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Demétrio Magnoli: O dilema do impeachment
Legitimidade fornecida pelo voto popular tem limites, definidos pelas leis mais vitais
O impeachment de Donald Trump estava fora dos planos dos líderes do Partido Democrata. A mudança de curso não se deveu às pressões incessantes da ala esquerda do partido, mas à notícia explosiva de que o presidente chantageou o governo da Ucrânia na tentativa de manchar a reputação de Joe Biden, possível antagonista nas próximas eleições. Não havia outra saída: era deflagrar o processo ou renunciar à última linha de defesa da democracia.
O impeachment foi inscrito na Constituição dos EUA — e replicado na lei maior de diversas nações — para remediar atos dos governantes que ameaçam os alicerces da polis . Trump classificou a iniciativa democrata como “um golpe destinado a tirar o poder do povo”, num curioso eco do grito lançado pelo PT. A mensagem veiculada pelo instrumento do impeachment é essencialmente antipopulista: a legitimidade fornecida pelo voto popular tem limites, definidos pelas leis mais vitais. Em tese, os parlamentares jamais usarão o remédio final como arma nas disputas partidárias normais.
Até o escândalo da Ucrânia, a sombra agourenta do impeachment de Bill Clinton protegeu Trump. No caso de Clinton, a maioria republicana na Câmara conduziu o processo a partir de desvios menores ligados ao affaire Monica Lewinsky. Os eleitores identificaram a natureza partidária da estratégia e puniram os republicanos nas eleições legislativas de 1998.
O impeachment de Dilma Rousseff situa-se a meio caminho entre os casos de Clinton e Trump. A violação da lei orçamentária pelas pedaladas fiscais, um desvio menor à luz de padrões brasileiros, provavelmente não redundaria no afastamento do cargo. Mas, na encruzilhada fatal, Sergio Moro deu publicidade ao diálogo no qual a presidente alçava Lula ao Ministério com o aparente propósito de obstruir procedimentos judiciais. Então, o chão ruiu sob seus pés.
Formalmente, Dilma caiu da bicicleta. De fato, foi destronada por um ato de obstrução de Justiça, crime maior. Contudo, atrás do apoio popular majoritário ao impeachment, estava a crise econômica gerada por insustentáveis políticas voluntaristas, numa atmosfera envenenada pelo escândalo de corrupção na Petrobras. O impeachment pertence ao universo da política: em sistemas democráticos, o presidente só é derrubado quando perdeu as condições mínimas para governar.
Clinton conservava condições para governar; Dilma, não. Trump tem maioria no Senado e apoio popular ao redor de 40%. O processo de impeachment pode modificar o cenário — mas, até o momento, ele mantém condições para governar.
O dilema de fundo, não poucas vezes, é optar entre os princípios e as conveniências. Adotando a estratégia do impeachment, os democratas correm um risco eleitoral similar ao dos republicanos que colocaram Clinton na alça de mira. Mas Trump incorreu em crime maior. Pedir o impeachment é, no caso, uma questão de princípios. Se Trump não for processado, o Congresso estará consagrando um perigoso precedente: daqui em diante, os presidentes ficariam autorizados a usar o poder do cargo para atentar contra a alternância de governo. Nessa hipótese, a lei do impeachment se converteria em letra morta.
De Trump a Wilson Witzel. O assassinato de Ágatha Félix, a quinta criança morta por “balas perdidas” disparadas por policiais em favelas do Rio, é a prova definitiva de que o governador representa uma ameaça à vida dos cidadãos. Sob o estímulo explícito de Witzel, policiais operam na “outra cidade” como se estivessem em teatros de guerra, em terra estrangeira, atirando antes de perguntar e escondendo seus crimes no álibi mentiroso do confronto.
O governador cumpriu sua promessa de campanha, rebaixando a polícia ao estatuto de esquadrão da morte. Seguindo a ilegal “lei do abate”, as polícias fluminenses são responsáveis por 40% do total de homicídios que ocorrem na cidade do Rio. A Assembleia Legislativa tem a obrigação de abrir processo de impeachment contra Witzel, em nome do bem maior, que é a vida. Não fazê-lo é conferir à polícia o direito de matar — desde que os assassinatos fiquem circunscritos às favelas.
Fernando Gabeira: Não há como tirar as crianças da sala
Quem combate Greta ou se assusta com seu tom talvez não tenha ainda uma ideia nítida de como as coisas vão se complicar
Na semana passada, escrevi um artigo sobre o Supremo. As coisas de sempre, bloqueio de investigações financeiras, o flerte com o autoritarismo. Mas, com tanto problema interno no Brasil, deixei de lado algo que talvez possa contribuir: a passagem de Greta Thunberg pela ONU e as reações que ela suscitou no Brasil.
Muitos estranharam o fervor da adolescente. Mas ela vem de uma cultura em que, apesar do grande avanço material, a religião ainda tem um peso. A religião é um dos temas resilientes. Ela nunca desaparece, comunistas e liberais são constantemente apontados como adeptos de uma religião secular.
Isso é secundário diante do agravamento da crise ambiental. Ela não só está produzindo personalidades como Greta, mas influencia também as crianças do mundo inteiro. As praias de Alagoas, depois do vazamento de óleo, foram limpas por crianças de escolas primárias, e seu discurso era bastante consciente da gravidade do problema.
Adultos costumam se irritar com a precocidade política. Esquecem, no entanto, que estão diante de um tema singular, diferente dos outros. Crianças o tomam como seu porque entendem que o próprio destino está em jogo. Têm, portanto, legitimidade.
Há uma diferença entre nós, que muitas vezes fomos chamados de ecochatos, e esta novíssima geração. A tendência nos primórdios do movimento era considerar a luta ambiental como uma atitude ética em relação aos que viriam depois de nós.
O discurso de Greta não enfatiza novas gerações, mas a dela própria. É simultaneamente uma cobrança e uma acusação. Os adolescentes se colocam no centro do drama.
As pessoas que combatem Greta ou se assustam com seu tom talvez não tenham ainda uma ideia nítida de como as coisas vão se complicar. Um exemplo disso é o surgimento de novas organizações, um pouco diferentes do Greenpeace e das outras que conhecemos. São grupos que consideram que o ponto de não retorno na degradação planetária pode ter sido atingido e atuam com a ideia de que há uma emergência.
Tomei conhecimento do programa de uma delas, a Extinction Rebellion, que parece estar crescendo na Inglaterra. Eles propõem a desobediência civil pacífica, mas às vezes a polícia intervém e prende alguns deles. Segundo li em seus folhetos, de um modo geral a relação com a polícia costuma ser tranquila, apesar das detenções.
