Correio Braziliense

Chatô e os Diários Associados — 100 anos de paixão | Foto: Divulgação

“Chatô estaria no pico da inteligência artificial”, diz Stepan Nercessian sobre Assis Chateaubriand

Em entrevista à FAP, ator destaca desafio de interpretar o fundador de um dos maiores impérios de comunicação do mundo

Comunicação FAP

O musical Chatô e os Diários Associados — 100 anos de paixão, que tem Stepan Nercessian na pele do personagem principal, Assis Chateaubriand, fundador do Correio Braziliense e criador de um dos maiores grupos de comunicação do país, estreou em Brasília, depois de passar por Rio de Janeiro e Belo Horizonte. É sucesso de público e crítica. Na capital do país, o espetáculo terá apresentações nesta quarta-feira (11/6), às 16h e às 20h, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Em entrevista à Fundação Astrojildo Pereira (FAP), ligada ao Cidadania 23, o ator definiu o seu personagem como "visionário" e destacou "a luta constante de conseguir apoio para a cultura”, defendendo que governos têm a responsabilidade de fomentar a área e levá-la à população, especialmente em áreas carentes.

Em Brasília, a estreia, para convidados, ocorreu na terça-feira (10/6) e emocionou o público com uma aula de história do Brasil, ao som de canções icônicas da música popular brasileira. Integrante do Conselho Curador da FAP, Nercessian descreve sua experiência no espetáculo como desafiadora. "Chatô e os Diários Associados — 100 anos de paixão fala da paixão de Assis Chateaubriand pela comunicação", destaca o ator.

Visionário

O artista ressalta a complexidade de Chatô, uma figura que não margeou a história, mas esteve no seu centro, influenciando presidentes e a burguesia da época. Chateaubriand foi responsável por trazer a televisão para o Brasil e, na visão de Nercessian, estaria hoje no ápice da inteligência artificial e da internet. "Digo que, se estivesse hoje aqui, Chatô estaria no pico da inteligência artificial. Estaria aqui a mil por hora com a internet, porque ele era um visionário", afirma, pontuando a capacidade antecipatória de Chatô, que também falava alemão, lia filósofos e possuía carisma espetacular, apesar de uma infância complicada.

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O legado dos Diários Associados na comunicação brasileira é inegável, com a criação de uma rede que buscava unificar o país. Jornais existiam em todos os estados, depois complementados pelas televisões, dando uma importância nacional ao debate. "Nessa ideia de rede, de juntar o país, ele deu essa importância de ter unificado. Começou a unificar o que é difícil até hoje, mas que era uma coisa muito moderna", acentua Nercessian, sobre o papel dos Diários Associados em superar o paroquialismo da época e ajudar a propagar voz de grandes articulistas, jornalistas e escritores.

Polêmicas

Contudo, a figura de Chatô também era envolta em polêmicas e métodos que geravam críticas. Acusado de ser chantagista e mulherengo, pisava em cima de tudo para conseguir o que queria, embora o espetáculo busque mostrar também sua paixão. Nercessian reflete sobre a maneira "escancarada" com que Chatô usava sua influência, contrastando com a possibilidade de ações semelhantes ocorrerem hoje de forma velada. "Eu me pergunto, às vezes, se não tem pessoas agindo da mesma maneira que o Chatô agia naquela época, só que de uma maneira velada, por debaixo dos panos", observa. Segundo o ator, Chatô "era perigosíssimo nesse aspecto de difamar alguém", comparando-o um pouco a disseminador de “fake news".

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Refletindo sobre a relação de Chateaubriand com a democracia, Nercessian comenta o arrependimento de Chatô por ter apoiado inicialmente a ditadura em 1964, assim como fizeram outros grupos de comunicação. “Ele acreditou na história da carochinha, pensando que seria rápido, mas se tornou vítima da própria censura, e a concessão da TV Tupi foi cassada pelo regime militar”, lembra. O ator destaca uma fala no espetáculo em que Chatô expressa esse arrependimento, afirmando que publicava mesmo paralítico porque a ditadura "não ousaria prender um homem em seu estado".

"Mãos sérias"

Além do império midiático, o legado de Chatô se estende a pilares da cultura e da sociedade. Exemplos disso são a criação do Museu de Arte de São Paulo (MASP), referência mundial, e das escolas de pilotos, resultado de sua pressão para que a burguesia doasse obras e aviões. Em um contexto mais amplo, Nercessian observa que a cultura, a arte e a imprensa são frequentemente as primeiras vítimas de regimes autoritários. "São tão importantes no regime democrático que são sempre as primeiras vítimas dos algozes", enfatiza, destacando a necessidade de os meios de comunicação estarem em "mãos sérias e boas mãos" diante do desafio da desinformação digital.

Nercessian também aponta para a luta constante por apoio e fomento à cultura no Brasil, apesar das promessas governamentais. Ele observa que a arte e a economia estão interligadas. Afirma, ainda, que espetáculos de grande porte não se sustentam apenas com bilheteria, necessitando de patrocínio. "Não tem como arte ir bem no país que vai mal a economia, porque ninguém tem grana para pagar", diz, ilustrando a dificuldade financeira e a competição desigual com produções internacionais que operam em dólar.


Tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, chega ao STF para prestar depoimento, nesta segunda-feira (9). - Ton Molina/STF

Mauro Cid confirma as acusações de sua delação contra Bolsonaro

O general Walter Braga Netto, ex-ministro e candidato a vice na chapa de Bolsonaro, fazia parte de um grupo que tentava agir contra o resultado das eleições e financiava as ações golpistas

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Quem esperava um ambiente tenso e cheia de surpresas na primeira sessão de tomada depoimentos dos acusados de tentativa de golpe de Estado, na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), ficou decepcionado. O que houve nesta segunda-feira (9) foi uma oitiva em que o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, durante os interrogatórios, deixou muito à vontade o tenente-coronel Mauro Cid, delator do caso, e os advogados de defesa dos réus que também os inquiriram.

O clima era de muita cordialidade, a ponto de o ex-presidente Jair Bolsonaro, o principal acusado, apertar a mão de seu ex-ajudante de ordens e principal acusador, Mauro Cid, que também bateu continência para os generais Paulo Sérgio, ex-ministro da Defesa, e Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, seus superiores hierárquicos. Entretanto, Cid confirmou que Bolsonaro recebeu, leu e sugeriu alterações na chamada minuta do golpe, que previa medidas autoritárias para reverter o resultado das eleições de 2022.

Segundo ele, Bolsonaro solicitou, entre outros pontos, a retirada do trecho que previa a prisão de outras autoridades, mas não a de Moraes, que presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na época da eleição. “Em termos de data, não me lembro bem. Foram duas, no máximo três reuniões em que esse documento foi apresentado ao presidente”, afirmou Cid.

“A primeira parte eram os ‘considerandos’, cerca de 10 páginas, muito robustas. Essa parte listava possíveis interferências do STF e do TSE no governo Bolsonaro e no processo eleitoral”, explicou. A segunda parte trazia uma fundamentação jurídica com propostas como estado de defesa, estado de sítio, prisão de autoridades e a criação de um conselho eleitoral para refazer as eleições. A minuta foi encontrada pela Polícia Federal na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, durante operação autorizada pelo próprio Moraes.

“Só o senhor continuaria preso”, disse Cid ao ser inquerido por Moraes. “O documento mencionava vários ministros do STF, o presidente do Senado, o presidente da Câmara… eram várias autoridades, tanto do Judiciário quanto do Legislativo”, relatou. “O presidente recebeu e leu. Ele, de certa forma, enxugou o documento, basicamente retirando as autoridades das prisões. Somente o senhor (Moraes) ficaria como preso. O resto, não”, completou Cid.

Moraes questionou o militar sobre informações de que teria sido alvo de monitoramento ilegal. O tenente-coronel confirmou que havia verificações de movimentação de autoridades a pedido de Bolsonaro, feitas por meio informal, com consultas à Força Aérea ou a ministros. Ele relatou que, em dezembro de 2021, houve um monitoramento solicitado pelo major Rafael de Oliveira e, posteriormente, outro pedido feito por Marcelo Câmara, ex-assessor especial de Bolsonaro e militar do Exército.

Braga Netto

Cid foi sereno durante o depoimento, porém respondeu perguntas com ambiguidade em alguns casos, com propósito de relativizar a participação dos generais Paulo Sérgio e Augusto Heleno. Mas não sofreu pressões de Moraes por causa disso. Não negou informações que já constavam de sua delação. Cid afirmou que o ex-presidente pressionou o então ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira para que o relatório das Forças Armadas sobre o sistema eleitoral fosse “duro” contra as urnas eletrônicas.

