo, se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. (Se o Brasil virou um pária, isso nada tem a ver com o discurso da liberdade.) Bolsonaro, o maestro dessa banda de música, briga com governadores, vacinas e colaboradores.

Faz tempo, diante da anarquia do fim do governo de João Figueiredo, o general Golbery do Couto e Silva dizia que uma pessoa pode ir para a rodoviária parando em todos os guichês, pedindo um desconto na passagem. Podia até conseguir, mas não podia deixar de dizer para onde queria ir. Olhando o mesmo quadro, Tancredo Neves queixava-se: “Ninguém joga só embaralhando. Tem que dar carta a alguém, e o Figueiredo não está dando carta alguma. Está com todas na mão”. (O tempo mostrou que o general não tinha mais carta, e Tancredo foi eleito presidente em 1985.)

Ganha uma viagem à Pensilvânia quem souber que cartas Bolsonaro tem. Talvez nem se possa dizer que embaralha as cartas. Ele as rasga. Rasgou Gustavo Bebianno, Sergio Moro, Santos Cruz e Luiz Henrique Mandetta. Marcou a do general Eduardo Pazuello.

Admita-se que o capitão tem o objetivo de se reeleger, com o apoio do Centrão e dos auxílios emergenciais. Para isso, precisaria que a eleição presidencial viesse rapidinho. Ela não virá, quem está a caminho é uma insegurança econômica bafejada pelo desequilíbrio fiscal. Com o emagrecimento da mística eleitoral que acompanhou sua vitória de 2018, resta-lhe a fidelidade do Centrão. Se ele pudesse, deveria marcar um jantar com Dilma Rousseff, ela acreditou nessa fidelidade.

Muita briga e poucos objetivos, os males do governo Bolsonaro são. Quem sabe onde foi parar aquele programa Pró-Brasil? Era pó e ao pó reverteu. Durante seu governo, o país foi infelicitado por uma pandemia que matou mais de 160 mil pessoas. Não foi ele quem trouxe o coronavírus, mas, em oito meses de angústia, dele não partiu uma só ação ou fala que contribuísse para a boa ordem sanitária. Ressalvem-se a rapidez e o alcance dos R$ 600 mensais que tiraram milhões de pessoas do caminho da fome. Essas medidas, contudo, não deram eficácia à cloroquina no combate à “gripezinha”.

Amanhã completam-se 116 anos da criação, no Rio de Janeiro, da Liga contra a Vacina Obrigatória. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro quer liderar um movimento parecido. Em 1904, muita gente boa, como Rui Barbosa, combatia a vacinação contra a varíola, que naquele ano mataria quatro mil pessoas na cidade. Em 1980 a Organização Mundial da Saúde certificou a erradicação da doença. No governo de Rodrigues Alves, o Brasil andou para a frente.


Elio Gaspari: A privataria da saúde não toma jeito

Costuraram no escurinho de Brasília um avanço sobre as Unidades Básicas de Saúde do SUS, conseguiram um decreto, que gerou gritaria e acabou sendo retirado

A turma da privataria da saúde desprezou um velho conselho de Tancredo Neves e deu-se mal: “Esperteza quando é muita come o dono”.

Costuraram no escurinho de Brasília um avanço sobre as Unidades Básicas de Saúde do SUS, conseguiram um decreto, provocaram uma gritaria, tomaram um momentâneo contravapor de Bolsonaro e avacalharam o general Eduardo Pazuello. Seu ministério disse que a ideia veio da ekipekonômika. Já o doutor Guedes disse inicialmente que ela veio do ministério do general.

Em 2019, essa turma produziu em segredo um projeto que virava de cabeça para baixo a legislação que rege os planos de saúde. Tinha 89 artigos, nenhum a favor da clientela. A peça havia sido produzida num escritório de advocacia por um consórcio de entidades, seguradoras e operadoras, e a consulta ao seu texto era sigilosa. Divulgada, a armação explodiu e ficou sem pai nem mãe. Covardemente, ninguém saiu em sua defesa, nem os autores.

De lá para cá, veio uma pandemia e roubalheiras público-privadas com a saúde foram expostas em Rio, Amazonas, Pará, Brasília e Santa Catarina. Três secretários de Saúde passaram pela cadeia, e dois governadores estão com o mandato a perigo.

Individualmente, entre os çábios da privataria médica há renomados profissionais, ou respeitados gestores. Coletivamente, eles se misturam com larápios e operadores do escurinho de Brasília, incapazes de botar a cara na vitrine. Se praticassem esse tipo de promiscuidade no tratamento de seus pacientes privados, a medicina brasileira já teria migrado para Miami.

Figueiredo, general de vitrine

Está chegando às livrarias “Me esqueçam: Figueiredo — A biografia de uma presidência”, de Bernardo Braga Pasqualette. Conta o governo do general João Baptista Figueiredo, o último governante do ciclo que foi de 1964 a 1985.

Estourado e vulgar (um lorde nos dias de hoje) deixou a Presidência pedindo para ser esquecido. Conseguiu, mas os tempos estranhos do século XXI pediam que seu caso fosse contado e Pasqualette ralou, entrevistando centenas de sobreviventes do ocaso da ditadura. Figueiredo foi um personagem trágico. É visto como o último presidente da ditadura, mas assinou a anistia de 1979, respeitou as regras do jogo e deixou o palácio por uma porta lateral para não passar a faixa a José Sarney, que assumiu por conta da doença de Tancredo Neves. Seria seu grande momento. Foi o retrato de um temperamental desorientado.

Sua administração foi errática e ruinosa, mas a ele também se deve o fecho da transição para um regime democrático.

Figueiredo era um general de vitrine, tríplice coroado nas escolas militares, fazia o gênero do cavalariano desbocado e atlético. Ali havia um cardiopata inseguro e dissimulado. Muita medalha e pouco mérito. Ele passou mais tempo no palácio do que em comandos de tropa e viveu parte da Segunda Guerra como instrutor da cavalaria na escola de Realengo.

Faixas

Ao tempo do general Figueiredo, o governo tinha mania de condecorações. Ela voltou, com mais um penduricalho: as faixas. Este adereço monárquico exige bons modos e elegância. Quando o uso de faixas era coisa de miss em concurso de beleza, as moças vestiam-nas como rainhas.

Bolsonaro veste suas faixas com tamanha desatenção que elas podem acabar virando cachecóis. Em seu benefício, diga-se que nunca usou faixa com o paletó aberto, coisa que pelo menos um dos seus generais já fez.

Lula caiu na real

Com o PT a pão e água nas pesquisas para a eleição dos prefeitos de Rio, São Paulo e Belo Horizonte, Lula caiu na real.

Em junho ele se recusava a assinar manifestos que julgava poluídos por eventuais adesões como as de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer.

Nas suas palavras: “Eu não tenho mais idade para ser maria vai com as outras. O PT já tem história neste país, já tem administração exemplar neste país. Eu, sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”.