A mesma civilidade não acontece com os estrangeiros que se aventuram a apoiar a Extinction Rebellion. A polícia inglesa é mais dura com eles. Outros fatores entram em cena.
Interessante o caso brasileiro. No mesmo momento em que a questão ambiental torna-se mais dramática, o país radicaliza sua negação de fenômenos como o aquecimento global.
Esta semana, Bolsonaro disse que os estrangeiros não se interessam pelos índios nem pela porra das árvores, mas pelo minério da Amazônia. É uma tese de fácil aceitação entre as pessoas mais simples.
No discurso de Bolsonaro na ONU ele disse apenas uma vez a palavra biodiversidade, ao referir-se à Amazônia.
A porra das árvores, se as tomamos como um símbolo da biodiversidade, é considerada um recurso invejável, um passaporte para o futuro. Por essa razão, a distância entre a preocupação mundial e as teses brasileiras vai se tornando cada vez mais um abismo.
Supor que tudo o que se passa hoje nesse campo seja apenas uma expressão do marxismo internacional ou mesmo de potenciais exploradores de minério é um gigantesco erro de avaliação.
Não é preciso ter uma visão catastrofista, nem achar que o ponto de não retorno já aconteceu e que o planeta caminha para ser hostil à vida humana.
Basta apenas dar uma chance à realidade, admitir a existência do problema. Isso não significa concordância com qualquer maneira de atacá-lo. Há uma ampla gama de posições disponíveis.
Tratar a biodiversidade como a porra da árvore só traz desalento e leva muitos a pensar que uma parte da humanidade merece os eventos extremos e caminha de forma arrogante para a extinção. Os dinossauros, pelo menos, foram pegos de surpresa. Nem tiveram que ser avisados pelas crianças.
El País: Brasil acelera programa para distribuir venezuelanos por seu território
Quase 15.000 migrantes foram enviados a 250 cidades de todo o país para aliviar a tensão na empobrecida região onde fica a única passagem fronteiriça
O português com sotaque espanhol da Venezuela chegou à grande capital da Amazônia. É facilmente reconhecível entre aqueles que oferecem garrafas de água na praça principal de Manaus, sob um calor que só diminui de madrugada, e entre os garçons de restaurantes e sorveterias. Mas o espanhol é ouvido principalmente em torno da rodoviária, onde a venezuelana Andreina Márquez, de 40 anos, e várias dezenas de compatriotas assavam alguns peixes para comer. O crescente desembarque de imigrantes venezuelanos em Manaus é, em parte, fruto dos esforços das autoridades brasileiras para distribuí-los por seu território e aliviar as tensões ao norte da capital amazonense, na região onde fica a única passagem fronteiriça entre os dois países. Quase 15.000 pessoas foram distribuídas entre 250 municípios de praticamente todos os Estados.
“Deus tem algo preparado para nós, mas antes temos de passar por esta prova”, afirma Márquez, conformada. Entrou, como todos, pela passagem de Pacaraima, um povoado remoto que vivia do comércio fronteiriço e que a cada dia vê 200 pessoas chegarem do outro lado da fronteira precisando das coisas mais básicas. Colômbia e Brasil mantêm as portas abertas, já Peru, Chile e Equador estão impondo restrições.
Embora o Brasil seja um país enorme criado por escravos e imigrantes, com 200 milhões de habitantes e muita terra despovoada, o desembarque de 180.000 venezuelanos desde 2016 tem significado um notável transtorno em Pacaraima e na vizinha Boa Vista, um pouco maior, mas também pobre. Esses lugares não estão acostumados a tantos forasteiros. O Governo federal prevê que o êxodo venezuelano continuará e poderá até aumentar, e tomou medidas. Assim nasceu o programa de interiorização, que é um programa de realocação semelhante aos administrados pela ONU, mas em escala nacional.
Niusarete Lima, assessora do Ministério da Cidadania, que coordena todos os ministérios, entidades do Estado e da sociedade civil, explica como funciona esse programa, do qual participam o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e a Organização Internacional das Migrações: depois que os migrantes recebem sua documentação e, com isso, acesso a todos os serviços públicos, as autoridades selecionam os mais vulneráveis −“uma mulher sozinha com filhos ou uma pessoa de idade sempre terá preferência sobre um homem jovem”− e negociam com os serviços sociais municipais e estaduais, assim como com empresas, para encontrar um destino para eles. Não é fácil, porque a demanda supera a oferta, explica Lima, que trabalha desde o início neste programa de interiorização, que o presidente Jair Bolsonaro herdou de seu antecessor. Destaca-se uma cidade do interior, Dourados: com mais de 1.000 acolhidos para trabalhar na indústria, ela só fica atrás de São Paulo.
Como o Brasil tem mais de 6.000 municípios, “se cada um acolhesse uma família, nem se notaria”, ressalta Lima, enquanto tenta envolver mais municípios para satisfazer as necessidades atuais (e quem sabe futuras). Porque alguns saem, mas outros chegam. Cerca de 7.000 migrantes estão instalados em albergues de Boa Vista e Pacaraima, uma operação que conta com a participação do Exército. Dois dos refúgios são específicos para os indígenas Warao, com os quais começou o êxodo para o Brasil. “Precisamos ter canais [para distribuí-los] se a situação se agravar”, diz a assessora. Por isso, além de promover a tradicional reunificação com parentes já instalados em outras cidades, o programa iniciou a reunificação social, com amigos assentados, além de identificar empresários que procuram empregados e facilitar entrevistas de trabalho com migrantes por videoconferência. O objetivo é reduzir a concentração de venezuelanos na fronteira, incentivá-los a se dispersar e dar-lhes um empurrãozinho para que, em cerca de três meses, possam cuidar de si mesmos.
O espanhol Jesus López Fernández de Bobadilla, de 78 anos, mede a situação na vizinha Venezuela pelo número de migrantes que chegam ao seu café fraternal, onde oferece comida até 1.500 pessoas por dia, com um reforço de ovo cozido, arroz-doce e fruta para as crianças, conta por telefone de Pacaraima, onde é o responsável pelos cuidados da Igreja católica para com os venezuelanos. O enorme cansaço dos moradores locais com a situação, os roubos constantes e alguns políticos locais buscando votos com um discurso xenófobo deixam Fernández muito preocupado. Assim como a lentidão com que caminha a interiorização dos migrantes: “Eles chegam a passo de cavalo e saem a passo de tartaruga”. Enquanto isso, os temores persistem.