Segundo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, após as eleições, o ministro chegou a marcar uma reunião com o TSE para entregar o documento, mas desmarcou o compromisso por pressão de Bolsonaro. O relatório final das Forças Armadas, entregue dias depois, não apontou fraudes, mas também não descartou completamente falhas, o que, segundo a PGR, serviu como parte de uma estratégia para desacreditar o processo eleitoral.

Cid declarou que Bolsonaro foi pressionado para decretar estado de sítio: “Tinha-se uma pressão grande se os generais que estavam, se o general Freire Gomes não fosse fazer nada, uma das alternativas seria trocar os comandantes para que o próximo comandante do Exército assinasse ou tomasse uma medida mais dura e radical. Isso estava dentro daquele contexto de pressionar o presidente a assinar um decreto”, disse.

O general Walter Braga Netto, ex-ministro e candidato a vice na chapa de Bolsonaro, fazia parte de um grupo que tentava pressionar Bolsonaro a agir contra o resultado das eleições e atuava como elo entre o ex-presidente e os acampamentos em frente a quartéis-generais pelo país. Segundo Cid, o general também lhe entregou uma caixa de vinho com dinheiro, que ele repassou ao major Rafael de Oliveira, um dos militares investigados por integrar um grupo radical conhecido como “kids pretos”.

Disse não saber o valor dentro da embalagem, mas confirmou que o repasse foi feito no Palácio da Alvorada. O major Rafael é apontado como um dos participantes do suposto plano chamado “Punhal Verde e Amarelo”, que previa o assassinato de autoridades como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e Moraes, caso o golpe de Estado fosse consumado. Cid, porém, disse que só tomou conhecimento do plano pela imprensa, após a prisão dos envolvidos.


Lula e Bolsonaro | Imagem: Reprodução

Rejeição a Lula e Bolsonaro deixa eleição aberta aos demais candidatos

Com seu prestígio e a força do governo, se for candidato, o petista terá um lugar garantido no segundo turno; vencê-lo são outros quinhentos. Isso dependerá do seu índice de rejeição

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Papel, caneta e tinteiro sobre a mesa, Getúlio Vargas escolhia com cuidado as palavras que escreveria na carta endereçada ao presidente Washington Luís em 10 de maio de 1929, para sepultar todas as desconfianças que o Palácio do Catete nutria a seu respeito: “Pode Vossa Excelência ficar tranquilo de que o Partido Republicano do Rio Grande do Sul não lhe faltará com seu apoio no momento preciso”, garantiu ao presidente da República, a propósito da sucessão presidencial.

Dias depois de entregar a carta, Getúlio fez a bancada gaúcha encenar um beija-mão de apoio ao presidente Washington Luís e aproveitou um portador para lhe enviar de presente um caixote de linguiças, salsichas e enlatados de Olderich, prestigiada marca gaúcha, como cesta de ano-novo. Com três anos de mandato pela frente no governo do Rio Grande do Sul, dissimulava sua oposição à candidatura de Júlio Prestes, o candidato de preferência dos paulistas. Toda vez que alguém questionava a lealdade de Getúlio, o presidente da República exibia a carta do político gaúcho.

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O sinal de que a “política café com leite” havia se esgotado viria num encontro do jornalista Assis Chateaubriand com o mineiro Antônio Carlos, na ceia de Natal, em Belo Horizonte. Minas não aceitaria Júlio Prestes de jeito nenhum e poderia apoiar um líder gaúcho, fosse Borges de Medeiros ou Getúlio. A oposição mineira a Júlio Prestes seria decisiva para a tomada de posição de Getúlio, ex-ministro da Fazenda de Washington Luís, que aguardava, porém, o apoio de Medeiros. O resto da história quase todos conhecem: para “tirar as meias sem tirar o sapato”, Getúlio enrolou o presidente da República enquanto pôde, se tornou o candidato da Aliança Liberal, perdeu a eleição no bico de pena e, depois, liderou a Revolução de 1930, que destituiu Washington Luís. Governou por 15 anos, oito dos quais durante o Estado Novo, uma ditadura de inspiração fascista.

A nova pesquisa Quaest, divulgada nesta quinta-feira (5), mostra que 66% dos brasileiros são contra a candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à reeleição em 2026, enquanto 65% dizem que Jair Bolsonaro (PL) também deveria desistir de concorrer e apoiar outro candidato. Lula aparece tecnicamente empatado com diversos candidatos da direita em simulações de segundo turno, indicando uma disputa aberta e sem favoritos claros até o momento.

Nos cenários simulados de segundo turno, Lula empata tecnicamente com Tarcísio de Freitas (Republicanos): 41% para Lula e 40% para Tarcísio; com Michelle Bolsonaro (PL): 43% a 39%; e Ratinho Junior (PSD): 40% a 38%; e Eduardo Leite (PSD): 40% a 36%. Embora Jair Bolsonaro esteja inelegível até 2030, o petista aparece empatado com o ex-presidente, ambos com 41%. Lula sai do empate técnico contra Eduardo Bolsonaro (PL): 44% a 34%; Romeu Zema (Novo): 42% a 33%; e Ronaldo Caiado (União): 43% a 33%.

A esfinge do Bandeirantes

O cenário para as eleições de 2026 permanece indefinido, com a liderança de Lula sendo desafiada pela oposição e sem um nome expressivo que possa lhe substituir na disputa. A alta rejeição tanto ao atual presidente quanto ao ex-presidente Bolsonaro sugere um eleitorado em busca de novas alternativas e torna a disputa aberta e imprevisível. Com Bolsonaro inelegível, nomes como Tarcísio de Freitas e Michelle Bolsonaro ganham destaque como potenciais representantes da direita bolsonarista.

Mas lambari é pescado, o jogo é jogado. Lula tem experiência consolidada e forte legado social dos governos anteriores, a capilaridade partidária e militância ativa do PT, o reconhecimento de setores populares e progressistas e a capacidade de fazer alianças. Seu maior problema é a crise de imagem, muito desgastada. São sinais de fadiga política após três mandatos e uma crise fiscal que fragiliza o governo junto à classe média e ao setor produtivo, mais até do que ao mercado financeiro. Lula dificilmente manterá o apoio dos partidos do Centrão que participam de seu governo.

Com seu prestígio e a força do governo, porém, Lula terá um lugar garantido no segundo turno se for candidato; vencê-lo são outros quinhentos. Isso dependerá do seu índice de rejeição até lá e do adversário apoiado por Bolsonaro, que tem cacife para emplacar um candidato com seu sobrenome no segundo turno, seja Michelle, seja Eduardo. Esse é o melhor cenário para Lula, porque afastaria o adversário mais competitivo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

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Carioca, o atual ocupante do Palácio dos Bandeirantes tem imagem de gestor técnico e disciplinado, com boa avaliação em São Paulo; é leal a Bolsonaro, mesmo não sendo do clã. Falta-lhe carisma e projeção nacional fora do Sudeste. Sua ligação com Bolsonaro atrai tanto os votos da extrema-direita como parte da rejeição ao bolsonarismo. Tarcísio não tem experiência de uma disputa eleitoral de caráter nacional. Muito pressionado para que seja candidato, é o único nome capaz de unir o centro e a direita na disputa, removendo outras candidaturas; refuga, porém, e diz que apoia Bolsonaro.

A “sobra de futuro” do governador paulista é muito maior do que a de Bolsonaro e de Lula: pode disputar a reeleição e esperar 2030. Entretanto, Tarcísio é uma esfinge no Palácio dos Bandeirantes: decifra-me ou te devoro. Mais ou menos como Getúlio em 1930.

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Carla Zambelli | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Missão de Eduardo e Zambelli nos EUA é acirrar tensões do STF com Trump

Fomentar os conflitos entre um governo brasileiro e os Estados Unidos não é novidade na política brasileira. Essa foi a estratégia adotada na preparação do golpe militar de 1964

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

A Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu a prisão preventiva e a inclusão na lista da Interpol da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP). Condenada a 10 anos de prisão, por invadir a rede de internet do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a parlamentar deixou o Brasil e anunciou que está nos Estados Unidos, mas deve se deslocar para a Europa. Soma-se ao deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que se licenciou do cargo e se exilou nos Estados Unidos, onde atua fortemente contra o governo Lula e, principalmente, contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

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Segundo a PGR, no caso de Carla Zambelli, “não se trata de antecipação do cumprimento da pena aplicada à ré, mas de imposição de prisão cautelar, de natureza distinta da prisão definitiva, com o fim de assegurar a devida aplicação da lei penal”. O nome de parlamentar poderá ser incluído na lista de difusão vermelha da Interpol. A opção de trocar os Estados Unidos pela Itália, caso não consiga proteção do governo norte-americano, decorre de ter dupla nacionalidade, ou seja, o passaporte italiano. A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, é expoente da direta europeia.

O deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) está nos Estados Unidos desde março. Na segunda-feira, desafiou o ministro Alexandre Moraes a pedir informações oficiais sobre sua atuação ao governo norte-americano. “Está tudo na minha rede social, pois não faço nada de ilegal”, escreveu o parlamentar no X (antigo Twitter). “Visitar deputado americano é crime? Perguntar a um secretário de Estado numa audiência da Câmara é ilegal? Ir ao MRE dos EUA (State Department) é um delito?” Há um inquérito aberto na PGR, a pedido do líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ), para investigar a atuação do filho do ex-presidente Jair Bolsonaro nos EUA.

Ontem, sem citar seu nome, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu mais repercussão à atuação de Eduardo Bolsonaro: “Lamentável é que um deputado brasileiro, filho do ex-presidente, está lá a convocar os Estados Unidos para se meter na política interna do Brasil. É isso que é grave. É isso que é uma prática terrorista. É isso que é uma prática antipatriótica. Um cidadão que é deputado, renuncia ao seu mandato, pede licença do seu mandato, para ir ficar tentando lamber as botas do Trump e de assessor do Trump, pedindo intervenção na política brasileira”.

Antiga estratégia

Fomentar os conflitos entre um governo brasileiro e os Estados Unidos não é novidade na política brasileira. Essa foi a estratégia adotada na preparação do golpe militar de 1964. Carlos Lacerda, então governador da Guanabara (1960-1965), teve intensa relação com a Casa Branca no período que antecedeu o golpe militar de 1964. Embora não tenha sido o principal articulador do golpe, foi um dos líderes civis da oposição ao governo João Goulart em sintonia com interesses norte-americanos no Brasil.

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Conservador e anticomunista, Lacerda via o governo de João Goulart como uma ameaça à democracia e ao capitalismo. Essa posição o aproximava do discurso da Guerra Fria promovido pelos Estados Unidos, que apoiavam governos e forças que combatessem a expansão do comunismo e a influência da antiga União Soviética (URSS) na América Latina.

Cabeça da articulação civil que visava derrubar Goulart, junto com os governadores de Minas, Magalhães Pinto, e de São Paulo, Adhemar de Barros, Lacerda mantinha estreita relação com o embaixador Lincoln Gordon, que apoiava a deflagração de movimento militar caso Jango insistisse nas reformas de base e flertasse com a esquerda.

Não esteve diretamente envolvido na Operação Brother Sam (apoio logístico e militar dos EUA às forças golpistas brasileiras), porém o discurso e a posição pró-Otan de Lacerda foram fatores que ajudaram a construir o ambiente favorável à intervenção. Documentos dos EUA mostram que o político carioca era um interlocutor confiável para o Departamento de Estado.

Entretanto, a relação decisiva para a Casa Branca foi com a cúpula do Exército. Desde os anos 1950, muitos oficiais das Forças Armadas brasileiras foram treinados pelos Estados Unidos, na Escola das Américas (Panamá), nos programas do Pentágono, nos cursos de contrainsurgência e guerra psicológica com base na Doutrina de Segurança Nacional. O marechal Castello Branco e os generais Mourão Filho, Golbery do Couto e Silva e Emílio Médici foram peças-chave no golpe.

A embaixada norte-americana no Brasil, sob o comando do embaixador Lincoln Gordon, e o adido militar general Vernon Walters mantinham contato direto com generais brasileiros. Walters, fluente em português, era amigo de Castello Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército, desde a tomada de Monte Castelo, na Itália, na Segunda Guerra Mundial, pelas tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEP). O Exército brasileiro era visto como “confiável” pelos EUA, especialmente contra uma possível “deriva comunista”.

Apesar de apoiar o golpe, Lacerda rompeu com o regime militar, especialmente após perceber que não teria chance de disputar a Presidência (seu objetivo era ser candidato em 1965). Em 1966, após as eleições serem suspensas, fundou a Frente Ampla com Juscelino Kubitschek, que também apoiou o golpe, e João Goulart, o presidente destituído, em oposição ao regime que ajudara a instalar.

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Real Moeda brasileira | Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Derrotado por antecipação, o governo já pensa em desistir de aumentar o IOF

Qualquer bom gestor público sabe que um corte de 2% nas despesas não é o fim do mundo, mas uma opção por austeridade, eficiência, transparência, ou seja, produtividade

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, admitiu que a equipe econômica estuda alternativas que possam substituir o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF), diante das pressões do setor produtivo e financeiro e da perda de sustentação política no Congresso, a partir do momento em que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), se manifestou publicamente contra o aumento.

Durigan é o integrante da equipe econômica com mais credibilidade junto ao mercado financeiro e admitiu que o governo pode recuar das propostas após reunião com o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, e com os dirigentes dos maiores bancos privados do país no Ministério da Fazenda. Todo o empresariado está repudiando a medida, que atinge fortemente a indústria e, também, a grande massa de empreendedores.

Por causa da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o governo foi obrigado a fazer um ajuste nas contas públicas, que deveria ser da ordem de R$ 51,3 bilhões para cumprir as exigências da legislação orçamentária. A opção do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi cortar R$ 31,3 bilhões e aumentar o IOF, para arrecadar mais R$ 20,5 bilhões neste ano. Numa conta de balcão de botequim, na prática, o governo quis fazer um ajuste de apenas R$ 11,25 bilhões, porém, esperteza demais engole o dono.

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A lógica econômica do Palácio do Planalto é aumentar os gastos públicos para aquecer a economia e gerar e emprego, o que realmente está acontecendo, porém, com o aumento do deficit público, a inflação precisa ser contida pela política monetária, ou seja, o Banco Central (BC) eleva os juros (Selic). A equipe econômica sabe que precisa cortar gastos. Isso é possível sem prejudicar os programas destinados aos mais pobres, com foco na área meio e cancelamento de projetos não prioritários. Entretanto, o presidente Lula e os demais ministros não aceitam essa alternativa. Estão de olho nas eleições de 2026.

Divulgado na semana passada, o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (Rardp), bimestral, informa que as despesas obrigatórias deste ano ficarão R$ 36,4 bilhões maiores do que o previsto quando o Orçamento foi aprovado. Os gastos crescem na Esplanada como as unhas dos seus ministros, só que não são cortados. O orçamento do Ministério da Justiça este ano é de R$ 22 bilhões. O dos Transportes, R$ 30,8 bilhões. O da Cultura, R$ 4 bilhões. O do Povos Indígenas, R$ 1,3 bilhão. É muito dinheiro.

Menos desperdício

A conta de benefícios previdenciários é de R$ 16,7 bilhões. Com base nos dados observados de janeiro a abril deste ano, a conta de benefícios “normais” ficaria R$ 9 bilhões maior do que o previsto, e a de precatórios previdenciários, R$ 7,7 bilhões mais elevada. Se considerarmos apenas como referência o salário mínimo de R$ 1.518,00, a despesa previdenciária aumenta em mais R$ 4,09 bilhões. O Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, cresceu R$ 2,8 bilhões. O motivo do crescimento é a concessão do benefício por via judicial.

O presidente Lula tem a transferência de renda para os mais pobres como uma promessa de campanha, isso é legítimo, pois foi eleito com essa plataforma. Para manter esse compromisso e não ver seu governo desandar, porém, terá de cortar em outras áreas do governo, acabar com os desperdícios, combater a corrupção, cancelar programas que são perfumarias ou maracutaias mesmo.

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Qualquer gestor público sabe que um corte de 2% nas despesas de uma administração não é o fim do mundo, mas uma questão de vontade política, que depende de uma opção preferencial por austeridade, eficiência, transparência, ou seja, produtividade. O uso intensivo de tecnologia pode resolver isso. Agora mesmo, nesse escândalo do INSS, o simples uso de biometria seria capaz de evitar as fraudes, segundo a Polícia Federal (PF).

Não se trata aqui de um debate ideológico, do tipo “neoliberais versus desenvolvimentistas”. Além da contingência econômica (o deficit fiscal), existe a política. Para o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), “o Brasil não precisa de mais imposto. Precisa de menos desperdício”. A Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) e a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) exigem que o Congresso rejeite o aumento do IOF.

Segundo essas entidades, com o aumento do IOF, os custos das empresas e dos negócios com operações de crédito, câmbio e seguros serão elevados em R$ 19,5 bilhões apenas no que resta do ano de 2025. “Para 2026, o aumento de custo chega a R$ 39 bilhões”, com uma carga tributária do IOF para empresas em mais de 110% ao ano. Por essa razão, o governo está derrotado por antecipação: a correlação de forças no Congresso não permite o aumento do IOF. O melhor seria fazer do limão a limonada, o governo cortar na carne e cobrar do Congresso e do Judiciário a mesma atitude.

