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Vladimir Safatle: Uma revolução molecular assombra a América Latina

O termo veio pelas mãos de Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje Governa o país. Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma “revolução molecular dissipada” que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.

A América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas explicam bem o que “revolução molecular” significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.

De fato, o século XXI começou assim. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo. Pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.

Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do Governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o Governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os país árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.

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Desde então o mundo verá uma sequência de insurreições durante 10 anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago: são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos 10 anos: sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios a mostra nas redes sociais e greves gerais. A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como sempre foi. Mas há um momento em que a repetição acaba por gerar uma mudança qualitativa. Dez anos depois, ela ocorreu e foi possível de ser vista no último domingo, no Chile.

No último domingo, o Chile elegeu uma nova Assembleia Constituinte. Depois de manifestações massivas em outubro de 2019 que fizeram as ruas chilenas queimarem até o Governo parar de matar sua própria população e aceitar convocar um processo constitucional, o Chile elegeu 155 deputados constituintes, dos quais 65 são independentes, ou seja, não vinculados a estrutura partidária alguma, mas unidos, como os 24 constituintes da Lista del Pueblo, por um “Estado ambiental, igualitário e participativo”; 79 constituintes são mulheres, sendo a única Assembleia Constituinte da história mundial a ter maioria de mulheres; 18 são povos originários, sendo que todos estão presentes (desde os Rapanui da Ilha da Páscoa até os Mapuches). A direita, que ansiava alcançar ao menos um terço para poder barrar as modificações constitucionais, terá apenas 37 deputados.

O caráter absolutamente único do processo chileno encontra-se no fato de ele se produzir como institucionalização insurrecional. Ele foi resultado de uma insurreição que exigiu imediatamente uma nova institucionalidade. Os islandeses tentaram isso, quando a crise econômica produziu profundas mobilizações populares que terminaram por produzir uma nova constituição. No entanto, o Parlamento não reconheceu a nova carta, abortando o processo.

Tal excepcionalidade andina deve ser compreendida à luz do que foi a via chilena para o socialismo. O Governo de Salvador Allende (1970-1973) procurou realizar um programa marxista através de uma mutação progressiva da vida social que preservava largas partes da estrutura da democracia liberal. Muitos criticaram tal estratégia depois do golpe, mas há de se lembrar de suas razões. Era a maneira dos chilenos e chilenas impedirem a militarização da vida social, como normalmente ocorreu em todos os processos revolucionários até agora. Havia uma questão real que o Chile procurou resolver inovando.

De certa forma, esse processo interrompido retoma agora 47 anos depois. Desde as revoltas estudantis no Governo Bachelet, o Chile viu lideranças estudantis se tornarem deputados e deputadas para arrancar do Congresso uma reforma que tornava gratuito o sistema público de ensino. Agora, eles fizeram o movimento inédito de só saírem das ruas com uma constituinte nas mãos, o que os tunisianos só conseguiram anos depois da formação do primeiro Governo pós-ditadura. Ao acoplar os dois processos, o Chile permitiu que o entusiasmo insurrecional comandasse o processo constitucional, institucionalizando sua revolução molecular.

O espectador que vê tudo isso do Brasil pergunta-se o que ocorre conosco. No entanto, erram aqueles que pensam que tal dinâmica não chegará no Brasil. Ocorre que ela encontrará uma situação muito mais dramática. Pois o Brasil é o país no qual as forças da reação organizaram-se de forma insurrecional. São setores expressivos da população que foram e irão às ruas pedir golpe militar e defender o fascismo de quem nos governa. Dentro da lógica da contrarrevolução preventiva, o Brasil, à diferença de outros países latino-americanos, foi capaz de mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular. Por isso, o cenário tendencial entre nós é o de uma insurreição contra outra insurreição. Uma revolução fascista contra uma revolução molecular dissipada. Melhor seria estarmos preparados para tanto.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html


Demétrio Magnoli: Raiz da desconfiança da vacinação está no poder estatal

Quantos? 100 mil, segundo os jornais da época, ou 20 mil, segundo historiadores, marcharam na cidade inglesa de Leicester em 23 de março de 1885, protestando contra a vacina obrigatória da varíola.

A resistência ativa ou passiva à imunização é tão antiga quanto a moderna história das vacinas, que começa com a invenção de Edward Jenner, em 1796. No seu capítulo atual, ela ameaça impedir a imunidade coletiva à Covid-19 em certos países ou regiões.

A raiz profunda da desconfiança da vacinação encontra-se no temor do poder estatal, especialmente quando se trata do controle sobre o próprio corpo dos indivíduos. No passado, os agentes vacinadores eram os mesmos funcionários encarregados de trancafiar os pobres em estabelecimentos de trabalho ou de remover habitações de locais insalubres.