Pouco a pouco, o Governo vai transferindo venezuelanos para Manaus. Mas alguns percorrem os cem quilômetros até mesmo a pé, acreditando que na grande cidade será mais fácil encontrar trabalho. A venezuelana Márquez não encontrou. Ela conta que alguns dias é chamada para fazer serviços de limpeza. Mas nada mais. Diz que come o que as Igrejas locais dão aos necessitados. Com ajuda de um irmão, conseguiu enviar sua filha para São Paulo, enquanto espera que seu filho chegue com suas netas —ela lhe enviou o dinheiro para as passagens. Sabe que um árduo futuro os aguarda, mas ressalta que sempre será melhor do que ficar na Venezuela: “Quero que venham, mesmo que seja para que não passem fome”.
Luiz Carlos Azedo: Como envelhecer mais rápido
“Bolsonaro protagoniza polêmicas nas quais o governo não tem a menor chance de sair ganhando. Transforma em gigantes adversários que combatiam à sombra”
Com apenas nove meses de mandato, o presidente Jair Bolsonaro deixa a sensação de que seu governo envelhece muito rápido. Na política, percepção é decisiva para quase tudo, sendo absoluta para a construção da imagem. O governo começa a dar um cansaço na sociedade por causa de decisões intempestivas e polêmicas, motivadas por razões ideológicas de cunho ultraconservador e religioso, sem que os resultados apregoados para a economia aconteçam no tempo que os eleitores esperavam. Já não estamos falando dos 100 dias de governo, estamos nos aproximando do fim do ano. Os setores em mais evidência na Esplanada são os que colecionam problemas; os mais focados nos resultados trabalham em silêncio obsequioso.
Bolsonaro tem culpa nesse cartório, porque protagoniza polêmicas nas quais o governo não tem a menor chance de sair ganhando. Transforma em gigantes adversários que combatiam à sombra, como o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, no caso da morte do pai, Fernando Santa Cruz, durante o regime militar, e o quase nonagenário cacique caiapó Raoni, que virou do dia para a noite um forte candidato ao Nobel da Paz. Sua implicância preconceituosa com artistas, ambientalistas, ativistas dos direitos humanos, jornalistas e gays não acrescenta absolutamente nada ao desempenho positivo de seu governo, somente aumenta a fricção com setores que formam opinião pública na velha e nas novas mídias.
Nicolau Maquiavel já dizia que o sucesso do príncipe depende da virtù e da fortuna. Quando a fortuna muda, certas virtudes viram defeitos que podem até ser fatais. Indiscutivelmente, Bolsonaro é um homem bafejado pela sorte, sua própria sobrevivência à facada em Juiz de Fora na campanha eleitoral serve de exemplo. Além de milagroso (Bolsonaro acredita nisso piamente), o episódio foi decisivo para que o “mito” se tornasse imbatível na eleição. Nesse quesito, portanto, não há adversidade. Exemplo de ambiente favorável ao governo é a blindagem patrocinada pelo Congresso ao ministro da Economia, Paulo Guedes, entre outras coisas, com a aprovação da reforma da Previdência, que deve ser concluída neste mês.
O problema é a virtù mesmo. Em certa passagem das Mil e Uma Noites, o vizir diz à filha Xerazade: “Aquele que não prevê as consequências dos seus atos não pode conservar os favores do século”. É aí que mora o perigo para Bolsonaro. Seu problema não é a oposição, ainda que sua retórica procure manter a polarização com a esquerda tradicional e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpre pena em Curitiba, por considerar a estratégia eleitoral mais segura para a reeleição. Exemplo: a política ambiental, na qual o governo corre atrás dos prejuízos e continuará correndo por um bom tempo. Agora, sua política indigenista agride o grande legado do marechal Cândido Rondon, dos irmãos Villas Boas e de Darcy Ribeiro, entre outros. E pode reverter o crescimento da população indígena no Brasil, que é a medida do sucesso da estratégia de demarcação de suas terras.
Desigualdades
Nesse rumo, é previsível o aumento de casos de suicídios, mortes por doenças e assassinatos de líderes indígenas em conflitos violentos com madeireiros e garimpeiros. Se isso de fato ocorrer, aliado à redução da população indígena, estará caracterizado um genocídio. Bolsonaro subestima a repercussão internacional que isso pode ter, assim como o papel do índio na formação da identidade nacional. Não se dá conta de que todo brasileiro fala a língua dos índios, na nossa culinária, na toponímia e até mesmo no hábito de tomar dois ou mais banhos por dia. No Brasil, as famílias miscigenadas são a maioria, raras não têm o arquétipo de uma “tataravó” índia que pitava no quintal e fazia beiju.
Mas o ponto mais fraco de Bolsonaro ainda é a economia. Herdou 13 milhões de desempregados e uma curva ascendente de desigualdade, na qual apenas 2,7% das famílias acumularam 20% do total da renda entre os anos de 2017 e 2018, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na sexta-feira. As famílias brasileiras tiveram uma renda média de R$ 5.426,70, porém, 23,9% delas viviam com um orçamento mensal de até dois salários mínimos. Esse percentual corresponde a um contingente com cerca de 44,8 milhões de pessoas em 16,5 milhões de famílias. Por possuírem os mais baixos valores recebidos, representam apenas 5,5% da renda nacional, ainda que as transferências governamentais respondam por 19,5% do total de renda do brasileiro.
Focada no equilíbrio fiscal, na desregulamentação do trabalho e na simplificação tributária, a política econômica de Bolsonaro aposta no mercado para enfrentar os problemas do trabalho e da renda, sem se dar conta de que o “tatcherismo” se esgotou e agravou a desigualdade no mundo. O melhor exemplo é a Inglaterra, país desenvolvido, cuja renda média está abaixo dos indicadores da União Europeia, que ainda tem regiões de médio ou baixo desenvolvimento. No seu livro Desigualdade, o que pode ser feito?, o economista britânico Anthony B. Atkinson mostra que é impossível combater a desigualdade sem a intervenção do governo e a mobilização da sociedade, isto é, poupadores, investidores, trabalhadores e empregadores. Acontece que o envelhecimento precoce do governo abriu esse debate e antecipou a principal agenda eleitoral de 2022, ao lado da defesa da democracia.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-como-envelhecer-mais-rapido/
Oded Grajew: O Brasil na contramão
Avanços nos países nórdicos partiram de consensos
Vários países atingiram um grau de desenvolvimento que, certamente, provocam a inveja dos que acreditam que o nível de desenvolvimento de uma nação se mede pelo bem-estar de seu povo. Os escandinavos (Finlândia, Noruega, Dinamarca e Suécia), por exemplo, estão sempre entre os primeiros colocados em todas as classificações sociais, ambientais e econômicas mundiais. Eram os países mais pobres da Europa no começo do século passado. Acredito que seria bastante útil saber o que fizeram para chegar onde chegaram. Isso nos daria uma ideia se estamos no caminho certo.