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Lula vai a Tóquio com um olho no Trump e outro no Xi Jinping

Luiz Carlos Azedo (Entrelinhas/Correio Braziliense)

Planejada para ampliar parcerias comerciais na Ásia, o objetivo é diversificar as correntes de negócios e tratar a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China como uma oportunidade para ampliar as relações com países asiáticos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou ao Japão nesta segunda-feira, acompanhado dos presidentes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). Os ex-presidentes do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e da Câmara Arthur Lira (PP-AL) também integram a comitiva, além de outros parlamentares e ministros. Planejada para ampliar parcerias comerciais na Ásia, o objetivo é diversificar as correntes de negócios e tratar a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China como uma oportunidade para ampliar as relações comerciais com grandes países asiáticos.

Visita de Estado, Lula teve um encontro reservado com o imperador Naruhito e sua esposa, a imperatriz Masako. Acompanhado da primeira-dama Janja da Silva, o presidente voltará a se reunir com o casal imperial para um jantar. Naruhito, 65 anos, assumiu em 2019 o Trono de Crisântemo, como é conhecido o trono japonês, uma dinastia com mais de 2 mil anos, que remonta a 600 a. C.. Esta será a quinta vez que o presidente brasileiro visita o país.

O Brasil conta com a maior população nipodescendente fora do Japão, estimada em mais de 2 milhões de pessoas, e o Japão abriga a quinta maior comunidade brasileira no exterior, com cerca de 211 mil nacionais. Os dois países mantêm Parceria Estratégica e Global que completa uma década em agosto deste ano. Entretanto, são 130 anos das relações diplomáticas. Foram estabelecidas com a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação em 1895. O acordo permitiu abertura recíproca de representações diplomáticas em 1897 e abriu caminho para o início da imigração japonesa, em 1908.

O Japão é o nosso mais tradicional parceiro na Ásia e o nono país a investir no Brasil. Um dos objetivos da viagem é a abertura do mercado japonês para o agronegócio brasileiro, especialmente para as carnes bovina e suína in natura. O segundo país a ser visitado por Lula será o Vietnã, um caso bem-sucedido de integração às cadeias globais de valor, ao lado da Indonésia e da Índia.

A comitiva presidencial deve seguir para Hanói, capital vietnamita, na quinta-feira. Estão previstos encontros com o presidente do Vietnã, Luong Cuong, e o primeiro-ministro do país, Pham Minh Chinh. Brasil e Vietnã registraram em 2024 intercâmbio comercial de US$ 7,7 bilhões, com superávit brasileiro de US$ 415 milhões. O Vietnã é o quinto destino global das exportações do agronegócio brasileiro e um dos principais produtores mundiais de café, arroz e produtos eletrônicos.

Lula faz esse périplo pela Ásia com um olho no presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e outro no líder chinês Xi Jinping, os dois grandes protagonistas da economia mundial. Novas tarifas serão adotadas pelo governo dos Estados Unidos a partir do dia 2 de abril. A política protecionista de Trump é muito agressiva, porque pretende transferir “indústrias críticas” para os Estados Unidos. Uma lista de 15 “países sujos”, com balança comercial deficitária para os Estados Unidos, deve ser anunciada por Trump. Austrália, Canadá, China, União Europeia, Índia, Japão, Coreia do Sul, México, Rússia e Vietnã estão entre eles.

Entretanto, inclusão do Brasil na lista não pode ser atribuída à balança comercial, que é equilibrada. Se ocorrer, será para proteger setores com baixa competitividade da economia norte-americana, como o siderúrgico, por exemplo. Entretanto, há conversas entre o Itamaraty e as autoridades norte-americanas. O presidente em exercício, Geraldo Alckmin, ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, é o principal interlocutor entre os dois governos nessa questão.

Para Trump, as regras, instituições e alianças da globalização sugaram os EUA. É uma visão completamente oposta à do presidente da China, Xi Jinping. O caso chinês é particularmente interessante porque sua expansão comercial se deu de acordo com a institucionalidade da economia globalizada, nos marcos da Nova Rota da Seda. Apesar de seu atual poder econômico e militar, numa região na qual os Estados Unidos são a força hegemônica desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a China optou pela cautela e o “soft power”, apesar da tensão permanente com Taiwan, a ilha rebelde chinesa, e com o próprio Japão, um grande parceiro comercial, em relação às ilhas Sankaku, no Mar da China.

Bilhões de dólares foram investidos em Institutos de Confúcio e programas de ajuda externa em dezenas de países, a China exerce forte atração pelo desenvolvimento econômico e tecnológico impressionantes, por seu urbanismo futurista e a emancipação de milhões de pessoas da pobreza. Entretanto, em três décadas alterou a divisão internacional do trabalho, no qual tinha lugar cativo ao produzir bens de consumo não duráveis e eletrônicos, ao alcançar um patamar econômico e tecnológico no qual compete em quase tudo e com quase todos.

Além da enorme distância cultural e de valores, o nosso maior parceiro comercial, sem o qual o agronegócio brasileiro entraria em colapso, também é o principal concorrente da nossa indústria, nos mercados interno e externo. Os principais compradores das nossas manufaturas são os Estados Unidos e, depois, a Argentina. Entretanto, a parceria com a China pode alavancar os investimentos em infraestrutura, principalmente na logística para o Pacífico. É um trunfo de Lula nas negociações com Trump, porém, aumentar a dependência em relação aos chineses não é uma boa alternativa. É preciso encontrar um novo ponto de equilíbrio.


Sarney dá posse aos ministros em uma cerimônia rápida, mas emocionada, na qual frisou a fidelidade a Tancredo - (crédito: Arquivo/CB/D.A Press)

Especial 40 anos da democracia — A noite de dúvidas que pôs fim à ditadura

Correio Braziliense publica uma série de reportagens que relembra os tensos momentos que precederam a restauração do Estado de Direito, e o significado dessa conquista, ameaçada no 8 de Janeiro

 Na manhã de 15 de março de 1985, a ditadura militar terminava de forma melancólica para que se desse início à insegura e receosa democracia da Nova República. O Correio Braziliense relembra, em uma série de reportagens a partir de hoje, a difícil retomada do Estado de Direito. E começa retornando às horas que antecederam a confirmação do vice-presidente eleito José Sarney à frente da nação, devido à impossibilidade de Tancredo Neves — que pelas 21h de 14 de março fora levado, às pressas, ao Hospital de Base, em Brasília, com fortes dores no abdômen e que resultariam numa cirurgia feita horas depois, a contragosto do próprio paciente por causa da circunstância política.

Recuperar esse e outros episódios, de quatro décadas atrás, tem uma razão que vai além da responsabilidade e preservar a memória e de relembrar a história: passadas quatro décadas, imaginava-se que as tentações autoritárias estavam sepultadas e que os militares satisfaziam-se com o papel que lhes é constitucionalmente determinado. Viu-se, recentemente, que isso não é verdade.

Sarney era da Arena (que tornara-se PDS), integrou a Frente Liberal e ingressou no PMDB para formar, com Tancredo, a chapa da Aliança Democrática, que venceria Paulo Maluf e Flávio Marcílio, no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985. A cerimônia que deu posse, interinamente, ao vice-presidente teve início às 10h12 e foi rápida.

Um dia antes, na despedida do Senado, em 14 de março de 1985, Sarney manifestou a certeza de que seria "um vice-presidente fraco de um presidente forte" — como lembrou em depoimento ao Correio Braziliense, na edição de 23 de fevereiro de 2025. "Saio do Senado no alvorecer de um momento extraordinário de floração de grandes esperanças no país. Tenho a nítida visão histórica e política da missão que exercerei. Posso dizer ao Senado que exercerei a vice-presidência com absoluta doação, total sacrifício e uma visão maior das minhas responsabilidades de político, num momento de restauração do poder civil", prometeu, no discurso aos pares.

Parte 2 | Tancredo passa mal. E quem assume?

Surge a dúvida sobre quem deveria estar na cerimônia de posse de 15 de março: se seria o vice-presidente José Sarney ou o presidente da Câmara, Ulysses Guimarães

Tudo isso mudou por volta das 21h30 de 14 de março, quando Tancredo deu entrada no Hospital de Base. Não se tinha a clareza se era Sarney ou o presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, quem deveria estar na sessão conjunta do Congresso que, inicialmente, estava preparada para receber o presidente eleito. Até que fosse dirimida a dúvida sobre quem era o número dois da linha sucessória da República, foram horas de consultas e discussões.

Pelas 20h da véspera da posse, logo depois da missa solene celebrada no Santuário Dom Bosco, Tancredo teve um mal-estar no jantar, depois de chegar com a família à Granja do Riacho Fundo. Recolheu-se ao quarto e, mesmo com fortes dores, pediu ao então secretário particular, o hoje deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), que lhe desse os atos da nomeação ministerial — que seriam entregues à Imprensa Nacional para publicação no Diário Oficial da União (DOU). O presidente eleito os leu e efetivou cada um dos nomes. Por volta das 21h, Tancredo foi removido emergencialmente.

