crime ambiental

Política ambiental no atual governo precisa ser restaurada | Foto: reprodução: Google/domínio público

Revista online | Luz (Verde) no fim do túnel?

André Lima e Bazileu Margarido*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

Em que ponto estamos? Naquela situação em que não há nada tão ruim que não possa piorar ou já é possível ver um ponto de luz logo ali, após a eleição?

Há muitos motivos para acharmos que a situação está muito ruim. A política ambiental no governo Bolsonaro tem sido desastrosa. Os órgãos ambientais federais, principalmente o Ibama e o ICMBio, foram sufocados. Estão de joelhos.

Servidores que insistiram em cumprir suas atribuições fiscalizatórias de forma republicana foram afastados de funções de chefia ou deslocados para unidades remotas, onde não poderiam molestar os agressores do meio ambiente.

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Além de reduzir drasticamente o número de multas aplicadas, a atual gestão anulou as multas aplicadas entre 2008 e 2019 em que os infratores foram avisados por edital (recurso corrente em órgãos de fiscalização, quando o infrator não pode ser alcançado por outros meios). Segundo o Ibama, devem ser anuladas quase 40 mil multas, com valor aproximado de R$16 bilhões.

O torniquete orçamentário foi uma estratégia aplicada com requintes de crueldade. Dos valores previstos no orçamento de 2021 para a fiscalização ambiental, que já eram insuficientes, menos da metade foi efetivamente utilizada. Infelizmente, o mesmo está ocorrendo neste ano. Com isso, o desmatamento na Amazônia quase dobrou, cresceu de 7,5 milhões de Km² em 2018 para 13 milhões de Km² em 2021.

Essa situação ainda pode piorar, se considerarmos o resultado da eleição de deputados federais e senadores. O Painel Portal Farol Verde avaliou o mandato dos atuais congressistas com base em suas votações em 12 das principais matérias da pauta socioambiental. Entre os 486 parlamentares que concorrem à reeleição, os parlamentares “ambientalistas” caíram de 30% para 27% na nova legislatura, os moderados caíram de 33% para 30% e os contrários à pauta ambiental subiram de 37% para 42%.

No caso dos parlamentares amazônicos, o índice médio de reeleição dos deputados considerados ambientalistas foi de apenas 26%, frente a um índice médio de reeleição de 57% para toda a Câmara Federal. O índice de reeleição dos deputados de estados Amazônicos considerados anti-ambientais foi 126% superior ao índice dos verdes. Esse quadro indica que haverá maior pressão para alteração, para pior, das regras que regulam as atividades predatórias em todos os biomas, mas principalmente na Amazônia.

Não se pode deduzir, a partir dessas informações, que a sociedade brasileira não esteja priorizando as questões ambientais na hora de definir o seu voto. É preciso avaliar, ainda, se houve diferença significativa nas condições financeiras que o grupo de parlamentares “ambientalistas” teve para fazer campanha, comparado aos demais candidatos à reeleição. Como sabemos, a distribuição do Fundo Eleitoral em cada partido é definida centralizadamente e a menor disponibilidade de recursos pode ser decisiva no resultado eleitoral. Além disso, o orçamento secreto beneficiou a base Bolsonarista no parlamento. PL, PP, União Brasil e Republicanos juntos, os piores partidos pela avaliação do Farol Verde, possuirão 48% dos votos na Câmara e 40% no Senado.

Galeria de imagens a seguir:

Sustentabilidade e meio ambiente | Imagem: NINA IMAGES/Shutterstock
Projeto Unidos pelo Plantio | Foto: Flickr
Comissão de Meio ambiente | Foto: Wikimedia commons
órgão ambiental | Foto: Flickr
Ibama | Foto: reprodução
Desmatamento e queimadas | Foto: Flickr
Parque socio ambiental irmã Dorothy Stang | Foto: Wikimedia commons
Contra os agrotóxicos | Foto: Rawpixel
Farol verde interface | Foto: reprodução
Sustentabilidade e meio ambiente
Projeto Unidos pelo Plantio
Comissão de Meio ambiente
órgão ambiental
Ibama
Desmatamento e queimadas
Parque socio ambiental irma Dorothy Stang
Contra os agrotóxicos
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Sustentabilidade e meio ambiente
Projeto Unidos pelo Plantio
Comissão de Meio ambiente
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Ibama
Desmatamento e queimadas
Parque socio ambiental irma Dorothy Stang
Contra os agrotóxicos
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Mas pode haver uma luz no fim do túnel, uma ponta de esperança. Em 30 de outubro (domingo) haverá o segundo turno da eleição para presidente da República. Além da continuidade da desarticulação da política ambiental do atual governo, a reeleição de Bolsonaro reforçará a pressão à favor das mudanças legais que poderão intensificar a grilagem de terras, a extração ilegal de madeira, o garimpo predatório e o uso indiscriminado de agrotóxicos. Se o Brasil optar por Lula na Presidência da República poderá haver, com muito esforço do governo, um certo reequilíbrio de forças no parlamento em relação às pautas de clima e meio ambiente.