Passaram-se quatro meses e a “metamorfose ambulante” mudou, anunciando que “podemos ter uma ampla coalizão contra o Bolsonaro em 2022”.

Graças a uma costura de Camilo Santana, o governador petista do Ceará, “Nosso Guia” restabeleceu a comunicação com Ciro Gomes, a quem ele e o comissariado petista maltratavam.

Quando os dois se estranhavam, Ciro Gomes disse, com razão, que “o PT se acha dono dos votos” e Lula “se acha o maioral”.

Witzel saudita

O doutor Wilson Witzel (Harvard Fake’ 15) ameaça: “Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá”.

Ex-juiz, Witzel deve procurar um advogado ou pensar num outro tipo de fuga. É improvável que a embaixada do Canadá dê asilo político a um cidadão acusado de improbidade que tenha sido afastado do governo num processo público e irretocável.

Isso, fazendo-se de conta que o governador afastado do Estado do Rio defendia os direitos humanos quando dizia que “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”.

O Canadá tem uma tradição humanitária e recebeu dezenas de milhares de refugiados, quase todos do andar de baixo. Talvez Witzel possa tentar a Arábia Saudita, que em 1979 asilou o balofo ugandense Idi Amin Dada, ou Marrocos, onde o larápio general congolês Mobutu terminou seus dias.

Guedes x Marinho

O doutor Paulo Guedes sempre soube que a Febraban opera a serviço dos bancos, até porque já esteve naquele lado do balcão. Como ministro, atacou a guilda acusando-a de financiar “estudos que não têm nada a ver com a atividade de defesa das transações bancárias, financiando ministro gastador para ver se fura o teto, para ver se derruba o outro lado”.

A fala seria trivial, mas seu final ficou críptico. Pode-se deduzir que o “ministro gastador” é Rogério Marinho. Falta explicar o uso da palavra “financiando”.

Pelo nível das cotoveladas que os dois trocam, poderiam ouvir o conselho de Djalma Marinho, avô de Rogério, em 1968, quando o governo armava o bote do AI-5: “Ao rei, tudo, menos a honra”.

O futuro de Salles

A segurança de Ricardo Salles no ministério do Meio Ambiente tornou-se idêntica à de uma jazida em reserva indígena.

Quando o general da reserva Santos Cruz reclamou do “desrespeito geral, por despreparo, inconsequência e boçalidade” que envenenam o ar, não deu nome aos bois, mas passou sua boiada.


Elio Gaspari: O quadrado do Supremo

Brasil não precisa que o STF entre numa guerra da vacina

Com quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em 1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que na saúde pública.

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha: “Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.

O capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para isso.

Pode-se discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.

O quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid. Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?

A criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional. Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra. Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.

Tudo indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição. Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.

Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.


Elio Gaspari: Um surto de mediocridade

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac

Sabe-se que Jair Bolsonaro dorme mal. No ano passado, ele revelou que penava 89 episódios de apneia por hora: “Detenho o recorde brasileiro.” Sabe-se também que instalou uma escrivaninha no espaçoso guarda-roupas do Alvorada e passa o tempo ligado nas redes sociais de sua estima.

Às 5h45m da madrugada de quarta-feira, o presidente continuava diante de seu computador quando respondeu a uma mensagem com um grito de guerra: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. (…) Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a vacina.”

Estava aberta uma ridícula Guerra da Vacina.

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, que, nas suas palavras, transformou-se na “vacina chinesa do João Doria”. Desde que o vírus chegou ao Brasil, matando mais de 150 mil pessoas, Bolsonaro militou no exercício ilegal da Medicina com sua cloroquina.

Fritou dois ministros da Saúde e, com seu surto matutino, começou a refogar o terceiro. Nos seus gritos de guerra, anunciou que a “vacina não será comprada” porque “não abro mão de minha autoridade”. Parolagem. Horas depois, a Agência de Vigilância Sanitária (detentora da autoridade) informou que, como acontece com qualquer medicamento, autorizará a compra do fármaco que cumpra os requisitos científicos.

No rescaldo do surto, 11 palavras do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz explicam a barulheira: “Falta de capacidade e organização interna” e “um nível de mediocridade extrema”.

Santos Cruz foi um dos 13 azes militares levados para o governo pelo capitão Bolsonaro. Os outros dois foram Hamilton Mourão e Augusto Heleno. Ele era o único a não ter se envolvido em episódios de indisciplina. Durou seis meses, dois dos quais em processo de fritura. Desde que saiu do governo, Santos Cruz tem sido um crítico raro, porém, pontual. Se quisesse, teria sido candidato à Prefeitura do Rio, mas afastou-se do cálice.

Quem entende o mundo dos generais garante que Santos Cruz é ouvido.

Uma grande História dos EUA

Está nas livrarias “Estas verdades — História da formação dos Estados Unidos”, da professora Jill Lepore, de Harvard. Com 866 páginas e quase dois quilos, vai de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Lepore gosta da vida, de História e dos Estados Unidos. Isso faz com que sua produção tenha um discreto bom humor, levando-a a tratar de tudo, inclusive cinema e esporte.

Os personagens de “Estas Verdades” têm carne e osso. Ela olha para os magnatas, os poderosos, os negros, os índios e as mulheres. Em 1760, o fazendeiro George Washington consertou sua boca usando dentes de escravizados. (Pelo menos 43 deles fugiram e um combateu ao lado dos ingleses. Da fazenda de Thomas Jefferson, fugiram 13). O futuro presidente acasalava-se com a escrava Sally Hemings, meia-irmã de sua falecida mulher. Na conta do erudito amante e senhor, ela só tinha um oitavo de sangue negro.

No século XVIII, as colônias americanas tiveram duas revoluções, uma contra o domínio inglês, outra contra a escravatura. Esta levou quase um século para prevalecer. O que levou os colonos a rebelar não foram apenas os impostos e a repressão, mas sobretudo a oferta da liberdade para os escravos.

Em 1776, um grupo de “subversivos”, segundo o filósofo inglês Jeremy Bentham, criou um estado “absurdo e visionário”. Em 1801, a Suprema Corte se reunia na pensão em que viviam seus juízes.

Lepore diz coisas assim: “A Inglaterra manteve-se no Caribe e desistiu da América.” Ou ainda, tratando da Guerra Civil: “O Sul perdeu a guerra, mas ganhou a paz.”

A grande nação americana foi construída também pelos movimentos dos trabalhadores, dos imigrantes e dos negros. “Estas verdades” vai mostrando essa história aos poucos, com um elegante domínio dos fatos: em 1776, quando foi proclamada a independência dos Estados Unidos, a temperatura na cidade de Philadelphia era de 11 graus; às vésperas da chegada de Donald Trump, era de 15.

Para Bill Gates, “Estas Verdades” é o “relato mais honesto e mais bem escrito que já li sobre a História dos Estados Unidos". Jill Lepore conta uma grande aventura e termina com certa ansiedade: “Uma nação não pode escolher seu passado, só pode escolher seu futuro”.