Fui convidado recentemente para visitar a Suécia, quando pude entender o processo que levou o país ao estado atual. O caminho começou a ser trilhado a partir do momento em que chegaram a alguns consensos. Em primeiro lugar, acordaram que para que o país desse certo é fundamental que haja relações harmoniosas entre os cidadãos. E que, para isso, seria fundamental que houvesse sentimento de justiça, solidariedade e confiança entre as pessoas.
Todos deveriam ser incluídos na sociedade; nenhuma pessoa ou grupo deveria ser marginalizado ou discriminado. Tolerância e respeito entre os diferentes deveriam ser praticados, e a diversidade, valorizada.
O sentimento de justiça depende dos menores índices de desigualdades possíveis. Para isso, é fundamental oferecer educação púbica gratuita e de qualidade para todos —e isso vale para educação básica, superior, pesquisa e desenvolvimento científico. Seria uma maneira de dar oportunidades iguais de crescimento para todos, e o conhecimento ofereceria melhores condições de competitividade.
As políticas públicas deveriam ser instrumentos para reduzir as desigualdades. A participação da sociedade, incentivada e apoiada. É fundamental que organizações e entidades sociais participem em inúmeros conselhos temáticos e institucionais junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e em nível municipal, estadual e nacional.
Seria uma maneira de aperfeiçoar as políticas públicas, garantir a transparência e assegurar que as decisões possam promover a justiça social e atender ao interesse público.
A composição dos quadros políticos também deve ser um espelho da própria sociedade para que as decisões possam beneficiar a todos e, principalmente, os mais necessitados. A participação de 50% das mulheres nos cargos públicos e a criação de um órgão técnico independente, com autonomia para dar parecer sobre todas as decisões do governo do ponto de vista das desigualdades, são exemplos de regras e políticas públicas que visam contribuir para uma sociedade mais justa e sustentável.
Para estabelecer relações de confiança, a regra é transparência total. Todos os dados e informações governamentais e de empresas e indivíduos que são de interesse da sociedade são públicos. Os salários e benefícios dos políticos e dos servidores dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são transparentes e absolutamente modestos, compatíveis com a renda da população e com as verdadeiras necessidades do exercício dos cargos.
Finalmente, os cuidados e a valorização do meio ambiente garantiriam a preservação dos recursos naturais e da vida, evitando escassez, conflitos, mitigando os efeitos das mudanças climáticas e em solidariedade às futuras gerações.
A partir desses consensos, o desenvolvimento gerou países onde, do nascimento até a morte do indivíduo, o Estado garante saúde, licença-maternidade, educação, renda mínima, seguro-desemprego, aposentadoria e outros direitos.
Os indicadores de desigualdade e criminalidade dos nórdicos são os menores do mundo. A Noruega é o país líder mundial em prosperidade e com melhor IDH do planeta; a Dinamarca é considerada a nação menos corrupta e líder mundial em performance ambiental; e a Suécia é um dos líderes globais em inovação e competitividade.
Você, leitora e leitor, acha que o Brasil está no caminho certo?
*Oded Grajew, presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil, presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro da Rede Nossa São Paulo e do programa Cidades Sustentáveis
Alon Feuerwerker: Por que a Lava-Jato era unanimidade e não é mais. E o foco de instabilidade na conjuntura estável. E um pouco de humor
E o foco de instabilidade na conjuntura estável. E um pouco de humor
O sucesso da Operação Lava-Jato vinha sendo produto, antes de mais nada, da correlação de forças políticas extremamente favorável. Platitudes como “o povo não aceita mais a corrupção sistêmica”, ou “o eleitor quer virar a página da velha política” servem para brilhareco retórico, mas escondem o essencial. Sergio Moro et al só chegaram onde chegaram por reunir apoio político amplíssimo, inclusive entre potenciais acusados de corrupção e próceres da política tradicional. Inclusive no poder muito bem constituído.
A Lava-Jato na sua primeira etapa (2014-2018) era útil para amplos segmentos do poder, real ou na expectativa de. Servia para quem desejava apear o PT. Mas também para quem, no PT, gostaria de trocar a hegemonia. Servia ao PSDB, mas também para quem ali sonhava com destronar os tucanos ditos de alta plumagem. E servia muito a quem imaginava reforçar seu próprio cacife político ou comercial investindo na luta contra a corrupção. Era muita gente. E foi faca na manteiga.
E veio a ruptura de outubro de 2018. Só que não do jeito desejado pelo establishment que surfara na luta contra a corrupção, contra a política estabelecida e contra o governo do PT, nem sempre nesta ordem. A coalizão do impeachment tinha a hegemonia parlamentar da aliança PMDB-PSDB, coadjuvada pelo dito centrão e lastreada socialmente na elite do Sul-Sudeste. Mas em janeiro de 2019 quem subiu a rampa foi a aliança do bolsonarismo com Olavo de Carvalho e um amplo espectro de militares.
Essa assimetria é o principal foco de instabilidade numa conjuntura bastante estável. Note o leitor como as graves crises anunciadas passam sempre sem deixar rastro. A mais permanente, com episódios recorrentes, é a da “falta de articulação política”. Como se algum governo, qualquer um, conseguisse passar praticamente todo o seu programa econômico no Legislativo sem ter articulação política funcional. No popular, é o #mimimi da turma que ganhou, mas não levou.
Vêm daí também as teses de Jair Bolsonaro precisar “descer do palanque”, “livrar-se dos filhos”, “governar para todos”, “respeitar a autonomia das carreiras de Estado”. Como se o governante cioso de seu próprio pescoço em algum momento devesse deixar de falar aos eleitores dele, trocar os mais fiéis pelos menos fiéis, parar de enfraquecer os adversários, visíveis ou ainda escondidos, e deixar as corporações fazer o que dá na telha em defesa do poder, dos privilégios e interesses umbilicais delas.