O Brasil pode optar pela criação de emprego e renda a partir de uma economia sustentável e de baixo carbono, aumento da produtividade no campo, desenvolvimento tecnológico e uma matriz energética renovável, limpa e segura. Só a eleição de Lula poderá reposicionar o Brasil no cenário mundial e recuperar a liderança que o País já teve na agenda socioambiental. A alternativa é o atraso e o negacionismo climático, com suas consequências sobre o comércio internacional de nossos produtos.

Sobre os autores

*André Lima é advogado, ex-secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal, colunista do Congresso em Foco e coordenador do projeto Radar Clima e Sustentabilidade, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

*Bazileu Margarido é engenheiro de produção e mestre em economia. Foi presidente do Ibama, entre 2007-2008, secretário de Fazenda de São Carlos, São Paulo, em 2001 e 2002 e chefe de gabinete da ministra de meio ambiente Marina Silva de 2003 a 2007. 

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Míriam Leitão: Com a palavra, os embaixadores

Os embaixadores da Noruega e da Alemanha em Brasília alertam que o Brasil deve tomar muito cuidado nos próximos três meses na Amazônia. São os de maior risco de desmatamento no ano florestal que termina em julho. Nils Gunneng, da Noruega, e Heiko Thoms, da Alemanha, afirmam que há meio bilhão de reais sendo usados do Fundo Amazônia e lembram que os recursos, quase R$ 3 bilhões, que estão congelados precisam apenas que o Brasil restaure o conselho do Fundo. “O Brasil não está sozinho no combate ao desmatamento”, diz o alemão Thoms. “Tem um mercado enorme para um país que tem florestas e queira mantê-las em pé”, completa o norueguês Gunneng.

Noruega e Alemanha são os financiadores do Fundo Amazônia, um bem-sucedido mecanismo em que os dois países doaram recursos para apoiar programas de proteção ambiental. Ele funcionava perfeitamente. Em junho de 2019, o ministro Ricardo Salles dissolveu o conselho que reunia representantes do governo federal, dos estados amazônicos, da sociedade e dos empresários. Sem essa estrutura, o Fundo Amazônia não pode liberar novos recursos. “Não há base legal para as decisões”, explica o embaixador da Noruega.

Eu entrevistei os dois diplomatas durante uma hora na sexta-feira, por uma chamada de vídeo. Eles demonstram conhecimento sobre o Brasil, admitem as culpas de seus próprios países nas emissões de gases de efeito estufa, comemoram a cúpula do clima, pela volta dos Estados Unidos aos esforços globais de combate às mudanças climáticas. Ambos disseram ter gostado da carta do presidente Bolsonaro ao presidente Biden e do discurso do brasileiro na reunião do clima. Mas alertam que é preciso ir além. “Queremos ver em breve os resultados dessas palavras nas taxas de desmatamento”, disse Nils Gunneng. “Estamos ansiosos para ver a tradução desse compromisso no plano concreto”, diz Heiko Thoms.

Os dois têm tido conversas com vários setores da sociedade brasileira, e, nos dias anteriores ao encontro convocado por Joe Biden, eles e outros embaixadores fizeram reuniões com políticos de diversos partidos, com empresários e ONGs. Perguntei o que eles têm ouvido. Segundo o embaixador alemão, todas as partes entendem que problemas ambientais têm um efeito negativo na reputação do país. “Os povos indígenas compreendem isso, os bancos compreendem isso”, diz Thoms.

O representante da Alemanha afirma que seu país é parceiro tradicional do Brasil na luta ambiental desde 1992, que a cooperação bilateral tem 70 anos e há um portfólio de investimento de US$ 9 bilhões. O representante norueguês conta que o Fundo Soberano tem investimentos de US$ 8 bilhões em ativos brasileiros. O grande nó das relações entre os dois e o Brasil atualmente é o Fundo Amazônia. Perguntei a Gunneng o que ele tinha a dizer sobre a afirmação de Salles de que o Fundo parou por decisão da Noruega. “É importante dizer que o Fundo foi congelado porque o governo brasileiro dissolveu a estrutura de governança unilateralmente sem o acordo da Noruega ou da Alemanha”, respondeu.