Recordar é viver

Deu no “The New York Times”: pelo menos 545 crianças cujas famílias tentavam entrar ilegalmente nos Estados Unidos estão em abrigos, sem que seus pais tenham sido localizados. No debate de quinta-feira, Donald Trump fugiu da pergunta durante vários minutos.

Essas coisas acabam passando despercebidas enquanto a vida segue, naquilo que parece ser uma rotina maior que pequenos dramas.

No dia 12 de dezembro de 1938, chegou a Londres um navio que transportava 200 crianças judias alemãs, entregues pelos pais para que fossem criadas por famílias inglesas. Até o fim da guerra foram mais de 10 mil. O filho de uma delas, Michael Moritz, tornou-se um milionário e doou 15 milhões de dólares para programas de ajuda aos pobres da Universidade de Oxford.

Nas semanas em que as crianças judias desceram em Londres, Josef Stalin assinou 30 listas com os nomes de cinco mil pessoas que deviam ser executadas e foi ao cinema do Kremlin ver uma comédia.

No Rio, Vargas posou para o escultor Leão Veloso e foi ao cinema ver “Corpo e alma de uma raça”.

Passou o tempo e a história de Nicholas Winton, o inglês que organizou o resgate está na rede, em vários vídeos. Quem quiser, poderá cultivar suas emoções por alguns minutos. O título de um deles é “Nicholas Winton, o herói anônimo da Segunda Guerra”.

Amy e Kassio

O ministro Gilmar Mendes não gosta que se façam paralelos entre a Corte Suprema dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal.

O que aconteceria com a escolha da juíza Amy Coney Barrett, indicada para o tribunal, se dissesse aos senadores americanos que seu marido trabalha lá, mas não sabe exatamente o que ele faz? E se o senador em cujo gabinete o cidadão está lotado, também não souber?

O desembargador Kássio Nunes Marques não soube dizer aos senadores o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer. Nem ele.

Nunes Marques explicou aos doutores que o custo de vida em Brasília é muito caro. Treze milhões de desempregados encaram o custo de vida sem salário algum, mas faça-se justiça: ela é economista e não advoga nas Cortes de Brasília.

Jesse Barrett, o marido de Amy, é advogado criminalista e trabalha numa banca em Indiana.


Elio Gaspari: O nome do crime é milícia

O que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano

A má notícia vem de um consórcio de pesquisadores: metade dos bairros do Rio de Janeiro estão ocupados por milícias. Um em cada três moradores da cidade vive em áreas controladas por essas organizações criminosas. A boa notícia está nas livrarias. É “A República das Milícias”, do repórter Bruno Paes Manso, com um retrato da construção dessa ruína social.

Paes Manso mostrou como os justiceiros surgiram até de forma simpática: “Milicianos de PMs expulsam tráfico”. Isso em 2005, passaram-se 15 anos e a simpatia é atraída para a notícia de que na semana passada a polícia do Rio matou doze milicianos.

Policiais expulsando traficantes de drogas em nome da benemerência era uma lenda urbana. Logo veio o controle das vans que faziam transporte ilegal de passageiros. (A Fetranspor, guilda dos empresários que faziam transporte legal, corrompia parlamentares e governadores.)

É difícil acreditar que Jair Bolsonaro não conhecesse a cidade em que vivia quando disse, em 2018, que “as milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando. Passaram a cobrar gatonet e gás”.

Bolsonaro tinha no seu entorno o ex-sargento Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano da Nóbrega. Um está preso. O outro, foragido, foi queimado no interior da Bahia.

Pela lenda urbana 1.0 a milícia vendia segurança, cobrando de R$ 15 a R$ 60 por família no bairro que protegia. A milícia “desvirtuada” cobraria pelo gás ou pelo gatonet (cerca de R$ 50). É a lenda urbana 2.0. Mesmo deixando-se pra lá que cobram entre R$ 30 e R$ 300 aos comerciantes, em pouco mais de uma década, elas avançaram nos mercados de regularização de terrenos e de construções ilegais. Privatizam espaços públicos achacando camelôs e motoristas que estacionam seus carros.

Outra lenda urbana esteve na ideia segundo a qual as milícias combatiam o tráfico de drogas. Pode ser que isso já tenha acontecido, mas hoje elas toleram os traficantes ou se aliam a eles. Não é preciso ser um gênio para perceber que essa fusão é inevitável.

Quando Bolsonaro defendia os milicianos era apenas um parlamentar federalmente inexpressivo e municipalmente astuto. Hoje é o presidente da República. No seu estado ajudou a eleger um juiz que prometia “balinha na cabeça” e foi afastado por mau uso do dinheiro da Viúva. O prefeito da cidade que persegue o apoio do capitão foi apanhado usando o dinheiro da Viúva para custear uma milícia que constrangia cidadãos insatisfeitos com a saúde pública.

Bolsonaro, como Wilson Witzel, elegeu-se com um discurso político de defesa da lei e da ordem. O governador do Rio perderá a cadeira e deverá batalhar para ficar solto. Bolsonaro e os generais da reserva que levou para o Planalto estão reciclando suas agendas moralistas. Para quem falava em segurança e combate à corrupção, a pesquisa das milícias e o livro de Bruno Paes Manso estão aí para mostrar que não adianta olhar para o lado. A menos que se pretenda colocar mais uma lenda urbana na ciranda, a dos confrontos nos quais morrem os milicianos que expulsavam os traficantes. Como o tráfico vai bem, obrigado, o que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano. Como as milícias são quase sempre recrutadas na polícia, com a proteção de governantes, seria melhor olhar para dentro.


Elio Gaspari: A filantropia de Ibaneis Rocha

Governador de Brasília, Ibaneis Rocha, doou 22,5 mil equipamentos de proteção sanitária ao município piauiense de Corrente

Até agora, a pandemia parecia ter provocado só um caso exemplar de filantropia: o Itaú Unibanco doou R$ 1 bilhão do seu patrimônio entregando sua administração a um conselho de notáveis. Da outra ponta, veio outro exemplo de filantropia, com o dinheiro da Viúva. O governador de Brasília, Ibaneis Rocha, homem abonado, doou 22,5 mil equipamentos de proteção sanitária ao município piauiense de Corrente, situado a 860 quilômetros do Distrito Federal.

Em maio, o prefeito de Corrente havia pedido dez mil luvas, mil aventais impermeáveis, cinco mil máscaras e 240 litros de álcool ao governador. A rede pública de Brasília estava sobrecarregada, e o estoque de equipamentos de proteção entrara em colapso em pelo menos dois hospitais. No dia 17 de julho, o governador oficializou a doação, e no lote iriam 12.560 máscaras. O pedido havia sido de cinco mil.

Em agosto, sem relação com esse caso, foram presos o secretário de Saúde de Brasília e seis de seus colaboradores. Com relação, o Ministério Público de Contas representou contra Ibaneis para que se investigasse a regularidade da doação, até mesmo porque foi feita sem licitação e sem a avaliação de sua conveniência.