Ao mesmo tempo, a cúpula do PMDB confraternizava-se em um jantar com o então primeiro-ministro Mário Soares, na Embaixada de Portugal, que viera para a posse de Tancredo. Foi o futuro ministro da Justiça, Fernando Lyra, quem recebeu o telefonema do também futuro colega de ministério Aluízio Alves, que assumiria a pasta da Administração, avisando-o de que Tancredo fora internado. E que a situação não era boa.

Tomaram todos o rumo do hospital. À frente do grupo, Ulysses, presidente da Câmara desde 28 de fevereiro. Sarney juntou-se à comitiva. A saúde do presidente eleito era um problema de grandes proporções, mas a consequência da internação não era de menor magnitude. Quem assume o comando da República se Tancredo lá não estiver?

Aqui, surge a dúvida se deveria ser Sarney ou se Ulysses ocuparia o cargo, provisoriamente, e convocaria eleições, sem que ele mesmo pudesse disputá-la. De acordo com estudiosos do período, o general Leônidas Pires Gonçalves — que se uniu ao grupo no hospital, saído às pressas de uma recepção em sua homenagem na Academia de Tênis —, futuro ministro do Exército, deu rumo ao debate: que seguissem a Constituição.

Ulysses conhecia a carta de 1967, mas foi o futuro ministro do Gabinete Civil, José Hugo Castello Branco, quem mostrou o livro com o texto constitucional. Pela interpretação que faziam dos artigos 76 e 77, da emenda constitucional de 1969, era Sarney que deveria estar na cerimônia das 10h.

Parte 3 | Saída está na Constituição, mas não há convicção

No Hospital de Base, ministros do futuro governo e políticos buscam a resposta definitiva sobre se é Sarney ou se é Ulysses que substitui Tancredo

Porém, não havia total convicção de que a resposta era essa. Formaram-se, então, três grupos no Hospital de Base. O de Leônidas e Ulysses seguiu para a Granja do Ipê, onde residia o ainda ministro da Casa Civil, João Leitão de Abreu, que chancelou Sarney como substituto de Tancredo. O jurista Affonso Arinos de Mello Franco reforçou que não pairava dúvida sobre quem era o segundo da República.

 "O artigo 77 diz: 'Substituirá o presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á no de vaga, o vice-presidente'. Quer dizer, temos que partir primeiro da consideração factual, e evidente, de que o vice-presidente da República não é vice-presidente do presidente. (...) O vice-presidente toma posse não como presidente, mas como vice-presidente em substituição ao presidente", disse Arinos à Rede Globo, em entrevista articulada pelo deputado Israel Pinheiro Filho (PMDB-MG), depois de deixarem o jantar na casa da empresária Vera Brandt, no Lago Sul. Dois outros juristas, Paulo Brossard e Miguel Reale, endossaram publicamente essa interpretação.

No apartamento do ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, na Asa Sul, travava-se a mesma discussão. Relato do ministro Sydney Sanches, outro dos 11 do STF, a Bernardo Braga Pasqualette, e publicado em Me Esqueçam — Figueiredo, a biografia de uma Presidência, mostra que situação não era tão cristalina assim. Para ele e o ministro Luiz Octavio Gallotti, Ulysses assumiria a Presidência interinamente.

"Mas não chegamos a definir posição a respeito. E a decisão da maioria foi sábia, jurídica e politicamente", relembrou. Ou seja, deu Sarney.

A dúvida era, sumariamente, a seguinte: como Tancredo estava eleito, mas não empossado, Sarney estava na mesma situação. Exercendo mandato, apenas Ulysses. Em entrevista a Ronaldo Costa Couto, cujo trecho foi publicado no livro de Pasqualette, o presidente João Figueiredo explica por que não passou a faixa presidencial e, também, por que não deveria ser Sarney a assumir o Executivo interinamente.

"Os generais vinham me propor, no caso da impossibilidade, passar o governo ao dr. Sarney. Eu digo: 'O dr. Sarney não pode'. 'Mas por que?' Eu disse: 'Dr. Leitão (de Abreu), o senhor é um jurista, eu não sou. Mas, infelizmente, sei ler português. E estou com a Constituição aqui em frente. E ela diz que no caso de impedimento do presidente eleito, tomará posse o presidente da Câmara. Durante 30 dias. Se passados 10 dias depois da posse dele, o presidente eleito não tiver condições, 30 dias após a saída dele haverá uma eleição. (...) Para mim, quem deveria assumir era o Ulysses", disse Figueiredo. Essa argumentação era compartilhada por próceres da ditadura que caía, como o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o chefe da Casa Militar, general Rubem Ludwig.

Tancredo adiou o mais que pôde a internação e a consequente cirurgia. Não era para menos: estava convicto de que, se não assumisse, haveria uma crise política. De acordo com o livro O Paciente — O caso Tancredo Neves, do médico e historiador Luís Mir, em um diálogo com o médico Renault Mattos Ribeiro, que o atendia, na manhã de 14 de março o presidente eleito deixou clara a preocupação, mas sem ser explícito nas palavras, de que poderia haver um retrocesso institucional.

"Não faço de maneira alguma (a operação). Já lhe disse que só depois da posse", disse Tancredo a Renault.

O médico, então, responde: "É como se nós estivéssemos ganhando de 1 x 0 e o outro time vai empatar. E com o empate, nós vamos perder o campeonato, presidente".

Tancredo insiste: "Mas você não vai permitir que o outro time empate. Você vai usar todos os seus recursos e não vai permitir que haja empate coisa nenhuma. Nós vamos ganhar".

Parte 4 |  A manobra para evitar que Sarney assuma

O ainda presidente Figueiredo determina a seu ministro do Exército que assunte se Sarney é quem, realmente, assumia o governo

O jornalista José Augusto Ribeiro conta em Tancredo Neves — A Noite do Destino que Figueiredo, tão logo soube da internação do presidente eleito, sugeriu ao ministro do Exército, Walter Pires, que se movimentasse para Sarney não assumir. O general, porém, fora destituído, pois a dispensa dos ministros estava no DOU. Quem o avisou foi Leitão de Abreu, que usou de uma artimanha: disse que a exoneração foi publicada antecipadamente, por engano — como registra a jornalista Regina Echeverria em Sarney, a Biografia. Pires não mandava mais nada.

Na frenética madrugada de 15 de março, houve uma reunião entre o presidente do Senado, José Fragelli (PMDB-MS), e Ulysses, com os líderes dos partidos nas Casas do Congresso. Diz a ata do encontro, catalogada nos anais do Senado, que "ouvidos todos os presentes, houve inteira concordância no sentido de que, mediante a apresentação de laudo médico que comprove a impossibilidade de o presidente eleito ser empossado nesta solenidade, a Mesa do Senado deverá dar posse ao vice-presidente eleito".

Às 10h12 de 15 de março, Sarney assumia. Nas horas de angústia que precederam a cerimônia, anotaria em seu diário: "Minha recusa era uma fuga. Eu tinha medo. Na minha cabeça estavam milhões de brasileiros olhando-me e apupando-me como o injusto beneficiário, que, por maquiavelismo, fizera tudo, rompera com o PDS, e agora, ajudado pelas forças do imprevisto, arrebatava a Tancredo a glória desse dia", revela Regina Echeverria em Sarney, a Biografia.

Do Congresso, seguiu para o Palácio do Planalto para dar posse ao ministério. Recebido por Leitão de Abreu, lê um texto de pouco mais de 1m30 da primeira à última palavra. "Eu estou com os olhos de ontem. E ainda prisioneiro de uma emoção que não se esgota. O Deus da minha fé, que me guardou a vida, quis que eu presidisse a esta solenidade. Ele não me teria trazido de tão longe, se não me desse, também, na sua bondade, as virtudes da paciência, do equilíbrio, da coragem, do idealismo, da firmeza e da visão maior das nossas responsabilidades perante esta Nação e sua História. Na forma da Constituição Federal, assumi a Presidência da República na impossibilidade de fazê-lo o senhor presidente Tancredo de Almeida Neves, a quem, tenho absoluta certeza, dentro de poucos dias entregarei o governo na forma da Constituição e das leis, no desejo e vontade do povo brasileiro. Os nossos compromissos, meus e dos senhores agora empossados, são os compromissos do nosso líder, do nosso comandante, do grande estadista Tancredo Neves, nome que constitui a bandeira de união do país. Exerceremos os nossos deveres, eu e os senhores, como escravos da Constituição, das leis, do povo e dos compromissos da Aliança Democrática, compromissos estes que, com determinação, jamais abandonaremos, das mudanças e das transformações. Desejo a todos os senhores ministros êxito em suas tarefas. Declaro empossado o ministério e encerrada esta solenidade", disse o agora presidente em exercício.