De volta à Lava-Jato, o principal problema dela é não mais servir ao poder. Talvez a algumas expectativas frustradas de poder, mas não está sendo suficiente. O Poder (com maiúscula) nas três pontas da Praça dos Três Poderes precisa conter a Lava-Jato para conseguir governabilidade. E o pessoal que precisa dessa governabilidade para passar as mexidas legais do programa econômico liberal vitorioso nas urnas enxerga, cada vez mais, a operação como um estorvo. Agora, a ampla coalizão não é mais a favor, é contra.
*
O principal argumento dos defensores por aqui do impeachment (que lá ainda não é saída) de Donald Trump é que ele se associou a um governo estrangeiro para, a pretexto da necessidade de combater a corrupção, criar dificuldades políticas ao principal adversário dele na disputa pela Casa Branca em 2020.
Pedir coerência na política é amadorismo. Mas pelo menos rir ainda não está proibido. Só rindo mesmo.
José Roberto Mendonça de Barros: O cenário internacional segue piorando
A incerteza e a desaceleração do crescimento global continuam firmes
Trump e os líderes chineses voltarão a se encontrar daqui a alguns dias. Embora essa negociação seja sempre difícil, não é fora de propósito que exista algum avanço nas conversas, pois os dois países estão enfrentando certos problemas. Trump precisa de uma boa notícia para compensar suas dificuldades políticas domésticas e a China precisa de proteína, cujo preço explodiu, depois dos efeitos devastadores da gripe suína africana. Complexo, mas não impossível.
Mas o verdadeiro conflito entre as duas potências não muda nada. Basta pensar que além das tarifas de importação e das restrições impostas à exportação de tecnologia americana (o caso Huawei é o mais relevante), noticiou-se que o governo americano agora estuda “deslistar” as quase 200 empresas chinesas que têm ações nas Bolsas americanas. Um golpe e tanto. Embora uma fonte do Tesouro tenha depois negado a informação, fica a dúvida.
A incerteza e a desaceleração do crescimento global continuam firmes. A OCDE agora projeta uma expansão do PIB global inferior a 3%, medíocre indicador de contração em muitos lugares. Aliás, a indústria global já está em recessão.
A incerteza no Oriente Médio continua elevada, até porque os três principais protagonistas, Trump, Irã e o jovem príncipe que manda na Arábia Saudita gostam muito de tomar riscos.
Na Europa, a economia alemã continua firme na direção de uma recessão, resultado direto da redução do comércio e dos investimentos globais. Na Inglaterra, Boris Johnson perde todas as disputas, mas segue firme na má educação e no esforço de jogar o país numa crise sem precedentes.
Mas é nos Estados Unidos que se dará o ato principal, de cujo desenho já falamos mais de uma vez.
A estimativa final do crescimento do PIB do segundo trimestre foi de 2%, um número robusto, baseado na expansão dos gastos do governo (cujo déficit caminha para US$ 1 trilhão) e do consumo. Além disso, a inflação segue tranquila e o Fed vem reduzindo os juros. Assim, dizem os otimistas, o ciclo de crescimento poderá seguir adiante, e o presidente Trump poderá ser reeleito.
Entretanto, os pessimistas (sempre eles!) apontam um rol crescente de dificuldades.
A desaceleração do crescimento global e a incerteza continuarão a colocar dificuldades para as companhias americanas. Não é por outra razão que os investimentos e o comércio exterior seguem em contração. O setor de serviços também está perto de entrar numa fase de contração.
Mesmo o consumo mostra algumas rachaduras, como a piora das expectativas das famílias e a queda no consumo de gasolina. O resultado do mercado de trabalho foi razoável, mas não altera o quadro geral.
Mas é no mercado financeiro que se veem dificuldades crescentes: a alavancagem dos agentes é recorde, levando muitos a fugir do risco. Ativos defensivos em evidência, como a elevação do preço do ouro, a valorização do iene e os US$ 17 trilhões aplicados em juros negativos. Fracassou a abertura de capital de empresas badaladas, como o Uber e, bem recentemente, a WeWork.
O risco regulatório dos gigantes de tecnologia cresceu muito. A curva de juros segue invertida.
Há algumas semanas apareceu uma aguda escassez de liquidez no mercado bancário de curto prazo (os “repos”), que obrigou o Fed de Nova York a promover grandes leilões de recursos. O fenômeno não parece ter sido reflexo apenas de recolhimentos grandes de tributos e outros pagamentos, podendo ser sintoma de algum “empoçamento” de liquidez, típico de momentos de elevação de riscos percebidos em certas carteiras de ativos. Sinal amarelo aqui.
Para completar a salada, temos a abertura de um processo de impeachment do presidente Trump, com resultados imprevisíveis.
É muita confusão para tudo dar certo.
*Economista e sócio da MB Associados
Fernando Henrique Cardoso: Falta rumo
Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro
Há dias em que escrever é um prazer. Nem sempre: hoje, por exemplo, este artigo me custou bastante. Por quê? Cansaço de uma noite mal dormida me fez sentir a velhice, o que em mim é raro. Mas há também motivos que nada têm que ver comigo. Dá certo desalento voltar aos temas que têm dominado o noticiário do cotidiano nacional: os enganos repetitivos (na verdade, as crenças) do governo atual; a morte absurda de crianças alvejadas à bala, as árvores que queimam na Amazônia e alhures, tanto por motivos cíclicos como pela devastação criminosa em busca de discutível lucro... E por aí vamos, de pequenas e grandes tragédias à estagnação das ideias.
Por trás do “mesmismo” do dia a dia vão se formando nuvens um tanto menos habituais e que nos podem trazer maiores aborrecimentos. A mais difusa e também a mais ameaçadora delas diz respeito ao “estado do mundo”. Desde que Kissinger convenceu Nixon a normalizar a relação dos Estados Unidos com a China e os chineses, levados por Deng Xiaoping, se dedicaram a construir o “socialismo harmonioso” (seja lá o que isso signifique), as apreensões de uma nova guerra mundial sumiram do mapa. A antiga União Soviética desabara, Cuba estava contida, a Coreia do Norte ameaçava mais a do Sul do que o mundo, a guerra entre Índia e Paquistão se acalmara. Restava apenas o “Oriente Médio” e o Norte da África como palcos de guerra, com os americanos bombardeando e conquistando o Iraque, a Europa fazendo o mesmo na Líbia. Crises que pareciam muito longínquas de nós, brasileiros.
