crítica cinematografica

Godard making the last shot of 2 or 3 Things | Foto: Flickkr/Ian W. Hill

Revista online | Um tsunami chamado Godard

Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

A Nouvelle Vague, um dos movimentos cinematográficos mais importantes da França (e do mundo), gerou de fato, como seu título sugere, uma onda volumosa no universo cinematográfico, quiçá um tsunami que revirou tudo de pernas para o ar e revolucionou para sempre o curso da sétima arte. Suas águas revoltas abalaram os padrões até então estabelecidos, impulsionados pelo então  ousado neorrealismo italiano e, ainda, pela maneira descontraída e original de segurar a câmera de um certo Jean Rouch, cineasta etnográfico que se misturava ao objeto filmado e fazia movimentos desajeitados e “fora da ordem” para conseguir apreender o real.

Por trás da nova onda que surgia naquele final dos anos 1950, estava também um jovem franco-suíço de classe alta, Jean-Luc Godard, que, apesar da origem burguesa (Godard era filho de pai médico e mãe de família de banqueiros), foi pouco a pouco se rebelando contra o sistema vigente, tão injusto com alguns e tão generoso com outros. Muito cedo ele percebeu que a caneta e a câmera poderiam ser usadas como instrumentos para reparar tais injustiças e ingressou como crítico da famosa Cahiers du Cinéma, revista que reunia um bando de jovens cinéfilos idealistas que sonhavam com um novo cinema para a França, um cinema de autor, menos preso aos padrões do classicismo em voga.

Aproveitando-se, então, das novas tecnologias da época – como a câmera leve e o gravador portátil Nagra –, Godard ousou dispensar o tripé, colocar a câmera na mão, filmar nas ruas e ainda romper com a quarta parede, colocando Jean-Paul Belmondo falando diretamente para a câmera (e para os espectadores) já em seu primeiro longa-metragem, Acossado (1960). Na ocasião, decidiu também não respeitar a continuidade dos planos (os raccords), causando certo estranhamento na plateia que assistia àquelas cenas com encanto e estarrecimento. Um verdadeiro ícone da Nouvelle Vague.

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A partir dali, Godard não mais parou de inovar, radicalizando e politizando cada vez mais a estética e a temática de seus filmes. De O Desprezo (1963), passando por Banda à parte (1964), por A Chinesa (1967) e por tantos outros longas, sua obra acabou por conduzi-lo ainda nos anos 60 a formar o grupo Dziga Vertov junto com Jean-Pierre Gorin, politizando completamente sua arte. Inspirados pela ideologia marxista, seus filmes se tornaram menos comerciais, mais experimentais, e fugiam da ideia da autoria (pessoal). Godard começou a se desentender até mesmo com os amigos da Nouvelle Vague, como François Truffaut, um dos membros fundadores do movimento. Em sua visão, o colega compatriota estava “se aburguesando” demais, enquanto ele buscava justamente escapar da cilada armada pelas elites francesas.

Sua fama e sua influência, porém, já atravessavam fronteiras e inspiravam cineastas em diversas partes do mundo, incluindo os jovens cinemanovistas que, naquele agitado início dos anos 60, se reuniam no Rio de Janeiro em torno do baiano Glauber Rocha e viam em Godard um modelo e uma fonte de inspiração para realizar um cinema genuinamente brasileiro, de baixo custo, independente e livre das amarras das indústrias cinematográficas nacional e internacional.

E Godard não parou por aí… Nos anos 1980, com o capítulo Dziga Vertov já encerrado, causou mais uma vez polêmica com o ousado Eu Vos Saúdo Maria (1985), que trazia a história bíblica de Maria e José para um mundo contemporâneo, colocando em pauta (e em dúvida) a gravidez da moça virgem, mãe de um messias salvador. O filme foi rejeitado pelo papa João Paulo II naquele então e, claro, proibido no Brasil da ditadura militar.