De Leicester, 1885, a Zomba, no Maláui britânico, em 1960, passando pela Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, incontáveis levantes antivacinais refletiram as suspeitas populares sobre as motivações dos governos.

A resistência segue nítidos contornos ideológicos. Na França, uma pesquisa de 2019, anterior à pandemia, revelou que 53% dos eleitores da extrema esquerda e 61% dos eleitores da extrema direita acreditavam num conluio do governo com as farmacêuticas destinado a ocultar os malefícios das vacinas. A polarização política anda de mãos dadas com a resistência à imunização: nos EUA, entre os seguidores de Trump; no Brasil, entre os de Bolsonaro.

Deus me protege, a vacina traz a Marca da Besta —religiosos fundamentalistas, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus, resistem à imunização. Numa sondagem conduzida nos EUA, 45% dos brancos evangélicos responderam que não tomarão vacina contra Covid, contra 30% da população em geral.

Meu corpo é um santuário intocável —naturalistas radicais também resistem, pois vacinas seriam substâncias artificiais e, portanto, tóxicas. Mas, diante da pandemia, a hesitação deriva, sobretudo, de atitudes políticas.

Campanhas de vacinação associam-se ao centralismo estatal, à ênfase na proteção coletiva e à ideia de um bem público oferecido igualitariamente. Na ponta oposta, a doutrina ultraliberal prega o individualismo, a fragmentação das instituições hospitalares e a adoção de soluções de mercado para a saúde pública. A aversão dos ultraliberais ao contrato social está na base da hesitação de setores da população diante da vacina.

Mas os ultraliberais não estão sós. O discurso conspiratório ritual da esquerda, contrário às multinacionais farmacêuticas, foi adotado pela direita nacionalista, que o coloriu como denúncia do “globalismo”. A vacinação faria parte de um plano maligno de instituições multilaterais (OMS), governos internacionalistas (Biden, Merkel, Xi Jinping) e corporações globais para submeter as nações.

Nas suas versões mais desvairadas, esse discurso assegura que as vacinas são vetores biológicos de controle das mentes. O Bolsonaro da “vachina do Doria” ilustra, em toda a sua estupidez, a campanha antivacinal da extrema direita.

Nos EUA, onde quase 50% tomaram a primeira dose, o ritmo da imunização reduziu-se fortemente, pois a campanha começa a enfrentar a barreira demográfica da resistência vacinal: 64% dos restantes não confirmam que tomarão a dose inicial. Na União Europeia, onde apenas 30% tomaram a primeira dose, o cenário é igualmente preocupante: dependendo do país, entre 61% e 39% dos restantes hesitam em tomá-la.Os governos europeus só contribuíram com a resistência ao questionar a eficácia e segurança das vacinas. A maior hesitação encontra-se na França, o que reflete a amarga polarização política nacional.Boa notícia: no Brasil, parcela pequena, e decrescente, da população resiste à imunização. Eis mais uma derrota de Bolsonaro —e um dos raros sinais positivos na nossa paisagem política.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-raiz-profunda-da-desconfianca-da-vacinacao-encontra-se-no-temor-do-poder-estatal.shtml

 


Alon Feuerwerker: Sinal amarelo

À sombra das disputas políticas que desfilam no palco da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19, os números da epidemia no Brasil começam a trazer dados algo precocupantes.

A curva da média movel de mortes ainda é declinante, mas isso convive com uma certa escalada na média móvel de casos, e agora também com alguns sinais, aqui e ali, de que voltou a subir a taxa de ocupação das UTIs (leia).

Será preciso acompanhar a situação nos próximos dias com grande atenção. Será necessário saber se estamos no início de uma terceira onda, qual a variante propulsora, e se é mais transmissível, se é mais letal.

Será mais que nunca obrigatório vigilância para que as autoridades não baixem a guarda, não desativem serviços hospitalares, especialmente na área de cuidados intensivos.

Não podemos repetir os equívocos acontecidos entre a primeira e a segunda ondas.

A CPI está corretamente debruçada sobre os erros passados. Não repeti-los é uma boa maneira de inclusive homenagear a memória das vítimas.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte:

Análise Política

http://www.alon.jor.br/2021/05/sinal-amarelo.html


Bruno Boghossian: No tudo ou nada, Ciro vai acabar no Planalto ou em crise de identidade

No início da semana, Ciro Gomes (PDT) chamou Lula de “o maior corruptor da história”. Dias depois, publicou um vídeo em que diz que a corrupção “apenas se escondeu melhor” no governo Jair Bolsonaro. Em sua quarta corrida ao Planalto, o ex-ministro tenta encaixar um discurso para confrontar tanto o petista como o atual presidente.