Segundo Fernando César Mesquita, ex-porta-voz da Presidência, "Sarney não queria ser presidente. Ficou muito chateado em assumir a vaga que era do Tancredo. Tomou posse com o governo todo formado. Até os cargos de terceiro escalão estavam ocupados, todos assinados. Sarney não tinha ninguém dele. As únicas pessoas dele no Palácio do Planalto eram eu, o Jorge Murad (secretário particular) e, depois, o (advogado, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras) Marcos Vilaça".

Figueiredo deveria passar-lhe a faixa presidencial. Não o fez porque entendia não ser Sarney quem deveria recebê-la. O general era conhecido pela irritabilidade, pelo descuido com as palavras, e também pela aversão à imprensa. Fumava entre dois e três maços, diariamente, de Parliament, cigarro então fabricado nos Estados Unidos, fator determinante para a morte na véspera do Natal de 1999. Em eventos públicos, escondia-se atrás de óculos escuros que, dizia-se, era para observar o cenário ao redor, hábito que cultivava desde os tempos em que fora diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), no governo de Ernesto Geisel. Além disso, sofria de lancinantes dores de coluna, o que o levou a submeter-se a "operações espirituais" realizadas pelo médium Rubem de Farias Júnior — que dizia incorporar o espírito do "doutor Fritz". Dizia-se que tinha mau relacionamento com o irmão Guilherme Figueiredo (escritor, tradutor e dramaturgo), a ponto de não comparecer ao seu sepultamento, em maio de 1997.

Nem mesmo o fato de ter sido torcedor apaixonado do Fluminense tornava Figueiredo mais simpático. O apresentador, cineasta e produtor musical Carlos Imperial também tentou, em seu programa nas noites de sábado, na extinta TV Tupi, tornar o general mais palatável com a "Dança do Figueiredo" — cujo refrão era um alegre, mas desajeitado, "Figueiredo!, Figueiredo!".

Antes de deixar o Palácio do Planalto por uma discreta saída privativa, reuniu-se com o general Walter Pires e tentou visitar Tancredo. Conseguiu apenas conversar brevemente com D. Risoleta Neves, mulher do presidente eleito. Voltou à sede do governo, encontrou-se com alguns ministros, disse umas poucas palavras de agradecimento e deu por encerrado o mandato.


Flávio Dino suspende pagamento das emendas de Arthur Lira

A partir de 2025, as bancadas e as comissões da Câmara e do Senado deverão registrar, em ata, o nome do parlamentar que sugeriu cada emenda ao Orçamento

Luiz Carlos Azedo, Entrelinhas/Correio Braziliense

Estava escrito nas estrelas que as emendas do “orçamento secreto” se tornariam casos de polícia. Nas últimas semanas, várias operações de busca e apreensão e ordens de prisão foram executadas pela Polícia Federal (PF) em razão de desvios de recursos dessas emendas, por meio de obras e serviços superfaturados, com objetivo de engordar o caixa dois eleitoral e o patrimônio de políticos, servidores e empresários envolvidos. Ontem, o vice-prefeito de Lauro de Freitas, Vidigal Cafezeiro (Republicanos), e outras três pessoas foram presas por suspeita de desvio de dinheiro de emendas parlamentares.

Os mandados foram cumpridos na sede da Prefeitura de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, e em Vitória da Conquista, no Sudoeste da Bahia. Além do vice-prefeito, foram presos Lucas Moreira Martins Dias, secretário de Mobilidade Urbana de Vitória da Conquista, Carlos André de Brito Coelho, ex-prefeito de Santa Cruz da Vitória, e o policial federal Rogério Magno Almeida Medeiros. Também houve o afastamento de Lara Betânia Lélis Oliveira, servidora da Prefeitura de Vitória da Conquista.

A Polícia Federal afirma que o esquema movimentou cerca de R$ 1,4 bilhão, por meio de contratos firmados com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Não é um caso isolado. Sorteados aleatoriamente para fiscalização de rotina, diversos municípios auditados pela Controladoria Geral da União (CGU) registram suspeitas de desvios de recursos e superfaturamento de obras e serviços. Como diria o falecido ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki, ao investigar, a PF puxa uma pena e aparece uma galinha. Há mais de dez inquéritos envolvendo deputados federais em sigilo de justiça, todos por causa do desvio de recursos das emendas parlamentares.

Não por acaso, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), ontem, decidiu suspender o pagamento de R$ 4,2 bilhões em emendas parlamentares e determinou que a Polícia Federal (PF) abra um inquérito para apurar a liberação desses valores. Foi uma resposta a um pedido do Psol, que apontou irregularidades na destinação de R$ 4,2 bilhões em emendas de comissão da Câmara e do Senado, que não têm pagamento obrigatório. O Psol questionou no STF o ofício assinado por 17 líderes de bancada, no dia 12 de dezembro, que autorizou o Executivo a fazer o repasse dos recursos das emendas de comissão, sem que os colegiados se reunissem.

O governo cedeu às pressões do Congresso durante as negociações para votar a reforma tributária e o ajuste fiscal. Houve uma manobra liderada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para redirecionar esses recursos e burlar as novas regras de rastreabilidade e transparência adotadas pelo próprio Congresso, por exigência do STF. A Constituição estabelece diretrizes para aplicação dos recursos do Orçamento que são obrigatórias para todos os poderes e entes federados, entre as quais a transparência da autoria e rastreabilidade da sua destinação.

Como a sua aprovação acabou ficando para o próximo ano, o Orçamento de 2025 subiu no telhado, porque os líderes ameaçam não o apreciar até que as emendas sejam pagas. Também querem mudar a Constituição para limitar o poder monocrático dos ministros do Supremo, insatisfeitos com o ministro Dino.

A manobra
O presidente da Câmara é o líder do sindicato. No mesmo dia em que enviou o ofício, Lira cancelou todas as sessões de comissões que estavam marcadas até 20 de dezembro, com o argumento de que havia “necessidade de o Plenário da Câmara dos Deputados discutir e votar proposições de relevante interesse nacional”. Com a decisão, as comissões não deliberaram sobre a destinação das emendas.

Cerca de 5,4 mil indicações de emenda, no valor de R$ 4,2 bilhões, deixaram de ser examinadas, muitas delas do Psol. Uma parte teve a destinação alterada. Alagoas, o estado de Lira,proporcionalmente, foi dos mais beneficiados. Diante do recurso do Psol, Dino determinou que a Câmara publique em até cinco dias as atas das reuniões das comissões nas quais as emendas foram aprovadas, para que a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência, chefiada pelo ministro Alexandre Padilha, de posse dessas informações, efetue os pagamentos.

A partir de 2025, as bancadas e as comissões da Câmara e do Senado que desejarem indicar emendas deverão registrar, em ata, o nome do parlamentar que sugeriu cada proposta. Atualmente, isso não acontece; a autoria é coletiva. Internamente, o expediente é importante para empoderar os líderes em relação às próprias bancadas. Em termos eleitorais, é uma blindagem dos atuais mandatários, que utilizam os recursos das emendas, quase R$ 60 milhões para cada deputado, com objetivo de garantir a própria reeleição.

Isso cria uma distorção na relação entre o Congresso e os demais poderes, entre os líderes e suas bancadas e uma grande disparidade de armas na disputa eleitoral, entre quem tem mandato e quem não tem, com objetivo de impedir a renovação política. A face mais obscura desse processo são as fraudes em licitações e o superfaturamento de obras e serviços, que já transformaram muitas emendas parlamentares em caso de polícia.

Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo


Nas entrelinhas: Volta de Ibaneis sinaliza esgotamento das medidas de exceção

Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense

Depois de 66 dias de afastamento, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), Ibaneis Rocha (MDB) reassumiu ontem o cargo de governador do Distrito Federal, do qual havia sido afastado na tarde de 8 de janeiro, pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo que apura a tentativa de golpe de Estado. O motivo do afastamento foi a suspeita de que se omitiu em relação à ação das forças de segurança sob seu comando.

“Foram dias muito difíceis, mas esse afastamento que tivemos ao longo desse período foi necessário. A invasão dos prédios do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto foram significativos para a história deste país”, admitiu Ibaneis, ao reassumir o cargo. Classificou como um “apagão” o comportamento das forças policiais sob seu comando, num cenário de inoperância generalizada. “Houve um relaxamento geral. A Força Nacional também não atuou”, disse.

Ibaneis defendeu seu ex-secretário de Segurança Anderson Torres, que está preso por envolvimento nas articulações do ex-presidente Jair Bolsonaro contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em sua casa, foi encontrada a minuta do decreto de intervenção no TSE e afastamento de Moraes. “Acredito que o 8 de janeiro tem que ser lembrado, mas não foi culpa só do Anderson e tenho certeza de que a investigação vai apurar isso”, afirmou Ibaneis.