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
Godard Le Mepris 2 | Foto: Flickr/Ian W. Hill
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Godard  Made in U.S.A. 4 | Foto:Flickr/Ian W. Hill
Nouvelle vague (the residues of alphaville) listen miles davis  mood | Foto: Flickr/Emiliano Grusovin
Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
Godard Le Mepris 2 | Foto: Flickr/Ian W. Hill
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Godard Made in U.S.A. 4 | Foto:Flickr/Ian W. Hill
Nouvelle vague (the residues of alphaville) listen miles davis mood | Foto: Flickr/Emiliano Grusovin
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Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
Godard Le Mepris 2 | Foto: Flickr/Ian W. Hill
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Godard  Made in U.S.A. 4 | Foto:Flickr/Ian W. Hill
Nouvelle vague (the residues of alphaville) listen miles davis  mood | Foto: Flickr/Emiliano Grusovin
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O século 21 chegou, e Godard continuava ativo e operante. Ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, com seu experimental Adeus à Linguagem (2014), dividindo o prêmio com Mommy (2014), do canadense Xavier Dolan, 59 anos mais novo que ele. Em 2018, o incansável cineasta emplacou mais um filme em competição em Cannes, Imagem e Palavra (2018), nomeado em diversas categorias, mas acabou levando “apenas” a Palma de Ouro honorária do Festival por sua contribuição à sétima arte.

O céu parecia ser mesmo seu único limite… E, recentemente, mais uma vez, o franco-suíço causou espanto ao anunciar o iminente suicídio assistido, permitido por lei na Suíça, seu país de morada e de segunda nacionalidade. Para o espanto e a tristeza de milhões de cinéfilos, o longa experimental que foi sua vida chegou ao fim no dia 13 de setembro último. No entanto, enquanto os créditos continuam a subir na tela, sua influência e inspiração seguirão para sempre nas retinas, mentes e lentes dos milhares de discípulos e fãs mundo afora.

Que os céus recebam Godard de portões abertos e se deixem inundar por sua criatividade, rebeldia e talento!

Sobre a autora

*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Documentário da Globoplay Ecos de junho | Imagem: reprodução/Real Time 1

Revista online | 2013: ecos que reverberam até hoje

Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)

Desde o início de agosto, encontra-se disponível na Globoplay o documentário Ecos de Junho. Dirigido pelo jornalista Paulo Markun e pela socióloga Angela Alonso, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), o filme busca mostrar como as gigantescas manifestações de 2013 reverberam, ainda hoje, na vida institucional e política dos brasileiros, quase dez anos depois de terem tomado de assalto as ruas das principais cidades do país.  

Na época, as manifestações surgiram em torno do Movimento Passe Livre, que propunha tarifa zero para os ônibus, no momento em que a Prefeitura de São Paulo anunciou o reajuste de R$ 0,20 no preço das passagens. 

A passeata inicial foi convocada por fora dos partidos tradicionais da esquerda. À essa convocação se juntaram, de forma difusa, vários outros movimentos, até então sem qualquer representação, que se organizavam por meio das redes sociais. O resultado foi uma manifestação com um perfil diferente do que até então se conhecia: não havia “comando” do ato, as palavras de ordem eram criadas na hora, e as faixas tradicionais foram substituídas por cartazes feitos à mão e trazidos de casa. Surgia, ali, a primeira manifestação de massa convocada pelas redes sociais.

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Se o mote era o reajuste das passagens, os motivos que levaram as pessoas às ruas eram muitos, como ficou evidente nos cartazes improvisados. Os partidos da esquerda socialista foram surpreendidos pelo tamanho da manifestação. Talvez enferrujados pela ausência de reivindicações de rua durante os governos Lula e Dilma, foram tomados pela paralisia decorrente da perplexidade.

O fato é que as manifestações ganharam corpo, não apenas pelo caráter “novidadeiro” da convocação: a atuação desastrada da polícia e sua desmedida repressão, com bombas, farta distribuição de cassetadas e tiros de borracha – uma repórter fotográfica que cobria os atos foi atingida no olho por uma bala de borracha – acrescentaram o fator “solidariedade” às manifestações. A partir daí, os atos ganharam mais força e repercussão nacional, com manifestações se multiplicando por várias cidades do Brasil.

O documentário mostra muito bem os diversos grupos políticos que se uniram em torno das manifestações. Se começou com uma pauta articulada por um grupo de esquerda a favor do passe livre, rapidamente outros de formação diversa aderiram aos protestos. O que havia de comum, e "Ecos de Junho" indica com clareza, era uma insatisfação com o poder público, dirigida aos políticos, em geral, e aos governos do PT, em particular. 