Ciro testa as águas de uma campanha “contra tudo o que está aí”. Nas mensagens que tem divulgado em entrevistas e publicações em redes sociais, ele ensaia uma retórica de indignação generalizada, fala de distorções de governos passados e explora o fantasma da corrupção para tentar fragilizar, de uma só vez, seus dois principais concorrentes.

O pedetista faz uma aposta arriscada. Identificado com plataformas de esquerda, o ex-ministro do governo Lula enxerga o petista em posição dominante nesse segmento do eleitorado, historicamente ligado ao PT. Seus aliados entendem, com isso, que a única maneira de chegar ao segundo turno é eliminar Bolsonaro.

Como a esquerda parece congestionada, Ciro trabalha para enfraquecer e substituir Bolsonaro nas demais fatias da população. O problema do ex-ministro é que, na direita, suas ideias dificilmente terão aderência suficiente para impulsioná-lo até o segundo turno, mesmo que o atual governo esteja desgastado.

Se outro candidato com uma plataforma mais palatável estiver na corrida, o pedetista fica para trás. Por isso, aliados de Ciro buscam convencer o pelotão de políticos que reivindicam o rótulo de centro a abandonar a disputa para apoiá-lo. Ainda que ele seja ungido, eleitores desse lado do espectro podem preferir votar em Bolsonaro para derrotar Lula.

Caso vá ao segundo turno, Ciro ainda enfrentaria o desafio de bater o petista num confronto direto. Ele precisaria trabalhar para aumentar a rejeição a Lula e contar com uma atração quase universal de eleitores que escolherem outros nomes no primeiro turno. O pedetista chegará ao fim de 2022 em crise de identidade ou com as chaves do Planalto

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/05/no-tudo-ou-nada-ciro-vai-acabar-no-planalto-ou-em-crise-de-identidade.shtml

 


Reinaldo Azevedo: Precisamos da Frente Ampla Contra o Ódio; o resto se vê depois

Pensem nos quase 450 mil mortos de Covid-19 e lembrem-se dos respectivos desempenhos de Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello na CPI. Procurem se inteirar dos motivos que levaram o ministro Alexandre de Moraes a autorizar a operação da PF contra a cúpula do Ministério do Meio Ambiente. Pensem no palanque em favor de um golpe, armado em Brasília no sábado passado, com a presença do ministro da Defesa.

Leiam, nesta Folha, a entrevista de Mario Frias, secretário de Cultura, que viajou à Itália para a abertura da 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Ele confessa à repórter não saber quem é Lina Bo Bardi, a grande homenageada da mostra. Informado sobre as obras que ela projetou no Brasil, usou-a como exemplo do que entende ser a “alma brasileira”. Italiana, Lina só se naturalizou em 1951, aos 37 anos. Isso não é um governo.

É natural, nas democracias, que grupos e partidos se organizem para apoiar ou se opor à administração de turno, segundo os valores e o viés ideológico dos que estão no poder e dos que a eles se opõem. Há, no entanto, uma diferença entre fazer oposição a um governo dito “conservador” ou “progressista”, segundo marcos de “economia política” —expressão que precisa ser devolvida ao debate—, e ter de resistir à combinação de múltiplas expressões de delinquência.

Mundo afora, governos querem, por exemplo, taxar um pouco menos ou um pouco mais os ricos. O pressuposto dos primeiros, para ser sintético, é que mais dinheiro com a sociedade, não com o Estado, gera um maior número de empresas e empregos —e, pois, aumenta a riqueza. Já seus adversários sustentam que o modelo concentra renda e conduz a iniquidades sociais.

Ganhando a direita democrática, ou uma variante mais ao centro, esta buscará adotar medidas compensatórias para enfrentar a crítica de que não se importa com o social. Vencendo a esquerda, ou força assemelhada, o normal é que busque um entendimento com os donos do dinheiro, tentando convencê-los de que a redução das desigualdades amplia o mercado e, pois, a riqueza —aquela mesma que a direita também diz buscar. Avança-se. Ora com mais reformismo, ora com menos.

Em 2018, o Brasil rompeu com a direita, com a esquerda e com o centro. Em 2018, o Brasil rompeu com o bom senso. Em 2018, o Brasil rompeu com a racionalidade. Em 2018, o Brasil rompeu com a economia política. Em 2018, o Brasil rompeu com a ciência. Em 2018, o Brasil rompeu com o pacto civilizatório. Em 2018, o Brasil rompeu com o futuro.

