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Revista PD #48: A crise que rouba nossas energias não pode sufocar a esperança 

Já lá se vão cerca de três anos de Operação Lava-Jato, e o mesmo período de tempo, pode-se dizer e contar, de uma crise sem paralelo em nossa história, perpassa, como num filme de terror, a mente de todos nós brasileiros que, independente de posicionamentos ante o governo ou dos partidos, sofremos, dia após dia, o desenrolar de novas denúncias e de mais e mais autoridades nelas envolvidas.

Por Chico Andrade
Revista Política Democrática #48

As consequências desta danosa e impiedosa conjuntura, todos sabemos, e a maioria de nós sofre na pele ou na carne: desemprego alarmante, desconfiança por parte de investidores e do empresariado, ausência de projetos estruturantes para alavancar o desenvolvimento e perda ou diluição dos poucos avanços que até aqui havíamos obtido nos indicadores sociais que medem a pobreza e a desigualdade no país.

E basta um breve olhar para nós mesmos a fim de constatar que estamos nadando à exaustão para enxergar a margem do rio, mas a correnteza é por demais forte e nos sufoca e deprime, pois, como atores e agentes políticos somos os primeiros navegantes dessa nau desgovernada. E de tanto que nos empurra para baixo, a crise também nos encaminha para um torpe e vulgar divisionismo. Briga-se nas redes sociais, briga-se entre grupos ou companheiros, briga-se até entre as famílias, e nesse mar de ódios e xingamentos mútuos um vento veloz parece nos empurrar de volta para a barbárie.

Mas a história ensina: é em tempos revoltos, como o que vivemos agora, que urge recuperar algo da racionalidade cívica que um dia nos tirou das trevas da ignorância e nos colocou no estágio humano. Ou vamos todos morrer abraçados, quando tantas mãos ainda temos para nos dar?

Somos um país, composto por cinco regiões diferentes em costumes, origens, etnias e recursos. Somos uma federação formada quase a fórceps, se recordarmos um pouco as lutas por libertação e independência política de nossa história imperial e republicana. Dos príncipes aos coronéis. Dos nobres aos desvalidos, dos senhores e dos escravos. De brancos, pretos e do que resta de nossos primeiros habitantes indígenas. De pobres e ricos..., mas, é importante lembrar, somos um país com uma só língua e com um potencial de riqueza ainda imensurável.

Por tudo isso, temos a obrigação de reagir e virar este jogo. Mas não há como pensar em curar uma doença grave se o médico não diagnosticar corretamente. No caso brasileiro, em que herdamos além do patrimonialismo, traços e modos que hoje nos caracterizam como o país dos jeitinhos e, agora, possivelmente, o lugar do mundo onde a corrupção se encalacrou e virou condição de governar em todos os entes federados, isso requer que façamos uma leitura a mais detalhada possível das causas desta tríplice crise (política, econômica e de valores), para construirmos a saída e, talvez, para uma efetiva reconstrução cívica da nação.

Passar por tudo isso tem sido extremamente doloroso, mas vivemos uma verdadeira revolução nos modos de fazer a política e, provavelmente, de governar. Daí ser imperativo o reconhecimento da falência definitiva desse modelo presidencialista de conchavos e hiperconcentrador de poderes implantado no país pelo golpe de 1889. Com ele, é certo, formamos uma Federação, mas não fomos capazes de formar uma nação que respeitasse a pluralidade de nossas ricas e diversas origens.

Presidencialismo
Com o presidencialismo agora chamado de coalizão, saímos sim do atraso agrário, mas não enfrentamos adequadamente nossas diferenças e desigualdades e nem semeamos estruturas sólidas para caminharmos juntos, povo e nação. É fato, que as lutas para pôr fim à ditadura militar, instalada em 1964, nos fizeram sonhar que, elegendo diretamente um líder ou um “super-herói” presidente da República, estaríamos dando um passo grande para a superação de nossos crônicos problemas sociais e consolidando a democracia entre nós.

A sociedade que lutou pelas Diretas, com este pueril sentimento libertário, e o país com suas elites econômicas sucedendo-se no poder, sem perda alguma, pareciam querer superar seus traumas e suas históricas diferenças sem mais confrontos. Mas ressentíamo-nos, talvez, de mitigar com mais atenção os desafios pactuais postos em campo para dar curso a uma democracia duradoura, plural e com pleno sentido de equidade social. Esquecemos, provavelmente, também, de mensurar o impacto da disseminação sem controle, da perspectiva de alcance, em breve tempo, de múltiplos direitos sociais e de cidadania, e muito provável, sem as necessárias contrapartidas de deveres claramente acordados.

Embora nossas primeiras experiências políticas, ainda como colônia e depois no Império, tenham sido exatamente as Câmaras de Vereadores, ou seja, o Parlamento, pouco acumulamos sobre a ideia do compartilhamento do poder. O ideário positivista plantado entre nós foi nos levando, cada vez mais, para uma perspectiva autoritária na ocupação do Poder Central e, se bem recordarmos, quase nada avançamos com o nobre espírito republicano, além do legado de verdadeiras castas ou grupos familiares encastelados em cada canto da República nestes quase cento e vinte e oito anos de presidencialismo, contando os intervalos de ditaduras e de presidentes eleitos “livre e democraticamente”.

Disseminamos, é verdade, entre nós a bela ideia de cidadania, mas, infelizmente, pouco ou quase nada fizemos para formar cidadãos. E hoje é de cidadãos ativos e plenos o que de mais precisamos para sairmos do atraso educacional e cultural em que nos encontramos.

Agora vivemos como o doente em fase aguda, perpassando os intervalos entre os efeitos da morfina e o adormecimento. Temos tantos partidos que é impossível a um jovem, ainda que de boa iniciação educacional, entender o porquê disso, já que, em ideias, quase nada a maioria se diferencia, além do indiscreto desejo de alçar ao poder para lá se locupletar.

Efeitos
A crise e seus nefastos efeitos colocaram na rua milhões de trabalhadores e trabalhadoras, fizeram centenas de milhares de pequenos e micros comerciantes e empreendedores desistirem de seus sonhos, afastaram de nós os investimentos externos tão necessários, colocaram o país novamente no rol da desconfiança, mundo afora. E ante mais de uma centena de altas autoridades denunciadas por corrupção ou desvios éticos e morais, entre as quais, senadores, governadores, deputados e até o presidente da República, gente de quase todos os partidos, o que fazemos, além de contemplar no Jornal Nacional os capítulos renitentes da novela da Lava-Jato ou de ver governantes e autoridades dos três poderes quase em luta pessoal, em capítulos assustadores e bizarros?

Tiramos, pela segunda vez do poder, pelo impeachment, a maior autoridade da República, mas diante da epidemia de roubalheira e de insensatez política a que fomos submetidos, isso não foi suficiente para aplacar a crise e os ânimos beligerantes das principais facções em luta política. E por que essa A crise que rouba nossas energias não pode sufocar a esperança crise não passa? Porque suas causas principais não têm sido atacadas, ou enfrentadas adequadamente, haja vista a constatação de que a maioria dos atores políticos (partidos e seus líderes), não está nem aí para o país. Seu desejo é o poder, apenas, e para tanto, qualquer coisa vale.

E foi essa cultura de descompromisso e irresponsabilidade que alimentou este velho e carcomido sistema presidencialista e fez surgir entre nós falsos líderes, já que não fomos capazes de edificar caminhos libertadores para uma efetiva cidadania republicana. Já ficamos felizes em amortecer a pobreza por meio de programas sociais de pouca sustentação. Partidos da oposição ou de uma pretensa esquerda se encantaram com tal perspectiva de dominação, especialmente porque fizeram dos beneficiários ou dependentes de antes, sua clientela preferencial de agora.

Depois do PMDB, de José Sarney e de Collor, passando pelo PSDB, Lula e seu partido, principalmente após a proeminência das bolsas de toda a espécie, tinham um rebanho pra chamar de seu... Mas, alguns lá atrás já diziam que nenhuma bolsa, nenhum programa de transferência de renda em si transformará esses milhões de desvalidos sociais, se tais benefícios não se fizerem acompanhar de educação e de uma orientação realmente libertadora. A simples aplicação da receita assistencialista só poderia chegar aonde chegou: na ilusão torpe de um “pai ou de uma mãe dos pobres”, para continuarem pobres e dependentes e seguir alimentando o velho curral eleitoral inaugurado tempos atrás pelos coronéis...

Este o retrato atual desse despedaçado sistema presidencialista, que não prospera mais, já que as fontes que o alimentavam na corrupção agora estão sendo desmascaradas inapelavelmente. O poder central no país precisa ser compartilhado, melhor dividido e renovado profundamente e, para tal, temos a obrigação de começar, e já, a construção de uma alternativa que, em minha opinião, bem pode ser o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, sistema que permite o enfrentamento ágil das crises, sem abalar as estruturas da República e sem causar os terríveis danos econômicos que hoje vivemos.

Debate
Só o que precisamos é juntar as pessoas e as lideranças de bem do país para iniciar pra valer este debate, sem pressa para implantar, porque não seria possível pensar em tal mudança já para 2018, uma vez que será necessária uma ampla e pedagógica discussão, no conjunto de toda a sociedade e de toda a Federação, para nos convencermos da importância de seus benefícios para a democracia brasileira e para erradicarmos, de vez, esta crise, que não pode mais seguir alimentando o ódio e a divisão entre nós.

Pacto, acordo ou concertação, é hora destas pessoas de bem – que se encontram provavelmente em quase todos os partidos ou entidades da sociedade civil ou fora delas, mas que ainda sonham com um país com outra história e com sua gente mais feliz – se unirem e darem as mãos em nome da harmonia, e de uma sociedade mais fraterna e justa.

E a despeito das atuais circunstâncias, em meio à possibilidade turbulenta do afastamento de mais um presidente, em face das denúncias em curso encaminhadas pelo procurador-geral da República, agora sim, é que o país e o povo esperam para ver quem será capaz de apresentar um caminho, que mitigando as disputas ou o impossível, nessa deprimente seara política, possa nos tirar da crise e apontar para uma convivência mais democrática e menos beligerante.

Um pacto pelo país! Uma reflexão pela harmonia! Um gesto de esperança e de retomada da solidariedade democrática! O parlamentarismo pode proporcionar isso. Vamos construir! A crise que rouba nossas energias não pode sufocar a esperança

 

* Chico Andrade é formado em História, pós-graduado em Ciências Políticas e assessor político/legislativo na Câmara dos Deputados

** Artigo publicado originalmente na Revista Política Democrática #48

 


Revista PD#48: Reforma Política e Governo Representativo

A reforma política é um tema que recusa ser esquecido, apesar da má vontade da classe política e de muitos intelectuais. De chofre, reaparece como uma artimanha das cúpulas partidárias emaranhadas nas teias da Lava-Jato. Seja como for, precisa ser enfrentada com seriedade e não sutilmente escanteada por meio do abuso ao senso-comum antipartidário dominante no país – atavismo da inadaptação nacional à democracia, como bem observara Sérgio Buarque de Holanda na primeira metade do século passado.

Por Hamilton Garcia de Lima
Revista Política Democrática #48

Um dos focos principais desse senso-comum se dirige contra a adoção da lista fechada no sistema proporcional, sob o argumento de que ela enfraqueceria o vínculo entre eleitores e candidatos, levando "à ditadura das cúpulas partidárias" em detrimento do direito de escolha do eleitor.

A crítica é fraca e falsa sob variados aspectos; vejamos alguns. Uma das razões para que a reforma política não saia da agenda do país é precisamente o fato de que o modelo vigente (lista aberta) levou, ao longo das últimas três décadas, o vínculo entre representantes e eleitores aos piores patamares da história republicana – não obstante o juízo de muitas autoridades acadêmicas que, nos anos 1990-2000, prognosticavam o amadurecimento do modelo.