O embaixador da Alemanha acha que o “Brasil está bem posicionado” para se beneficiar da transição para a economia de baixo carbono. “Tem a tecnologia necessária, tem uma legislação sólida e produtores sérios.” Gunneng concorda e diz que o Brasil já mostrou ser capaz de produzir sem aumentar o desmatamento. “Nós queremos ver mais países pagarem por isso”. O embaixador alemão disse que “no mundo inteiro os consumidores querem saber de onde vem o bife que está no seu prato e como o seu smartphone foi produzido. Os investidores procuram opções verdes de investimento. Quem produz de forma sustentável tem vantagem competitiva”.

Perguntei a Gunneng o que a Noruega fará com sua economia tão dependente do petróleo, e a Thoms, sobre as emissões históricas da Alemanha. “Nós somos parte do problema”, admitiu o norueguês. “A Alemanha tem grandes desafios como o do carvão”, admitiu o alemão. Os dois, contudo, dizem que seus países estão determinados a fazer a necessária transição para uma economia de baixo carbono. Perguntei se era fácil explicar para os contribuintes os gastos com o Fundo Amazônia. “Sim e não. É fácil quando o desmatamento cai, é difícil quando ele sobe”, diz Nils Gunneng, da Noruega. No momento, então, está difícil explicar.


Revista Política Democrática || Reportagem especial || Vale quer cortar metade de auxílio a 98 mil atingidos por tragédia em Brumadinho

Quase um ano após um dos maiores crimes ambientais do País, que deixou 257 mortos e 13 desaparecidos, famílias reclamam de falta de indenização da mineradora

Cleomar Almeida, enviado especial a Brumadinho (MG)

 Luto intenso, medo, sofrimento e desamparo castigam sobreviventes e famílias vítimas do rompimento da barragem B1, da mineradora Vale, na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, a 50 quilômetros de Belo Horizonte. Quase um ano depois da tragédia, que deixou 257 mortos e 13 desaparecidos, a maioria dos atingidos ainda não foi indenizada pela multinacional, que ameaça cortar pela metade a ajuda de custo paliativa a até 98 mil moradores da região, a partir do dia 25 de janeiro de 2020.

Pesadelos e noites mal dormidas marcam o dia a dia da população de Brumadinho, como é o caso do produtor rural Isterides de Oliveira, 65 anos. “Fiquei meio bobo. Só penso no tanto de gente que conhecia e morreu. Não perdi familiares, mas não existe mais paz aqui. A gente vive com uma confusão mental danada”, afirma. A cerca de 100 metros da casa dele, cuja estrutura foi comprometida e desvalorizada, máquinas buscam corpos no mar de lama e deixam a paisagem ainda mais pesada.

Isterides viu a lama engolir amigos, animais, casas e a vegetação. Ele é um dos que recebem o pagamento emergencial da Vale, chamado de “bolsa tragédia” por alguns moradores e que tem aumentado a tensão entre eles e a mineradora, conforme apurou equipe de reportagem da revista Política Democrática enviada a Brumadinho.

No dia 5 de dezembro, a população se reuniu no Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) para contestar um acordo firmado com a multinacional na 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Autarquias, e reivindicar a manutenção do pagamento a todos, sem redução.

O acordo, realizado no dia 28 de novembro com a presença de representantes do estado e de órgãos do sistema de Justiça, garantiu aos atingidos o direito à prorrogação do pagamento emergencial, que iria terminar em janeiro de 2020, quando a tragédia completará um ano. O pagamento foi estendido por dez meses, mas será reduzido.

Hoje, conforme prevê o acordo firmado em fevereiro, a Vale paga um salário mínimo para adultos, metade do valor para adolescentes e um quarto para crianças, a todos os residentes da cidade de Brumadinho e pessoas que viviam a até 1 km da margem do rio Paraopeba, na área atingida.

A partir de janeiro do próximo ano, o valor integral deverá ser mantido somente a moradores de cinco comunidades atingidas (Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Alberto Flores, Cantagalo e Pires), a quem vive às margens do córrego Ferro-Carvão e pessoas atingidas que são cadastradas em programas de apoio da Vale, como auxílio moradia e assistência social.

