covid-19
Sergio Amaral: A agenda global pós-covid-19
Tópicos prioritários: Estado, neopopulismo, desigualdade, bem comum e solidariedade
Alguns países já estão saindo da covid-19. Outros, como nós, estão apenas entrando. O número de óbitos e a destruição de riqueza são assustadores. Enquanto não houver uma vacina para impedir o contágio ou um remédio para curar a enfermidade, permaneceremos na incerteza. Não existe ainda uma luz no fim do túnel.
A crise do coronavírus não traz necessariamente fatos novos, mas acelera processos de mudança em curso, que apontam para um novo cenário global e uma nova agenda, que deverá incluir cinco tópicos prioritários: o Estado, o neopopulismo, a desigualdade, o bem comum e a solidariedade.
O pêndulo da História está-se movendo de um ponto de mais globalização e menos Estado para outro de menos globalização e mais Estado. Isso não quer dizer que globalização volte para trás, mas que o Estado será chamado a disciplinar os seus excessos e a assumir novas responsabilidades. Há vários sinais nesse sentido.
A própria pandemia mostrou que os governos terão um papel mais ativo nos serviços de saúde. Na economia, a crescente rejeição ao estrangeiro, sob a forma de bens ou imigrantes, levou à intervenção do Estado, quer sob a forma do protecionismo comercial, quer pelo bloqueio da imigração. Em vários países, como no Chile, expressivas demonstrações de rua clamaram por mais participação do governo na previdência social, na saúde, na educação e, por vezes, na própria indução ao desenvolvimento. Por fim, o Brexit mostrou a resistência do Estado nacional diante da transferência de poderes para um ente supranacional.
O neopopulismo tornou-se um ingrediente corrosivo da democracia. Governantes e partidos políticos não souberam entender, assim como dar uma resposta apropriada e tempestiva aos profundos deslocamentos provocados pela globalização. Sem ter a quem recorrer, a população buscou em líderes populistas as respostas simples, por vezes falsas, para problemas complexos, mediante uma comunicação com as mídias sociais. Mas, se é possível eleger-se por meios digitais, é impossível governar sem os partidos políticos, sem a conciliação de interesses e articulação política que lhes são próprias.
As transformações proporcionadas pela globalização trouxeram, é verdade, progresso e prosperidade. Mas acentuaram a distância entre segmentos sociais, assim como entre nações ricas e pobres. A crise do coronavírus explicitou a correlação entre pobreza e contágio. Nos Estados Unidos, o salário real das classes médias manteve-se estagnado desde a década de 1970. As pesquisas de Thomas Piketty, nos arquivos fiscais na França, revelaram que a desigualdade ao início do século atual é comparável à que existia em princípio do século 19. Ou seja, em mais de dois séculos não se havia alterado a distribuição da riqueza entre os mais pobres e os mais ricos.
O presidente Emmanuel Macron, em entrevista recente ao Financial Times, distinguiu, na nova ordem em gestação, duas esferas distintas. Uma é a da articulação entre os Estados em temas interdependentes, como saúde, educação, mudanças climáticas, segurança, que chamou de bens comuns da humanidade. Esses temas serão objeto da cooperação entre os Estados, no âmbito de um sistema multilateral revitalizado. A outra esfera se refere ao exercício da soberania e reflete a volta do Estado nacional e da geopolítica, assim como à disputa hegemônica, em vários campos, entre Estados Unidos e China. Por isso defende o fortalecimento da soberania europeia, especialmente em agricultura, em indústria de ponta e tecnologia.
Por fim, como uma nota positiva, a nova agenda poderá trazer de volta a solidariedade para com o sofrimento e o desemprego, agravados pela pandemia. É crucial que a generosidade seja canalizada para efetivos programas sociais, e não se esgote em compaixão e filantropia apenas.
Resta uma pergunta central: como tais demandas ou aspirações, algumas ainda embrionárias, poderão plasmar a reorganização do mundo pós-covid-19?
Os olhos voltam-se naturalmente para as Nações Unidas. As circunstâncias, entretanto, não são propícias para replicar a experiência de êxito da ONU. Não existe uma coalização de países, como a que se formou após a 2.ª Guerra Mundial, sob a liderança de Washington. Tampouco existe uma visão de mundo compartilhada, nem mesmo para a reforma do sistema atual.
Ao contrário, as duas grandes potências parecem movidas por um disputa hegemônica em torno de dois propósitos, por enquanto irreconciliáveis : a China busca o reconhecimento de sua emergência econômica e tecnológica; os Estados Unidos, pelo menos sob Donald Trump, mostram-se determinados a conter essa emergência.
O novo momento sinaliza, assim, uma tensão entre uma cooperação multilateral voltada para temas de interesse comum e interdependente e o eixo bilateral da disputa de poder entre as duas grandes potencias. A questão está em saber em que medida o eixo hegemônico bilateral abrirá espaço para a consolidação da cooperação multilateral.
*Embaixador, Conselheiro de Felsberg e advogados
Folha de S. Paulo: Entidades médicas vão à Justiça contra o uso da cloroquina
Médicos afirmam que orientação do Ministério da Saúde deixou profissionais em meio a fogo cruzado
Fernando Canzia, da Folha de S. Paulo
Entidades médicas preparam medidas judiciais para obrigar o Ministério da Saúde a retirar de seu site na internet as orientações para que profissionais de saúde administrem precocemente cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com coronavírus.
Os médicos afirmam que o fato de a orientação existir formalmente dará margem à população para exigir o uso dos medicamentos mesmo quando a avaliação clínica não recomendar a prescrição.
A maioria das unidades básicas de saúde no país não tem, por exemplo, eletrocardiógrafos para aferir se os pacientes podem usar a cloroquina, que apresenta a arritmia como um de seus principais efeitos colaterais.
Mais de 90% dessas unidades também não dispõem de profissionais de segurança, e o temor dos médicos é que, como a escalada da epidemia, muitos pacientes acabem exigindo de forma mais enfática o uso dessas drogas.
Segundo Daniel Knupp, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que reúne 47,7 mil equipes de atenção básica no país, o governo federal está colocando os médicos em um “fogo cruzado” com a publicação das orientações pelo Ministério da Saúde.