Já escrevi dezenas de textos a respeito. Demonstrei em que medida a razia provocada nas instituições alimentou a crença de que haveria uma solução mágica. Mais: ela seria imposta por um ogro —ignorante e grosseiro, como sói—, mas que traria consigo a vontade genuína de acertar, livre de todos os “vícios” dos políticos. Ocorre que os tais “vícios” traduzem, justamente, as virtudes da conciliação necessária. Eram e são muitos os males a corrigir. Mas nenhum fora ou acima da política.

Na marcha rumo aos 500 mil mortos, vemos que Jair Bolsonaro cumpre rigorosamente o que prometeu. Já eleito, afirmou, ainda antes da posse, haver no país mais coisas a desconstruir do que a construir.

Observem: com sinais de uma possível terceira onda de Covid-19 —sem que a segunda tenha deixado de nos apavorar—, o Ministério da Saúde ainda não fez uma campanha nacional sobre métodos de prevenção porque, afinal, estes não combinam com as crenças do presidente e com seus próprios hábitos. E, no entanto, lá estava Braga Netto, da Defesa, no palanque golpista.

Que as forças comprometidas com o pacto civilizatório façam o possível para que as hostes da destruição não sejam nem mesmo uma das opções em 2022. O governo Bolsonaro não pode ser visto como um simples surto de incompetência a ser superado. Estamos diante da evidência de que a democracia não precisa de um golpe para morrer. Ela pode ser solapada pela irracionalidade tomada como um método.

Pode ser aterrador, eu sei, mas o Brasil contemporâneo prova que o ódio e o ressentimento são forças poderosas e mobilizadoras.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/05/precisamos-da-frente-ampla-contra-o-odio-o-resto-se-ve-depois.shtml


Hélio Schwartsman: A revanche do cabo e do soldado

A seguir nessa toada, bastarão um cabo e um soldado da PM munidos de ordem judicial para apear Jair Bolsonaro da Presidência. O governo enfrenta batalhas em vários fronts —e está perdendo todas.

O teatro de operações mais vistoso é a CPI da Covid. Os depoimentos vêm não apenas escancarando o completo despreparo do governo para lidar com a crise como o seu descaso para com o que se convencionou chamar de verdade. Para proteger o presidente, ex-ministros não hesitam em cair em contradições flagrantes e sustentar o insustentável.

O campeão foi o ex-ministro Eduardo Pazuello. Para tentar conciliar as declarações do presidente sobre a Coronavac com a tese de que ele não atrapalhou a política do Ministério da Saúde de aquisição de vacinas, Pazuello basicamente defendeu que o que Bolsonaro diz não pode ser levado a sério.

Outra esfera em que o governo vem sofrendo desgastes é a da corrupção. A operação da PF no Ministério do Meio Ambiente, autorizada pelo STF, mostra que há indícios fortes de corrupção nos altos escalões da administração.

Igualmente comprometedor é o chamado “tratoraço“, o esquema, revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, pelo qual o governo Bolsonaro compraria apoio parlamentar liberando emendas num orçamento paralelo e superfaturado. O brocardo bolsonarista “pelo menos não tem corrupção” fica cada vez mais insustentável.

Só o que pesa a favor do governo é que a economia sofreu menos do que se esperava com a segunda onda da epidemia. Mesmo assim, inflação e desemprego seguem em alta.

Não sei se o cabo e o soldado serão chamados a agir. Razões jurídicas e morais para fazê-lo não faltam. O que falta é romper a inércia política. Mas receio que Bolsonaro já tenha cometido tantos despautérios que anestesiou a sensibilidade pública. Nada mais que ele faça vai parecer chocante o bastante para motivar as pessoas a exigir sua destituição.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/a-revanche-do-cabo-e-do-soldado.shtml


Vinicius Torres Freire: Um país resignado à morte

O combate à epidemia limita-se no momento a evitar que as UTIs lotem, que um excesso de pessoas morra asfixiada e que não aconteça escândalo maior por causa desses horrores. É o que se pode dizer, com desassombro temperado de resignação deprimida. Deve ser assim até o fim da epidemia.

Quando não há lotação de UTIs, falta de oxigênio nos hospitais ou novos “picos recordes”, leva-se a vida, nos governos ou nas ruas, morram 500, 1 mil, 2 mil ou 3 mil pessoas por dia, seja qual for o “platô” da temporada. Os estados, na prática, jogaram a toalha. Governo federal não há.

Haveria como remediar essa situação, e pouco, se Bolsonaro evaporasse. Não vai acontecer em tempo hábil, se tanto.

A CPI da Covid é necessária, claro. Talvez a CPI encaminhe (para quem?) medidas judiciais contra Jair Bolsonaro (hum…) ou Eduardo Pazuello, daqui uns meses, semanas ou até daqui a pouco, como o tal “relatório parcial”, o que é necessário, claro. E daí?