Os motivos para essa deterioração crescente são muitos, mas deve-se destacar, em particular, a opacidade do método de distribuição das cadeiras legislativas pelo coeficiente partidário-coligacional, que faz a "mágica", aos olhos da sociedade, de eleger candidatos com os votos dos não eleitos, de tal modo que nem os políticos, em sua esmagadora maioria, sabem exatamente de onde vem os votos que efetivamente os elegem, nem os eleitores a quem seus votos efetivamente consagram, pois a grande maioria votou em candidatos que não se elegeram.

Não bastasse isso – em si, suficiente para explicar o estranhamento do eleitor em face de "seu" representante e o descompromisso desse em relação àquele –, a ideologia liberal reforça a alienação recíproca ao propalar uma abstrata primazia do eleitor que, supostamente, como vimos, escolhe o candidato usando para tal do discernimento natural. A fábula de uma razão descolada de contextos (interesses), estruturas (instituições) e tradições (cultura), só serve aqui para encobrir a farsa do sistema atual de escolha do eleitor.

Na verdade, ao contrário do que propõe essa ideologia, nosso eleitor encontra-se perdido num cipoal de siglas e nomes que pouco explicam/significam e que o impede de ter a visibilidade mínima para qualquer escolha razoável em termos, mesmo que apenas, de seu interesse individual. Sendo obrigado a votar em condições tão nebulosas, o cidadão acaba sendo naturalmente atraído pelos elementos mais visíveis no jogo: os candidatos-singulares, que se destacam pela capacidade ou acúmulo comunicativo, em meio ao mar de nulidades políticas individuais, ou pela oferta de alguma materialidade imediata, individualmente significativa, como vantagens pecuniárias ou acesso ao poder, tudo isso sem maiores considerações acerca dos efeitos colaterais de tais opções sobre a administração e o interesse público.

Na cabeça de significativos segmentos do nosso eleitorado – e até mesmo para alguns de nossos intelectuais ingurgitados de Lattes –, a oferta de serviços públicos por canais privados de clientela eleitoral, que oferecem privilégios em troca de voto, em nada se relaciona com a má qualidade do serviço público, em geral, sendo apenas uma forma supostamente inofensiva de remediá-la.

Descaminho
Mas, esse descaminho do Estado pelo sistema democrático de votação – sintetizada por uma liderança comunitária do Farol, em Campos dos Goytacazes/RJ, em 2007, nos seguintes termos: "o voto no Brasil corrompe" –, não produz efeitos apenas sobre as políticas públicas por ele impactadas, mas igualmente sobre o âmago do processo democrático, atingindo mortalmente a soberania do eleitor, sem que a abordagem liberal disso tenha a menor ideia.

Para muitos em nosso país – e isso não se limita aos pobres –,a soberania do voto se transformou numa relação fetichizada que, à semelhança do fetiche da mercadoria discutido por Marx em O Capital, transforma, em nosso caso por meio da gratidão ou ambição, o eleitor de portador da soberania do voto em tutelado por um patrono que lhe concede, sob a forma de favor, aquilo que formalmente está estabelecido como direito, distorção esta que, ao contrário daquela ensejada pelo poder econômico privado e seus enlaces de privilégios e superfaturamentos com a administração pública, não pode ser combatida por nenhuma Operação Lava-Jato.

Toda esta realidade, que fere de morte o direito de escolha do eleitor nas eleições proporcionais e subverte a essência do sistema democrático, transcorre sob a chancela da fetichista lista aberta, que, apesar de todas as evidências em contrário, continua sendo defendida pelos liberais programáticos como "garantia da liberdade de escolha do eleitor".

Não é por outro motivo que os antídotos às doenças da alienação eleitoral e da perversão democrática , insistem em voltar ao centro do tabuleiro político quando o tema da reforma política emerge, mesmo em meio à grossa neblina lançada ao vento pelos apóstolos da liberdade abstratamente concebida; me refiro ao sistema de lista fechada e ao voto distrital, que podem ser aplicados isoladamente ou combinadamente, com ou sem financiamento público de campanha.

Ambos têm uma qualidade cuja falta corrói nosso sistema político: a de responsabilizar os partidos pelos mandatos conquistados em seu nome, ao mesmo tempo que reforça os vínculos dos candidatos com seus partidos, já que ambas as fórmulas ensejam disputas internas reais pelas vagas de candidato ou sua ordenação na lista, com impactos importantes sobre a vida das agremiações políticas. De outro lado, elas também tornam transparentes ao eleitor/representante o destino/fonte de seu poder, criando condições efetivas para a sinergia político-programática entre o eleitor e o eleito. Em síntese, eleitores, eleitos e elites partidárias se tornam corresponsáveis pelo resultado dos mandatos conquistados e ninguém pode fugir às suas responsabilidades em caso de fracasso das apostas – o que, no caso do eleitor, implica seu deslocamento na direção de outra opção partidária.

Oligarquias
O efeito colateral criticado nesses remédios é o fortalecimento das oligarquias partidárias, embora ele já se manifeste patologicamente na ausência de sua administração, no sistema hoje vigente. Ao contrário de oligarquias, o que os medicamentos em tela poderão propiciar é o aparecimento de novas elites com base no pressuposto da transparência que deverá surgir no processo de construção de candidaturas, que hoje se instituem (fetichistamente) órfãs de pai e mãe, fruto de interesses escusos articulados em convenções anômalas, marcadas por um anonimato que apenas se rompe, pontualmente, com as escolhas de candidaturas no âmbito majoritário, sobretudo para o Executivo. Nas novas condições criadas pela reforma aqui discutida, os partidos oligarquizados terão que se abrir em alguma medida à sociedade, sob pena de ficarem exclusivamente dependentes dos velhos métodos de compra de votos e cooptação, mais fáceis de serem penalizados em face da brutal simplificação eleitoral propiciada pela lista fechada e o voto distrital.

Por fim, a manutenção da proporcionalidade, na modalidade lista fechada, trará uma vantagem importante em relação ao sistema distrital: o sistema de responsabilização/simplificação das eleições poderá ocorrer sem a perda da pluralidade política-ideológica duramente conquistada nas lutas pela redemocratização dos anos 1970-80. Ademais, a lista fechada tem um aspecto pedagógico não desprezível ao promover o fortalecimento da disputa programática entre os partidos em detrimento das personalidades.

Infelizmente, estamos forçados em nossa reforma política a realizar uma pauta novecentista: criar laços mais efetivos e duradouros dos partidos com a sociedade, por meio da formação de elites políticas genuinamente ligadas aos interesses sociais, que pudessem lastrear, como indicava Weber no início do século passado, os governos e as disputas que constituem a alma da democracia parlamentar.

O desafio não é pequeno. Em nosso caso, trata-se não apenas de um programa de reforma institucional (legal), mas de recuperarmos aquilo que se perdeu no naufrágio da democracia de 1946: uma cultura de poder que restaure a sociedade como a base do governo representativo.

* Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF

** Texto originalmente publicado na Revista Política Democrática #48

 


Monica de Bolle: Mola da grampola 

Os anos Lula e Dilma foram pródigos no uso indevido de bancos públicos

Mola da grampola, rebimboca da parafuseta, ou ainda rosqueta da parafuseta. Alguém fora do círculo dos economistas está conseguindo entender o debate sobre a criação da Taxa de Longo Prazo (TLP)? Fala-se de “custo de oportunidade”, de “subsídios implícitos”, santos ou não, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), da Geni da República, o BNDES. Mas, como é de hábito no Brasil, vão ficando de lado as questões mais importantes enquanto todos se perdem nos meandros das molas das grampolas.

A primeira questão importante são os fundos de poupança forçada criados há décadas para fins diversos. O FAT, para custear o seguro-desemprego, o abono salarial, parte dos empréstimos concedidos pelo BNDES. O FGTS para garantir ao trabalhador alguma renda em caso de demissões que não sejam por justa causa, e para financiar o crédito habitacional concedido pela Caixa Econômica Federal, além de vários outros usos a que foi submetido ao longo do tempo. O FAT, hoje, rende a TJLP, taxa determinada pelo Conselho Monetário Nacional e inferior às taxas de aplicação do mercado.

O FGTS rende a taxa referencial – a TR calculada pelo Banco Central com base no rendimento de diversos ativos – acrescentada de 3%. Em ambos os casos, as taxas de remuneração são inferiores ao que se poderia obter caso tais fundos não existissem e os recursos fossem dados diretamente ao trabalhador para que pudesse escolher o que fazer com o dinheiro. Na época em que tais fundos de poupança forçada foram criados – há muitos anos – a justificativa era de que fazia-se necessário montar fontes de financiamento para a rede de amparo ao trabalhador, para programas sociais, e programas de desenvolvimento. Para que pudessem existir, impostos e fontes de receita foram também criados para viabilizá-los.

Portanto, os fundos de poupança forçada, ainda que tragam alguns benefícios, geram distorções na economia brasileira. É preciso saber o tamanho dessas distorções e dos custos e benefícios desses fundos para que se tenha clareza sobre sua real necessidade. Isso é mais importante do que qualquer discussão sobre a parafuseta do custo de oportunidade atrelada à remuneração do FAT por TJLP ou TLP.

A segunda questão diz respeito à TJLP, ao crédito direcionado, e ao BNDES. No Brasil, cerca de metade do crédito do sistema financeiro é direcionado, proveniente, em grande parte, dos banco públicos – BNDES, Banco do Brasil, e Caixa Econômica Federal. A maior parte desses empréstimos é, de algum modo, vinculada à TJLP. Desse imenso universo de crédito direcionado concedido a uma taxa que a Selic não influencia, cerca de 14% são oriundos do BNDES. Os 86% restantes vêm de outras entidades do sistema financeiro. O proclamado fim da TJLP – algo necessário para remover a segmentação no mercado de crédito brasileiro e promover a convergência para taxas de juros mais baixas mediante a MP 777 que cria a TLP – só afetará esses 14% do BNDES. Por que?

A terceira questão retorna ao FAT. Os recursos obtidos pelo BNDES do FAT e usados para emprestar ao custo TJLP correspondem a 7% do total de crédito concedido no País. Tal montante não merece sequer ser chamado de parafuseta.

Ressalto: nada disso tira a importância de acabarmos com subsídios onerosos aos cofres públicos, concedidos durante os anos Lula e Dilma a empresas com capacidade de financiar-se nos mercados local e internacional. Nada disso entra em conflito com a ideia correta de ter maior transparência nas contas públicas e na forma como o governo se vale do BNDES e de outros bancos públicos para alcançar certos objetivos. Os anos Lula e Dilma foram pródigos no uso indevido de bancos públicos, como tantas vezes escrevi. Contudo, parece que a discussão local sobre a TLP, ao concentrar-se em minúcias, o que é necessário, porém insuficiente, acaba por deixar de lado as grandes questões: precisamos de fundos de poupança forçada? O que queremos do BNDES e da Caixa Econômica Federal, cujo mandato foi desvirtuado nos anos Dilma. Por que não extinguimos o crédito direcionado?

Entre a mola e a grampola, seria importante que críticos e defensores de medidas diversas utilizassem o momento de discussão acirrada para refletir sobre questões mais amplas, maiores do que a parafuseta.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

 


José Aníbal: Três poderes, uma só moral 

Enquanto a reforma política tem a urgência de ser aprovada até um ano antes da eleição de 7 de outubro de 2018 para entrar em vigor, o respeito ao limite salarial do funcionalismo público é ponto nevrálgico não só em função das contingências fiscais da União, dos estados e dos municípios, mas passo fundamental para uma efetiva moralização da República.

Sem dúvida, os agentes públicos eleitos pela população, assim como os partidos políticos, precisam retomar a conexão com a sociedade, deixar de lado interesses privados e escusos para colocar em primeiro plano o bem comum e coletivo. Por isso, é preciso rechaçar ideias como a destinação bilionária de recursos públicos para financiar campanhas eleitorais, dinheiro que deveria ser empregado em investimentos sociais, políticas de educação e saúde, transporte, segurança...