“Haverá pressão da população para o uso desses medicamentos, sendo que o próprio governo está sendo tecnicamente omisso em sua orientação”, diz Knupp.
“Esse foi o subterfúgio usado para que não haja uma disputa técnica sobre o uso da cloroquina”, diz Knupp.
Segundo ele, a cloroquina deve começar a ser largamente distribuída pelo governo nos próximos dias por conta da produção que o Exército vem realizando.
Com a orientação para o seu uso publicada no site do ministério, os médicos que não concordarem com ela podem acabar sendo pressionados a fazê-lo.
Na ação contra a manutenção do documento no site, a SBMFC usará o seu próprio texto como argumento contra o uso dos medicamentos.
Em sua primeira nota técnica, o documento afirma que "ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o beneficio inequívoco dessas medicações para o tratamento da Covid-19”.
A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) estuda participar da mesma ação ou tomar medidas jurídicas individualmente.
“Há evidências suficientes para a não utilização da cloroquina e das demais medidas recomendas pelo ministério em pacientes infectados pela Covid-19”, afirma Suzana Margareth Lobo, presidente da Amib.
A Sociedade Brasileira de Infectologia também emitiu nota afirmando que vários estudos mostraram o "potencial malefício” dessas drogas. A entidade recomenda que o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 seja feito "prioritariamente em pesquisa clínica".
Benito Salomão: Novo mundo, nova década, velhos problemas
No Brasil, diferentemente de países cujo governo federal atua com eficiência, a crise sanitária se agrava na mesma proporção em que se agravam os indicadores econômicos. A pandemia atingiu Brasil cerca de 1 mês após ter atingido a Europa continental e 2 meses após ter atingido a China e alguns vizinhos asiáticos. Poderíamos ter aprendido com os erros dos outros, tendo assim minimizado os impactos humanos e sanitários, reduzido os efeitos da quarentena no tempo e criado as bases para uma recuperação econômica em um futuro próximo.
Pelo contrário, as atitudes do presidente Bolsonaro criaram uma crise institucional dentro das já graves crises sanitária e econômica em curso que tendem a se prolongar, a sanitária até o final do ano e a econômica até 2021. O Brasil foi atingido pela Pandemia em uma situação fiscal frágil, as soluções emergenciais para reagir ao COVID-19 exigem necessariamente expansão do gasto público. Neste sentido, quanto mais rápido resolvermos a crise sanitária, menos dinheiro público precisará ser dispendido em socorro aos Estados e Municípios e no pagamento de Coronavaucher às famílias afetadas, ou ainda ao socorro das empresas proibidas de funcionar.
Não quero com este argumento, simplesmente transmitir a visão fiscalista de que dinheiro público não deve ser gasto, a dívida pública pode e deve amortecer o sofrimento humano durante esta pandemia, mas a ausência de uma política sanitária responsável fará com que os custos fiscais sejam maiores e menos efetivos do que seriam. Qual o problema disto? O problema é que em função disto as medidas de ajuste pós pandemia deverão ser mais drásticas do que também seriam e como já adiantamos no artigo anterior, a indesejada CPMF estará inevitavelmente presente neste pacote.
Isto é péssimo porque o Brasil sairá de uma crise e cairá em outra. Explico! Sairemos da crise do Coronavírus com um passivo fiscal entre 95 e 100% do PIB, isto terá que ser enfrentado. Também não sabemos ainda quais serão as condições políticas para resolver tal problema, isto também preocupa. O problema é que voltaremos novamente para a agenda de curto prazo, ao debate pobre sobre cortar gastos ou aumentar impostos que dominou toda a década de 2010.
Enquanto isto o Brasil continuará crescendo pouco, é possível que a renda per capita do país continue crescendo negativamente tornando nosso país, na média, ainda mais pobre. As desigualdades sociais tendem a se ampliar com os efeitos deletérios da Pandemia sobre o desemprego e a renda e com isto a exacerbação dos ânimos políticos. Pior, sairemos também mais isolados do restante do mundo, acordos que tenderiam a beneficiar em larga escala a economia brasileira como o Mercosul – UE devem ser paralisados, também sairemos desta crise mais distantes da China, do mundo Islâmico e até do Mercosul.
Um outro aspecto que certamente irá contribuir para a estagnação da economia brasileira, trata-se do gap tecnológico existente entre o Brasil e as demais economias importantes. Agendas do século XXI como o carro elétrico e uma economia de baixo carbono, a internet 5 G, a internet das coisas, big data e a utilização de algoritmos no setor de serviços entre inúmeras outras transformações que já são realidade no mundo desenvolvido, no Brasil não encontram espaço pela ausência de uma política de desenvolvimento científico e tecnológico.
Nós entraremos na década 2020 resolvendo problemas fiscais que tínhamos em 2013 enquanto a nossa defasagem tecnológica para com as economias importantes aumenta. A começar pelo desenvolvimento da vacina ao COVID-19, ao que tudo indica, estaremos mais uma vez dependentes da pesquisa desenvolvida em outros países para lidar com este assunto. Isto é ruim, porque uma política educacional e científica demora pelo menos uma geração para produzir frutos, envolve muitos mandatos presidenciais e uma cultura de política de Estado que se perdeu no Brasil entre os governos Dilma e Bolsonaro.
É bem verdade que, justiça seja feita, a defasagem educacional e científica não começou com Bolsonaro, perpassa inúmeros governos. É bem verdade também, que seu governo representa uma sensível piora neste quesito. Isto significa que além de termos um déficit tecnológico e, portanto, de produtividade com o resto do mundo, este déficit está aumentando cada vez mais e logo não teremos condições de competir em vários setores da economia em que um dia já tivemos protagonismo global.