Veja, abaixo, galeria de imagens do documentário:

Documentário da Globoplay Ecos de junho | Imagem: reprodução/Real Time 1
do documentário ecos de junho da Globoplay | Imagem: reprodução/Estado de Minas
Documentário Ecos de Junho | Foto: Reprodoção/Gobloplay
Lula entra em carro | Imagem: reprodução
Jornadas em 2013 | Imagem: reprodução/jornal de Brasília
Protesto em frente ao Congresso Nacional - BSB | Imagem: reprodução/Guia do estudante
Manifestação em junho de 2013 | Imagem: reprodução/F5-uol
Movimento Passe livre junho de 2013 | Imagem: reprodução/F5-UOL
Documentário da Globoplay Ecos de junho
Contra a tarifa - cena do documentário ecos de junho da Globoplay
Documentário Ecos de Junho | Foto: Reprodução/Globoplay
Lula entra em carro
Jornadas em 2013
Protesto em frente ao Congresso Nacional - BSB
Manifestação em junho de 2013
Movimento Passe livre junho de 2013
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Documentário da Globoplay Ecos de junho
Contra a tarifa - cena do documentário ecos de junho da Globoplay
Documentário Ecos de Junho | Foto: Reprodução/Globoplay
Lula entra em carro
Jornadas em 2013
Protesto em frente ao Congresso Nacional - BSB
Manifestação em junho de 2013
Movimento Passe livre junho de 2013
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Direita, esquerda, movimento anarquista, grupos identitários, todos foram para as ruas, num movimento variado, onde a reivindicação por passe livre acabou se diluindo em meio à profusão de palavras de ordem. “Não são só 20 centavos”, dizia um cartaz que sintetizou, de maneira emblemática, o espírito dos manifestantes, jovens em sua maioria.

O documentário traz imagens e depoimentos de diversas pessoas envolvidas naqueles acontecimentos. Mostra, por exemplo, como grupos de direita nasceram ou cresceram de algum modo vinculados aos eventos de 2013. São esses grupos que, dois anos depois, deram sustentação, nas ruas, ao impeachment de Dilma Rousseff, apoio político às reformas de Michel Temer e, em 2018, ajudaram a eleger Jair Bolsonaro. Nada disso aconteceria sem a incubadora de 2013. 

Independentemente da bandeira política de cada um, o filme tem enorme valor por trazer depoimentos de quem esteve lá no calor da hora e, hoje, uma década depois, pode rever, com certo distanciamento, sua participação nos acontecimentos.

Mas “os ecos de junho” não terminaram. Os choques de posição continuam em jogo. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, Angela Alonso, codiretora do filme, afirmou: "Essa disputa, de certa maneira, ainda não acabou. Tem muito de junho de 2013 na atual disputa eleitoral".

Sobre o autor

*Henrique Brandão é jornalista e escritor.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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2020 começa bem para cinema brasileiro, diz Lilia Lustosa à Política Democrática Online

Crítica de cinema analisa, em artigo na revista da FAP, obras cinematográficas de grande destaque

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro. A afirmação é da crítica Lilia Lustosa, em artigo publicado na 17ª edição da revista Política Democrática Online. “Primeiro foi a indicação do Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário. Em seguida, foi a vez de Meu Nome é Bagdá (2020), de Caru Alves de Souza, levar o Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, dedicada a produções sobre a juventude”, escreveu ela na publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

» Acesse aqui a 17ª edição da revista Política Democrática Online!

De acordo com Lilia, Berlinale, o mais politizado dos grandes eventos internacionais de cinema, esteve bem verde e amarela neste ano. A autora observa que o júri, que teve Kleber Mendonça Filho como membro, teve de avaliar o recorde de 19 filmes brasileiros (algumas coproduções) competindo em diversas categorias, incluindo a principal (Urso de Ouro) com Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que integram o coletivo paulista Filmes do Caixote. “Sinais do prestígio e do excelente nível que nossa cinematografia atingiu”, escreve a crítica de cinema.

Desde 1898, quando Afonso Segreto registrou as primeiras cenas brasileiras a bordo do navio Brésil, até os dias de hoje, o caminho não tem sido fácil. “Problemas de falta de regulamentação e de orçamentos escassos, somados à dificuldade para inserir filmes no circuito comercial, vêm desde sempre obstruindo as veredas de nossa cinematografia”, lamenta Lilia.

Apesar disso, segundo a autora do artigo publicado na revista Política Democrática Online, pode-se dizer sem medo que a qualidade do cinema brasileiro melhora a cada ano. Desde os anos 1930, de acordo com ela, o país produz obras belíssimas, como o Limite (1931), de Mário Peixoto, pouco conhecido entre nós, apesar de ter sido eleito pela Associação de Críticos Brasileiros como o maior filme nacional de todos os tempos. Ou ainda Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, que impressionou tanto o historiador de cinema francês Georges Sadoul, que este tratou logo de incluí-lo entre os maiores cineastas do mundo.

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