Mas não é só isso a panaceia dos problemas nacionais. Dinheirama de igual grandeza escoa mensalmente dos cofres públicos, nos três níveis de governo e nos três poderes, por meio de artimanhas e penduricalhos, criados por castas de juízes, desembargadores, promotores, procuradores, parlamentares, assessores legislativos, membros do executivo e outros, para engordar seus já polpudos salários. Auxílios das mais diversas naturezas não passam de subterfúgio para amealharem vencimentos que já superam, em cerca de 15 vezes, a média salarial dos brasileiros.

Num país em que o trabalhador comum recebe R$ 2,1 mil, ainda somos “brindados” por um juiz do Mato Grosso que não se contenta em ganhar no máximo R$ 33,8 mil, leva uma bolada de meio milhão de reais num único mês e diz que não está nem aí para a opinião pública! E o que é pior: muitos dos tribunais que promovem essa derrama de dinheiro dos contribuintes para uns poucos privilegiados nem sequer abrem suas planilhas ao escrutínio social. Oxalá a ordem do Conselho Nacional de Justiça para abertura dessas verdadeiras caixas-pretas seja enfim cumprida e os brasileiros possam calcular o peso e o custo dessas elites burocráticas.

Paralelamente, Executivo e Legislativo também devem prestar contas à sociedade e combater diuturnamente as brechas usadas para o pagamento de supersalários, aposentadorias e pensões desproporcionais à realidade brasileira. Propostas como a reforma da Previdência visam justamente tornar o sistema mais igualitário e sustentável, mas a grita corporativista mais uma vez age para bloquear os interesses nacionais. Da mesma forma, resistem a colocar em votação no Senado a PEC 63/2016, da qual fui autor, que acaba com todas as brechas na lei para fazer o teto do funcionalismo, nos três poderes, ser efetivamente cumprido.

Na ânsia de proteger seus privilégios, há quem veja as críticas aos supersalários como reação ou vingança de uma classe política acuada pelas investigações de condenáveis esquemas de corrupção e desvios. Nada mais falso. Ambas as situações, a seu modo, são entraves à transformação do Brasil em um país melhor para a população em geral, com menos pobreza e injustiça e mais oportunidades de emprego, inovação e crescimento.

Como se vê, a agenda de mudanças de que precisamos é extensa. Não será do dia para a noite, nem com soluções tiradas da cartola ou reducionismos típicos de redes sociais, que o estado brasileiro deixará de ser paternalista, submetido ao patrimonialismo e corroído pela ineficiência, pela corrupção e pelo corporativismo. Para sermos uma República não só de direito, mas principalmente de fato, precisamos unir as forças refratárias ao populismo maniqueísta e, juntos, dar os primeiros passos dessa longa caminhada.

* José Aníbal é presidente nacional do Instituto Teotônio Vilela. Foi deputado federal e presidente nacional do PSDB

 


Luiz Carlos Azedo: Notícia boa, notícia ruim 

A notícia boa foi a reação do mercado financeiro à decisão de que o governo pretende privatizar a Eletrobras. O Ibovespa, principal índice de ações brasileiras, fechou em alta de mais de 2%, atingindo, pela primeira vez em mais de seis anos, o patamar de 70 mil pontos. Com valorização de quase 50% nos papéis ordinários da Eletrobras, a empresa ganhou R$ 9,13 bilhões num único dia, muito mais do que renderia qualquer plano de reestruturação que fosse anunciado para melhorar seu desempenho.

Falou em vendê-la e a Eletrobras mudou significativamente de valor. As ações ordinárias, que dão direito aos acionistas de voto nas assembleias, subiram 49,3%, para R$ 21,20. Já as ações preferenciais, que permitem aos acionistas prioridade no recebimento dos lucros da empresa, avançaram para R$ 23,55 (32,08%). Os analistas de mercado exultaram com a decisão, que deixará de fora do pacote a Itaipu binacional, de propriedade do Brasil e do Paraguai, e a Eletronuclear, responsável pela produção e programas de energia nuclear.

A notícia ruim, porém, foi a assinatura do acordo de delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, anunciada pela Procuradoria-Geral da República. Trata-se do principal operador do caixa dois do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e de outros caciques do PMDB. Funaro promete revelar novos detalhes de esquemas de corrupção envolvendo o presidente Michel Temer e alguns de seus ministros. A prisão de Roberta Funaro, irmã do doleiro, a partir da delação premiada dos executivos da JBS, levou-o a fazer o acordo.

Com isso, o fantasma de uma nova denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer voltou a rondar o Palácio do Planalto. Cumpriria a promessa que fez ao anunciar que a faria até a entrega do cargo para Raquel Dodge, sua sucessora no cargo. Essa expectativa nos meios políticos acaba repercutindo no mercado e deixa inseguros os agentes econômicos. De certa forma, a antecipação do anúncio da privatização da Eletrobras pode ter sido provocada pela informação de que Funaro havia assinado a delação. Ao fazê-lo, Temer passou à ofensiva novamente junto aos meios empresariais, neutralizando o desgaste da notícia.

A narrativa do Palácio do Planalto de que a Operação Lava-Jato é autoritária e atrapalha a recuperação da economia já salvou o presidente da República de afastamento pela Câmara, com a rejeição da denúncia de Janot baseada nas gravações da conversa de Temer com o empresário Joesley Batista, da JBS. A privatização da Eletrobras é um sinal muito forte de que o governo o avança nas reformas econômicas, ainda que não consiga enxugar os gastos na Esplanada dos Ministérios e desencalhar a reforma da Previdência no Congresso. E que a Lava-Jato se tornou o maior problema para o país reencontrar seu rumo. Isso não resolve o problema de popularidade de Temer, mas ajuda a blindá-lo contra uma nova denúncia.

Reforma política
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), adiou pela segunda vez a votação da reforma política. Os deputados não conseguem se entender em relação às propostas em discussão. Afora as questões de mérito, a confusão quanto ao processo de votação é grande. Parte dos deputados queria analisar a PEC ponto a ponto, não o relatório completo. Mas, pelo regimento, o requerimento para fatiar a votação deve ser apresentado pelo relator ou ter o consentimento dele. Vicente Cândido (PT-SP), relator do projeto, havia concordado com o fatiamento, mas acabou pressionado e voltou atrás.

Pra aumentar a confusão, a relatora de outra comissão, a deputada Shéridan (PSDB-RR), anunciou mudanças na proposta de regras da cláusula de desempenho eleitoral para beneficiar partidos menores. Flexibilizou as exigências para ter direito ao tempo gratuito de rádio e televisão e acesso ao Fundo Partidário, da ordem de R$ 819 milhões em 2017.

Também propôs a formação de federações regionais, que teriam que se manter durante toda a legislatura. A exigência para ter direito ao dinheiro do fundo era o partido eleger pelo menos 18 deputados distribuídos em pelo menos nove estados; o número foi reduzido para 15 deputados.

Na fase de transição, até a implementação efetiva das medidas, de 2018 a 2030, o número de deputados eleitos pelo partido para ter acesso ao fundo também diminuiu. Manteve-se a regra alternativa, que determina que terão acesso ao fundo os partidos que alcançarem pelo menos 3% dos votos válidos nas eleições para a Câmara, distribuídos em pelo menos nove estados, com um mínimo de 2% dos votos em cada um. A federação é uma saída para os partidos que não atingirem as exigências mínimas de acesso ao fundo. Esta proposta abre espaço para manutenção do atual sistema de votação proporcional.

 


PD #48: A reforma que não pode deixar de ser feita

Se o leitor pensa que vou falar de reforma da previdência ou trabalhista está enganado. Não pelo fato das duas não serem relevantes, são. Embora não necessariamente da forma como estão, uma, proposta, e a outra, aprovada. Quero falar de uma reforma que apenas começa a adentrar o centro de debate político, E, por estar até ontem, na penumbra, arrisca trazer surpresas muito desagradáveis para o país. Tudo o que se faz nas madrugadas no Congresso Nacional caminha em sentido contrário aos interesses nacionais e servem para proteger interesses nem sempre pronunciáveis.

Por Elimar Pinheiro
Revista Política Democrática #48

Partilho da proposição de que uma reforma politica é imprescindível, mas este Congresso não tem a legitimidade de realizar a reforma estrutural que o país exige, devendo-se ater a uma reforma minimalista, presa às normas eleitorais. Não se pode escolher nossos próximos representantes com base em uma legislação que não tem dado resultados positivos e sofre o repúdio, senão da maioria, de uma grande parte da opinião pública. Portanto, mudanças devem ser adotadas para ampliar a legitimidade de nossas instituições políticas, que tendem a se esfarelar cada vez mais no embate das corporações diversas em que se divide o Brasil, e a se desfazer em meio ao furacão dos escândalos de corrupção, que ainda não estagnaram. Cunha, Palocci, Funaro, Mantega, entre outros, estão aí para não me deixarem mentir.

Sei que a questão é complexa, e existem dezenas de propostas e pontos de vista a respeito, além de algumas teorias sofisticadas a partir das experiências internacionais. Sei também que não existe sistema eleitoral perfeito. Qualquer modelo tem suas vantagens e desvantagens. Se tivéssemos mantido o sistema dos anos 1950/1960, quando votávamos em presidente e vice, separadamente, teríamos hoje uma situação distinta, porque o vice teria sido também eleito. E, portanto, revestido de legitimidade, como ocorreu com Jango Goulart. É possível até que nem fosse o Temer.

Sei também que não podemos nos calar em face do que se prepara no Congresso. Ideias estapafúrdias e oportunistas como a adoção de uma lista partidária para o eleitor votar, na qual se esconderão os corruptos de todos os quilates ou a impossibilidade de prisão para um candidato oito meses antes das eleições ou ainda um fundo eleitoral, exorbitante, quase 4 bilhões de reais, em que o contribuinte estará dando recursos para partidos com os quais não concorda. Normas que, se aprovadas, conservarão o caráter nocivo da atual representação parlamentar.

Pontos
Portanto, vou abordar alguns poucos pontos que não poderiam ficar de fora nas mudanças necessárias para as próximas eleições, partindo de algumas mazelas mais ou menos bem conhecidas. Muitos outros pontos não serão contemplados, seja porque não é o caso de uma mudança profunda, seja porque ocuparia demasiado espaço abordar todos.

Em primeiro lugar nosso sistema eleitoral é caro. Muito caro. Este é o seu principal problema. E, por ser desta natureza, convida a prática do Caixa 2, ilegal e ilegítima, permitindo a corrupção generalizar-se. Além de solapar o processo de escolha dos representantes e desvirtuar os resultados eleitorais com a intervenção do poder econômico. Assim, cria um espaço habitado de forma proeminente por atores moralmente espúrios, repleto de desvios. O que é estranho. Afinal, salvo uma organização criminosa, nenhuma outra tem, nem perto, cerca de cinquenta por cento de seus membros contraventores, como o Congresso Nacional.

Por que isso ocorre? Porque o alto custo das eleições convidam à contravenção, facilitam e quase obrigam os participantes do campo político a adotarem práticas ilegais. Por isso, é imprescindível mudar as regras para baratear o processo eleitoral e, dessa forma, atrair atores que não estejam apenas interessados em fazer negócios, e se enriquecer, ou que sejam obrigados a servir interesses econômicos estranhos e, por vezes, escusos.

Baratear o processo eleitoral é a primeira tarefa de uma mudança no processo eleitoral. E de onde provém os custos elevados de nossas eleições? Entre suas causas duas se destacam: o alto custo de produção da mídia nas rádios e, sobretudo, na TV; e, o vasto território da disputa eleitoral. A reforma tem, portanto, como primeiro objetivo eliminar os programas eleitorais obrigatórios na TV, com toda sua parafernália conhecida e enganosa. Apenas debates entre os candidatos, regulados pelo Tribunal Superior Eleitoral, seriam permitidos. Mas, sendo permitido o programa de propaganda partidária, gratuita, no rádio, que é de pequeno custo.