O Brasil está à deriva, sem rumo, sem governo e sem noção de prioridades. Refém de corporações públicas e privadas. Também de narrativas políticas estapafúrdias que não encontram respaldo nos fatos, não se debate o que interessa. Éramos a 7ª economia mundial em 2010, hoje somos a 9ª, talvez em 3 anos não estejamos mais entre as 10. Não tenho otimismo sobre a inclusão de uma agenda de desenvolvimento de longo prazo para o Brasil, nossos problemas de curto prazo serão muitos e graves, devendo asfixiar todo o debate de economia, também dependem da política, que no Brasil dos últimos anos se transformou em um nó. Estamos entrando em um novo mundo, em uma nova década reféns dos nossos velhos problemas.
Benito Salomão – Doutorando PPGE UFU e Visiting Researcher VSE UBC.
Almir Pazzianotto Pinto: A reconstrução
As perspectivas são desfavoráveis, mas a missão não é impossível
A pandemia de covid-19 surgiu na China em dezembro. Fez as primeiras vítimas em janeiro. Espalhou-se pelo mundo e chegou ao Brasil entre fevereiro e março. Quando aqui aportou encontrou o País em crise, com milhões de desempregados.
Há esperanças de deixarmos o isolamento até o início de junho. Hipóteses otimistas acenam com a possibilidade de refluxo no segundo semestre. O colapso das atividades econômicas só não é mais assustador do que o número de mortos e infectados. Milhares de empresas quebraram. Outras sobrevivem com graves dificuldades. A economia interna retrocederá uma década. O produto interno bruto cairá fortemente, na pior recessão em mais de cem anos. O desemprego poderá alcançar 20 milhões até dezembro.
É tempo de planejar a reconstrução. Joaquim Levy, ex-presidente do BNDES e ex-ministro da Fazenda, entrevistado pelo Estadão (15/4), advertiu sobre a necessidade de se organizar a “saída ordenada da crise”. Alertou, porém, que “tentar reconstruir a economia como era não vai funcionar”.
A reconstrução será possível, porém sobre novos fundamentos. O “custo Brasil” é o primeiro obstáculo que exige demolição. Para o nosso tamanho, é pífia a participação no cenário econômico internacional. Produtos industriais, de tecidos a automóveis, devem se tornar competitivos além do Mercosul, graças à qualidade e ao preço. Além de reduzir a burocracia e a carga tributária, as relações entre capital e trabalho deverão desenvolver-se em ambiente pautado pela busca do entendimento. Em vez do conflito crônico, o diálogo e a negociação.
A história do movimento sindical brasileiro oscila da servil promiscuidade com o governo, como à época do Estado Novo e boa parte do regime militar, ao grevismo irresponsável, tal e qual durante o governo Sarney. Com o fim da contribuição sindical obrigatória, a estrutura desabou. Da debacle salvaram-se entidades de servidores públicos e alguns sindicatos de estatais, de sociedades de economia mista e de multinacionais do setor automotivo. De qualquer forma, a classe trabalhadora não deve ser esquecida, mas prestigiada e integrada ao esforço de reconstrução.
Resisto à ideia do pacto social, à semelhança do que se conseguiu na Espanha no final de 1977, e não se alcançou no governo José Sarney após o malogro do Plano Cruzado. Os interlocutores e as circunstâncias são outros. Garantir a manutenção dos níveis de emprego durante determinado período deverá funcionar como valiosa moeda de troca para empregadores. Dos trabalhadores se espera o compromisso da redução dos litígios. Será indispensável criar ambiente de segurança jurídica, preservando-se a validade dos acordos ajustados segundo as regras das Medidas Provisórias 927 e 936. O temor do “passivo oculto” inibe contratações.
O Brasil fechou-se ao mundo pela incapacidade de enfrentar políticas econômicas pragmáticas, como são as norte-americanas, chinesas, japonesas, alemãs e sul-coreanas. Erguemos barreiras alfandegárias como instrumento de proteção da ineficiência. A tecnologia é importada e atrasada, incapaz de se ombrear com o mundo informatizado. Somos pobres em pesquisas. A mão de obra se ressente da baixa produtividade.
O balanço final da pandemia revelará que raros países vão sobreviver ilesos. A China interromperá 20 anos de desenvolvimento. Para 2021 são previstas perdas econômicas de 6,8%. As dificuldades dos Estados Unidos não serão menores. A Europa empobreceu. Vejam-se Itália, Inglaterra, Espanha, França. A proposta de Plano Marshall é além de idiota. Pedir dinheiro ao exterior é ato criminoso, escreveu Napoleão Bonaparte (Máximas e Pensamentos, Ed. Topbooks). Não será com dinheiro vertido de fora que o Brasil se reconstruirá, mas graças ao esforço planejado e incansável de trabalhadores e empresários, unidos pelo desejo de reerguer o País. O descontrolado endividamento causou-nos imensos prejuízos e demandou anos de sacrifícios para ser pago.
As perspectivas são desfavoráveis, mas a missão não é impossível. Dependerá de quem assumir a liderança. O êxito não resultará de medidas de força, mas da inteligência, perseverança, visão e capacidade de coordenar esforços dos responsáveis pela reconstrução. Na exoneração do ministro Sergio Moro, após a demissão do dr. Luiz Henrique Mandetta, comprovou-se o que já se imaginava: o Poder Executivo federal tem à frente imprevisível e impulsivo comandante. O que esperar de alguém dotado de personalidade autoritária, praticante do monólogo e avesso ao diálogo? De alguém incapaz de compreender que o dissenso é próprio da democracia e que o consenso nasce do entendimento, não resulta de imposição da caneta?
O presidente Jair Bolsonaro desperdiça a credibilidade adquirida na campanha eleitoral. Despreza opiniões que não venham de seus apoiadores. A promessa de implantação de novo modelo político é desmentida pelos fatos. Não lhe será fácil recuperá-la.
*Ex-ministro do trabalho, fundador da Academia Paulista de Direito do Trabalho (APDT), presidiu o Tribunal Superior do Trabalho
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro impõe e Saúde libera cloroquina para todos pacientes com covid-19
Documento divulgado nesta quarta-feira recomenda a prescrição do medicamento desde os primeiros sinais da doença causada pelo coronavírus
Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo
Diante da recusa de dois ministros da Saúde, que optaram por pedir demissão para não assinar o documento, coube ao general Eduardo Pazuello, que assumiu a pasta de forma interina, liberar a cloroquina para todos os pacientes de covid-19. Em documento divulgado nesta quarta-feira com o novo protocolo, o ministério recomenda a prescrição do medicamento desde os primeiros sinais da doença causada pelo coronavírus.