Dava a impressão de que a “nova a ordem mundial”, por certo assimétrica, conteria suas desavenças nos limites das Nações Unidas, com uma ou outra ação militar “corretora”, sem abalar as estruturas internacionais de diálogo. São elas que começam a se romper no atual decênio. As ideias representadas por Trump encontram eco na realidade de uma China que de “copiadora” passou a criadora de novas tecnologias e até mesmo de uma Coreia do Norte cujos mísseis ameaçam chegar à costa do Pacífico da América do Norte. Sem falar no renascimento da Rússia como potência militar que cobra seus “direitos” de vassalagem, incorpora a Crimeia, invade terras da Ucrânia e produz temor nos nórdicos.
Neste novo quadro assistimos, ao mesmo tempo, a uma verdadeira revolução nas técnicas e nas relações produtivas. O mundo contemporâneo emprega cada vez mais tecnologias poupadoras de mão de obra e criadoras de grandes volumes de bens e serviços que se transformam em lucros nas mãos de poucos (inteligência artificial, robôs, revoluções na microbiologia, novas técnicas agrícolas, e assim por diante). Em conjunto, elas permitem o prolongamento das vidas humanas, oferecem pouco emprego e, dado o regime social prevalecente, criam não mais “exércitos de reserva”, mas excedentes de mão de obra dispensáveis para o aumento da produção. Em suma, um mundo bem diferente do sonho tanto dos liberais quanto dos marxistas.
Provavelmente é isso que, subconscientemente, está por trás da reação “irracional” dos coletes-amarelos na França, da desconfiança generalizada quanto à democracia representativa, da vontade de voltar ao isolamento, com o Brexit ou com a guerra comercial de Trump. Enfim, com a ascensão de novos pretensos “homens fortes” que, pulando as instituições, voltariam a fazer o “bem do povo”.
Fossem só razões ideológicas e já seria um momento tenso. Mas há mais: os mercados financeiros mundiais começam a dar sinais preocupantes, refletindo a inquietação política e, sobretudo, a diminuição da produção, com a demanda fraca. Para responder à prolongada e profunda crise de 2008 os bancos centrais dos países desenvolvidos reduziram os juros dramaticamente e inventaram o quantitative easing (com injeções maciças de dinheiro nas economias). Que fazer agora se uma nova crise se apresentar, ainda que não tão grave como a anterior? Ora, os juros já estão baixos (em muitos lugares são negativos). E a situação fiscal dos governos ricos não é de folga, limitando o arsenal de medidas para estimular a economia. No Brasil, ainda é possível reduzir os juros, mas o desaguisado das contas públicas deixa o Estado exaurido e sem capacidade para “puxar” os investimentos. Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro.
É neste contexto que se torna imperioso, como eu costumava dizer quando exerci o governo, definir rumos. Mais do que isso: convencer o povo de que os rumos propostos são bons para o País e para as massas, sobretudo para os mais pobres.
De uma coisa estou convencido: há que pôr um ponto final na dinâmica de polarização que tomou conta do País. Até o STF se deixou enredar nela: os juízes discutem e brigam pelo adjetivo, dando à Nação a impressão de que, uma vez mais, o formalismo vai se impor à substância. Quando não parecem não se dar conta das repercussões mais amplas das decisões tomadas.
Não nos esqueçamos de que os presidentes que marcaram nossa História recente (falando só dos que já estão mortos) agregaram, não dissolveram. Juscelino, mesmo enfrentando duas sublevações militares (as revoltas de Jacareacanga e Aragarças), pacificou o País e modernizou o setor produtivo e a infraestrutura do Brasil, somando capital nacional e estrangeiro.
E mesmo Vargas, apesar de ter chefiado um governo forte, repressivo mesmo, e que teve seus momentos de tensão, soube incorporar as massas urbanas e definir um rumo para a economia, nas condições da época. Percebeu que a guerra se aproximava e, embora houvesse negaceado com o Eixo, terminou por se juntar aos Aliados. Cobrou preço, entretanto: a indústria siderúrgica foi feita com empréstimos dos americanos.
Será que estaremos condenados nas próximas eleições presidenciais a votar em polos agarrados a ideologias mofadas? Ou teremos capacidade para unir o centro democrático e progressista para retomar, com a vitória nas urnas, o rumo de grandeza que o País necessita e merece?
* Sociólogo, foi presidente da República
Fernando Canzian: Dependendo do critério, desigualdade é ainda pior
Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris sustenta que o 1% super-rico no Brasil captura 28,3% dos rendimentos brutos totais
A Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018 joga luz somente sobre um lado da questão da concentração de renda brasileira.
Realizada por mil agentes de que visitaram 75 mil lares em 1.900 municípios, ela difere de outros levantamentos que levam em conta também declarações de imposto de renda e outros rendimentos financeiros, e que trazem à luz ganhos muitas vezes não declarados em entrevistas domiciliares.
Na POF, 2,7% das famílias concentram 19,9% da renda. Já o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris (que combina pesquisas domiciliares, contas nacionais e declarações de IR), sustenta que o 1% “super-rico” no Brasil captura 28,3% dos rendimentos brutos totais.
Assim, o Brasil seria o país com maior concentração de renda no 1%, atrás somente do Qatar, minúsculo emirado absolutista governado pela mesma família desde o século 19.
A mais recente crise econômica do país só piorou o quadro, provocando um aumento da desigualdade de renda por mais de quatro anos consecutivos. No período, os mais pobres não só foram os mais afetados pelo desemprego como perderam mais rendimentos.
Segundo dados do FGV Social, entre o fim de 2014 e junho deste ano, a renda per capita do trabalho dos 50% mais pobres no país despencou 17,1% enquanto a dos 10% mais ricos subiu 2,5% em termos reais (acima da inflação). Já o 1% mais rico foi quem mais ganhou: 10,1%.
Mas a nova POF traz outro dado interessante a respeito da dinâmica do desenvolvimento e da concentração de renda no Brasil.
Segundo o levantamento, o maior valor médio recebido pelas famílias pesquisadas foi encontrado no Centro-Oeste (R$ 6.772,86), correspondente a 125% da média nacional e maior até do que os rendimentos no Sudeste (R$ 6.391,29).
O Centro-Oeste não só é a região menos populosa do país, com cerca de 7,6% dos brasileiros, como é mais dinâmica do agronegócio, atividade que tende a concentrar cada vez mais a renda ao se aperfeiçoar com a mecanização.
Outro dado da pesquisa revela como a questão da tributação regressiva contribui para a desigualdade ao impor uma carga tributária proporcionalmente mais pesada sobre os mais pobres via consumo, sobretudo na alimentação.