Ora, como então os eleitores podem se informar a respeito dos candidatos, quando eles são centenas no caso de deputados? O fim do programa gratuito na TV não os atinge, pois eles apenas têm tempo de dizer: “Meu nome é Eneas”. Aqui vem a segunda parte do barateamento das eleições: a redução do território. Por que um deputado tem que ser eleito por todo o Estado? Por que estes não são divididos em circunscrições eleitorais que variam de 2 a 5 vagas? Por exemplo, se o DF tem 8 deputados federais, posso reduzi-lo a duas ou quatro circunscrições, no caso de São Paulo entre 14 e 35, e assim por diante. Por outro lado, posso obrigar cada partido a apresentar apenas candidatos conforme o número de vagas naquela circunscrição, sendo eleitos os mais votados. O resultado é um número reduzido de candidatos para cada eleitor escolher, e um forte debate interno nos partidos para a escolha de seus candidatos. Com poucos candidatos reduz-se a “poluição eleitoral”, na qual o eleitor tem que escolher entre centenas de candidatos. O que permite um bom conhecimento das opções, ao mesmo tempo que os candidatos poderão se locomover com menores custos, utilizando meios mais baratos para dar a conhecer suas propostas.

Custos
Sem custos em TV e com território reduzido, os custos eleitorais deverão cair para bem menos da metade. E, muito provavelmente, sem prejuízo para a informação do eleitor. Claro que há também desvantagens. Afirma-se que certos tipos de candidaturas ficariam inviáveis. É discutível. Talvez até possível, mas dependerá muito do tamanho da circunscrição. Os ganhos serão, no entanto, maiores, pois haverá o ingresso de pessoas na política com outros interesses e compromissos que não a ilicitude. Afirma-se ainda que um partido poderia estar em segundo lugar em várias circunscrições sem qualquer representante. E, outro, que se apresentou na metade das circunscrições do anterior, ter um ou dois representantes eleitos. É possível. Mas, como se disse anteriormente, não há sistema perfeito. Em qualquer um teremos vantagens e desvantagens. Estou convencido hoje em dia que barateando o processo eleitoral teremos um outro corpo de representantes, mais próximo do eleitor e com menos desvio provocado pela intervenção do poder econômico.

Esse sistema, por sua vez, evita um segundo mal de nosso processo eleitoral: votar em um candidato e eleger outro, graças a coligações. Neste caso, não existiria. Cada partido teria seus candidatos e os eleitos seriam os mais votados em cada circunscrição. O eleitor, assim, terá o seu voto respeitado, e reconhecido. Apenas a nível majoritário seria permitido coligações, mas sem consequências no tempo de TV, como ocorre hoje, porque este não existiria.

O segundo problema é o financiamento. Não é problema fácil e os exemplos do mundo mostram normas distintas. Em alguns países as empresas podem contribuir, em outros não. Em alguns existe fundo partidário, em outros não. Sugiro distinguir dois casos. Nas eleições parlamentares (Câmara de Vereadores, de Deputados Estaduais ou Federais) e de prefeitos o financiamento seria de doações individuais de pessoas físicas, até um valor de 5% de sua renda declarada no ano anterior, podendo o mesmo abater de seu imposto de renda. Ou, um valor máximo por pessoa, definido previamente pelo tribunal eleitoral, sempre passível de ser abatido do imposto de renda.

No caso das eleições majoritárias de presidente, Senado e Governo Estadual, em que não existe a divisão da circunscrição eleitoral (Estado ou país), ademais das doações poderiam os partidos utilizar o fundo partidário, expressamente designado para esta finalidade. Claro que há um prejuízo para o contribuinte, mas seria ingênuo imaginar que seria possível realizar uma eleição presidencial apenas com doações de militantes, amigos e simpatizantes dos partidos e candidatos.

O terceiro problema que quero aqui abordar refere-se ao leque partidário que temos hoje em dia, extremamente aberto, com praticamente 40 partidos legalizados e mais de 40 solicitando inscrição. É um número excessivo, em qualquer ângulo de análise. Por outro lado, sabe-se que alguns destes partidos são simples cabides de emprego ou forma pouco lícita de ganhar dinheiro. Partidos de circunstâncias, sem ideologia, sem história, sem base social como ocorre com a maioria dos pequenos partidos, e mesmo de alguns médios.

Delações
As delações referentes à compra de tempo de TV de partidos políticos por parte do PT – caso do PDT – nas últimas eleições presidenciais confirmam esta assertiva. Não me parece correto proibir a criação de novos partidos, seria engessar a sociedade e atentar contra o direito de organização dos cidadãos, mas pode-se proibir o acesso ao fundo partidário àqueles que obtiverem menos de 3% dos votos do eleitorado, distribuído em pelo menos seis estados da Federação. E restrições outras, a serem implementadas no âmbito dos Parlamentos. Este tipo de cláusula de barreira é imprescindível para se criar o mínimo de condições para a governabilidade. Isso obrigará a partidos pequenos, de boa respeitabilidade, a se juntarem – como o PPS tentou fazer com o PSB – ou a ampliarem sua audiência.

Uma lição importante pode-se tirar das eleições francesas para facilitar a construção da governabilidade, atribuindo condições mais favoráveis a criação de maiorias parlamentares. Trata-se da decalagem entre a eleição residencial e as parlamentares. No caso do Brasil, poder-se-ia fazer as eleições parlamentares ocorrerem 45 dias após as eleições para o Executivo. Essa forma facilita a que os eleitos no Executivo tenham uma maioria no Parlamento respectivo, o que cria melhores condições de governabilidade. Embora a obtenção da maioria não seja automática, e no nosso caso, talvez até impossível. Mas daria maior poder ao Executivo e maiores chances de se estabelecer uma governabilidade mais estável e menos corrupta.

Um quarto problema diz respeito aos limites da legitimidade obtida hoje pelos partidos, absolutamente comprometidos e desprestigiados, sem capacidade de renovação. O que nos obriga a pensar na possibilidade de adotar o sistema de candidaturas avulsas. Afinal, pode ser um instrumento de renovação da política e de aumento da legitimidade dos parlamentos. Enquanto ela não é criada, partidos como a Rede Sustentabilidade tomaram a iniciativa de reservar uma parte de suas vagas a candidaturas desta natureza, na qual os candidatos não têm vínculo partidário, tendo apenas que observar as suas regras éticas de funcionamento. O ideal, no entanto, é que a legislação considerasse esta possibilidade, definindo suas condições, como a apresentação da candidatura por um percentual dos eleitores.

Finalmente, duas outras medidas poderiam ser adotadas. A primeira referente a prestação de contas, que deveria ser on line e de livre acesso a todos os cidadãos para que as eleições sofressem menos deturpações provenientes de forças econômicas ilícitas e, simultaneamente, ganhassem mais transparência e aumentassem o poder de controle da população. Assim como, sua aprovação pelo Poder Judiciário em tempo expedito. E, para concluir, aparentemente o sistema de reeleição mostrou-se pouco afeito a nossa cultura política, assim, seria recomendável extingui-la e propor uma ampliação de cinco anos para os mandatos.

Este pequeno conjunto de normas tem o poder de provocar uma renovação importante em nossa política e, sobretudo, uma melhoria na qualidade da representação política? Não se pode afirmar com certeza, mas os indícios de melhoria são evidentes. De toda forma, a melhoria na nossa representação está relacionada a um problema mais profundo, que as regras simplesmente não resolvem, embora possam auxiliar ou prejudicar, trata-se da cultura política dos eleitores. Com menores custos e maior aproximação entre representantes e representados é possível que a política ganhe um maior prestígio em nossa sociedade e, com isso, possa interessar mais aos cidadãos e se renovar com maior rapidez, e para melhor.

É uma aposta, mas é necessário fazê-la. Afinal, se as regras não definem toda a qualidade da representação política pode ser uma ferramenta favorável, ou desfavorável. O que está se desenhando no Congresso Nacional, tudo indica, não irá favorecer esta renovação. Por isso, é imprescindível uma aliança dos deputados e senadores que têm compromisso com a construção da nação e não apenas consigo mesmo, e por decorrência com suas corporações, para criar normas de arejamento da política. É a batalha do momento.

* Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo político e socioambiental, professor permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas

 


Rubens Barbosa: A crise econômica e as Forças Armadas 

O interesse nacional exige um tratamento diferenciado para o Ministério da Defesa. A decisão do presidente Temer de convocar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem, seriamente ameaçadas pela ação de grupos violentos em Brasília, e, agora, mais recentemente, para garantir a segurança e combater o crime organizado no Rio de Janeiro reabriu a discussão sobre o papel das instituições militares na sociedade brasileira.

A ação dos três serviços – Exército, Marinha e Aeronáutica – está definida em dois documentos de 2016: a Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), em exame pelo Congresso Nacional. O Ministério da Defesa iniciou um processo de revisão desses documentos, com vistas à preparação de uma nova versão, a vigorar entre 2020 e 2023. Adicionalmente, o Livro Branco da Defesa visa a dar transparência a todos os interessados e, em especial, aos países vizinhos sobre o papel do Brasil nas áreas de defesa e segurança nos contextos regional e global.

A Política de Defesa Nacional foi discutida pela primeira vez em 1996. O documento começou a orientar os esforços de toda a sociedade brasileira no sentido de reunir capacidades em nível nacional, a fim de desenvolver as condições para garantir a soberania do País, sua integridade e a consecução dos objetivos nacionais. Atualizada em 2005, a política foi complementada pela Estratégia Nacional de Defesa, passando por nova atualização em 2012, então com a denominação de Política Nacional de Defesa. Enquanto a primeira apresentava o posicionamento do País em relação à sua defesa e estabelecia os Objetivos Nacionais de Defesa (OND), a END orientava todos os segmentos do Estado brasileiro quanto às medidas a serem implementadas para se atingirem os objetivos estabelecidos.

A PND é o documento de mais alto nível do País em questões de Defesa, baseado nos princípios constitucionais e alinhado às aspirações e aos objetivos nacionais fundamentais, e estabelece suas prioridades. Transcorridos 20 anos do primeiro marco de Defesa, a PND passou pelo seu terceiro processo de atualização, cujo objetivo foi promover sua adequação às novas circunstâncias, nacionais e internacionais. A partir da análise das realidades que afetam a defesa do País, a PND busca harmonizar as iniciativas de todas as expressões do poder nacional intervenientes com o tema, visando a melhor aproveitar as potencialidades e as capacidades do País. Trata, subsidiariamente, da interação e da cooperação em outras atividades que, embora não sejam diretamente ligadas à Defesa, são relacionadas com a manutenção do bem-estar e da segurança da população em seu sentido mais amplo. A garantia de lei e da ordem está prevista e ocorre quando solicitada por um dos poderes do Estado.

Desde a primeira versão desse marco normativo, o Brasil vem aperfeiçoando a concepção de sua estrutura de Defesa, processo complexo que se consolida no longo prazo, pois abarca o desenvolvimento das potencialidades de todos os segmentos do País, a modernização dos equipamentos das Forças Armadas e a qualificação do seu capital humano, além da discussão de conceitos, doutrinas, diretrizes e procedimentos de preparo e emprego da expressão militar do poder nacional.

O contexto atual demonstra que as relações internacionais se mantêm instáveis e têm desdobramentos, por vezes, imprevisíveis. Conforme defendido pelo Barão do Rio Branco, “nenhum Estado pode ser pacífico sem ser forte”, de modo que o desenvolvimento do País deveria ser acompanhado pelo adequado preparo de sua defesa.