Embora não haja comprovação científica da eficácia do medicamento contra a doença, o Ministério da Saúde alega, no documento, que o Conselho Federal de Medicina autorizou recentemente que médicos receitem a seus pacientes a cloroquina e a hidroxicloroquina, uma variação da droga. "A prescrição de todo e qualquer medicamento é prerrogativa do médico, e que o tratamento do paciente portador de COVID-19 deve ser baseado na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente que deve ser a mais próxima possível, com objetivo de oferecer o melhor tratamento disponível no momento
Na prática, com o novo protocolo, o governo autoriza que médicos da rede pública de saúde receitem a cloroquina associada ao antibiótico azitromicina logo após os primeiros sintomas da doença, como coriza, tosse e dor de cabeça. As doses dos medicamentos se alteram conforme o quadro de saúde. "Os critérios clínicos para início do tratamento em qualquer fase da doença não excluem a necessidade de confirmação laboratorial e radiológico", diz o documento do Ministério da Saúde.
Até então, o protocolo do Ministério da Saúde era mais cauteloso e seguia o que dizem sociedades científicas. A droga pode causar efeitos colaterais graves, como parada cardíaca. Esse é um dos motivos para a resistência de comunidades de saúde em recomendar a cloroquina sem acompanhamento médico.
Médicos que lidam com a covid-19 já levantam dúvidas sobre o documento. O Ministério da Saúde não é claro em exigir a confirmação laboratorial da infecção para a covid-19 para começar o tratamento. O risco, dizem estes especialistas, é que um caso apenas detectado em análise clínica já seja submetido ao tratamento.
Além disso, o documento do Ministério da Saúde orienta a realização de uma série de exames e monitoramento eletrocardiográfico do paciente. Este tipo de procedimento pode exigir a ida ao hospital de alguém que poderia apenas fazer repouso em casa para se curar.
Embates
Em entrevista ao jornalista Magno Martins, na terça-feira, o presidente brincou com o tema, alvo de divergências devido aos possíveis efeitos colaterias. "Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína", repetiu várias vezes ao fazer piada com o assunto.
O uso da substância se tornou foco de embate de Bolsonaro com os agora ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Médicos, eles argumentaram a falta de respaldo científico para que a substância fosse receitada logo no início do tratamento da covid-19. A cloroquina é usada para tratamento de malária e outras doenças autoimunes. Em publicação no Twitter antes de ser demitido, Teich chegou a alertar sobre possíveis efeitos colaterais da droga. Diante de um "ultimato" de Bolsonaro, optou por deixar o governo.
“Um alerta importante: a cloroquina é um medicamento com efeitos colaterais. Então, qualquer prescrição deve ser feita com base em avaliação médica. O paciente deve entender os riscos e assinar o ‘Termo de Consentimento’ antes de iniciar o uso da cloroquina”, escreveu Teich no Twitter no dia 12 de maio, três dias antes de pedir demissão.
Antes de sair, em abril, Mandetta também disse ter sido pressionado, em uma reunião no Palácio do Planalto, a assinar um decreto permitindo a prescrição da cloroquina a todos os pacientes da doença. Na ocasião, disse que só o faria quando entidades médicas respaldassem a orientação.
Para poder usar o medicamento, o paciente deverá assinar um termo de "Ciência e Consentimento". O documento inclui declarar conhecer que o tratamento pode causar efeitos colaterais que podem levar à "disfunção grave de órgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente, e até ao óbito."
No termo de consentimento que o paciente deverá assinar, também divulgado pelo Ministério da Saúde, o paciente diz aceitar o risco de tomar a droga "por livre iniciativa".
"Estou ciente de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina pode causar os efeitos colaterais descritos acima, e outros menos graves ou menos frequentes, os quais podem levar à disfunção grave de órgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente, e até ao óbito", diz o termo, também divulgado pelo ministério.
A posição de médicos e entidades
O Estadão ouviu três dos principais médicos e pesquisadores que têm se dedicado nos últimos meses ao estudo e tratamento do novo coronavírus no Brasil. Eles afirmaram, de forma unânime, que ainda não existem testes que comprovem a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da doença.
O médico Alexandre Biasi Cavalcanti, diretor do Instituto de Pesquisa HCor e integrante da Coalizão Brasil COVID, grupo de pesquisadores independentes que conduz um dos maiores e mais aprofundados estudos sobre o vírus no Brasil, disse que os resultados dos primeiros levantamentos sérios no exterior não apontam a eficácia da droga.
Rachel Riera, do hospital Sírio-Libanês e da Unifesp, também coordena uma série de levantamentos que incluem toda a literatura já produzida sobre a cloroquina e covid no mundo. Segundo ela, o Ministério da Saúde já foi informado de maneira categórica que não existem evidências científicas sobre a eficácia da droga.
Infectologista do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, Rosana Richtmann atua na linha de frente do combate ao coronavírus. De acordo com ela, a cloroquina já foi a “droga da esperança” no início da pandemia mas não é mais, pelo no que diz respeito ao uso preventivo ou em estágio avançado da doença.
Na terça-feira, três entidades nacionais que representam médicos de especialidades diretamente ligadas ao novo coronavírus aprovaram um documento com diretrizes para o enfrentamento da pandemia no qual recomendam que a cloroquina e a hidroxicloroquina não sejam usadas como tratamento de rotina da doença. As entidades são a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.
Vera Magalhães: Piada no exterior
Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.
O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.
Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.
A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.
Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.
Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?
Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.
A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.
Bernardo Mello Franco: O sanatório do Dr. Jair
Bolsonaro afastou todos os ministros que ousaram questionar seus desmandos. Sobraram lunáticos, oportunistas e generais que toparam o papel de cúmplices
O slogan “Brasil acima de tudo” está prestes a ganhar novo significado. Desgovernado pelo bolsonarismo, o país marcha para o topo do ranking de mortes diárias pelo coronavírus. Ultrapassar os Estados Unidos virou questão de semanas, prevê o médico Drauzio Varella. “O Brasil vai ser o epicentro da epidemia mundial”, ele resumiu, em debate promovido na quinta-feira pela Oxfam.