A administração federal da epidemia continua quase tal e qual descrita pelo general Pesadello: Bolsonaro sabota as medidas sanitárias dos “idiotas” e o ministro da Saúde tenta fingir que não é com ele. Marcelo Queiroga talvez não consiga ser tão incapaz quanto o brucutu mendaz que é Pesadello. Mas produz o quê?

O controle da epidemia depende, bidu, de antecipar mais vacinas. Não há mais vacinas, não há aceleração do cronograma. A partir de meados de junho, talvez faltem até as doses previstas nos planos mais realistas. O problema crucial é o atraso das importações de matéria prima da China, que talvez fosse atenuado por uma conversa séria de um governo do Brasil com o da China (hahaha). É o assunto central da vida, da educação, da fome, da sanidade, da economia. A gente não trata a coisa assim. Discute o ignóbil Pesadello.

Queiroga diz que Bolsonaro tem “excelente relação” com a China. Disse também essa outra sabujice repulsiva e marqueteira, segundo registro da Agência Brasil: “É importante passar uma mensagem positiva para a sociedade brasileira, e não essa cantilena de que está faltando [matéria prima importada de vacina]. O Brasil precisa de tranquilidade para superarmos juntos essa dificuldade sanitária”.

Controlar os riscos da epidemia depende de coordenação nacional. Graças à descoordenação, a Bolsonaro, a variante de Manaus se espalhou pelo país, causando a desgraça maior sabida. Em breve, talvez ocorra desastre semelhante com uma possível variante indiana assassina.

Monitorar de modo consequente, prático, a epidemia, depende de testagem em massa e de estudo nacional e coordenado das variantes do vírus. No domingo, o lépido e antenado Queiroga disse que está “em estudo” uma campanha de testagem. Já, Queiroga? Que rápido.

Arrumar mais vacinas depende de trabalho para facilitar a aprovação de novos imunizantes. O que o governo faz para acelerar, segundo critérios técnicos, a compra de vacina russa, indiana ou inca venusiana? Não há sentido algum de emergência.

Os estados relaxam as restrições de movimento e negócios, pois não têm mais força ou ânimo políticos para impô-las, de resto sabotadas, vamos repetir, por Bolsonaro. Tentam agora apenas evitar o colapso das UTIs.

Se não houver nova variante assassina, a epidemia vai morrer de morte morrida, depois que uma quantidade grande de gente tenha sido morta ou infectada e outro tanto tenha sido vacinada, daqui a alguns meses. É praticamente o plano Bolsonaro 2 (o plano 1 não tinha nem vacina, era pura morte de rebanho): deixa morrer.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/no-pais-resignado-a-morte-combate-a-epidemia-se-reduz-a-evitar-uti-lotada.shtml


Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, Pazuello vira ‘herói’ do governo na CPI da Covid

Se não convenceu boa parte do público, pode-se dizer que o depoimento de Eduardo Pazuello funcionou em pelo menos um universo: os grupos bolsonaristas no WhatsApp e no Telegram. Entre esses seguidores, a decisão de não usar o habeas corpus fornecido pelo STF para ficar calado e até confrontar os senadores em alguns momentos fez sucesso.

Ao longo de todo o depoimento, as listas pró-Bolsonaro no WhatsApp foram inundadas com mensagens que indicavam a narrativa a ser reproduzida nas redes. “A primeira farsa dos opositores caiu hoje. Apostaram no silêncio, mas o ministro veio preparado e falou muito”, disse um dos textos disseminados nas redes. “O ex-ministro Pazuello está destruindo todas as narrativas fabricadas contra o governo federal naquele circo que está acontecendo no Senado”, diz outra mensagem.

Para o zap bolsonarista, Pazuello – que várias vezes se referiu às declarações e ordens de Bolsonaro durante a pandemia como “coisa de Internet” –  “detonou” senadores acusados de corrupção e “provou” que o governo não tem responsabilidade pela tragédia pandêmica.

Solidários ao ex-ministro várias vezes chamado de “herói”, muitas postagens diziam ter sido um ultraje até mesmo a convocação do general, que esteve à frente do Ministério da Saúde no período em que morreram mais da metade das 445 mil vítimas da Covid-19 no Brasil.

“Humilhante para o general Pazuello, um homem sério, ser sabatinado por esses crápulas!”, desabafou um bolsonarista em um grupo do Telegram. “Quero deixar minha indignação aqui com essa CPI. Estão a todo o momento denegrindo (sic) a imagem do ministro Pazuello e do nosso presidente”, escreveu uma apoiadora.