A Estratégia Nacional de Defesa é o vínculo entre o posicionamento do País nas questões de Defesa e as ações necessárias para efetivamente dotar o Estado da capacidade para preservar seus valores fundamentais. Após a aprovação de sua primeira versão, em 2008, a END foi submetida, em 2012, ao primeiro processo de revisão. Em 2016, alcançou novo estágio de atualização, que consiste de sua adaptação às atuais circunstâncias dos ambientes nacional e internacional. Fundamentada nos posicionamentos estabelecidos na PND e alicerçados nos objetivos de maior relevância no campo da Defesa, a END define as estratégias que deverão nortear a sociedade brasileira nas ações de defesa da Pátria. Trata das bases sobre as quais deve estar estruturada a defesa do País, assim como indica as ações que deverão ser conduzidas, em todas as instâncias dos Três Poderes e na interação entre os diversos escalões condutores dessas ações com os segmentos não governamentais do País. Os setores espacial, cibernético e nuclear são definidos como prioritários pela END. O documento inclui corretamente, pela primeira vez, um capítulo sobre as ações da diplomacia externa como um dos elementos importantes da estratégia.

Por não haver uma “cultura de defesa”, como nos Estados Unidos e na Europa, de tradição bélica há séculos, e por preconceito resultante dos 20 anos de governos militares, é baixa a atenção dispensada pela sociedade brasileira à área da defesa. Apesar da sistemática instabilidade do relacionamento entre os países, como acontece agora no caso da Venezuela, com possíveis graves repercussões sobre o Brasil, da emergência de novas ameaças no cenário internacional e, no momento, do emprego das Forças para a manutenção da lei e da ordem, de 2012 até hoje o orçamento do Ministério da Defesa foi reduzido em 44%. Estão em perigo programas estratégicos e o funcionamento pleno das atividades diárias, com reflexos que atingem diretamente a população, como os relacionados ao controle da fronteira, o monitoramento do uso de explosivos e a segurança pública. O risco de colapso dos serviços é real e o interesse nacional exige um tratamento diferenciado para o Ministério da Defesa.

* Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)

 

 


Miriam Leitão: Energia em choque

O governo anunciou ontem que vai privatizar a Eletrobras, mas, na área de energia, o que deu choque o dia inteiro foi o conflito com Minas Gerais em torno das usinas da Cemig. A pressão política é para que elas sejam devolvidas à estatal mineira, e a empresa quer que o dinheiro saia do BNDES. Essa é apenas uma das várias frentes de batalha entre a economia e a política.

A venda de ações da Eletrobras, que pode render R$ 20 bilhões e vai diluir a participação da União na estatal, vai no caminho oposto ao que se discutiu o dia inteiro em torno da Cemig. O caso foi criado pela MP 579, de Dilma Rousseff, que impôs às geradoras a renovação antecipada das concessões ou o seu fim na data contratual. O estado era governado pelo PSDB e não aceitou a imposição. Agora, na hora de cumprir o que foi determinado, Minas Gerais é governada pelo PT, partido autor da proposta que agora se contesta. Neste momento, contudo, que a Cemig está para perder as usinas, formou-se uma coalizão em favor da estatal mineira que tem integrantes de diversos partidos. Esse grupo tem pressionado para que não seja feito o leilão que está marcado para o dia 27 de setembro e no qual o governo espera arrecadar R$ 11 bi. O governo conta com os recursos desse leilão para atingir a meta de R$ 159 bilhões de déficit este ano.

A bancada mineira propõe que a Cemig pague pela renovação das concessões de quatro hidrelétricas — São Simão, Miranda, Jaguara e Volta Grande — mas a equipe econômica acha que a estatal mineira não tem as garantias suficientes para fazer frente a um valor tão alto. A empresa não consegue apresentar uma proposta estruturada e tem pedido que o BNDES lidere um pool de bancos para emprestar à Cemig.

Existem outras frentes de problemas entre a política e a economia. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) se indispôs com o governo após o veto a várias emendas feitas à Proposta de Lei Orçamentária. O ministro Dyogo Oliveira vai hoje à CMO explicar as razões dos vetos, muitos causados pelo fato de as propostas dos parlamentares terem sido sobre atribuições do executivo. O governo tenta também negociar o salvamento da proposta do Refis, oferecendo o adiamento do prazo de adesão e tentando a reformulação da proposta para evitar o relatório que transformou a renegociação de dívida num perdão dos devedores. Há, além disso, as divisões internas que agravam potenciais conflitos, como no caso da MP 777, que muda a taxa de juros de longo prazo, cobrada pelo BNDES.

O governo está fragilizado politicamente e os parlamentares que votaram para derrotar o pedido de investigação sabem que o presidente depende deles, principalmente diante da potencial ameaça de um novo pedido de investigação. A crise fiscal aumenta a dependência do governo de medidas que passam pelo Congresso. A maioria absoluta das propostas precisa da aprovação dos parlamentares. O governo tem que aprovar a nova meta para 2017, enviar o Orçamento de 2018, depende da aprovação de um projeto do Refis que signifique arrecadação e não doação de recursos a devedores, conta com os recursos do leilão das hidrelétricas mineiras para a meta de 2017. Tudo isso gera atrito entre a equipe econômica do governo e os políticos da base partidária.

Esses conflitos em torno de medidas específicas, e projetos que precisam apenas de maioria simples, servirão de testes para se saber se haverá chance de votação da reforma da Previdência. O risco é votar uma reforma desfigurada. Mas agora o perigo mais imediato é que nessas escaramuças na área fiscal seja difícil atingir-se a meta deste ano. Se o governo Temer ceder à bancada mineira no leilão das usinas, que eram da Cemig, a meta correrá perigo de não ser atingida. Além disso, aumentará a contradição com a decisão anunciada ontem sobre a Eletrobras. Diante de um problema parecido, de perda de ativos da Eletrobras, o governo vai fazer uma oferta primária de ações ao mercado, perdendo o controle da estatal, para que a empresa tenha recursos para pagar ao Tesouro e assim ter de volta as usinas. Não pode fazer o oposto e ajudar a Cemig a manter seus ativos à custa de recursos emprestados por bancos públicos.

 

 


Luiz Carlos Azedo: Um partido pra chamar de meu

O PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão

A dialética do processo político brasileiro, digamos assim, será ditada por duas tendências que se fortalecem na medida em nos aproximarmos da eleição: o enfraquecimento do governo Temer, de um lado, e o surgimento de candidaturas mais ou menos competitivas de outro. Duas já estão postas: a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a de Jair Bolsonaro (PSC). A única alternativa possível para o presidente Temer reverter essa tendência e não ficar isolado e moribundo no fim de seu mandato é apoiar uma candidatura forte o suficiente para reagrupar sua base e gerar uma nova expectativa de poder.

Essa é a operação em curso no Palácio do Planalto, mas passa por uma definição do PSDB em relação ao candidato da legenda, que hoje se digladia em torno de dois nomes: o governador Geraldo Alckmin, que seria o candidato natural, e o prefeito de São Paulo, João Doria, que entrou em campanha aberta, atropelando o seu criador político. Como o PSDB é uma variável sobre a qual Temer não tem controle, o presidente e os aliados começaram a meter a colher na luta interna dos tucanos, o que pode não ser uma boa ideia, mas nada impede que dê certo. Essa é a magia da política.

Em razão do poderio político e econômico do governo de São Paulo, o governador paulista ocupa o vértice de um sistema de poder controlado pelos tucanos, que passa pela estrutura partidária, mas é ancorado nos governadores, senadores, deputados federais e prefeitos da legenda. Por essa razão, como nas eleições de 2006, quando o senador José Serra (PSDB-SP) foi preterido, será muito difícil deslocar a candidatura de Geraldo Alckmin, ainda mais porque as alternativas que lhe restariam seria disputar uma vaga ao Senado ou ficar no cargo até o fim do mandato. Ocorre que a candidatura que empolga os aliados do PSDB no governo Temer é a de Doria.

Essa é a questão por trás da polêmica sobre o recente programa do partido, que ensaiou uma autocrítica em relação à Operação Lava-Jato e certa posição de apoio crítico ao governo Temer, cuja frase síntese é “O PSDB errou”. O eixo político do programa foi a crítica ao “Presidencialismo de cooptação”. O resto é detalhe.

No período imediatamente anterior à elaboração do programa, houve a votação do pedido de afastamento de Temer para a investigação da denúncia contra o presidente da República, que rachou a bancada do PSDB. Logo após, um caloroso encontro do presidente Temer com Doria, em São Paulo, sem a presença de Alckmin. Depois, uma afetuosa conversa de Doria com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e a acalorada visita a Salvador, a convite do prefeito ACM Neto (DEM), na qual o prefeito paulista transformou a ovada que levou de um manifestante numa fortificante gemada política.

Novo bloco
A movimentação do prefeito Doria sinalizou para Temer e seus aliados do DEM a possibilidade de se antecipar à convenção do PSDB e iniciar as articulações para fazer de Doria o grande candidato de centro democrático, num movimento no qual a ala tucana que apoia o governo ameaça deixar o partido, da mesma forma como estão trocando o PSB pelo DEM os políticos dessa legenda que apoiam o governo.

Há duas alternativas: a primeira é a incorporação de Doria e todos os dissidentes pelo DEM; a segunda, o surgimento de um novo partido, que teria Doria como candidato, aproveitando a estrutura de um dos partidos aliados. Há vários, de médios a pequenos, à esquerda e à direita do PSDB, à disposição das manobras de Temer. Para Doria, poderia ser a melhor alternativa para não desconstruir a imagem de representante do novo na política, com o puro e simples ingresso no PMDB. Além disso, pode funcionar como um xeque-mate no alto tucanato.

Tudo isso ocorre em meio a uma reforma política feita sobre medida para mudar deixando tudo como está. Trata-se de mais uma faceta do nosso “transformismo” político, no qual recentemente o PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa parece que pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão.

O fenômeno é característico de processos políticos nos quais os partidos se descolam das bases eleitorais e buscam se reposicionar com objetivo de manter ou voltar ao poder. Com o colapso de certas utopias e a formação de uma classe dirigente que detém o domínio político do Estado, não importam suas mazelas, as lideranças moderadas e conservadoras buscam absorver os quadros mais ativos de grupos aliados e, eventualmente, até antigos adversários.

 


Júlio Aurélio Vianna: 'Olho da reforma é o de manter a oligarquização do sistema partidário' 

Pesquisador da Casa de Rui Barbosa acredita que distritão não melhora relação entre eleitos e eleitor

Por Marlen Couto, de O Globo

RIO - No livro "Viver em rede: as formas emergentes da dádiva" (7 Letras), com lançamento previsto para o início de setembro, o cientista político e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa Júlio Aurélio Vianna Lopes analisa as mudanças provocadas pela emergência das redes sociais no nosso dia a dia e sua relação com a atual crise das democracias em todo o mundo, pano de fundo, no Brasil, das manifestações de junho de 2013 e da reforma política atualmente em tramitação no Congresso. Em entrevista ao GLOBO, Júlio Aurélio afirma que toda mudança no sistema político só é válida se propõe o empoderamento do eleitor e critica a reforma proposta pela Câmara: "É mudar para não mudar".

No livro, o senhor afirma que um candidato doa aos eleitores propostas, que são retribuídas pelos votos, assim como os governantes doam políticas públicas e são retribuídos com apoio dos governados. Hoje, no Brasil, essa conta não fecha e, por isso, há descrença com a política?

O consumo não está só no campo da economia, mas também na política é assim. A democracia moderna se organiza dessa forma: os eleitores são consumidores de políticas públicas e pagam com seus votos. Daí, a competição entre os partidos. Qual é a crise? Na atualidade, os consumidores estão se tornando ativos e não mais passivos, com os direitos do consumidor, clubes de compras, e outras formas de organização, com as redes sociais. Da mesma forma, na democracia, os eleitores sempre foram passivos, objetos das ações políticas partidárias, e hoje todos os sistemas eleitorais estão em crise, sejam distritais, proporcionais, parlamentaristas ou presidencialistas, apresentam descolamento entre eleitos e eleitores, porque há uma emergência de eleitores que querem ser ativos e não mais passivos dentro da democracia.