Ibaneis Rocha foi criado em Corrente, tem três fazendas em municípios vizinhos e boas relações com o prefeito local, que é candidato à reeleição.

Pelo menos nove unidades da Federação viram seus governos metidos em malfeitorias com o dinheiro da saúde pública. Descobriram-se irregularidades nos hospitais de campanha do Rio de Janeiro e até a compra de respiradores pelo país afora, mas doação do que faltava num estado para mimar amigo de outro é coisa que só se viu em Brasília.

No dia 14 de setembro, a juíza Sandra Cristina Candeira de Lira, do Tribunal de Justiça de Brasília, intimou o governador Ibaneis Rocha para “esclarecer a dinâmica dos fatos” incluindo no “polo passivo da lide”. Em português: Ibaneis se tornou réu. Sabe-se lá como terminará essa história, mas a providência terá a virtude de expor os mecanismos desse caso singular de filantropia.

Ibaneis Rocha é um advogado e empresário bem-sucedido. Em 2018, declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 98 milhões. Em sua campanha, ele tinha o slogan “Pra Fazer a Diferença”. Fez.

Bolsonaro precisa se benzer

Num mesmo dia, Jair Bolsonaro repetiu que no seu governo não há corrupção e que a pandemia foi “superdimensionada”.

Quando o capitão falou em “dar uma voadora” nos corruptos, o senador Chico Rodrigues, vice-líder do governo, era apanhado com “um grande volume, em formato retangular, na parte traseira” de seu short. Eram R$ 15 mil. Reconheça-se que cada um pode guardar seu dinheiro onde bem entende. Resta saber de onde saiu o ervanário.

Logo depois da referência ao “superdimensionamento”, o governo francês decretou o toque de recolher em Paris e mais oito cidades. Portugal e a Espanha expandiram as medidas de controle social, e os Estados Unidos temem um agravamento da emergência sanitária. No mundo, já morreram mais de um milhão de pessoas, e no Brasil passou-se da marca dos 150 mil. Nas semanas seguintes à explosão, a bomba atômica matou cerca de 140 mil em Hiroshima.

Se não quiser falar menos, Bolsonaro pode procurar uma benzedeira.

Chico Stone

Assim como a cruzada de pernas de Sharon Stone no filme “Instinto selvagem” entrou para a história do erotismo cinematográfico, o vídeo do traseiro endinheirado do senador Chico Rodrigues entrará para a história da nova moralidade política, aquela que surgiu no rastro da campanha de Jair Bolsonaro, tendo como passistas Fabrício Queiroz e o governador Wilson Witzel.

Cuecas

Seguindo uma regra jurídica antiga, celebrizada pela fala do traficante carioca Elias Maluco ao ser capturado, em 2002 (“prende, mas não esculacha”), o ministro Luís Roberto Barroso mandou guardar num cofre o vídeo da apreensão da lingerie financeira do senador Chico Rodrigues.

Tudo bem, mas em 1949, o deputado Barreto Pinto foi cassado por quebra de decoro porque a revista “O Cruzeiro” publicou fotografias nas quais posava de “casaca e cueca.”

Barreto Pinto não tinha dinheiro na cueca e morreu garantindo que foi enganado pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon, que haviam se comprometido a não publicar as fotografias de corpo inteiro.

Madame Natasha

Desde o dia em que Natasha viu o ministro Edson Fachin lendo uma longa citação do professor Edson Fachin num de seus votos no Supremo Tribunal Federal, a senhora acompanha com atenção suas falas.

Outro dia, ele votou num caso em que se discutia o direito de o presidente da República escolher os reitores de universidades federais entre os integrantes das listas tríplices que lhe são enviadas.

A lei diz que as universidades são autônomas e que as listas devem ter três nomes. O doutor disse o seguinte:

“Está em horizonte mais ampliado que a dimensão meramente vocabular o deslinde da controvérsia. Faz-se necessário reconstruir normativamente sua inserção no ordenamento constitucional brasileiro, entendendo, sobretudo, as especificidades de sua concretização no sintagma ‘autonomia universitária’”.

Natasha não entendeu o fachinês, mas o ministro esclareceu que a escolha do presidente deveria preencher três condições, sendo que a terceira seria de que “a escolha recaia sobre o docente indicado em primeiro lugar na lista”.

A senhora não entende como uma lista pode ser tríplice, devendo a escolha recair sobre o primeiro indicado. Para piorar, Eremildo, o idiota, contou a Natasha que, em 2016, Fachin achava exatamente o contrário.

O estilo Fux

Se o ministro Luiz Fux não polir seu estilo, corre o risco de inverter o milagre das bodas de Canaã, transformando vinho em água.

Com poucas semanas na cadeira de presidente do Supremo, comeu a jabuticaba que jogava relevantes questões penais para as turmas, mandando-as para o plenário. Em seguida, livrou a Corte da carga de ter libertado o chefão André do Rap.

Nos dois casos, o tribunal acompanhou-o. Num, por unanimidade, no outro, com um único voto contrário, o do ministro Marco Aurélio Mello. Ainda assim, é perseguido pelo rótulo de autoritário.

Como sairá dessa, só ele sabe. De qualquer forma, vale uma observação de Marcel Proust, um indiscutível conhecedor da alma humana: nossa personalidade social é uma invenção dos outros.

Polarização

Há dois anos, a política brasileira parecia dividida entre o petismo e aquilo que a ele se opunha, Jair Bolsonaro.

Passou o tempo e tanto o capitão quanto Lula estão diante de um dilema: os candidatos do PT estão encalhados no Rio e em São Paulo, onde começou a fritura de Jilmar Tatto, e Bolsonaro terá que pensar duas vezes antes de entrar firme nas campanhas dessas duas cidades.

Ponte para Biden

Conhecidas libélulas que voam no eixo Brasília-Washington estão oferecendo seus serviços ao Planalto para a hipótese de uma vitória de Joe Biden.

Em geral, vendem terrenos na Lua em troca de bons negócios no Brasil. Relações diplomáticas são aplainadas por diplomatas profissionais, quando os governos os têm a seu serviço e confia neles.


Elio Gaspari: O crime do Expresso do Oriente

André do Rap foi solto por todos, começando pelos ministros do STF

O ministro Marco Aurélio Mello disse quase tudo:

“O juiz não renovou, o Ministério Público não cobrou, a polícia não representou para ele renovar. Eu não respondo pelo ato alheio, vamos ver quem foi que claudicou.”

Quase tudo, porque quem soltou André do Rap, chefão do Primeiro Comando da Capital, condenado a 27 anos de prisão, foi Marco Aurélio Mello.

Dizer que essência da lei que o ministro seguiu ampara a libertação de um bandido como o chefão do PCC é uma demasia. Assim como foi uma demasia sua decisão de 2000, quando soltou o banqueiro Salvatore Cacciola, que viria a se escafeder (como André do Rap), até ser preso em Monte Carlo e recambiado para Bangu. Nesses casos, como em outros, iluminou-se na controvérsia.