O fato de Pazuello blindar completamente o presidente da República de qualquer responsabilidade pelo fracasso na pandemia também pesou a favor do ex-ministro nas redes. Para os seguidores, o general foi um “guerreiro”  que defendeu Bolsonaro de conspiradores.

Dentre eles, o mais atacado foi o relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), mas também sobrou para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), e outros parlamentares.

“General Pazuello, um oficial general extremamente bem preparado, conseguiu com sua exposição dos fatos, relacionados à sua atuação como Ministro da Saúde, provocar um golpe certeiro nas armações e manipulações de Renan Calheiros ao longo da CPI”, disse uma mensagem assinada por um suposto comandante militar.

No Telegram, cada vez mais frequentado por bolsonaristas, uma lista de apoiadores de Eduardo Pazuello foi criada na tarde de quinta-feira, enquanto ele falava à CPI.

Setenta pessoas já aderiram e passaram a receber artes e cards com as inscrições #Somos Todos Pazuello e ilustrações já com visual de campanha eleitoral. Até o agravamento da pandemia sacá-lo do cargo, Pazuello cogitava concorrer ao governo de Roraima ou do Amazonas. O grupo também criou um perfil no Instagram para homenageá-lo.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/nas-redes-bolsonaristas-pazuello-vira-heroi-do-governo-na-cpi-da-covid.html


Ruy Castro: Pazonaro, digo Bolsuello, ganhou

Quem não sabe fazer perguntas não tem chance contra respostas que não querem dizer nada

O general Eduardo Pazuello, quem diria, hein? Promovido da chefia do serviço de rodos e vassouras dos quartéis ao posto de ministro da Morte por Jair Bolsonaro, botou no bolso seus inquiridores na CPI da Covid apenas por vencê-los numa arte que se julgava extinta: a oratória. Resposta após resposta, quase se podia ver seu sorriso sob a máscara, ao ouvir sua voz ressoar triunfalmente no auditório sem ser intimado a detalhar ou fundamentar suas declarações.

Se alguém se limitasse ao áudio dos interrogatórios de Pazuello, só escutaria a sua voz —firme, sonora, em alto volume, temperada em anos de ordens na caserna a soldados, cabos e sargentos, com eventuais humilhações a um ou outro ao obrigá-lo a se fazer de mula e puxar carroça na frente da tropa. Em contraposição, tínhamos a elocução tíbia, raquítica, titubeante e súplice dos senadores encarregados de lhe fazer perguntas.

Perguntas essas que só vinham à tona depois de 15 minutos de discurso por parte de cada senador —talvez de grande valia para os anais da CPI, mas de eficácia zero para fazer o inquirido falar. Pazuello foi brilhante ao enrolar, tergiversar, dar voltas e adiar cada resposta de modo a que, ao fim desta, ninguém mais se lembrasse da pergunta. Foi também eficiente ao interromper, transferir culpas, mentir e desmentir antigas declarações e mesmo as que tinha acabado de pronunciar e repetir com tanta ênfase essas negações que parecia até acreditar no que estava dizendo.

Mas o ponto alto era quando Pazonaro, digo Bolsuello, recebia certas perguntas dos senadores e as analisava, criticava, aferia seu grau de precisão e orientava o relator e o presidente da CPI sobre como elas deveriam ser feitas e como ele pretendia respondê-las. “Eu vou explicar de novo e os senhores vão entender”, dizia, soberanamente.

Está certo. Quem não sabe perguntar precisa de alguém que lhe ensine.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/pazonaro-digo-bolsuello-ganhou.shtml


Cora Rónai: Somos todos idiotas

Sendo uma das idiotas que não saem de casa, na gentil descrição do senhor Presidente da República, tenho tido muito tempo para pensar na vida; o que me leva, invariavelmente, a concluir que, num mundo de idiotas, o melhor a fazer é não pensar.

Todos nós, idiotas, estamos cansados. Do isolamento e das restrições da pandemia, da solidão e da monotonia, mas, sobretudo, das notícias que nos chegam a respeito dos outros idiotas, aqueles que se rebelam contra as máscaras, não respeitam distanciamento social e acham que vírus se combate no grito.

Eles não aprenderam que, além dos cientistas que desenvolvem vacinas, ninguém pode fazer nada de concreto contra uma pandemia.

Nós idiotas que ficamos em casa fazemos o possível para evitar que o vírus circule. É pouco, de fato, mas é o que podemos fazer. Ficar em casa quando se pode ficar em casa não é desdouro nem falta de coragem, é consciência social: quanto menos gente houver nas ruas menos o vírus estará em circulação e menos pessoas serão contaminadas.

Não parece difícil de explicar, mas, pelo visto, é impossível de entender. Há alguma mutação genética ou ausência de atividade cerebral que impede que os idiotas, aqueles, compreendam essa verdade basilar. Um dia eles ainda vão ser estudados pela Ciência.