Com frequência, se diz por exemplo que o eleitor que anula o voto é desinteressado na política. Na verdade, esse eleitor quer participar mais da política?

Não é um desinteresse pela democracia, mas pelo seu atual formato. O eleitor não adere aos partidos porque não lhe dão reciprocidade e, assim, perde sua identificação. Isso ocorre porque os partidos pressupõem um eleitor passivo, a agenda política é definida pelos partidos, não pelo eleitorado, como se o eleitorado não tivesse sua agenda. O eleitorado diz há anos em pesquisas de opinião que saúde é uma prioridade, por exemplo, e isso não se traduz em políticas públicas. Isso está por trás do desânimo, do mal-estar das democracias modernas, o que impõe uma reforma profunda das instituições democráticas. É só contrastar a baixa adesão aos partidos e a crescente intensificação do debate sobre política nas redes sociais. O debate nas redes é muito intenso, independente da qualidade, que acho muito ruim, das bobagens e asneiras ditas. Muita intensidade significa que há potencial e interesse. O que precisamos é que a democracia, a institucionalidade, seja adequada. Em todo mundo, ela não é adequada hoje.

O que podemos fazer?

O dado fundamental vem do movimento de junho de 2013. Constatei que junho de 2013 tem afinidade com outros três movimentos, Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, Plataforma Taksim, na Turquia, e os indignados, na Espanha. Eles tiveram efeitos diversos, mas todos têm críticas implícitas ou explícitas aos representantes, denunciaram em comum a falta de feedback político dos eleitos, a falta de vínculo e confiança, cada um a sua maneira. O modo como a crise da democracia moderna vai ser enfrentada tem que ser proposto. A proposta que trago no livro é o de uma democracia compartilhativa. Esses movimentos mostraram que as redes sociais têm potencial para apresentar agendas governamentais. O que a gente precisa num momento em que estamos nos tornando uma sociedade em rede é adequar a democracia a uma sociedade em rede. A participação esporádica tem que ser tão importante quanto a participação organizada.

Como fazer isso na prática?

A primeira característica é ter um eleitorado interativo, que compartilha suas ideias. A tecnologia já permite isso. No momento de votar, por exemplo, já se poderia por meio da tecnologia definir a pauta legislativa e as prioridades governamentais e do orçamento. São coisas simples que já podem ser feitas. Já temos isso pelo portal do Senado, com o e-cidadania.

Uma reforma política focada no processo eleitoral, como a que está em tramitação, é suficiente ou será preciso olhar também para o período pós-eleição?

Toda reforma política só é produtiva e valerá a pena, se tiver como norte o empoderamento do eleitorado. É isso que o eleitorado quer. Não é necessariamente o que os partidos querem. A reforma acentua o que já acontece no atual sistema. No atual, qual é o problema? 70% do legislativo não é eleito com votos próprios. São os campeões de voto que arrastam mais parlamentares. O distritão é uma proposta que solidifica isso. Já não são os partidos que são valorizados. No sistema atual, a pessoa já importa mais que o partido, no distritão isso se reproduz e se institucionaliza. E não resolve o tema do vínculo entre eleitor e eleitos. Não se empodera o eleitor. No distritão, pode-se ter até uma maioria excluída, porque os que votaram nos candidatos não eleitos não são contemplados e eles podem ser a maioria. Os partidos no Brasil já sofreram a maldição de um cara chamado Robert Michels (sociólogo alemão), que dizia que todos os partidos se tornariam oligarquias. Ele disse isso pouco antes da Primeira Guerra Mundial. E o sujeito foi acertando. Todos os partidos, de direita e de esquerda, foram se fechando em si mesmos. A reforma como está sendo pensada hoje é mudar para não mudar. Não muda a campanha eleitoral e faz-se um fundo bilionário. O sistema eleitoral deveria ser discutido junto do sistema de governo e do partidário. É um tripé. O olho da reforma é o de manter a oligarquização do sistema partidário. Os partidos impermeáveis e de aluguel ficam mantidos.

Por que não há reações e manifestações à discussão sobre a reforma política e ao governo Temer como as que ocorreram em junho de 2013?

As interpretações de junho de 2013 causam a atual polarização da política brasileira. As interpretações foram duas e formam o que o Pablo Ortellado (professor da USP) chama de polarização. Como movimento, junho de 2013 trouxe o tema da corrupção na política. Não podemos esquecer que a Lava-Jato é posterior, começou em 2014. Os protestos de 2013 foram um movimento pela qualidade dos serviços públicos republicano e democrático. A corrupção foi colocada como primeiro obstáculo a ser vencido para se ter saúde de qualidade, educação de qualidade, mobilidade urbana e serviços públicos em geral. A polarização não nasceu na eleição de 2014, mas a partir da interpretação do que foi esse movimento. Nenhuma duas interpretações sintetiza completamente o que foi de fato junho de 2013. Uma coloca que o PT é uma quadrilha responsável pela corrupção no Brasil, embora a manifestação tenha sido contra toda a classe política. A interpretação oposta é de que a corrupção não é o principal problema do país, mas uma distração para não enxergar as desigualdades sociais, os principais problemas. No entanto, essa interpretação não questiona a questão da qualidade dos serviços públicos, tema da manifestação de junho. Essa divisão da sociedade brasileira impede que haja manifestação, é uma trava. O que sustenta o governo Temer é essa divisão, a paralisia. Um lado não admite o outro e não conversa com o outro. Até para fazer e convocar uma manifestação, eles ficam sem chão. O governo Temer não resistiria, se houvesse uma manifestação unificada. Outra coisa é o cansaço. Mesmo nas manifestações contra a Dilma, havia um contingente que dizia assim: “sou contra todos esses políticos”. A maior parte do contingente em todas as manifestações pelo impeachment não era contra a Dilma apenas, mas contra a classe política. Tem gente que não participa dessa polarização, mas está cansada, desanimada. É o mal-estar da democracia moderna. Ele vai continuar e está fermentando.


Alon Feuerwerker: A calmaria de hoje, e a tempestade que vem

O curto prazo está equacionado. Michel Temer tem apoio suficiente no Congresso para não ser derrubado pela via que removeu dois dos antecessores. O médio prazo também: o governo buscará expedientes para levar a economia até 31 de dezembro de 2018. E com as medidas legislativas possíveis, dada a correlação das forças.

Já escrevi aqui, e talvez seja momento de repisar, que os problemas maiores aflorarão em 2019. E isso tornou-se mais provável em função dos fatos recentes. Que levaram o, um dia, ambiciosamente reformista governo Temer a recuar para o modo de sobrevivência. Isso aliviou a crise de curto prazo, e também tem tudo para torná-la crônica.

O Brasil da Nova República sustentava-se em alguns pilares. Entre eles: 1) respeito aos resultados eleitorais, 2) busca de soluções consensuais num Legislativo reconhecido como instância política legítima, 3) absorção da "sociedade civil” pela política convencional e 4) crença num longo período de desenvolvimento capitalista democrático e distributivista.

É fácil notar que esses alicerces colapsaram ou estão em vias de. Os motivos do colapso serão matéria para historiadores, mas é fato que a política e a economia entraram em desarranjo muito grave. Não se vê, nem se antevê, um consenso mínimo sobre como reorganizar ambas para voltarem a funcionar de um jeito aceitável a todos, ou à ampla maioria.

A falta de consenso mínimo reforça dois vetores aparentemente opostos: 1) uma apatia momentânea, estimulada pela ausência de resposta ao "que fazer?", e 2) uma profunda repulsa, represada e silenciosa, contra o status quo. O primeiro permite que a política viva hoje numa zona de calmaria. O segundo é a garantia de que alguma tempestade virá.

A calmaria também deriva de os diversos atores acreditarem na própria viabilidade eleitoral ano que vem. E de as estruturas políticas estarem mais preocupadas com a própria sobrevivência. E há a circunstância de inexistir, fora das franjas, alguém ponderável suficientemente zerado e "novo" para liderar uma rebelião contra o sistema.

Mas a ausência dos elementos subjetivos nunca é garantia absoluta. Então é preciso acompanhar a dinâmica, e com cuidado. Até porque o amadurecimento das condições objetivas pode forçar o surgimento das subjetivas. E de onde menos se espera. Vide Tsipras, Brexit, Trump e Macron. Chamar o cidadão e/ou o eleitor a manifestar-se é um risco.

O principal exercício prospectivo hoje é tentar entender como se dará a rebelião que virá. Ela pode ser, inclusive, uma revolta em busca de um Napoleão (o tio, não o sobrinho), alguém que ponha fim à desordem e à instabilidade. Nesse caso, a peculiaridade seria o Brasil ter recorrido ao velho para supostamente produzir o alardeado “novo".

Mas esse Napoleão chegará a Brasília com alta energia, só que com baixa capacidade de transformá-la em força de transformação, pois o paquidérmico Estado brasileiro está organizado para impedir qualquer mudança. É como uma Rússia czarista em que o czar não mandasse mais nada e reinasse só preocupado com o próprio pescoço.

Simples e errada

A impotência do Bonaparte será a senha para a crise de 2019. E, como para todo problema complexo aparece sempre uma solução simples e errada, propõe-se cortar o nó impondo um parlamentarismo já rejeitado duas vezes nas urnas. Em ambas, a maioria dos eleitores intuíram ser manobra para extirpar da política um dos últimos vetores de soberania popular. Bingo.

Quem paga a conta?

Depois de uma recessão só vista em tempos de guerra, a economia exibe alguma recuperação inercial e marginal. Que será insuficiente para fechar as duas maiores feridas da crise brasileira: o desemprego e o crescimento exponencial da dívida pública. Enquanto se debatem irrelevâncias, como o distritão, ninguém arrisca dizer como resolverá essas duas coisas.

Porque alguém terá de pagar a conta. Ainda que todos finjam que não.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


PD #48: Interrogações sobre o fator Janot e o desfecho do governo Temer

Por Paulo Fábio Dantas Neto

O balanço dos 44 anos durante os quais a política tem sido o centro das minhas atenções, antes de militante e político, depois de estudioso e professor, permite-me o recurso luxuoso à nostalgia. Por outro lado, recusa-me o direito à ingenuidade. Por essa razão não compartilho celebrações (nem as de boa-fé) que se fazem diante dos fatos e factoides que vieram a público no a meu ver factualmente obscuro e politicamente obscurantista dia 17 de maio de 2017, data de uma operação de ataque cujo alvo foi o presidente Michel Temer e os protagonistas (os visíveis a olho nu), o comando do MPF, a PF e um empresário que vinha sendo investigado pelos dois primeiros.

Pessoas e grupos crentes no advento de uma nova era, isenta de corrupção política, que já se deixavam somar (por apoliticismo mais do que por afinidade), num mesmo polo político, a outras pessoas e grupos nostálgicos da ditadura, em protestos de rua e nas redes sociais desde 2014/2015, hoje já concordam, pontualmente, na rejeição ao governo Temer, com o polo político ao qual se opunham, quer dizer, aquelas pessoas e grupos esperançosos de um retorno ao status quo político superado pelo impeachment de Dilma Roussef. Formou-se, por acidente – ou não tanto assim –, curiosa coalizão de veto ao esforço pacificador do governo de transição. Na hora em que este governo parece balançar e, a princípio, migra, de súbito, de um momento de consolidação para uma crise que pode até ser terminal, afinidades eletivas entre os dois polos da escalada de radicalização política que persiste há três anos no país fazem ecoar o “Fora Temer” como se fosse um clamor nacional.

Clamam estridentemente os que na esquerda gostariam de revogar a Lava-Jato, mesmo sabendo que a queda do governo, se ocorrer, será obra, não da oposição de esquerda ou de movimentos sociais, mas da força daquela operação. Alimentam o mesmo bordão, embora com menos alarido e convicção, antipetistas e antilulistas seguidores exaltados da Lava-Jato, mesmo vendo que a queda do governo abre brecha para os “inimigos” voltarem ao jogo do poder que lhes parecia inalcançável após as últimas eleições municipais e delações das primeiras semanas de maio último meio agosto.