Em tempos normais, o país já estaria condenado a uma crise humanitária. O vírus cobraria a conta histórica da desigualdade e da falta de investimentos em saúde e moradia popular. O negacionismo do capitão elevou o patamar da tragédia. Ele desprezou a ciência e torpedeou as medidas de distanciamento, necessárias para frear a contaminação.
O Brasil é o único país do mundo que descartou dois ministros da Saúde em plena pandemia. O primeiro foi chutado porque resistiu às ordens para sabotar governadores e iludir doentes com um remédio milagroso. O segundo entregou o cargo pelas mesmas razões.
Nelson Teich assumiu com a promessa de “alinhamento completo” a Bolsonaro. Precisou de 28 dias para desistir do papel de fantoche. Indicado por um empreiteiro amigo, ele se limitava a assinar papéis num ministério loteado entre militares. Em sua breve gestão, o número oficial de mortes saltou de 1.924 para 14.817.
O oncologista desperdiçou a última chance de prestar um serviço público ao sair sem denunciar o que viu. Sua queda mostra que não há limites para o mandonismo e a insensatez no sanatório do Dr. Jair.
Em 500 dias no Planalto, Bolsonaro afastou todos os auxiliares que ousaram questioná-lo. Sobraram os lunáticos, os oportunistas e os generais que toparam o papel de cúmplices. Eles colaram a imagem das Forças Armadas a um presidente que põe o próprio povo em risco e usa o poder para proteger os filhos da polícia.
Na sexta, horas depois da saída de Teich, um quarteto de ministros foi à TV para defender o chefe. O general Luiz Eduardo Ramos acusou a imprensa de instalar um “clima de terror”. Ele entrou na escola de cadetes em 1973, quando a ditadura censurava notícias sobre uma epidemia de meningite. Mais ousado, o general Braga Netto culpou o jornalismo por casos de depressão e violência doméstica na quarentena. Faltou pouco para sugerir que as emissoras deixem de cobrir a pandemia para exibir paradas militares.
Damares Alves, a pastora que dá tom de chanchada ao desgoverno, citou estudos inexistentes para sustentar que “a cloroquina faz bem”. Paulo Guedes, o economista do bolsonarismo, discursou em defesa do “direito de ser infectado”. Deixou de dizer que o egoísmo pode tirar o leito hospitalar de quem respeita o isolamento.
Guedes não se cansa de naturalizar o autoritarismo e repetir a propaganda enganosa do capitão. Na sexta, ele descreveu Bolsonaro como “um democrata” que “não concorda com a velha política” e combate o “aparelhamento”. No mesmo dia, o Dr. Jair reconduziu Carlos Marun, fiel escudeiro de Eduardo Cunha, ao conselho de Itaipu. O ex-deputado continuará a embolsar R$ 27 mil por mês com a sinecura. O dinheiro poderia sustentar 45 famílias com o auxílio emergencial de R$ 600.
Eliane Brum: O nojo
É isso que diremos aos nossos filhos, que vamos esperar passivamente Bolsonaro nos matar a todos?
A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.
O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.
Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.
Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.
Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.
Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.
Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.
O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?
Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês...), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.
Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.
Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.
Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.
Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.
Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.
Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.
Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?
Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.
Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.
Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.
São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.
E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?
Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.
É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.
O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?
Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.
Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
O Estado de S. Paulo: Estudo detecta anticorpos ao coronavírus em 5% dos moradores de São Paulo
De 520 amostras de sangue coletadas em 6 distritos de São Paulo, 27 apresentaram defesa contra a covid-19
Ricardo Galhardo e Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo
Pesquisa inédita nos seis bairros com maior incidência de covid-19 na cidade de São Paulo mostra que até o início desta semana 5,19% dos moradores dessas localidades desenvolveram anticorpos ao coronavírus. O levantamento aponta também que 91,6% dos casos de infecção estão fora das estatísticas oficiais.
O estudo, comandado por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com apoio do Instituto Semeia e participação de profissionais do Laboratório Fleury e Ibope Inteligência, fez exames sorológicos em 520 pessoas com mais de 18 anos nesses seis bairros. E 27 apresentaram anticorpos. Estudos com testes sorológicos são importantes porque ajudam a avaliar se uma determinada população está próxima ou distante da chamada “imunidade de rebanho” – momento em que o vírus passa a ter poucas rotas de contágio, pois a maioria das pessoas apresenta anticorpos por já ter sido contaminada. Com isso, autoridades planejam com mais precisão estratégias de flexibilização das medidas restritivas.
Na quarta, o governo do Rio Grande do Sul divulgou os resultados de estudo segundo o qual apenas 0,2% dos gaúchos já foram contaminados com o novo coronavírus. O levantamento, coordenado pela Universidade Federal de Pelotas, também estimou alta subnotificação: haveria nove casos para cada um dos notificados até o momento pelo sistema de saúde. Também na quarta-feira, o governo da Espanha anunciou dados de uma pesquisa em que cerca de 61 mil pessoas foram testadas em todo o país. O resultado decepcionou os que esperavam estar próximos da imunidade. Na média nacional, 5% dos espanhóis já foram contaminados pelo novo coronavírus – ou seja, 95% da população ainda é suscetível. Outro estudo, feito pelo Instituto Pasteur, na França, chegou a resultado parecido: 4,4% de contaminados na média do país.
Não se sabe com segurança qual é o porcentual de habitantes que precisam desenvolver anticorpos até que se atinja a imunidade de rebanho. No caso do novo coronavírus, há estimativas que variam de 70% a 90%. Segundo o infectologista Celso Granato, diretor clínico do Fleury e um dos responsáveis pelo projeto, o número inicial reforça a necessidade das medidas de isolamento. “A Espanha teve três meses de lockdown. Nós estamos em plena fase de subida da curva e já temos mais de 5%”, disse ele. Os cientistas planejam refazer os exames pelo menos uma vez por mês. No primeiro teste foram escolhidos os três bairros com maior registro de contaminação (Morumbi, Bela Vista e Jardim Paulista) e os três com maior número de óbitos (Pari, Belém e Água Rasa), segundo a Prefeitura.