Como no crime do Expresso do Oriente, André do Rap foi solto por todos, começando pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que derrubaram a tranca para os condenados em segunda instância. Foi solto também pelos parlamentares que votaram um dispositivo escalafobético que permite a libertação de qualquer pessoa presa preventivamente há mais de 90 dias sem manifestação do juízo pela prorrogação do prazo.

O ex-ministro Sergio Moro, com sua lógica angelical, diz que nada tem a ver com a girafa. De fato, ela não saiu do seu zoológico, mas o doutor botou a boca no mundo com um argumento de má qualidade: a exigência da renovação da preventiva a cada 90 dias sobrecarregaria os juízes. Quem entende do assunto estima que são, no máximo, cinco horas de trabalho por mês para um juiz de vara superpovoada. Foi o juiz Moro quem usou à saciedade o instrumento da preventiva como uma forma de pena antecipada. O ministro Gilmar Mendes cansou-se de denunciar essa astúcia.

Os doutores do andar de cima soltaram André do Rap, e corre-se o risco de sobrar para o andar de baixo. O Brasil tem centenas de milhares de pessoas pobres, em geral jovens pobres e negros, encarceradas sem condenação. Do jeito que a libertação de André do Rap entortou, surge a impressão de que para evitar a “sobrecarga” dos juízes, deve-se apertar o parafuso da preventiva.

Em sua batalha pela restauração do habeas corpus, o grande Raymundo Faoro, presidente de uma OAB que não existe mais, explicava aos generais que o instituto não discute o mérito da acusação que há contra uma pessoa, mas uma ilegalidade pontual na conduta do Estado. Os generais entenderam.

André do Rap não foi libertado porque é inocente, mas porque o STF decidiu que não se pode prender uma pessoa apenas com uma condenação em segunda instância. Ademais, a lei diz que os juízes devem se manifestar a cada 90 dias. Não é muito, sobretudo considerando que o cidadão está na cadeia há três meses. Refrescando a vida dos magistrados, arrisca-se deixar milhares de pessoas mofando nos cárceres.

O caso de André do Rap abriu a porta do armário das idiossincrasias cultivadas pelos 11 ministros do Supremo Tribunal. O juiz americano Oliver Wendell Holmes dizia que sua Suprema Corte se parecia com nove escorpiões numa garrafa. No Supremo Tribunal Federal há 11. O choque dos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio Mello é apenas um asterisco desse ambiente irradiador de malquerenças.


Elio Gaspari: Luiz Fux comeu a jabuticaba

Alteração no regimento do STF levou para o plenário questões penais que envolvem foro privilegiado

Ao alterar o regimento do Supremo Tribunal Federal levando para o plenário questões penais que envolvem maganos com foro privilegiado, o presidente do Supremo Tribunal, ministro Luiz Fux, limitou o alcance da jabuticaba das duas turmas da Corte. Com a provável chegada de Kassio Nunes à segunda turma, no lugar de Celso de Mello, Gilmar Mendes reinaria absoluto. Com o seu voto, o de Kassio, mais o de Ricardo Lewandowski, formariam maiorias automáticas, inclusive nos processos da família Bolsonaro.

Isso no varejo. No atacado, Fux fez muito mais, pois as turmas do Supremo são uma jabuticaba criada no século passado. Não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas. A Constituição diz que os ministros são 11, e 11 deveriam ser os ministros que decidiriam. Gilmar Mendes não gosta que se busquem paralelos na Corte Suprema dos Estados Unidos, mas lá só há turmas quando os juízes fazem ginástica no último andar do prédio.

A providência é tão cristalina que Gilmar Mendes não gostou, mas votou a favor da mudança, decidida por unanimidade.

A provável chegada de Kassio Nunes ao Tribunal, com seu currículo e seu percurso, obrigará Fux e seus colegas a trabalhar para recolocar a composição nos trilhos. Limitando o poder das turmas, a bola volta ao centro do campo, e as decisões que envolvem maganos com foro privilegiado vão para o plenário. A menos que se faça uma pirueta, muita coisa poderá acontecer em função dessa mudança, e mudará a qualidade da proteção de réus condenados por malfeitorias e roubalheiras. Aquilo que poderia ser resolvido com três conversas, precisará de pelo menos seis.

Paes e o óbvio
Com a segurança de um banqueiro alemão, doutor Eduardo Paes, ex-prefeito do Rio e candidato a um remake, anunciou: “Não faria a ciclovia da Niemeyer. É óbvio. É uma área frágil, entre o mar e a encosta. Morreram duas pessoas.”

Paes usa a expressão “é óbvio” de um jeito que os outros parecem bobos, e ele, esperto. O mar e a encosta já estavam lá quando ele resolveu fazer a ciclovia Tim Maia, “a mais bonita do mundo”, nas suas palavras. Quando ela desabou, em 2016, ele pontificou: “É óbvio que se essa ciclovia tivesse sido feita de forma perfeita, nós não teríamos essa tragédia, esse absurdo”. A ciclovia foi licitada, contratada e fiscalizada por seu governo.

Prefeito do Rio de 2009 a janeiro de 2017, Paes fez uma administração exuberante, com a Olimpíada (que deixaria um legado) e o Porto Maravilha. Resultou um Carlos Lacerda que deu errado.

Entre 1960 e 1965, Lacerda fez a adutora do Guandu e criou o parque do Aterro do Flamengo. Os dois estão aí até hoje. O legado da Olimpíada e o Porto viraram micos.

Paes disputa a prefeitura com Marcelo Crivella e seus parrudos e óbvios Guardiões comissionados.

Cadê?
Bolsonaro diz que acabou com a corrupção no governo. Como Lula diz que nunca houve corrupção no dele, vá lá.

Mesmo assim, falta explicar porque em agosto de 2019 o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets, coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria-Geral da União descobriu que o sistema estava viciado e mostrou que uma escola de Minas Gerais receberia 30.030 laptops para seus 255 alunos. Outras 355 deveriam receber mais de um equipamento para cada estudante.

O edital foi suspenso e depois cancelado. De lá para cá, passaram pelo MEC quatro ministros, e pelo FNDE, cinco presidentes. Nunca se explicou como o tal edital foi concebido, como tramitou nem quem foi seu patrono.

Detalhe: o jabuti foi percebido, interceptado e neutralizado pelos mecanismos de controle do governo de Bolsonaro, mas o dono do bichinho continua no escurinho de Brasília.

Prêmio Nobel
O ano de 2020 entrará para a história do Prêmio Nobel como aquele em que se quebrou a barreira do gênero na ciência. Duas mulheres ganharam o prêmio de Química e uma compartilhou o de Física. (Como dizia Larry Summers, o presidente de Harvard que foi defenestrado, as mulheres não têm aptidão para a ciência.)