Os valores serão reduzidos pela metade para todas as demais pessoas que recebem o pagamento, como os moradores da cidade de Brumadinho. De acordo com a Vale, a redução atingirá de 93 mil a 98 mil beneficiários entre as 106 mil pessoas que recebem a verba emergencial. Em protesto, no início deste mês, o comércio de Brumadinho chegou a fechar as portas como represália. A atividade já foi normalizada.

É uma aberração a ousadia dessa mineradora, que praticou um grave crime ambiental que matou muitas pessoas”, reclama a produtora rural Maria Helena da Silva, 56 anos, que perdeu dois irmãos e um sobrinho na tragédia. “A justiça deverá ser feita porque a gente não pode ficar à própria sorte, recebendo migalhas para tentar amenizar a dor que vai marcar o resto de nossas vidas”, acrescenta.

O promotor de Justiça da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social do MPMG, André Sperling, reforça que a população considera o acordo insuficiente e, por isso, tentará reabrir as negociações. “O MP está do lado da população. Se as pessoas entendem que o acordo é insuficiente, o pedido é para que a Vale reabra as negociações. Vamos esperar a mineradora dar nova resposta, mas não temos a data da reunião”, afirma.

Insatisfeita, a população atingida tem-se mobilizado cada vez mais. “É evidente que a população está se mobilizando e um acordo pode ser mudado a qualquer tempo”, ressalta Sperling. “Esperamos que a Vale tenha sensibilidade e veja que o acordo, para a população, está sendo insuficiente neste momento”, assevera.

A Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho estima que houve um aumento da população cadastrada ao longo do ano. Apesar de o levantamento não ter a validade de um censo, dados oficiais apontam que a cidade passou de 38 mil para 43 mil moradores registrados no período. O prefeito de Brumadinho, Avimar de Melo Barcelos (PV), diz que o município “sofre muito com o crime praticado pela Vale”.

Desolado, o produtor Isterides diz que sofre profundamente por causa da tragédia. “A região tinha muitas cachoeiras, córregos onde a gente tomava banho, peixes para pescar. Acabou tudo”, afirma. “Só quem é daqui sente na pele o que todo esse crime da Vale causa na vida da gente”, acentua.

Em nota, a Vale informa que já celebrou mais de quatro mil acordos, indenizando integralmente as pessoas. Nestas ações, segundo a multinacional, já foram provisionados pagamentos de cerca de R$ 2 bilhões. A empresa diz que realiza encontros regulares com representantes legítimos dos atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho, com o objetivo de garantir “uma reparação célere e respeitosa”.

Os valores do pagamento emergencial não poderão ser descontados de indenizações individuais a serem pagas pela mineradora no futuro, apenas do montante de possíveis indenizações coletivas.

O defensor público Antônio Lopes de Carvalho Filho, do Núcleo Estratégico de Proteção aos Vulneráveis em Situação de Crise da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE-MG), diz que não há dinheiro que possa reparar as perdas provocadas pela tragédia. “O pagamento emergencial é uma medida paliativa. A dor de perder uma pessoa na família ou amigos é extrema. Outra dor é a da pessoa que tinha vínculo com a comunidade e foi obrigada a se deslocar. As pessoas perdem um pouco o chão. Fica uma comunidade abalada”, lamenta.

 


 

 

Perdeu a casa própria, vive em ‘situação de pânico’

Na porta de uma casa alugada pela mineradora Vale, onde mora, Adélia Oliveira de Souza Gomes, 56 anos, é o retrato da desolação. Aguarda todos os dias por uma resposta da multinacional que considere digna e justa para reparar os danos decorrentes da tragédia em Brumadinho. Até hoje, vive uma espera em vão.

Eu estava almoçando na varanda de casa. Nós escutamos um barulho, achamos que era alguma explosão. Meu marido foi lá fora e disse que a barragem tinha estourado. A gente saiu correndo e deixou tudo para trás. Não pegou nada”, lembra a dona de casa. “Houve muita gritaria. Saímos desesperados. Em menos de dez minutos, vimos a lama destruir a nossa casa, tudo o que a gente conquistou ao longo da vida”, lamenta.

Adélia e a família recebem pagamento emergencial. Ela nasceu em Ibirité, a 32 quilômetros de Brumadinho, para onde se mudou porque foi o único lugar em que conseguiu comprar um lote, na parte mais afastada do centro da cidade. Constituiu família. Criou sete filhos com o marido. Em poucos segundos, viu a lama destruir tudo.