Equipes formadas por técnicos do Fleury e pesquisadores do Ibope foram de casa em casa para coletar amostras de sangue venal dos moradores escolhidos por critérios exclusivamente estatísticos, inclusive os que não apresentaram sintoma.
O próximo levantamento, marcado para começar no dia 10 de junho, vai incluir toda a cidade. “São Paulo é o epicentro da pandemia no Brasil. Nós queríamos o epicentro do epicentro. Agora vamos fazer em toda a cidade”, disse o biólogo Fernando Reinach, colunista do Estadão, responsável por aglutinar os diversos agentes envolvidos no levantamento. A partir dos números coletados na próxima da pesquisa será possível calcular a velocidade com que a doença está se espalhando na cidade. “Os dados divulgados hoje são o ponto zero. Na próxima etapa vamos saber qual a velocidade”, disse a CEO do Ibope Inteligência, Marcia Nunes Cavallari.
A pesquisa ajuda a dimensionar o alto índice de subnotificação. Segundo o levantamento, 91,6% dos casos estão fora dos números oficiais. O motivo é a falta de testes. Com poucos recursos apenas os casos mais graves, de pessoas que chegam a ir aos hospitais, são testados e contabilizados. Os pacientes assintomáticos ou com sintomas leves dificilmente chegam a ser testados. Estima-se que, entre os infectados, 80% desenvolvam sinais leves da doença como cansaço, febre ou dor de garganta. Já a nova pesquisa fez exames sorológicos com precisão de até 99,5% em pessoas escolhidas de acordo com critérios estatísticos, desconsiderando se os examinados desenvolveram ou não sintomas da doença. “Até agora essas pessoas eram invisíveis nas estatísticas oficiais”, disse Reinach.
Outro número revelador é a taxa de letalidade de 0,95% do vírus, bem inferior à média nacional de 6,9% do Ministério da Saúde. O motivo da diferença, mais uma vez, são pessoas assintomáticas ou com sintomas leves. “O índice de letalidade logicamente é mais alto entre as pessoas que tiveram sintomas graves, foram ao hospital ou morreram”, disse o biólogo.
Em artigo publicado nesta sexta-feira, a revista científica britânica The Lancet destaca a importância dos testes sorológicos para detectar indivíduos que desenvolveram anticorpos na formulação de políticas pós-pandemia. “A discussão atual, por exemplo, aborda a noção de que a ampliação do teste de anticorpos determinará quem é imune, fornecendo assim uma indicação da extensão da imunidade do rebanho e confirmando quem poderia entrar novamente na força de trabalho”, diz o artigo. “Mas quanto tempo dura a imunidade? A melhor estimativa vem dos coronavírus intimamente relacionados e sugere que, em pessoas que tiveram uma resposta de anticorpos, a imunidade pode diminuir, mas é detectável além de um ano após a hospitalização. Obviamente, estudos longitudinais com duração de pouco mais de um ano são pouco tranquilizantes, dada a possibilidade de outra onda de casos de covid-19 em 3 ou 4 anos.”
George Gurgel de Oliveira: A Vida em Pandemia e o Pós Isolamento Social
As transformações ocorridas na sociedade moderna, desde o Iluminismo e a industrialização, modificaram qualitativamente a vida política, econômica, cultural e espiritual de toda a humanidade. Construiu-se uma maneira de viver e conviver responsável pela concentração de populações nas cidades e polos industriais, modificando radicalmente as relações da própria humanidade em si e com a natureza .
Este modelo mundializou-se, transformando, destruindo e incorporando valores das sociedades anteriores, como também criando novos valores, modificando hábitos e costumes seculares, com alto custo social e ambiental, impactando cada vez mais a vida das pessoas.
A base científica e técnica da sociedade atual, principalmente a partir do aparecimento da internet – do funcionamento das redes de comunicação em escala mundial, construiu uma nova dinâmica nessas relações políticas, econômicas, culturais e espirituais, modificando crenças e valores, proporcionando uma troca de informações em tempo real, entre diferentes povos e culturas, mudando radicalmente a nossa percepção da realidade, no tempo e no espaço – território, onde vivemos e construímos as nossas vidas.
A globalização da economia é um processo inexorável. Atende às expectativas das principais economias mundiais, em confronto com os interesses da maioria dos Estados nacionais, periferia deste sistema mundial.
A sociedade e o mercado desafiam o indivíduo na sua vida cotidiana, frente a tudo e a todos, a sua capacidade de realização, de acumular e de ser competitivo. É o imperativo da sociedade contemporânea. O Ter construiu uma hegemonia, colocou-se no lugar do Ser.
Coexistem práticas, nas esferas da sociedade civil, em disputa com as organizações do Estado e do Mercado, buscando novas formas de hegemonias, trazendo para a esfera da política os desafios desta construção.
Assim, a sociedade funciona, vertiginosamente.
O que podemos fazer, nesse momento de incertezas e de dúvidas em relação ao nosso futuro imediato?
Os meios de comunicação martelam diariamente a realidade do mundo atual. Vivemos a cada dia um cenário complexo, de incertezas e preocupações individuais e coletivas. Ainda não temos clareza de como a pandemia vai ser superada. As ciências nos abrem possibilidades, tudo indicando que a vacina de combate ao corona vírus está próxima de ser produzida.
Nas ruas e nas redes somos impactados com a tragédia social, ampliada com a pandemia, atingindo milhões de pessoas excluídas das conquistas sociais elementares (trabalho, alimentação, moradia, saúde e educação).
Quais as mudanças em curso?
Quais os principais desafios pós pandemia?
Vivemos, desde o século XVII, a mudança de paradigmas milenares. Antigas e novas contradições persistem, em pleno século XXI.