Andrea Ghez, que ganhou o prêmio de Física, é neta de um judeu que foi para os Estados Unidos depois da promulgação das leis racistas do fascismo italiano.

O pai de Andrea nasceu em Nova York em 1938, quando o alemão Otto Hahn descobriu a fissão nuclear. Trabalhava com ele a cientista Lise Meitner. Por judia, foi demitida da universidade e teve que fugir da Alemanha; por mulher, foi esquecida. Hahn ganhou o Nobel sem reconhecer a participação de Meitner na descoberta.

Algum dia, Lise Meitner terá o devido reconhecimento. Se não for pela sua participação nas pesquisas da fissão, que seja pelo fato de que, em 1943, foi convidada para um projeto secreto anglo-americano. Ela sabia o que se queria e recusou a oferta: “Não quero ter nada a ver com a bomba.”

Em agosto de 1945, quando Hiroshima foi destruída, Meitner esfriou a cabeça caminhando por cinco horas e à noite anotou em seu diário: “Ninguém entendeu nada.”

Grande Witzel
Citando Gilberto Amado, um beija-flor de vaidade, o professor Joaquim Falcão resumiu a patetada de Kassio Nunes ao turbinar seu currículo:

“Ser mais do que se é, é ser menos.”

Turbinar currículo é um vício recente. A mania pegou Dilma Rousseff, Damares Alves, Ricardo Salles, Marcelo Crivella, Carlos Alberto Decotelli e Wilson Witzel.

Nesse grupo, quem brilhou foi Witzel. Em vez de fraudar títulos de universidades comuns ou até chumbregas, mentiu grande e anunciou-se diplomado por Harvard, onde nunca pisou.

Em tempo: o ministro Celso de Mello, em cuja cadeira Kassio Nunes quer sentar, foi um dos maiores juízes da Corte. Era apenas advogado, sem mestrado nem doutorado.

Destruição destruidora
A geração que nasceu depois de 1955, como Jair Bolsonaro, deve ter sido a única na História humana que financiou a criação de três polos de construção naval. Houve o de Juscelino Kubitschek, o de Ernesto Geisel e o de Lula. Três fracassos, muitas roubalheiras, um pior que o outro.

Agora o governo apresentou em regime de urgência um projeto de lei apelidado de BR do Mar, que vai na direção contrária e poderá resultar na destruição das empresas de cabotagem que existem no Brasil. Não houve debate, não se conhecem estudos técnicos e há o risco de se entregar esse mercado a um cartel de grandes empresas internacionais às vezes associadas a grupos brasileiros. A ideia da BR do Mar pode ter virtudes, mas levada a tapa no escurinho de Brasília, tem tudo para dar errado.

Guedes fatiado
O centrão está em marcha batida para fatiar o Ministério da Economia.

Há dois anos, Paulo Guedes prometia combater “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político”.

Está sendo obrigado a conviver com eles.


Elio Gaspari: Uma tesourada nos supersalários

Teto salarial tem mais buracos do que queijo suíço

A boa notícia foi trazida pela repórter Geralda Doca: a ekipekonômika quer criar recursos para financiar o programa de amparo social impondo um teto salarial para os servidores públicos: R$ 39,2 mil mensais e nem um tostão acima disso. A medida resultaria numa economia de pelo menos R$ 10 bilhões anuais para a bolsa da Viúva. Se essa ideia for em frente, Jair Bolsonaro poderá custear uma parte de seu projeto. Hoje o programa Bolsa Família protege 13,5 milhões de famílias e custa R$ 29,5 bilhões anuais.

O governo é obrigado a respeitar um teto de gastos. No entanto há um teto salarial para os servidores, e ele tem mais buracos do que queijo suíço. Entre setembro de 2017 e abril deste ano, 8.226 magistrados receberam pelo menos um contracheque com valor superior a R$ 100 mil. Em 565 ocasiões, 507 afortunados faturaram mais de R$ 200 mil. Há universidades onde professores sacam salários de R$ 60 mil. Dois ministros de Bolsonaro conseguiram mais de R$ 50 mil mensais.

Ninguém faz coisa ilegal. O reforço tem nomes bonitos: auxílio-moradia, tempo de serviço ou participação num conselho. A ideia do teto salarial está há tempo no Congresso, mas não anda.

O andar de cima de Pindorama tem suas astúcias. O teto real seria ilegal, porque fere direitos adquiridos. É o jogo trapaceado. Os direitos do andar de cima são adquiridos, os do andar de baixo são flexíveis.

Em 1851, Joaquim Breves, dono de grande escravaria e contrabandista de negros, dizia que a repressão ao tráfico ameaçava “a vida e fortuna de numerosos cidadãos, assim como a paz e a tranquilidade do Império”. Para felicidade geral da nação, a 13 de maio de 1888 atentou-se contra a propriedade privada, e aboliu-se a escravidão.

O andar de cima é esperto. Em 1831 o Brasil assinou um tratado com a Inglaterra pelo qual todos os escravizados que chegassem a Pindorama seriam negros livres. Depois do tratado, entraram perto de 800 mil negros escravizados, e até 1850 só oito mil foram resgatados. Desde 1818, a lei determinava que eles prestassem serviços à Coroa por 14 anos. Em 1835 criou-se um sistema de concessão, ancestral das Parcerias Público-Privadas. O magano ia à Coroa, pedia um negro e pagava uma anuidade equivalente ao que o escravizado lhe trazia trabalhando por um mês. Enquanto a PPP durou, foi um negócio da China. Os dois maiores políticos do Império, o Marquês do Paraná e o Duque de Caxias, conseguiram 21 e 22 cada um. Os dois principais jornalistas da época, Firmino Rodrigues Silva e Justiniano José da Rocha, também foram concessionários. A eles se juntaram barões, marqueses, juízes, médicos (inclusive o presidente da Academia Imperial) e parentes da governanta de D. Pedro II. Um desembargador ganhou 14 negros.

Se um fazendeiro do Vale do Paraíba comprasse um escravizado trazido por contrabandistas, comprava um risco. Se um “africano livre” da turma da PPP morresse, bastava pedir outro. Assim cevou-se a elite da Corte. Nela, poucos personagens de Machado de Assis trabalham.

Serviço:

Todas as informações referentes aos escravizados estão no magnífico livro “Africanos livres”, da professora Beatriz Gallotti Mamigonian, e em sua tese de doutorado “To be a Liberated African in Brazil”, que está na rede.


Elio Gaspari: Puseram Michelle numa fria

Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões

A repórter Constança Rezende mostrou que o vírus dos áulicos capturou R$ 7,5 milhões que o frigorífico Marfrig doou ao governo em março para a compra de 100 mil testes rápidos para detectar o coronavírus. Testaram zero e a história dessa maluquice é uma viagem ao mundo da burocracia, da bajulação e das espertezas.

Aos fatos:

No dia 23 de março a Marfrig ofereceu o dinheiro à Casa Civil da Presidência da República.