A nossa idiotice de isolados é um sentimento tingido pela melancolia, intenso mas inofensivo. Passamos os dias trabalhando, lendo, cozinhando, lavando louça, participando de lives, cuidando de plantas e de bichos, refletindo e torcendo para que haja vacina logo para todo mundo.

Enquanto isso o idiota lá desdenha das máscaras, aglomera, voa de helicóptero, faz churrasco, anda de moto, cavalga pela Esplanada dos Ministérios e oferece ao mundo o espetáculo da sua estupidez relinchante e orgulhosa de si mesma.

Genocida.

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Desde os tempos em que trabalhei em Brasília, numa outra encarnação, eu já sabia que educação, caráter e hombridade não são requisitos básicos para assumir cargos importantes na administração pública. Mas eu ainda guardava uma ilusão solitária, e imaginava que era preciso ter um mínimo de inteligência e de sofisticação intelectual para ser Ministro das Relações Exteriores.

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A Mauritânia fica na costa africana, ao Norte, logo abaixo do Marrocos e colada à Argélia, em pleno Saara: sua capital Nouakchott, com cerca de um milhão de habitantes, é a maior cidade do deserto.

Eu não sabia disso, e não foi por falta de interesse na região, porque antes da chegada do Exército Islâmico ao Mali cheguei a fazer planos de viajar para o país, ali ao lado. Eu também não sabia que a Mauritânia só aboliu a escravidão oficialmente em 1981 e que conserva o antigo hábito berbere de engordar as mulheres: meninas com 8 ou 9 anos são obrigadas a beber leite de camelo aos litros e, aos 12, já são obesas de 30 anos.

Como idiota que sou, tenho fugido da vida real mergulhando em documentários, e foi no canal Tracks, no YouTube, que encontrei uma série holandesa sobre os países do Saara. Ela é apresentada por Bram Vermeulen, e está em inglês; há opção de legendas automáticas. O Tracks é um aglutinador de conteúdo que reúne documentários sobre o mundo todo realizados por emissoras de diversos países, e tem uma coleção extraordinária de vídeos.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/cultura/somos-todos-idiotas-25025013


Maria Hermínia Tavares: Projeto da Câmara é incentivo à degradação ambiental

Patrocinado pelo centrão, saiu da Câmara rumo ao Senado o projeto que, a pretexto de modernizar o arcabouço de regras que norteiam o licenciamento ambiental no Brasil, praticamente destrói o pilar da Política Nacional de Meio Ambiente.

Se virar lei na versão atual, o projeto 37/2004 abrirá alas para a insegurança jurídica, ao transferir a estados e municípios o poder de definir o processo de concessão de licenças.

Ao introduzir exceções à obrigatoriedade do licenciamento ou facilitar a sua obtenção, multiplicará as chances de danos ambientais graves –do desmatamento à poluição do ar e dos rios por atividades industriais mal concebidas e a catástrofes semelhantes às que destruíram Mariana e Brumadinho, poucos anos atrás. Finalmente, elevará à enésima potência os riscos a que já estão submetidos os povos indígenas e quilombolas à medida que isentar de licenciamento os territórios ainda em processo de demarcação.

Muitas atividades podem ser mais bem executadas quando livres de interferência e regulação estatais: a imprensa é uma delas, as artes e a cultura, outras tantas. Não é, de forma alguma, o caso da proteção ambiental. Esta requer que o cálculo de ganhos coletivos futuros –e, por isso, difíceis de aquilatar– tenha precedência sobre interesses imediatos e palpáveis. Aqui, o poder público é insubstituível para definir a norma e fazê-la cumprir, criando incentivos apropriados para os agentes privados.

A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro em prol de mesquinhos objetivos da hora –no caso, contingente não desprezível das bases eleitorais do ex-capitão. Indica também como o país envereda pela contramão do mundo civilizado, onde a preocupação em limitar a mudança climática vai de mãos dadas com medidas concretas –e de forte teor regulatório–, destinadas a proteger as populações dos inevitáveis desastres ambientais que ela já está provocando e poderá ocasionar mais adiante.