Somos ainda, de alguma maneira, herdeiros do século XVII, quando a sociedade era profundamente religiosa. A religião interferia na sociedade e na vida das pessoas. Newton, Leibniz, Pascal e até Descartes tinham formação religiosa. Contribuíram muito para as mudanças de paradigmas do tempo em que viveram. Então, havia uma cumplicidade conflituosa entre a filosofia, a ciência e a religião. Avançamos, nos séculos posteriores – os séculos XVIII e XIX – com uma percepção mais ampla e sistêmica do que acontecia na sociedade e na natureza. Construiu-se, desde então, uma visão materialista da história, com a contribuição dos filósofos iluministas, de Feuerbach, de Marx e de Engels, centrada no anticlericalismo, no antidogmatismo e na crítica às religiões.
Hoje, em pleno século XXI, ainda persistem os conflitos religiosos, sociais e ambientais, alguns mais complexos, agravados com o aumento significativo da população mundial e a afrontosa concentração de riqueza produzida coletivamente e apropriada por poucas famílias e corporações mundiais.
Portanto, o mundo em que vivemos foi construído com essas bases, conflitos e contradições desses períodos históricos recentes. Lutas, derrotas, vitórias, avanços, direitos conquistados a partir da revolução francesa e da revolução russa, parteiras de novas perspectivas sociais, colocando, nos seus contextos históricos, as utopias, as ideias e as lutas de milhões pela liberdade, igualdade e fraternidade. Desafios que continuam atuais.
Desse modo, a sociedade moderna ficou mais complexa. Além das organizações estatais e dos mercados, entram em cena a sociedade civil e a questão ambiental. As organizações políticas, econômicas, culturais e religiosas precisam reinventar-se para o enfrentamento dos novos desafios da vida contemporânea. Os questionamentos e as incertezas fazem parte da vida, das nossas distintas realidades sociais.
Destaque-se ainda o impacto, cada vez maior, da ciência e da tecnologia no cotidiano das pessoas. A globalização em curso e o avanço das comunicações constroem realidades integradas e fragmentadas, impactando a vida da sociedade em geral.
As redes sociais pautam as nossas vidas, o mundo em que vivemos. Criam desejos em cada indivíduo e este, por sua vez, quer ser parte, ter acesso ao que vê nas redes e nas vitrines dos shoppings. Muitas vezes, inatingíveis a cada um de nós.
Assim, nos tempos de pandemia e de isolamento social que estamos vivendo, continuam a martelar as nossas consciências os velhos e novos desafios nestas primeiras décadas do século XXI: a construção de um humanismo que inclua a todos, sem discriminações, na perspectiva de Ser e não de Ter.
A pandemia nos remete a esta reflexão e nos desafia. O confinamento social nos faz refletir sobre a precariedade da sociedade atual e o futuro desejado por cada um de nós.
Os valores vigentes precisam ser transformados, incorporando novas narrativas econômicas, sociais, culturais e espirituais, comprometidos com a diversidade, a pluralidade e a tolerância, respeitando as diferenças dos povos e a natureza.
O trabalho em home office sinaliza para novas relações políticas, econômicas e culturais. Mudanças estão acontecendo. O despertar para a cooperação e a solidariedade está fazendo parte das nossas vidas. Estamos nos transformando? O que é provisório e o que é permanente?
Uma outra sociedade é possível, incorporando e ampliando as conquistas que nos trouxeram até aqui como humanidade, colocando a centralidade da questão democrática, com uma participação efetiva da cidadania nas decisões para transformar o mundo que temos em direção à sociedade que queremos construir.
São dilemas para a nossa vida individual e coletiva, buscando novos significados à nossa existência.
Seremos capazes?
O que cada um de nós está fazendo nessa direção?
*Professor da Universidade Federal da Bahia e da Oficina da Cátedra da Unesco em Sustentabilidade
Folha de S. Paulo: Teich pede demissão do Ministério da Saúde
Nelson Teich avisou Bolsonaro que não poderia mudar o protocolo sem comprovação científica
Natália Cancian e Talita Fernandes, da Folha de S. Paulo
A dois dias de completar um mês no cargo, o ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu demissão nesta sexta (15), informou o próprio ministério.
Uma coletiva de imprensa será marcada nesta tarde, de acordo com a pasta.
Em sua breve passagem pelo cargo, Teich teve poder como ministro minimizado pelo presidente Jair Bolsonaro.
Na segunda (11), foi informado pela imprensa de decisão do presidente de aumentar a lista de atividades essenciais com salões de beleza, academias e barbearias, mostrou-se surpreso e virou alvo de memes. A postura surpresa reforçou a visão de que o ministro estava afastado de decisões que interferem em recomendações da Saúde.
Também foi enquadrado por Bolsonaro a ampliar o uso da cloroquina para pacientes com quadros leves da Covid-19, apesar da falta de evidências científicas do medicamento para o novo coronavírus. Estudos recentes internacionais, publicados em revistas científicas de prestígio, não mostraram benefícios da droga em reduzir internações e mortes e apontaram riscos cardíacos.
As divergências sobre o uso da droga foram consideradas a gota d'água para a saída de Teich.
Teich avisou Bolsonaro nesta sexta (15) que não poderia mudar o protocolo sem comprovação científica sobre a eficácia da cloroquina no início do tratamento.
Em uma teleconferência com grandes empresários organizada na quinta-feira (14) pelo presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Paulo Skaf, Bolsonaro afirmou que o protocolo sobre o uso da cloroquina "pode e vai mudar".
"Agora votaram em mim para eu decidir e essa questão da cloroquina passa por mim. Está tudo bem com o ministro da Saúde [Nelson Teich], sem problema nenhum, acredito no trabalho dele. Mas essa questão da cloroquina vamos resolver. Não pode o protocolo —de 31 de março agora, quando estava o ministro da saúde anterior [Luiz Henrique Mandetta]— dizendo que só pode usar em caso grave... Não pode mudar o protocolo agora? Pode mudar e vai mudar", declarou Bolsonaro.
"Cloroquina hoje ainda é uma incerteza. Houve estudos iniciais que sugeriram benefícios, mas existem estudos hoje que falam o contrário", afirmou Nelson Teich em 29 de abril. "Os dados preliminares da China é que teve mortalidade alta e que o remédio não vai ser divisor de águas em relação à doença."