Vivemos um momento de pavor. A lama engoliu tudo, felicidade, sonhos, bem-estar. Aqui, ninguém tem mais paz”, diz a moradora, que ainda aguarda indenização definitiva. “Hoje, vivo em situação de pânico. Quando começa a chover, fico assustada. Olho para o telhado e parece que está querendo descer em cima de mim”.

Assim como Adélia, muita gente ainda não se sente segura para fazer um acordo extrajudicial com a Vale. Além disso, reclama do caos que virou a cidade. Como muita gente ainda trabalha na região para reconstruí-la, o trânsito é caótico. O tráfego de caminhões da mineradora é intenso. Alguns profissionais também se dirigem ao local para tentar amparar as famílias, de alguma maneira. Nada, porém, será capaz de resgatar a tranquilidade em que viviam os moradores, antes da tragédia.

O defensor público Antônio Lopes de Carvalho Filho reconhece a dificuldade das pessoas, de reconstruir a vida no local. “O luto vivenciado pelas famílias atingidas dura um certo tempo, e cada uma delas precisa ser respeitada”, afirma.

Para tentar diminuir a dor dos moradores, o órgão foca em uma iniciativa que visa à reparação individual, conforme termo de compromisso firmado com a Vale no dia 5 de abril, sem a necessidade de protocolar processo judicial. No total, segundo o defensor público, apenas 230 pessoas foram indenizadas pela mineradora por meio dessa iniciativa.

O valor médio das indenizações é em torno de R$ 600 mil”, afirma Antônio. “No geral, até o momento, houve indenização entre R$ 680, no caso de gastos com combustível, até R$ 3 milhões, envolvendo bens imóveis”, diz ele.

O termo de compromisso se baseia em critérios de justiça social. O valor, portanto, deve considerar a possibilidade de a pessoa comprar um bem idêntico ou de adquirir outro parecido com o mínimo de garantia de dignidade. “Tudo é valorado, inclusive o vínculo que o morador tinha com o local ou o bem”, explica.

Sem expectativa, Adélia passa o dia em casa. Tenta manter sob controle os problemas de saúde, como a hipertensão. Na cabeça resta apenas a memória da vida que tinha na região e que foi cruelmente dilacerada, deixando em todos um profundo vazio e uma aflição contínua.

 


 

 

 

Barragem da maior mina da Vale em MG continua em alerta

A Barragem Laranjeiras, em São Gonçalo do Rio Abaixo, a 130 quilômetros de Brumadinho, está com as operações paralisadas temporariamente desde o dia 2 de dezembro, quando entrou em nível 1 de emergência. A estrutura integra o complexo da Mina de Brucutu, a maior da Vale em Minas Gerais, conforme apuração da equipe de reportagem da revista Política Democrática enviada ao local.

A paralisação temporária da barragem pode levar até dois meses e suspende a disposição de rejeitos na barragem, advindos da mina de Brucutu. A Vale informa que, nesse período, deverá realizar avaliação sobre as características geotécnicas da barragem. A multinacional não informou quais são os problemas que causaram a interrupção do lançamento de rejeitos no local.

O protocolo de emergência em nível 1, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), não requer a retirada de moradores da área de risco nem toque de sirene. A barragem teve a sua Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) emitida em 30 de setembro de 2019, que permanece válida.

No período em que a disposição de rejeitos estiver suspensa, a usina de Brucutu opera com cerca de 40% de sua capacidade por meio de processamento a úmido com rejeito filtrado e empilhado. De acordo com a Vale, o impacto estimado da paralisação temporária é de 1,5 milhão de toneladas de minério de ferro por mês.

Em fevereiro, a Justiça já havia determinado a paralisação da Barragem Laranjeiras, assim como a de outras sete. A decisão atendeu a uma ação civil pública que tramita em segredo de Justiça. A mineradora chegou a voltar a operar, mas houve nova suspensão no dia 6 de maio.

Em junho, a Vale obteve o direito de retomar as atividades. Na ocasião, a Prefeitura de São Gonçalo do Rio Abaixo alegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que a paralisação de qualquer estrutura que impossibilite a operação da mina afeta diretamente a economia da cidade. Desde a tragédia de Brumadinho, segundo a Defesa Civil, mais de 20 barragens estão em estado de alerta em Minas Gerais.


Fernando Gabeira: O interminável mar de lama  

“Quantas toneladas/ exportamos de ferro? Quantas lágrimas/ disfarçamos sem berro?” Estes versos de Drummond contam uma longa história da mineração em Minas. Uma história que se confirmou pela anulação do processo de Mariana sobre o mar de lama que provocou 19 mortos, dezenas de lares perdidos e um rio envenenado.