A primeira encrenca. Dias depois o Itaú-Unibanco fez o certo. Anunciou a doação de R$ 1 bilhão para o combate à pandemia sem colocar um só tostão na máquina do governo. Bolsonaro dizia que “brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”.

No dia 20 de maio a Casa Civil informou que o dinheiro seria usado “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”. Levaram dois meses para processar a informação. Já haviam morrido 18.959 pessoas. O ministro Paulo Guedes dizia que tinha um amigo inglês capaz de fornecer 40 milhões de testes por mês ao Brasil.

Passaram maio e junho. A 1º de julho a Casa Civil mudou de ideia e perguntou à Marfig se o dinheiro dos testes podia ser usado no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao programa Pátria Voluntária, de Michelle Bolsonaro, mulher do presidente. Diante de tantos nomes bonitos, quem seria capaz de dizer não? A essa altura já tinham morrido 60.194 pessoas.

Juntaram-se dois erros. Num, o dinheiro iria sabe-se lá para onde. No segundo, caiu na velha cumbuca das obras assistenciais da mulher do presidente. Salvo no Comunidade Solidária de Ruth Cardoso, elas quase sempre foram uma fábrica de encrencas. Geridas por áulicos, apurrinharam as vidas de Maria Thereza Goulart e de Rosane Collor de Mello.

O dinheiro da Marfrig foi doado para a compra de testes, mas os çábios expandiram o alcance. Iria também para medicamentos, comida ou material de limpeza. Qualquer coisa, enfim. A Associação de Missões Transculturais Brasileiras, outro nome bonito, recebeu R$ 240 mil. No seu endereço funcionava um restaurante, mas seu presidente informa que, por ser uma associação, “só tem endereço fiscal”. Fica combinado assim.

Marquetagens e manobras burocráticas puseram Michelle Bolsonaro numa fria. Ela, como acontecia com Maria Thereza Goulart e Rosane Collor de Mello, não administra o dinheiro dos programas a que empresta seu nome. Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões. Ao final a conta vai para a senhora.

A Casa Civil informa que só a Fundação Banco do Brasil sabe o destino exato dos R$ 7,5 milhões da Marfrig. Se o dinheiro não serviu para testar pessoas, o caso pode servir para testar a capacidade do governo e do Banco do Brasil de dizer que aconteceu com o ervanário. O Itaú-Unibanco sabe para onde foi cada centavo do bilhão que doou.

UM GRANDE REPUBLICANO

Acaba de sair nos Estados Unidos o livro “The Man Who Ran Washington” (“O Homem que Mandou em Washington - A Vida e os Tempos de James Baker III”). Ele comandou as campanhas de três presidentes republicanos. Foi chefe da Casa Civil de Ronald Reagan e George Bush 1º, secretário de Estado e do Tesouro.

Junto com seu parceiro de duplas de tênis Bush 1º, administrou a diplomacia americana durante o colapso da União Soviética e a reunificação da Alemanha. Se isso fosse pouco, articulou a equipe de advogados que garantiu a presidência dos Estados Unidos para Bush 2º. Nela incluiu John Roberts, atual presidente da Corte Suprema.

Nascido numa família de advogados texanos, James Baker foi criado no conforto. Para quem viu as baixarias de Donald Trump no debate de terça-feira, sua vida mostra que existem conservadores e republicanos decentes.

A única eleição que disputou mostra quem ele era. Seus marqueteiros mostraram-lhe que o adversário deixara em liberdade um criminoso que mais tarde mataria duas pessoas. Baker recusou o tema. Ele achou que a acusação seria pessoal. Perdeu a eleição.

O autor do livro é o jornalista Peter Baker, sem parentesco com o biografado. A fábrica que produzia conservadores craques como Bush 1º e James Baker está temporariamente fechada. Aos 90 anos, leva a vida em Houston, caçando e pescando.


Elio Gaspari: Mandetta contou quase tudo

Como em todo livro de memórias, ele fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta publicou suas memórias do poder. O livro chama-se “Um paciente chamado Brasil”. Seria mais preciso denominá-lo “Dois pacientes chamados Bolsonaro e Mandetta”.

Mandetta ficou 16 meses no Ministério da Saúde, teve um desempenho estelar durante a pandemia e acabou demitido por suas virtudes e por defeitos alheios. Como em todo livro de memórias, fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal: Bolsonaro, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni, nessa ordem.

Sua análise do comportamento do capitão diante da pandemia é exemplar. Médico, ele pensou em ser psiquiatra e cursou um ano dessa matéria, até se decidir pela ortopedia. Diante da Covid, Bolsonaro passou por três fases de manual. Primeiro a negação (“uma gripezinha”), depois a raiva do médico (Mandetta), finalmente o milagre (a cloroquina). É um retrato perfeito, no qual o médico-ministro tenta mostrar ao presidente o tamanho do problema, não consegue ser ouvido e entra num desastroso processo de fritura. Quando avisava que poderiam morrer mais de cem mil pessoas, os áulicos contavam ao presidente que essa conta era exagerada. Seria coisa de quem queria derrubar o governo. Quem? O embaixador chinês.

O paciente Bolsonaro está exposto com precisão. Já o paciente Mandetta precisa ser decifrado pelos leitores. O ministro Mandetta endossou todos os procedimentos corretos para o controle do vírus, já o ex-deputado Mandetta (DEM-MS) foi temerário, metendo-se onde se meteu.

Entrou para um governo que prometia um ministério técnico, livre de quaisquer influências. Mandetta tinha duas semanas na cadeira quando foi informado de que o palácio queria a cabeça de quatro de seus colaboradores. Vá lá que houvesse motivo, mas ele informa: “Quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”. Basta.

Mandetta conta que, em 2016, o deputado Onyx Lorenzoni gravou uma conversa de parlamentares na casa de Rodrigo Maia. Deve-se a ele essa revelação, indicativa dos métodos do atual ministro da Cidadania. Pela sua narrativa, “ele tirou o celular do bolso e me disse: ‘Ouve isso’ ”.

“Você gravou escondido a reunião?, perguntei. Ele respondeu que havia gravado sem querer.”

Tudo bem, mas por que chamou-o para ouvir o grampo? Mandetta guardou essa história por quatro anos. Lorenzoni estava com o deputado num passeio de barco no final de 2018, quando o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, obteve de Flávio Bolsonaro a promessa de que ele seria o ministro da Saúde. (Os filhos de Bolsonaro são mostrados no livro como patronos do gabinete do ódio, mas pode-se dizer tudo deles, menos que tenham radicalizado suas ideias só depois da eleição do pai.)

O livro de Mandetta é o primeiro retrato da disfuncionalidade do capitão na Presidência e vai além. Mostra Paulo Guedes tonitruante contra o adiamento da remarcação do preço dos remédios (“não admito tabelamento”), sem saber que os fármacos são tabelados. O bate-boca dos dois ministros é um dos bons momentos do livro.