O projeto de lei aprovado pelos deputados da coalizão governista é a primeira de quatro medidas com o mesmo propósito estritamente eleitoreiro, que o Executivo encaminhou ao Congresso quando da eleição dos presidentes das duas Casas. Tratam de mineração em terras indígenas, concessões florestais, estatuto do índio e regularização fundiária, apropriadamente conhecido como o “PL da grilagem”. Madeireiros, grileiros, desmatadores e companhia feia, produtores de resíduos tóxicos ou de obras malfeitas agradecem.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/05/projeto-da-camara-e-incentivo-a-degradacao-ambiental.shtml


Eugênio Bucci: O cerco à universidade

No início do mês a Reitoria da Universidade de São Paulo (USP) recebeu uma representação em nome do procurador-geral da República, Augusto Aras. No documento, os advogados de Aras reclamam de textos publicados na imprensa e nas redes sociais por um professor de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, que, na visão deles, ofenderiam o atual chefe do Ministério Público Federal. A peça jurídica dedica quatro de suas 11 páginas a discorrer sobre o curriculum vitae da autoridade que se declara ofendida; em seguida, enumera o que afirma serem acusações inverídicas; e, ao final, requer que o caso seja levado à Comissão de Ética da USP para as providências que julga devidas.

Com efeito, o professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política, embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisador reconhecido pelos pares em temas como Direito Constitucional, Poder Judiciário e autonomia acadêmica, tem feito críticas duras ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público. Suas colunas semanais no jornal Folha de S. Paulo e seus posts no Twitter alcançam leitores em audiências diversas. A democracia garante-lhe a liberdade de expressão. De outra parte, por óbvio, quem se sinta injustamente atacado tem o direito, também democrático, de buscar formas de reparação. Até aí, nada de novo sob o sol – ou nada de novo sob a treva que nos tem sido mais frequente.

Há algo de impróprio, no entanto, na representação feita à USP em nome do procurador-geral, que solicita à cúpula universitária a punição de manifestações públicas de um dos seus docentes. São dois os equívocos.

O primeiro está na tentativa de transformar a universidade pública, que se define como um polo social e material de liberdade, em órgão de vigilância de opinião. Pleitear tal aberração é o mesmo que esperar que o sol esfrie os corpos na Terra. Não há razão nesse pedido. Mais ainda, não há nele a mínima compreensão do que seja a institucionalidade democrática.

O segundo equívoco decorre do primeiro, e o complica ainda mais. Os advogados que assinam a representação parecem não ter assimilado o conceito de autonomia universitária. Eles se dirigem à cúpula da USP mais ou menos como se fossem, no velho jargão dos despachantes de porta de cadeia, o sujeito que vai “dar parte” na delegacia, ou como um estudante de colégio interno que delata os colegas para o inspetor de alunos. Essa postura não cabe na vida universitária de uma sociedade democrática, não é assim que funciona.

Quando se diz que a universidade tem autonomia, o que se quer dizer, se é que ainda não estava claro, é que a universidade não deve obediência a autoridades que lhe sejam externas. Um ministro de Estado, um cardeal, um pai de santo ou um general não podem dar ordens às instâncias universitárias, pois não têm atribuições para pautá-las. Por certo, a universidade tem o dever de prestar contas à sociedade e a todos os órgãos de controle, mas não se subordina a nenhum comando externo, muito menos quando lhe cobram que enquadre o pensamento livre.

Por isso, a representação é equivocada. Seria apenas uma peça inoportuna e desajeitada caso vivêssemos no País uma situação normal. Como estamos naufragados num contexto de atordoante anormalidade, ela nos traz preocupações maiores. Embora possa não ter sido essa a intenção dos advogados, a peça que eles assinam aterrissa na mesa do reitor com sinais de ameaça. Talvez não seja esse o propósito do procurador-geral, mas na quadra da História em que nos encontramos e nos perdemos fica no ar um travo de intimidação. É algo que não está dito, mas pode muito bem estar pressuposto.

Olhemos o entorno. A todo momento a Lei de Segurança Nacional tem sido brandida contra jornalistas, chargistas, artistas e intelectuais. Em março, dois professores da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, foram constrangidos a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por terem criticado o governo federal. Em níveis diversos, proliferam os torniquetes orçamentários contra a educação superior, que prejudicam mais o campo das humanidades, justamente onde mais pipocam ideias críticas e incômodas. As investigações policiais que atingem a administração universitária se paramentam de notas sensacionalistas e espetaculosas, como a primeira fase da Operação Torre de Marfim (o nome escolhido já diz tudo acerca de uma certa sanha antiacadêmica), cuja prepotência trouxe de arrasto a tragédia, com o suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017.

Naquele ano, o cerco em torno de pesquisadores, cientistas e intelectuais ligados à educação superior no Brasil crescia em brutalidade e arrogância, numa trilha de retórica violenta que em 2018 desfraldaria as bandeiras do bolsonarismo. Agora a universidade é bombardeada a todo tempo pelo poder, como se fosse inimiga da Pátria. Nesta hora infeliz, a representação do procurador-geral contra a USP vem piorar o ambiente.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-cerco-a-universidade,70003720292