Na contramão desse coro excêntrico, persuade-me a ideia de que o virtual fim do governo parlamentar, se realizado, expressará uma derrota da política. Como tal representará, para além da queda de um governo impopular, um obstáculo à reconstrução do centro político democrático, obra complexa que seguia curso sinuoso desde o ano passado, após sua destruição durante a guerra pelo controle do Estado, travada a partir da eleição presidencial de 2014.

Tornou-se lugar comum dizer que a sociedade brasileira está dividida de modo radical entre duas posições políticas, como numa disputa entre torcidas fanáticas. Para alguns mais ligados em jargões teórico-políticos, é direita x esquerda, elite x povo ou neoliberalismo x política social. Em redes sociais há traduções ainda mais simplórias dessa narrativa, como confronto indigesto entre “coxinhas” e “mortadelas”, ou duelo pessoal entre Moro e Lula. Estes modos de exprimir a mesma coisa refletem um “modo de pensar” de claques mais ou menos organizadas e de pessoas fidelizadas por algum tipo de dogma, carisma, ou tabu. Identifi- car isso com a percepção do povo, ou mesmo do eleitorado é, no mínimo, um exagero e, no fundo, uma mistificação. Quem usa de boa vontade para olhar e escutar além do seu redor, de prudência para avaliar o que vê e ouve e de autonomia para pensar com a própria cabeça repara que enquanto as brigas de torcida se acir- ram, mais pessoas “comuns” delas tomam distância e anseiam por uma solução conciliadora da crise política. Este tipo de saída permite tratar de problemas públicos sem comprometer, como se tem feito, relações profissionais, de vizinhança e amizade e até o convívio em ambientes familiares. A recusa ao espírito de claque não é uma atitude política “alienada”. Compartilham-na pessoas que possuem variados níveis de instrução formal, informação e compromisso político. Penso que é o terreno social sobre o qual se pode reconstruir um centro democrático no Brasil.

Pensamento Político
Ocorre que há uma representação do modo maniqueísta de pensar o momento político que, ao contrário das que listei acima, parece ter mais conexão com a percepção das pessoas comuns: a luta do “Santo Guerreiro” (a Lava-Jato) contra o “Dragão da Maldade”, o sistema político. Ela sugere que estaríamos no limiar de uma vitória do bem, com a submissão da imperfeita democracia mundana e dos seus malditos corpos representativos a desígnios e ritos sumários de uma suposta “vontade geral”. Esta, por sua vez, seria guiada, além de pela fé, pela economia política ligeira de formadores de opinião para os quais violência urbana, caos na saúde e educação, inflação, recessão e desemprego seriam meros efeitos colaterais da corrupção. Daí que, como pontificam os arautos da faxina, uma assepsia radical no sistema político teria efeitos demiúrgicos. A antevisão de um quase paraíso moral e social, alcançado pela vitória do combate sem tréguas à corrupção, “doa a quem doer”, legitima meios excepcionais de investigação e punição, assim como justifica sacrifícios para pagamento à vista de todos os preços sociais, inclusive o de estancar uma incipiente recuperação econômica ao implodir o “malévolo” sistema político que, bem ou mal, pode viabilizá-la, numa democracia.

O eco (momentâneo, espero) desta perversa fantasia no imaginário de ampla parte da sociedade esconde, sob aparências de novidade, a reiteração extremada de um velho modo de pensar que está na base de aventuras jacobinas, autoritárias, ou fundamentalistas que, na história política brasileira, afirmaram querer revogar o pragmatismo conciliador de nossas elites políticas. Quando, por vezes, conquistaram o poder do Estado ou de governo agiram para exercer tutela e/ou para angariar clientela onde reinava a conciliação.

O pragmatismo conservador e liberal (não fundamentalismos doutrinários, como o neoliberal) deu-nos à luz como Estado e nação, conciliando o Estado e a representação política – que civilizaram a sociedade – com o ethos comunitário a um só tempo rude e cordial desta última, vindo da experiência de nossa formação social. Tal elitismo civil, que se conservava moderadamente atento aos temas de reforma social sem contrapô-los às instituições liberais, quando exposto ao contexto virtuoso que ligou a luta democrática dos anos 70 e 80 à Carta de 1988 achou, na nova feição do Ministério Público, um de seus modos de conversão à condição de uma força democrática. Decerto não foi o MPF a única instituição desenhada na Carta para controlar as variadas modalidades empíricas de exercício arbitrário ou criminoso do poder político. Mas nenhuma melhor do que ela exibe a inédita possibilidade de fazê-lo em proveito, não de outros particularismos, de corporações ou grupos políticos que se achem em eventual colisão com os governos, mas em proveito dos cidadãos de uma República definida como um Estado Democrático de Direito, definição que já registra a ultrapassagem das concepções elitistas da política e do direito e projeta esta ultrapassagem como processo aberto ao que vier no futuro.

Esta nobre instituição ameaça desviar-se de seu mister republicano e democrático – que vem honrando com zelo e eficácia, durante as últimas décadas – pelo modo corporativista e obscuro de sua ação ao conduzir a delação prodigamente premiada de proprietários de uma corporação empresarial que se fez gigante em tempo recorde, graças, além de agressividade nas relações de mercado, também ao auxílio de irresponsabilidade e corrupção estatais.

O inusitado modo de agir do MPF nesse episódio surpreende e suscita perguntas que não querem calar. Por que o uso, nesse caso específico que envolvia o presidente da República, de um rito mais sumário para viabilizar a delação, quando o senso de responsabilidade institucional recomendava justamente que se usasse o mais cauteloso? Por que uma operação que se autodenomina “controlada” foi tão meticulosa e certeira para viabilizar flagrantes e tão descuidada na checagem posterior da gravação suposta- mente mais comprometedora, conforme a própria PGR admitiu depois de já feito o estrago político e institucional? Como aceitar a explicação de que a incúria se deveu ao intento de preservar o sigilo da operação se, na prática, o sigilo já não havia mais quando o ministro Fachin recebeu o pacote? Nova incúria seguiu-se à primeira e deu lugar ao vazamento? Vazamento, aliás, desta vez duplamente seletivo, do conteúdo e do receptor privilegiado, um jornalista de O Globo que deu o furo não se sabe se por dever do emprego, se por escolha de quem vazou ou se por ter sido gentil ou formalmente aconselhado por quem sabe o caminho das pedras a seguir a máxima futebolística de Gentil Cardoso: “Quem pede, recebe; quem se desloca, tem preferência”.

Nuvens
Estas nuvens já carregam bastante o ambiente, mas ainda têm a companhia de outra, que suscita pergunta adicional, agora sobre o fato de ter a dupla de empresários safos lucrado ao especular no mercado cambial e na bolsa a partir de informações privilegiadas derivadas da condição de delatores que colaboravam com os investigadores em tempo real. Quer dizer, a metodologia adotada implicava em prévio conhecimento dos delatores sobre o momento de deflagração da operação da qual eram participantes e não só informantes. Este privilégio adicional, somado à prodigalidade dos prêmios formais da delação, torna excepcional o caso dos sortudos irmãos Batista e deixa no ar a pergunta arrematadora: vale a ideia de punir corruptos, doa a quem doer, mesmo que para isso se deixe porta aberta também à de que, em certos casos – especialmente naqueles em que todas as partes são mais relevantes – o crime compensa?

Pouco altera, para o que vai ser adiante analisado, o ultimatum do MPF à JBS fixando condições pecuniárias duras para que se celebre um acordo de leniência. Mesmo veraz, ela não remediará o estrago político causado pelo tratamento voluntarista e heterodoxo, para dizer o mínimo, que o comando da instituição deu à delação premiada dos seus proprietários. Assim como não anula o tratamento privilegiado e comparativamente injusto, em termos econômicos e de abstenção penal, concedido a tais delato- res. Bois gordos foram postos à frente do carro da política, de modo a levá-lo a parar e ter sua rota a seguir desviada, rumo a um pasto ignorado. À parte as controvérsias habituais sobre intenções e motivações, bem como sobre a validade ética e a eficácia prática de tais ou quais técnicas de investigação policial, o timming e a metodologia da operação levaram a ação da Procuradoria-Geral da República a assumir, objetivamente, o risco de provocar uma virtual queda de um governo de transição constitucional que naquele momento atuava, a duras penas, nos limites permitidos por circunstâncias herdadas e novas e nos da precária qualidade dos valores morais da elite política que acessou o poder dentro, também, dos marcos constitucionais. Tal governo, de manifesto caráter parlamentar, impôs-se as missões de restabelecer a governabilidade política em interlocução com o Congresso e de reverter a recessão econômica e o desemprego que se radicalizaram quando essa overnabilidade faltou, a partir de 2015. O cumpri- mento até então exitoso da primeira missão e os ainda tímidos e ambíguos sinais de encaminhamento da segunda foram suspensos, quem sabe revertidos, pelo uso inédito de um bisturi mais cortante, cujo manejo deve estar, constitucionalmente, condicionado ao escrutínio do Poder Judiciário.

Em vez de acolher a hipótese de inflexão também na conduta até aqui sóbria do ministro Fachin, prefiro pensar que o STF foi, mais uma vez, colocado diante do fato incontornável de que não poderia deliberar livremente sobre a homologação da delação relâmpago, dado o mais que provável e, afinal, consumado vaza- mento do conteúdo das informações para veiculação por medias ávidos por acessá-las para antecipadamente julgar, mais do que para informar. Mas ainda não se sabe ao certo se e como o STF deu consentimento prévio ao até então inédito script procedimental adotado pelo MPF para a obtenção de provas nesse caso. Mais intrigante ainda é que, no cumprimento da agenda do ministro-relator, o levantamento do sigilo de um processo que continha fatos que já haviam virado notícia levou mais tempo do que a grave decisão de autorizar a investigação formal da pessoa do presidente da República. É intuitiva a conclusão de que a parte da opinião pública que pede assepsia para já, além de pautar, via mídia, os movimentos do Ministério Público, também exerce influência sobre decisões toma- das no âmbito do STF, mesmo quando estão em jogo delicadas relações institucionais. O STF não transpareceu na cena com o protagonismo supremo que dele se espera em situações nas quais uma deliberação sua repercute fortemente na grande política.

O lastro social para tão espaçosa e perigosa incursão do MPF e da Polícia Federal no âmago da grande política provém da recente legitimação social da vocação de órgãos policiais para ocupar o lugar de justiceiros e da também recente adesão do comando do MPF à imagem do santo guerreiro, que já era aberta- mente assumida pelos mais conspícuos membros da corporação no âmbito da Lava-Jato. À diferença do juiz Sergio Moro, cuja moderação judicial aprimora-se à medida em que a operação entra num momento que exige também maiores sensibilidade e responsabilidade políticas, os procuradores de Curitiba seguem pregando, obstinadamente, com retórica plebiscitária, o reconhecimento da Lava-Jato como guardiã plenipotenciária da ética republicana e, como tal, ocupante do lugar de mais relevante e virtuosa instituição nacional. A este figurino e a este programa adapta-se, paulatinamente, a conduta prática do procurador-geral da República, por decisão própria ou por livre e espontânea pres- são exercida por setores de um quadro corporativo que ele parece não liderar a contento.

Bateu, levou
O chefe do MPF agiu à base do bateu/levou, método que já vinha testando, sem que outras autoridades da República se expusessem ao risco de serem censuradas pelo senso comum por apontarem em público e interpelarem, republicanamente, a ousada esgrima praticada em final de mandato pelo mais alto prócer de uma instituição relevante. Houve, é claro, a conspícua exceção do ministro Gilmar Mendes. Porém, suspeito de parcialidade pelos imparciais e odiado por ambas as turmas que se digladiam em redes sociais, não pôde se fazer ouvir o bastante na República emparedada pelo maniqueísmo. Parece estar perdendo a parada, no STF e fora dele.