Houve também cobrança por parte do governo sobre a demora dele em divulgar um plano mais flexível sobre isolamento.
Nelson Teich foi convidado por Bolsonaro para assumir a pasta com a expectativa de equilibrar as ações da pasta de forma a evitar mortes por coronavírus mas também minimizar o impacto econômico das medidas de restrição.
Inicialmente, chegou a dizer que o país "não sobrevive um ano parado" e defendeu um "plano de saída" do isolamento.
Em seguida, pressionado por parlamentares, passou a dizer que o ministério "nunca mudou" de posição sobre o distanciamento. Ainda assim, vinha defendendo que as medidas sejam avaliadas de acordo com o cenário de cada local.
O ministro chegou a programar o anúncio de um plano que previa diferentes níveis de distanciamento a serem aplicados por estados e municípios, com base na avaliação de diferentes indicadores.
A divulgação, porém, foi cancelada em cima da hora por falta de consenso com representantes de secretários estaduais e municipais de saúde. Essa foi a primeira derrota do ministro no cargo.
Desde que Teich assumiu o cargo, o governo já vinha ampliando o número de militares na gestão da saúde. O ministro também não chegou a definir sua equipe completa, deixando postos-chave na assistência sem definição.
Teich é o segundo ministro a deixar a Saúde em meio à pandemia. Juntamente com o impasse sobre o isolamento social, divergências sobre a aplicação da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes da Covid-19 foram um dos principais pontos que levaram à demissão de Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril.
Internamente, o governo estuda que a pasta seja assumida pelo secretário-executivo, general Eduardo Pazuello.
Panelaços foram ouvidos em São Paulo e no Rio de Janeiro após o anúncio do ministro.
Míriam Leitão: O mal avança nas sombras
Riscos ao meio ambiente e aos direitos indígenas aumentam enquanto o país está concentrado na luta contra a pandemia do novo coronavírus
Na calada desta nossa noite em que a dor da pandemia se soma às ameaças do presidente Jair Bolsonaro à democracia, outras áreas correm extremo perigo. Em abril, o desmatamento na Amazônia foi de 406 km2, 64% a mais do que no ano passado, segundo o Deter. Nos quatro primeiros meses, a alta foi de 55,5%. Portarias, MPs, instruções normativas dão forma ao projeto de perdoar grileiros e enfraquecer órgãos ambientais. Terras indígenas são ameaçadas e seus líderes correm riscos. O governo conta com as atenções do país concentradas na crise da saúde para avançar com o projeto de reduzir direitos indígenas e legitimar o ataque ao meio ambiente.
Em mais uma GLO na Amazônia, os militares estão sendo escalados para conter o que tem sido estimulado pelo próprio governo. A operação das Forças Armadas cria uma situação difícil. O Ibama, que já é cerceado, passa a ser subordinado aos militares. Seus quadros técnicos terão que seguir ordens de oficiais que não têm a mesma qualificação e experiência no combate ao desmatamento. Isso num momento em que os servidores que cumprem a lei na fiscalização são punidos. Os que destroem equipamentos, que é a arma mais poderosa para combater o crime, são exonerados.
O ministro Ricardo Salles, enfraquecido, mudou de tática. Agora, trabalha em silêncio. No dia 6 de abril, um despacho do Ministério do Meio Ambiente criou uma ameaça direta à Mata Atlântica. O ato administrativo recomenda ao Ibama e ICMBio que esqueçam a Lei da Mata Atlântica e se guiem pelo Código Florestal, que tem regras mais brandas. Isso na prática cancela multas, desobriga o proprietário de recuperar áreas de proteção permanente e reconhece as propriedades rurais instaladas em áreas de proteção ambiental antes de 2008.
A Lei da Mata Atlântica foi uma conquista de duas décadas de luta no Congresso. Nesse bioma moram 150 milhões de brasileiros e os remanescentes de mata têm sido protegidos principalmente por particulares. Quem preserva ou se esforçou nos últimos anos para cumprir a lei se sente tolo. O que dá certo no Brasil é ser ilegal e esperar pela anistia. O Ministério Público Federal, a SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente entraram com uma Ação Civil Pública contra o despacho de Salles.
A Amazônia é ameaçada diretamente pela MP da Grilagem. A MP 910, em vigor desde dezembro, está para ser votada com várias aberrações. Na primeira versão do projeto, permitia-se regularizar terra ocupada até dezembro de 2018. Na versão mais recente, quem tiver invadido terra até 2014 pode ter título de propriedade. Áreas de até 15 módulos fiscais podem ser regularizadas sem vistoria de campo. Em alguns lugares isso significa até 2.500 hectares. A luta está sendo para reduzir o tamanho da terra que pode ser legalizada sem o poder público conferir. E por fim, a MP estabelece que multa ou qualquer irregularidade não impedem o processo de legalização. Só será impedida a emissão de título de propriedade quando o processo estiver transitado em julgado.
A questão indígena sempre foi tratada com desprezo pelo governo Bolsonaro. Na gestão Sérgio Moro, a Funai foi aparelhada com a nomeação de pessoas totalmente estrangeiras à causa indígena. Nada indica que haverá mudança agora. O Ministério devolveu à Funai 17 processos de demarcação de terras indígenas, alguns já prontos para a homologação. Uma portaria recente da Funai reduziu os poderes do próprio órgão para conter o avanço da grilagem em terras indígenas. Há lideranças sob ameaça, e os criminosos aproveitam a confusão da Covid-19 para praticar seus crimes. No dia 17 de abril foi morto um jovem líder, de 34 anos, Ari Uru-eu-wau-wau, em Rondônia. Ele passou meses sendo ameaçado por grileiros. Ari tinha como foco do seu trabalho denunciar extração ilegal de madeira, ou seja, ele protegia o patrimônio público. Seu corpo foi encontrado na beira da estrada, com sinais de que havia sido arrastado depois de morto. Tinha sangramento na boca e na nuca decorrente de pancada forte na cabeça e a causa da morte foi sangramento agudo. Era pai de dois meninos, de 10 e 14 anos. Nas sombras da pandemia e do ataque de Bolsonaro às instituições, outros perigos rondam o país.