Enquanto as famílias que ganham até dois salários mínimos (R$ 1.908) comprometem quase um quarto de seus rendimentos com produtos alimentícios, aquelas que ganham acima de 25 salários mínimos (R$ 23.850) gastam nisso apenas 7,6% do que ganham.
João Domingos: Tudo a perder
Atrapalhar o segundo turno da reforma da Previdência é um erro
Senado e Câmara correm o risco de pôr a perder, senão toda ela, pelo menos uma parte da boa imagem que construíram neste ano. Logo depois da posse, em fevereiro, muita gente olhou para a composição das duas Casas – esse repórter também –, e não teve dúvidas em dizer que era o pior Congresso desde o fim da ditadura militar.
Recuperados da surpresa da exclusão da mesa farta do Palácio do Planalto e da perda do poder de mando sobre a Esplanada dos Ministérios e estatais, como Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa, BNDES e Correios, para citar alguns dos alvos mais desejados, deputados e senadores se recolheram. Foram pensar no que fazer diante da dura realidade que lhes impunha o presidente Jair Bolsonaro ao lhes negar as tetas do governo.
Entenderam que o melhor jeito de enfrentar tal situação sem que morressem por inanição era fazer valer a voz e a vontade do Congresso.
Deixariam de ser um apêndice do Executivo, como nos governos anteriores, e cuidariam de uma pauta própria. Logo assumiram para si a agenda positiva do governo, traduzida primeiramente na reforma da Previdência. Decretos e outras iniciativas do presidente da República começaram a ser derrubados, a exemplo do decreto que aumentava o número de agentes públicos autorizados a dizer o que era documento secreto ou ultrassecreto e do que flexibilizava a posse de armas, substituído por um projeto de lei.
Por achar que manter o Coaf no Ministério da Justiça fortaleceria demais o ministro Sérgio Moro e o aparelho de controle financeiro, fiscal e de investigação, o Congresso mudou a medida provisória que reduziu ministérios e fundiu outros. Sem que o governo nada pudesse fazer, o Coaf foi devolvido ao Ministério da Economia (posteriormente o presidente Jair Bolsonaro o transferiu para o Banco Central).
Tudo o que os deputados consideraram que era alheio ao tema Previdência, e que constava do projeto de reforma enviado pelo governo, foi arrancado ainda na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. E a reforma da Previdência andou. Rápida, segura. Era o Congresso dizendo à sociedade que assumia ali a agenda positiva para o País. Era o Congresso dizendo que, apesar das aparências, estava disposto a desmentir os que o consideravam o pior da História recente.
Vale insistir, toda essa imagem boa, porém, pode desaparecer. Ao condicionar a votação do segundo turno da reforma da Previdência à distribuição do dinheiro do leilão do pré-sal, marcado para novembro, o Senado reduz o seu papel, recua anos ao passado e se expõe aos que acusam os congressistas de chantagem. A reforma da Previdência deve ser vista como um projeto de País, importante para a redução do déficit fiscal e para a manutenção do próprio sistema de aposentadorias. Pode-se discordar do conteúdo, mas não há um único partido que não diga que a reforma previdenciária não é importante.
Fala-se muito entre os senadores que eles estão descontentes com o governo porque nada do que vem de promessa lá das bandas do Palácio do Planalto é cumprido. Ou que muitos se sentem traídos pela forma individualista como tem atuado o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Dificultar a votação do segundo turno da reforma da Previdência seria uma forma de retaliar o governo e o presidente do Senado. É um erro. A reforma é do País, não do presidente Bolsonaro ou de Alcolumbre. Se querem retaliá-los, existem outros projetos que dizem muito mais respeito aos dois do que à sociedade. Não é preciso ir longe. A indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a Embaixada do Brasil em Washington é muito mais um desejo do pai, o presidente, que a negociou com Alcolumbre, do que uma necessidade do País.
Demétrio Magnoli: O Ministério Político
Constituição de 1988 criou um poder sem controle externo e sem limites jurisdicionais
Quanto vale a palavra de Rodrigo Janot? O então procurador-geral entrou armado no STF com a finalidade de matar Gilmar Mendes e, na sequência, tirar sua própria vida. Verdade? Mentira? Delírio de um mitômano? No fundo, pouco importa. O conto deve ser lido alegoricamente, como parábola de uma colisão engendrada há três décadas, na hora em que os constituintes esculpiram o atual Ministério Público.
Nos artigos 127, 128 e 129, a Constituição criou um poder sem controle externo e sem limites jurisdicionais. O MP paira sobre o Estado, não respondendo a nenhum dos três Poderes. Nas suas próprias palavras, opera como “uma espécie de Ouvidoria da sociedade brasileira”, exercendo a “tutela dos interesses públicos, coletivos, sociais e difusos”. Dito de outro modo, o MP não seria uma Ouvidoria da aplicação das leis, mas um tradutor do “interesse geral”.
Ninguém percebeu à época, mas dava-se à luz um Partido, com “P” maiúsculo —isto é, uma entidade política singular, que supostamente representa toda a sociedade e não precisa passar pelo filtro das urnas. O MP tornou-se um recipiente perfeito para gerações de jovens promotores e procuradores engajados na reforma social por meio do sistema de justiça.
Política é a arte de explicitar e solucionar as divergências por vias pacíficas. As divergências que atravessam as sociedades coagulam-se em partidos. Nos sistemas totalitários, elas não desaparecem, emergindo sob a forma pervertida de facções clandestinas no interior do partido único.
O MP, concebido como Partido, fragmenta-se necessariamente em diferentes partidos, que refletem traduções conflitantes do “interesse geral”.
O Ministério Político não é um, mas vários. Pela esquerda, em 1991, surgiu o chamado Ministério Público Democrático (MPD), hoje com mais de 300 associados. Pela direita, em 2018, nasceu o chamado Ministério Público Pró-Sociedade, que organiza seu 2º Congresso Nacional. “Nós dois lemos a Bíblia noite e dia, mas tu lês preto onde eu leio branco” (William Blake). Os dois leem as mesmas leis, mas cada um as interpreta segundo seu programa político particular.
O Janot do conto, pistoleiro suicida, encontra seu lugar no Janot da história. O momento de seu propalado gesto de loucura inscreve-se numa sequência de atos políticos: no 8 de maio de 2017, o procurador-geral pediu a suspeição de Gilmar no caso Eike Batista; no dia 17, vazou o áudio do diálogo explosivo entre Joesley Batista e Michel Temer; no 23, publicou um artigo de denúncia do “estado de putrefação de nosso sistema de representação política”.