O dr. Janot moveu-se como um Deodoro sem farda. Que ordem política se espera ver brotar dos escombros da atual, se a queda do governo Temer for mesmo o desfecho deste grave momento crítico? Se assim for, o presumido drible no Poder Judiciário (ou a insólita cooptação de quadros seus), bem como o desmonte de um Executivo que agia construtivamente em consórcio com o Legislativo imobilizariam, na prática, os poderes moderadores reais de que se dispõe para levar o país a um porto mais seguro até as eleições de 2018. Nada é certo, pois é missão da política desmanchar pratos feitos e achar soluções quando parece sofrer xeque-mate. Mas, no mínimo, fomos mergulhados, de novo, na incerteza e, se a pinguela cair, a disputa do poder tornado mais provisório queimará nas mãos de um Legislativo solteiro e alvo de contestação pública. Entendimentos de bastidores que, logicamente, seriam necessários para cumprir a tarefa levariam a uma solução melhor, em termos de confiabilidade social e eficácia política, do que a do arranjo montado para o governo Temer? Suspeito que não.

Ou será que a solução passaria por apagar as luzes dos basti- dores congressuais e transferir a disputa para urnas também carentes de luzes e premidas pelas urgências da crise? Ela tem chance de se resolver numa eleição direta travada sob desordem econômica refundada e sabe-se lá que casuísmos políticos de urgência? Será como montar arenas para claques movidas a ódio e para raposas e/ou outsiders movidos a demagogia, quando o encontro da solução requer uma racionalidade política e econômica que só medra quando conflitos são mediados, condição que há três anos não temos plenamente, mas da qual voltamos agora a nos distanciar mais.

Fora dessas hipóteses, há a do aumento do protagonismo judiciário, não à toa a preferida das organizações Globo, mas também até mais benigna, do ponto de vista de evitar, a curtíssimo prazo, um esgarçamento ainda maior das instituições democráticas para o qual a campanha de desestabilização da mesma Globo já contribui bastante. Mas o que esta solução supostamente moderada nos apontaria, como ponte para 2018? No mínimo a perda mais acentuada, pelo Judiciário, do seu já arranhado papel como instância arbitral, em face do envolvimento direto de alguém seu na gestão do governo em período de crise e pré-eleitoral. O prejuízo institucional só não seria maior que o desastroso uso simbólico da Justiça por um quadro dela migrado para o âmago de uma política demagógica que não ousa dizer seu nome.

Opção menos insólita e menos radical – embora se constitua também em precedente perigoso – seria o protagonismo judiciário ater-se a assegurar uma curtíssima interinidade para convocar o processo de busca de solução para o mandato tampão, em caso do Congresso a ela renunciar por se ver impedido de exercer esta sua prerrogativa constitucional pela força dos argumentos e dos veículos de pressão da suposta “vontade geral”. Mas se essa vontade geral/global tivesse o poder de vetar os políticos até como articuladores da solução, por que motivo aceitaria que fossem, eles próprios, a solução?

Mesmo que totalitários sejam muito poucos entre os adeptos da faxina, não é provável que estes últimos, sendo vencedores na operação contra Temer, permitam, depois dele, uma solução que revigore a Weimar tropical que denunciam e desestabilizam. É mais provável que o processo político, se se render ao monitoramento pela lógica investigativa e midiática, permita o assassinato serial de toda e qualquer alternativa política que surgir, desde que, entre mortos e feridos, garanta-se a continuidade da política econômica e promova- se, talvez, uma reformatação da reforma previdenciária, para não pô-la em colisão com interesses de algumas (poucas, é claro) corpo- rações do Estado. Em compensação, no quadro de um novo governo tampão com tais características, as corporações menos afortunadas do setor público terão saudade do deputado Artur Maia e até do quase unanimemente rechaçado PMDB.

Hipóteses
Como visto, há várias hipóteses para o desfecho A (queda de Temer). Mas qual cenário emergirá se porventura se der o desfecho B, a manutenção do presidente? Nem precisaremos da ajuda da TV Globo para admitir que se temos vivido tempos bicudos, os que viriam o seriam ainda mais. A começar pela hipótese de mais gente comum migrar da rejeição massiva e passiva ao governo, registrada em pesquisas de opinião, para uma participação em eventos organizados pela oposição política e por seus braços sindicais e nos movimentos sociais. O adensamento desse tipo de manifestação poderia ser suportado sem abalos graves, mas não a sua conversão em manifestações de massa, como as enfrenta- das pelo governo Dilma. Para evitar essa conversão, um Temer firme, enfático e agressivo, mas sem perder a elegância, como o que se mostra em declarações nesses dias de acuamento, teria que voltar às telas mais vezes para conversas mais diretas com a massa do eleitorado. Teria pendor e meios para isso se permanecesse sem um acordo ainda que provisório, com os canais de expressão da vontade geral/global?

Outro jeito não haveria senão tentar, pois a olímpica versão de que não se importa com impopularidade, se já não cabia bem em qualquer situação vivida por um presidente de um país democrático, em caso de um governo Temer II teria que ser abandonada completamente. O governo provavelmente não seria mais tão forte no Congresso, pois algumas das defecções, como a do PSB, não parecem reversíveis, a curto prazo. Tenderiam a aumentar os problemas internos em cada bancada partidária, o que forçaria o governo a fazer uso mais pródigo da caneta administrativa para abrir mais espaços a velhos e novos aliados e da tesoura política para abrandar ainda mais a reforma de Previdência. Surgiria aí uma nuvem: até que ponto o ministro Meireles sustentaria o apoio de agentes econômicos a um recuo relevante nessa área? Mais um fator que aconselharia a tentar um armistício com a suposta vontade geral. Por outro lado, um maior abrandamento da reforma previdenciária poderia desarmar parte do petardo armado contra o governo no último dia 17 de maio. Mesmo se a PF seguisse inflexível, talvez o bateu/levou perdesse adeptos no interior do MP. Ainda mais se incluída na pauta de negociações a troca do seu comando.

Concluída a digressão sobre cenários tateados na penumbra atual, voltemos ao MP e ao fator Janot. A mesma penumbra não permite que já se saiba agora se a instituição sairá desgastada ou fortalecida, após a arriscada operação em que a meteram. Se aparentemente faltam ao procurador-geral da República (como de resto aos seus até aqui explícitos parceiros de operação) pretensões jacobinas, o que então o animou a tanto? Talvez não caiba, por inútil, essa especulação, típica de redes sociais e que nos levaria aos limites do insondável, ou do insólito, como a de supor que ele tivesse a veleidade de oferecer, no curso ainda do seu mandato, ocasião para um bombástico grand finale da Lava-Jato: a entrega da cabeça de Temer e seu governo para o regozijo de madalenas que desejem ver inerte a geni apedrejada e com isso se contentem. E também para o sossego de agentes econômicos que receiam o tipo de impacto que vinha sendo previsto a respeito da delação do ex-ministro Palocci. Mas ainda que quisesse, a cúpula da PGR poderia dar essa pirueta só em acerto com os veículos da vontade geral/global e sem combinar isso em sua casa e também com Moro, Fachin e o STF? Não se negue a esses interlocutores institucionais um derradeiro voto de confiança.

Uma vacina contra teorias conspiratórias agiria no sentido de considerar que, tanto ou mais que a vontade dos atores, mesmo dos mais poderosos e influentes, estão envolvidas nessa operação, por mais heterodoxa que ela tenha sido, razões de legítima natu- reza institucional. Mas o exercício especulativo sobre o que moveu a ousadia e a agressividade do procurador-geral (ou a de quem ele chancelou) pode se deter também em hipóteses mais prosaicas, ligadas à luta interna da própria corporação.

Diz quem conhece o MPF (não é meu caso) que a comunidade de procuradores não se perfila, sem nuances e mesmo objeções, à cartilha dos missionários do MP em Curitiba. As razões estariam em diferentes conceitos e concepções normativas sobre a práxis da instituição e também em contendas por posições de poder, sensíveis, por exemplo, à prisão de um procurador na esteira da operação que ora comentamos. Esta cena colateral ao escândalo, nas palavras do dr. Janot, colocou gosto amargo na vitória que para ele a instituição ali obteve. O doce e o amargo propiciados pela ocupação do mais alto posto de comando da instituição decerto não são irrelevantes e podem fazer pensar que a instalação de um novo governo possibilitaria, ao atual chefe do MPF, influir no rumo de sua sucessão em grau maior do que aquele possível no atual governo. Esta miragem pode tanto se remeter a um governo sem Temer como a eventual governo Temer II, saldo do enfrentamento seguido por negociação com quem for preciso.

Conduta
Se inútil ou afoito for especular em qualquer dessas direções, é relevante registrar a relação da conduta da PGR com sua condição de ser, entre as instituições mais relevantes da República (incluindo seus Poderes), a única que não teve mudança de comando do fim da era petista para cá. Observando alterações de conduta derivadas da sucessão de Dilma Rousseff por Michel Temer; de Ricardo Lewandowski por Carmem Lúcia; de Renan Calheiros por Eunício de Oliveira e de Eduardo Cunha por Rodrigo Maia, o impulso corporativo ou personalista cedeu claramente lugar ao da concertação. Por isso tivemos (vínhamos tendo), o fim da paralisia dos poderes governativos e a consequente moderação da escalada de protagonismo político do Judiciário, sem prejuízo do seu pleno funcionamento e das demais instituições de controle nas esferas que privativamente lhe competem. Entre vantagens democráticas dessa convergência republicana há a maior proteção comum dos Poderes do Estado face à exposição de cada um, isoladamente, a pressões de corporações privadas e às relações perigosas sempre possíveis nesse circuito.

Há (ou havia) razões para supor, pelo andar da carruagem, que a sucessão na PGR, em setembro, dar-se-ia (mesóclise acidental) em sintonia com essa lógica política que retoma tradições cultivadas nos melhores dias dos nossos poderes civis, geralmente esquecidas em tempos de normalidade e retomadas quando nas crises se aguça o seu instinto de sobrevivência. Como ficará este jogo agora, se Temer cair? O Ministério Público emprestará sua colaboração de instituição republicana a uma concertação que preserve o Estado Democrático de Direito e fortaleça a Constituição para que a justiça republicana possa trabalhar em terreno político simpático a um permanente e sustentável combate à corrupção? Ou manterá performance sollo, surfando na fantasia faxineira? Caso consiga, com ajuda de veículos eficazes de formação de opinião, persuadir imediatamente a sociedade, essa promessa vã faria do Estado Democrático de Direito e da Carta de 1988 vítimas, a médio e longo prazos, de capturas corporativas por interesses privados ocultos em embalagens demiúrgicas difundidas por uma instituição de vocação democrática instrumentalizada em troca de tolerância ao seu corporativismo.

Se a pinguela realmente cair, torçamos para que quem torceu ou contribuiu para a sua queda – seja por vingança política ou por achar que valia a pena para denunciar a corrupção – saiba chegar a um bom porto nadando em águas turbulentas, pois estão de volta as que quase nos afogam no ano passado. E torçamos, principalmente, para que às águas turbulentas não sucedam águas turvas, como as de um passado autoritário e também corrupto que nós e nossos filhos não merecemos que volte para nos afogar de verdade e não só nas narrativas dos que chamam de golpe, ou de crime continuado, o ensaio de transição desse último ano. Ele deu lugar a que espíritos politicamente informa- dos e animados, mas não contaminados pela lógica binária que nos afundou na crise, vislumbrassem, nas idas e vindas do ensaio, o possível retorno da política por vocação, a que cultua valores mas, realista, também se dirige ao público como nas palavras de Max Weber: “eis-me aqui, não posso fazer de outro modo.”

* Artigo publicado originalmente na Revista Política Democrática #48