Feitas as contas, Mandetta entrou mal no ministério e saiu bem. Seu sucessor, Nelson Teich, cometeu o mesmo erro, mas conseguiu sair melhor porque foi-se embora em apenas 28 dias.


Elio Gaspari: A vanguarda da elite

Documentário sobre Libelus, organização de estudantes contra a ditadura, ajuda a refletir sobre elite brasileira

Na quarta-feira, estará no ar o documentário “Liberdade e luta — Abaixo a ditadura”, do cineasta Diógenes Muniz. Trata da Libelu, organização política de estudantes surgida em 1976 e extinta em 1985. Os libelus podem ter sido 800, mas fizeram um barulho danado. Iam para a rua gritando “abaixo a ditadura” (coisa que raramente acontecia desde 1968). Afastavam-se do MDB e da velha esquerda. Eram radicais com senso de humor, gostavam mais de rock do que de samba, mais de Caetano Veloso do que de Chico Buarque. O Serviço Nacional de Informações dizia que eram uma “dissenção” do Partido Comunista e da “linha trotsquista”. Os libelus eram jovens, num tempo em que o filósofo francês André Glucksman dizia que “Brejnev é Pinochet”. Um governava a União Soviética; o outro, o Chile.

As coisas são assim desde 1786, quando o estudante José Joaquim Maia (codinome Vendek) procurou Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, pedindo-lhe ajuda para uma conspiração que se armava em Minas Gerais. Os estudantes foram a vanguarda da elite brasileira. Mais tarde, eles se tornam a própria elite, e a vida segue.
No documentário de Diógenes Muniz há uma doce viagem à alma dos jovens dos anos 70, na voz de 20 sexagenários lembrando-se da aurora de suas vidas. Só eles falam, um de cada vez. Em todos os idiomas há o provérbio segundo o qual quem não é de esquerda aos 20 anos não tem coração, e quem continua de esquerda depois dos 50 não tem cérebro. Dos 20 libelus entrevistados, cada um tomou seu caminho e foram para todos os lados. Poucos ficaram mais ou menos no mesmo lugar. Aí está o valor dos depoimentos e do documentário.

As entrevistas com os libelus foram gravadas no cenário da Universidade de São Paulo. Só “Pablo”, um militante que estudava Medicina em Ribeirão Preto falou na sala de sua casa. Isso não ocorreu por deferência ao ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, mas porque Antonio Palocci está em prisão domiciliar. Seu depoimento fecha o ciclo de um pedaço da amostra. Quando foi perguntado se ainda se considerava um homem de esquerda, Palocci não vacilou: “Claro”.

Não se mostrou arrependido de ter dançado “conforme a música”, mas ponderou: “Os que não se meteram em caixa dois não se elegeram… Talvez eu fosse uma pessoa melhor…”

A estudantada é a vanguarda da elite brasileira. Vendo-se o documentário de Diógenes Muniz, pode-se refletir sobre os jovens, o que é fácil. Desde 1786, difícil é refletir sobre a elite. Até nisso os libelus ajudam.

Serviço: “Liberdade e luta” faz parte do festival “É tudo verdade” e para vê-lo bastará entrar no site às 21h. É grátis, mas é preciso fazer um cadastro.

Mito histórico

Outro dia o vice-presidente Hamilton Mourão lembrou mais uma vez que os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer independência do Brasil.

Mourão tem gosto pela História, e faltam menos de dois anos para o bicentenário do Grito do Ipiranga. Talvez tenha chegado a hora de se esclarecer esse mito. Em 2017, num estudo publicado pelos Cadernos do Centro de História e Documentação Diplomática, Rodrigo Wiese Randig mostrou que o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil foi a Argentina, que à época atendia pelo nome de Províncias Unidas do Rio da Prata.

A Argentina reconheceu o Império do Brasil no dia 25 de junho de 1823, e em agosto seu representante apresentou suas credenciais ao chanceler brasileiro. Os Estados Unidos só reconheceram o Brasil um ano depois, e o embaixador José Silvestre Rebelo entregou suas credenciais ao presidente James Monroe no dia 26 de maio de 1824.

O governo tem feito pouco, quase nada, para comemorar o Bicentenário da Independência. Arrisca atolar numa patriotada estéril, como aconteceu em 1972, no Sesquicentenário, quando a ditadura passeou os ossos de D. Pedro I pelo país até colocá-los numa cripta nos jardins do Museu do Ipiranga. Anos depois, ela virou mictório.

Dois meses depois da entrega de credenciais pelo embaixador brasileiro a James Monroe, D. Pedro I recebeu o embaixador do reino africano do Benin, na Quinta da Boa Vista. O Benin estava mais para entreposto de escravizados do que para reino.

A unanimidade esperta

Nelson Rodrigues já ensinou que toda unanimidade é burra.

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro decidiu por unanimidade avançar com o processo de impedimento do governador Wilson Witzel. A unanimidade pode também ser esperta, muito esperta.

Trapaça

Apareceu mais um juiz terrivelmente evangélico na fila do guichê para a indicação do próximo ministro do Supremo Tribunal Federal. É o juiz William Douglas dos Santos.

Numa trapaça da História, William Douglas (1898-1980) foi um desassombrado juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos. Comprou todas as brigas em defesa da liberdade e ainda por cima defendia o meio ambiente numa época em que pouco se falava disso. Certa vez, encarou uma trilha de três mil quilômetros.

Aguentou-se na Corte tendo se metido com um dono de cassinos. Pediu para sair quando, depois de um acidente vascular, estava trocando as bolas.

Aviso

A popularidade do capitão, o surgimento de Celso Russomanno nas pesquisas paulistanas e a promessa de Paulo Guedes de elevar a isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física, beneficiando 15 milhões de pessoas, deveriam levar a oposição a pensar na vida. O que mais se ouve é que esse mar de rosas acabará quando o auxílio emergencial for suspenso. Pode ser.

Não custa repetir uma lição do mestre Marco Maciel, quando um marqueteiro lhe disse que, segundo as pesquisas, o candidato adversário estava em queda e o dele, em ascensão:

“Ainda assim, o senhor acha que a intersecção dessas duas retas ocorrerá antes ou depois da eleição?”

Sede ao pote

As guildas dos procuradores precisam controlar a sede da corporação.

Numa festa catarinense, os doutores conseguiram uma equiparação que colocou a prêmio os mandatos do governador Carlos Moisés e de sua vice.

A Advocacia-Geral da União promoveu 606 doutores com um golpe de caneta e foi obrigada a esquecer o assunto diante da grita.

Eremildo, o idiota

Até um idiota como Eremildo pode entender que o Ministério da Educação nada tem a ver com o reinício das aulas.

Néscio, ele não sabe explicar se o doutor Milton Ribeiro também acha que seu ministério não tem nada a ver com o escalafobético edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que, há mais de um ano, tentou torrar R$ 3 bilhões num edital viciado para a compra de equipamentos eletrônicos.

A Controladoria-Geral da União travou o jabuti, mas até hoje não se sabe de onde ele saiu.