Numa “estranha aliança do sublime com o obsceno” (Octavio Paz), o cavaleiro andante da limpeza pública faria a justiça verdadeira com o projétil de uma pistola, eliminando a justiça monstruosa, corrompida, inventada pela Constituição.
A vocação dos partidos é perseguir a conquista do poder. Naquele maio, Janot construía o trampolim de sua candidatura presidencial, fincando-o sobre um pacto profano com Joesley Batista.
A politização do MP atingia um clímax, empurrando seu chefe à guerra aberta com o Executivo e à uma tentativa, no fim frustrada, de submeter a seus desígnios o Congresso e o STF.
Quatro meses depois do pedido de suspeição de Gilmar, um desmoralizado Janot ergueu a bandeira branca e, em gesto de rendição, solicitou a revogação da imunidade de Joesley.
A colisão do Ministério Político com as instituições não desaparece junto com a desgraça do ex-procurador-geral. Hoje, a candidatura presidencial de Sergio Moro concentra o projeto de poder do Partido dos Procuradores. A nossa Operação Mãos Limpas, tão necessária, dissolve-se numa lagoa viscosa de ilegalidades, um pesque-pague para as defesas de corruptos e corruptores.
O conto de Janot, mais que roteiro potencial de um filme, é uma lição política. Vamos estudá-la?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
El País: Eleições para o Conselho Tutelar tornam-se o novo campo de batalha do Brasil polarizado
Pleito deste domingo coloca católicos e evangélicos em disputa para ocupar organismo de apoio a políticas sobre juventude. Veja como participar da votação que é aberta a todos os eleitores do país
A particularidade de 2019 é que a polarização da disputa eleitoral do ano passado se repete, agora com o componente religioso ainda mais forte. Como o voto é facultativo, organizações e sobretudo igrejas se esforçam para engajar eleitores no dia da votação. Os assentos nos conselhos — cada um deve possuir cinco membros — estão sendo ferozmente disputados por católicos e evangélicos, que desejam influenciar nas políticas voltadas para crianças e adolescentes, conforme relatou a BBC Brasil. Temas como ideologia de gênero e sexualidade nas escolas permeiam as redes sociais, onde os candidatos nem sempre abordam questões que estão relacionadas a atuação dos conselheiros. Para que fique claro, entre as atribuições do Conselho Tutelar estão:
A disputa entre católicos e evangélicos foi abraçada publicamente pelas instituições religiosas. A Arquidiocese de São Paulo, por exemplo, vem publicando várias notas incentivando a participação dos católicos nos conselhos tutelares. Na última, publicada no dia 4 de outubro no jornal O São Paulo, Sueli Camargo, que é coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor, afirmou: "Quando nos ausentamos, deixamos espaço aberto para outras denominações religiosas, como os evangélicos, que estão presentes não só nos conselhos, mas em diversos campos da política e nem sempre estão preparados para ocupar esses cargos. É importante retomarmos essa participação enquanto Igreja, com o objetivo de promover a vida e garantir os direitos".
Já a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, dono da TV Record, publicou em seu portal no dia 15 de setembro um texto intitulado Conselho Tutelar: é nosso dever participar. Nele, exortava seus fiéis a votar em candidatos religiosos: "É importante ter pessoas com valores e princípios e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus".
Os evangélicos vêm tomando o espaço da Igreja Católica nas últimas décadas, o que ajuda a explicar a disputa entre os dois grupos nos Conselhos Tutelares — apesar de compartilharem visões similares sobre assuntos comportamentais. Hoje, evangélicos representam 30% dos 200 milhões de brasileiros, algo que se reflete no crescimento da bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Após assumir, o presidente Jair Bolsonaro nomeou a pastora Damares Alves para o Ministério da Família dos Direitos Humanos, prometeu nomear um ministro do Supremo "terrivelmente evangélico" e foi a estrela principal da Marcha de Jesus em junho deste ano, entre outros acenos ao eleitorado evangélico, que foi importante para impulsionar sua candidatura. Em meio a essa disputa, eleitores laicos que sequer sabiam que podiam votar para os Conselhos Tutelares começaram a se mobilizar nas redes, espalhando listas com candidatos igualmente laicos e progressistas.
Onde e como votar
Cada cidade brasileira possui ao menos um Conselho Tutelar, composto por cinco membros eleitos. Os municípios podem definir o número de conselhos de acordo com seu tamanho e demanda. São Paulo, a localidade mais populosa do país, possui 52 conselhos tutelares com um total de 260 integrantes.
As eleições de domingo acontecerão de 8h às 17h. Cada município organiza o seu próprio pleito e cria regras próprias. As informações sobre os locais de votação devem ser buscadas nas prefeituras, nas secretarias municipais que tratam dos direitos de crianças e adolescentes, na Justiça Eleitoral e nas próprias sedes dos conselhos. São Paulo, por exemplo, concentrou todas as informações no site da Secretaria de Direitos Humanos e criou uma plataforma para que os eleitores consultem seu local de votação, a partir das informações contidas no título de eleitor. No Rio de Janeiro, as informações estão no site do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os locais podem ser consultados nesta tabela.
Os interessados em votar precisam ter mais de 16 anos e estar regularizado com a Justiça Eleitoral, além de cadastrados nos tribunais regionais eleitorais até 14 de junho deste ano. O voto não é obrigatório. Caso decida exercer seu direito, o eleitor deverá apresentar título de eleitor e documento de identidade original com foto, ou o aplicativo e-título, da Justiça Eleitoral. Cada eleitor pode votar em até cinco candidatos para o conselho mais próximo de sua residência.
Um total de 30.000 conselheiros deverão ser eleitos nos 5.956 conselhos em funcionamento em todo o território nacional: 1.885 no Nordeste, 1.830 no Sudeste, 1.234 no Sul, 527 no Centro-Oeste e 480 no Norte, segundo o cadastro do Ministério da Mulher, da Família e dos direitos Humanos.
Os salários dos conselheiros devem ser definidos pelas Câmaras de Vereadores — são de aproximadamente 1.500 reais, segundo dados do antigo Ministério do Trabalho. Para ser candidato basta ter reconhecida a idoneidade moral, ter mais de 21 anos e residir na cidade que vai atuar. Há prefeituras que aplicam provas de redação, português e matemática antes da votação, com o objetivo de pré-selecionar os candidatos. Outras administrações exigem experiência na área de serviços sociais, tempo mínimo de moradia na cidade ou escolaridade mínima.