O inquérito das fake news, do qual Moraes é relator, não tem prazo para ser concluído e é muito criticado nos meios jurídicos, porque confere ao ministro do STF o poder de investigar, denunciar e julgar os envolvidos em atos antidemocráticos. Conduzido em sigilo por decisão da própria Corte, foi aberto em março de 2019 pelo então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, sem provocação de outro órgão. Toffoli designou Moraes para conduzir o inquérito sem sorteio entre todos os ministros.

A primeira grande reação ao inquérito ocorreu quando 29 mandados de busca e apreensão foram expedidos por Moraes, tendo como alvo pessoas suspeitas de envolvimento na rede de fake news bolsonarista. Foram cumpridos em cinco estados — Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina — e no Distrito Federal.

Bolsonaristas raiz eram os visados, como o empresário Luciano Hang, fundador da Havan, o deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), a militante Sara Winter, o empresário Edgard Corona, presidente da rede de academias Smart Fit, os blogueiros Winston Lima e Allan dos Santos e o presidente nacional do PTB, o ex-deputado federal Roberto Jefferson.

Legítima defesa

O inquérito excluiu a participação do Ministério Público nas investigações e se tornou alvo de críticas de procuradores, membros do Executivo e do Legislativo, que temiam uma concentração excessiva de poder nas mãos do Supremo. A então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tentou impedir a continuidade dessa apuração, por considerá-la ilegal, mas seu argumento foi descartado por Moraes.

Seu sucessor na chefia da PGR, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, também esperneou, mas Moraes sustentou que só o STF tem prerrogativa para arquivar a investigação, já que ela é conduzida pelo próprio tribunal, não por promotores. A decisão de Toffoli fora premonitória diante da escalada golpista. O tempo corroborou sua decisão. Graças ao inquérito, os núcleos golpistas de extrema direita foram identificados, e os políticos que desafiaram o Supremo frontalmente, como os ex-deputados Roberto Jeferson e Daniel Silveira, ambos do Rio de Janeiro, acabaram presos.

O inquérito das fake news também blindou o TSE durante o processo eleitoral, inclusive no dia da votação do segundo turno, quando houve ostensiva atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para dificultar a movimentação de eleitores nas estradas, principalmente no Nordeste.

O Artigo 42 do regimento do Supremo estribou a existência do inquérito: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.

Segundo Toffoli, apesar de os crimes não terem sido praticados dentro do prédio do Supremo, os ministros “são o tribunal”. Sua tese se confirmou quando os vândalos invadiram e depredaram o plenário da Corte: fora do prédio ocupado pelos vândalos, os ministros usaram a espada da Justiça contra os golpistas. O ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto definiu as ações adotadas como um “ato de legítima defesa”.

“A democracia também tem o direito à legítima defesa. Se a sua vida, a minha vida, as nossas vidas são o bem jurídico maior, individualmente, o bem jurídico maior da coletividade, de personalidade coletiva, por definição é a democracia”, explicou. “Então, a democracia tem mesmo o poder de abater, por meios que ela prevê, de abater quem se arma para abatê-la”, concluiu Britto.


Fernando Haddad

Nas entrelinhas: Haddad gera expectativas positivas sobre economia

Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense

Por enquanto é um segredo de Estado, mas o simples fato de o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ter entregue a proposta de âncora fiscal ao vice-presidente Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e à ministra do Planejamento, Simone Tebet, para a devida apreciação, gerou expectativas positivas dos agentes econômicos. Haddad pretende ouvir os dois colegas antes de apresentar o projeto formalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com isso, quer unificar toda a equipe econômica do governo e neutralizar o “fogo amigo” dos petistas.

O anúncio foi feito ontem, com o claro objetivo de acalmar o mercado, ao oferecer uma alternativa ao teto de gastos, que morreu de morte morrida, ao ser ultrapassado sucessivas vezes durante o governo Bolsonaro, após a pandemia de covid-19. A última vez foi entre a eleição e a posse de Lula, para atender necessidades emergenciais do governo que se encerrava. O ambiente econômico não é favorável ao governo. O Boletim Focus, elaborado com base nas análises do mercado financeiro, aumenta a projeção da inflação de 5,90% para 5,96% em 2023, bem acima do teto da meta, de 4,75%. Essa elevação corrobora os argumentos do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, para manter a taxa de juros astronômica de 13,75%.

A proposta de âncora fiscal seria uma sinalização para o Copom, que fixa a taxa Selic e deve se reunir nos próximos dias 21 e 22, de que o governo está realmente preocupado com a crise fiscal, mas precisa da redução da taxa de juros para injetar otimismo nos agentes econômicos e evitar uma recessão. Até agora, todas as medidas anunciadas pelo governo implicam em mais gastos públicos. Algumas foram indispensáveis para atender promessas de campanha eleitoral e manter a base social do governo, formada por estreita maioria, como o novo Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo e o reajuste dos servidores públicos federais de 9%, depois de sete anos sem aumento. São medidas justas, porém a inflação e a estagnação econômica continuam sendo uma ameaça.

Ontem, em reunião com seus ministros da área social, Lula criticou, sem citar nomes, o fato de medidas governamentais estarem sendo anunciadas sem sua prévia aprovação. Foi um freio de arrumação na equipe, que anda batendo cabeça e fugindo ao controle da Casa Civil, comandada por Rui Costa. Com ironia, Lula disse que todas as propostas devem ser encaminhadas ao Palácio do Planalto, antes de a “genialidade” ser anunciada. Foi um recado para o ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França, que havia anunciado um programa para oferecer passagens aéreas a R$ 200 para estudantes, idosos e funcionários públicos utilizando a capacidade ociosa das aeronaves. Lula foi pego de surpresa, bem como as companhias aéreas.

Reforma tributária

Haddad também aposta na reforma tributária para melhorar o ambiente econômico, com a substituição de cinco tributos por um imposto sobre valor agregado (IVA). Seriam substituídos o ICMS (estadual), o ISS (municipal), o PIS, o Cofins e o IPI (federais). Ontem, no encontro de prefeitos, ficou evidente a preocupação em relação ao impacto da extinção do ISS na economia dos municípios. A maioria arrecada pouco com esse imposto municipal, mas as cidades com mais dinamismo econômico e administração eficiente têm no ISS uma grande fonte de receita. Haddad tentou tranquilizar os prefeitos.

Todas as tentativas de aprovação de uma reforma tributária fracassaram, por falta de acordo com estados e municípios. Aprovado pela Constituinte de 1988, o atual sistema tributário resultou de um amplo acordo negociado pelo seu relator, o então deputado José Serra (PSDB-SP). Na ocasião, como todo o arcabouço constitucional estava sendo elaborado, havia moedas de troca para acomodar interesses contrariados, inclusive de caráter corporativo. Hoje, não, o novo sistema tributário está sendo debatido isoladamente.

Algumas dessas moedas deixaram de existir. Um exemplo: o Fundap era um incentivo financeiro para apoio a empresas com sede no Espírito Santo que realizavam operações de comércio exterior tributadas com ICMS; foi extinto no governo Dilma Rousseff. Outro: o ICMS é arrecadado pelos estados produtores das mercadorias, mas será substituído pelo IVA, que passará a ser recolhido no destino, como hoje acontece com os combustíveis.

Como ficará a situação da Zona Franca de Manaus, “uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário”? A reestruturação das cadeias globais de valor, em decorrência da disputa comercial entre os Estados Unidos e a China, abre uma nova janela de oportunidades para a Zona Franca, mas ela corre o risco de ser extinta.


Governo Lula | Arte: Maurenilson Freire

Nas entrelinhas: Qual a natureza do governo Lula?

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Uma das dificuldades para compreender o atual cenário político é a lulofobia da elite política e econômica do país, que majoritariamente apoiou a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O hegemonismo do PT na montagem do governo, porém, fortalece esse sentimento nos setores que só apoiaram o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno, mas tiveram um papel decisivo na derrota de Bolsonaro e seu projeto autoritário. A chave para resolver essa contradição é ampliar a base de sustentação do petista incorporando essas forças ao governo. Lula fará um governo democrático, com certeza, ao contrário da gestão Bolsonaro. Mas com que amplitude?

A resposta é a nomeação da senadora Simone Tebet para a equipe ministerial. Havia uma expectativa de que ela fosse indicada para o Ministério do Desenvolvimento Social, que gerencia o Bolsa Família, mas essa é uma marca do governo Lula, em grande parte responsável pela sua volta ao poder, graças às mulheres e aos mais pobres, sobretudo nordestinos. Portanto, não é nenhum absurdo que o cargo venha a ser ocupado pelo ex-governador do Piauí Wellington Dias (PT), que comandou o seu estado por quatro mandatos e foi um dos articuladores políticos da transição, sobretudo nas negociações com o Senado, para o qual acaba de ser eleito novamente.

O presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), foi o principal fiador da candidatura de Simone Tebet à Presidência e defende sua participação no governo desde o início da transição, ao lado de mais dois ministros do MDB, um indicado pelo Senado e outro pela Câmara. Entretanto, há uma disputa na bancada do Senado pela indicação, entre Jader Barbalho (PA) e Renan Calheiros (AL). Ao escolher Dias para o Desenvolvimento Social, Lula deu o recado de quem escala o time é ele, que venceu as eleições, mas isso não significa a exclusão de Simone Tebet. Nos bastidores do novo governo, ontem, ela estava cotada para ser ministra do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que é um cargo muito importante, mas sem o mesmo apelo social. Ela ainda reluta.

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Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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Lula tem dito a interlocutores que vai nomear petistas para metade do governo e compartilhar a outra metade com os aliados. Entre os petistas, tem descartado os senadores com mais experiência e influência na Casa presidida por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que é o seu aliado principal no Congresso. O Senado é uma trincheira para conter o poder do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). E prestigiado aqueles que foram mais solidários com ele durante a sua prisão e/ou exerceram peso eleitoral muito importante na campanha. Tropas de assalto, porém, não são boas tropas de ocupação, diz um velho jargão militar. Lula sabe disso.

O núcleo dirigente do PT é o círculo mais próximo de Lula: Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, que permanecerá na Câmara, ao lado do deputado Rui Falcão. Aloizio Mercadante foi indicado para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômica e Social (BNDES), o ex-prefeito de Araraquara Edinho Silva é cotado para a Secretaria de Comunicação da Presidência. Lula cercou-se de petista e aliados com grande experiência administrativa: o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad na Fazenda, o ex-governador da Bahia Rui Costa na Casa Civil, o ex-governador do Maranhão Flávio Dino (PSB) na Justiça e o ex-presidente do tribunal de Contas da União (TCU) José Múcio Monteiro, um político conservador, na Defesa.

Coalizão democrática

Se considerássemos apenas os nomes anunciados até agora, com boa vontade, teríamos um governo popular, com o perfil de frente única da esquerda tradicional na década de 1930. Mas Lula deve anunciar hoje os nomes dos demais ministros, cuja divulgação adiou para esperar a votação da PEC da Transição na Câmara. A simples nomeação de Simone Tebet para um ministério importante já mudará a natureza do governo, que ganha o caráter de coalizão democrática de centro-esquerda. As possibilidades de ampliar ainda mais o governo seriam entregar o Ministério da Fazenda a um representante do sistema financeiro, opção já descartada, ou um pedaço suculento da Esplanada, principalmente o Ministério da Saúde, a Arthur Lira. O indicado era o relator da PEC da Transição, Elmar Nascimento (União-BA), mas Lula não aceitou. Mais pela forma como a proposta foi feita, na base do dá ou desce, do que pela intenção de excluir o PP.

A votação da PEC na Câmara, ontem, mostrou um racha no Centrão, com o PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro fora do acordo feito por Lira com os líderes de bancada. O racha no Centrão é alvissareiro para Lula, principalmente se levarmos em conta a composição futura da Câmara, na qual o PL terá a maior bancada, com 99 deputados. A federação PT-PCdoB-PV terá 80 deputados (PT com 68, PCdoB com 6 e PV com 6). A terceira opção para ampliar o governo seria a incorporação da federação PSDB-Cidadania, mas o PSDB, ao contrário do Cidadania, já se pôs na oposição. E tenta ampliar a federação com o Podemos para servir de cabeça de ponte à candidatura do governador gaúcho eleito Eduardo Leite em 2026. Obviamente, uma carroça à frente dos bois.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-qual-a-natureza-do-governo-lula/

Maurenilson Freire

Nas entrelinhas: Do iliberalismo de Bolsonaro à partidocracia do Centrão

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Nas negociações em curso no Congresso para a aprovação da PEC da Transição, corremos o risco de pular da banha quente da frigideira para cair na panela com água fervendo. Explico: interromper o curso do projeto iliberal do presidente Jair Bolsonaro, porém ser aprisionado por uma partidocracia comandada pelo Centrão. Duas decisões judiciais tentaram interromper esse processo, aquela na qual o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de 6 a 5, aprovou o parecer de sua presidente, ministra Rosa Weber, e considerou inconstitucional o chamado orçamento secreto; e a liminar do ministro Gilmar Mendes que possibilita a edição de medida provisória extraordinária para a concessão do Bolsa Família no valor R$ 600 e mais R$ 150 por criança de até seis anos.

Entretanto, as duas decisões serviram para acelerar a aprovação da PEC. As do Supremo representaram uma invertida no todo-poderoso presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que estava chantageando o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva para que o relator da PEC, deputado Elmar Nascimento (União-BA), fosse nomeado ministro da Saúde. Mas há mais coisas entre o céu e a terra do que os aviões de carreira, como diria o humorista Barão de Itararé. O pacto perverso, fisiológico e provinciano do colégio de líderes com Lira falou mais alto. A própria bancada do PT, que se antecipou ao presidente eleito no apoio à reeleição de Lira, foi uma das forças interessadas em manter a PEC e aprová-la a toque de caixa. Negociaram um pagamento extra de R$ 16,3 milhões em emendas parlamentares para cada deputado e senador em troca da aprovação da PEC.

O empoderamento do Congresso durante o governo Bolsonaro, do ponto de vista do Orçamento da União, era funcional para o governo que se encerra, porque não havia programa de desenvolvimento. O eixo do governo era desmonte das políticas públicas universalistas e o retrocesso institucional. Por que se preocupar com as emendas, se a reeleição permitiria a venda da Petrobras e outras estatais para fazer caixa e daria a Bolsonaro, com a adoção de um regime iliberal, o poder de recorrer aos instrumentos de coerção do Estado para intimidar, não somente a oposição, mas o próprio Congresso? Agora, com a eleição de Lula, a situação é outra no Executivo; porém, teremos um Parlamento ainda mais fisiológico e conservador a partir do próximo ano.

O perigo nessa conjuntura é a consolidação da partidocracia em formação no Congresso, sob a hegemonia do Centrão e a liderança de Lira. Esse fenômeno surgiu com a formação de grandes legendas de massa e se consolidou na década de 70, em alguns países da Europa, que adotaram o financiamento público da política. Isso fortaleceu os principais líderes das siglas e sua burocracia, porém a participação da sociedade civil na vida política foi progressivamente bloqueada, a começar pelos próprios partidos. O fortalecimento da partidocracia se dá quando os recursos do financiamento público são gerenciados sem orçamento e controle público, sem critérios justos de distribuição dos recursos entre seus diretórios e candidatos.

Captura

Além disso, o fortalecimento do poder financeiro das cúpulas partidárias, em detrimento da difusão de sua política e incorporação da sociedade às suas atividades, também se dá por meio da distribuição de funções remuneradas e da ocupação de cargos públicos. Isso leva à formação de profissionais da política que se mantêm por si mesmo, que vivem da política, e não para a política, como Max Weber havia previsto na sua célebre palestra A política como vocação, na Universidade de Munique, em 1919. Num país de forte tradição patrimonialista, uma herança do nosso passado colonial e escravocrata, onde velhas oligarquias ainda têm grande peso no Parlamento, o resultado desse fenômeno é o distanciamento do Congresso das instituições da sociedade e a ojeriza do cidadão comum à política, aos partidos e a seus políticos de forma generalizada.

Desde 2013, existe um conflito latente entre o mundo da política e a vida real dos cidadãos, que se traduziu em grandes manifestações e na contestação geral ao nosso sistema político-partidário. Como não é um privilégio do Brasil, em todos os países, esse conflito tem resultado no fortalecimento da extrema direita e dos projetos iliberais. Bolsonaro perdeu o poder e o apoio momentâneo do Centrão, mas ninguém deve se iludir quanto à força que ainda tem na opinião pública e numa base eleitoral que se articula pelas redes sociais. Quando uma pesquisa mostra que 32% dos eleitores são a favor de uma intervenção militar, não estão só os malucos e fanáticos que tentam contato com extraterrestres, adoram pneus e rezam ajoelhado na chuva à porta dos quartéis, sem medo de raios e trovoadas.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva se equilibra numa corda bamba, embora tenha a legitimidade da eleição e o poder concentrado do governo nas mãos. O seu problema agora é a captura do PT pela lógica da partidocracia, como ocorreu no mensalão e nos escândalos da Petrobras, e que levou Lula à prisão. Como lidar com a força do Centrão sem ser tragado, como negociar com o Arthur Lira sem fazer concessões que possam comprometer o sucesso do próprio governo? Não será com um orçamento que inviabiliza programas de investimentos e as prioridades do governo. O que está se decidindo agora, na largada do novo governo, é estratégico. Pode levar Lula ao sucesso ou ao desastre.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-do-iliberalismo-de-bolsonaro-a-partidocracia-do-centrao/