O processo foi anulado porque a polícia teria lido e-mails da empresa, sem autorização. Ela só poderia ler e-mails de um período determinado. O argumento da anulação: violência contra a privacidade da Samarco.

Tenho dificuldades em entender por que a quebra da privacidade de uma empresa é superior à morte de 19 pessoas, destruição de comunidades e envenenamento do mais importante rio do litoral brasileiro.

Foi o maior desastre ambiental do Brasil. Precisa ser julgado. Se a polícia leu e-mails demais, basta neutralizar as informações não permitidas. O essencial está lá: a lama, as mortes. O desastre não é um segredinho da Samarco. É uma realidade que todos que viram sentiram e choraram.

No fim da semana, ao chegar em casa, soube que houve um saque a um caminhão de carne tombado. Para mim isso não é novidade. Vejo e filmo, constantemente, saques a caminhões nas estradas brasileiras. No entanto, este tinha um componente especial: ninguém se importou em socorrer o motorista. O saque se prolongou por quase uma hora, antes que chegassem os bombeiros e retirassem o pobre homem dos escombros.

Se junto esses fatos é para enfatizar como é grave um momento em que a vida humana perde seu valor. Um vereador do Rio chegou ao extremo de cobrar propina para liberar corpos do IML. A própria morte passa ser um objeto de negociação.

No seu livro sobre o homo sapiens, Yuval Noah Harari reflete sobre a linguagem humana. Ela não nasceu apenas da relação com as coisas, da necessidade de alertar sobre o perigo, ou mesmo do interesse das pessoas pela vida das outras, da fofoca. Uma singularidade da linguagem humana é sua capacidade de falar de coisas que não existem materialmente, de um espírito protetor, de um sentimento nacional. Esses mitos que nos mantêm unidos ampliam nossa capacidade produtiva e nossas conquistas comuns.

O que está acontecendo no Brasil é o esgarçamento dessa ideia de pertencer ao mesmo país, de partilhar uma história e um futuro.

O mito da nacionalidade é bombardeado intensamente em Brasília por um sistema político decadente. Eles voltam as costas para o povo e decidem, basicamente, aquilo que é de seu interesse pessoal.

Os laços comuns se dissolvem. Não há mais sentimento de comunidade, e daí para adiante é fácil dissolver os laços entre os próprios seres humanos.

No sentido de partilharmos aspirações comuns, já não somos mais um país. E caminhamos para uma regressão maior desprezando as possibilidades abertas pela linguagem, pelos ancestrais que a usavam para grandes conquistas coletivas.

Somos dominados por um sistema político cínico, que se alimenta, na verdade, da repulsa que nos provoca. Mais repulsa, mais indiferença, isto é, menos possibilidade de mudanças reais.

Quando visitei Israel, um motorista de ônibus, ao ver um incêndio, parou, desceu e foi apagá-lo. Muitas vezes na Europa vi gente reclamando quando se joga lixo na rua. E os próprios suíços chamando a polícia quando há barulho depois das dez da noite.

Isso não é aplicável à nossa cultura de uma forma mecânica. Eu mesmo devo fazer barulho depois das dez. Mas o que está por baixo dessas reações é a sensação de pertencer a um todo maior, de ter responsabilidades com ele.

A degradação política conseguiu enfraquecer esse sentimento no Brasil. Eles fingem encarnar um país e quem os leva a sério acaba virando as costas também para esse país repulsivo.

O resultado desse processo destruidor está aí. Reconheço que mecanismos de desumanização estão em curso em todo o mundo e que fazem parte de um processo mais amplo. Mas é uma ilusão pensar que nossas vidas são apenas um reflexo de uma época que tritura valores. Existem razões específicas, made in Brazil, que nos fazem recuar em termos civilizatórios.

A expressão “elite moralmente repugnante” foi durante muitos anos aplicada aos setores dominantes do Haiti. Ela pode ser transferida para Brasília.

A coexistência silenciosa e indiferente diante dessa realidade vai minar os próprios fundamentos da vida comum.

Os versos de Drummond não se limitam a descrever a tragédia mineral: quantas toneladas de ferro, quantas lágrimas disfarçadas?

O Brasil vai recuperar a força de sua humanidade quando se rebelar. Enquanto aceitar silencioso as afrontas que vêm de cima, a tendência é abrir mão de suas conquistas de homem sapiens e mergulhar numa noite de Neandertal.

O sinais estão aí. Adoraria estar enganado.

*  Fernando Gabeira é jornalista