“Exploração absurda”: Ex-ministro critica super elite da tecnologia e perda de força política da imagem na era digital

João Batista de Andrade | Foto: Divulgação
João Batista de Andrade | Foto: Divulgação

João Batista de Andrade reconhece relevância da tecnologia, mas defende seu desenvolvimento e consumo conscientes por parte da população

Comunicação FAP

Apesar de ter influenciado politicamente até o desfecho de guerras ao longo da história, como a do Vietnã, a imagem não têm mais a força de ação política como antes. A sociedade é cada vez mais engolida por uma overdose de fotografias e vídeos que alimentam as redes sociais e a internet, em geral, reforçando uma “concentração absurda de recursos, de bens e de poder”, resultado de um avanço tecnológico dominado por uma “super elite” econômica. A análise é do cineasta, ex-ministro interino da Cultura e conselheiro da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, João Batista de Andrade.

O assunto voltou à discussão depois da morte de Sebastião Salgado, aos 81 anos, que foi um dos mais influentes fotógrafos contemporâneos. Ele retratou a importância da imagem como ação política no modo de trabalhar fotografia documental como instrumento de denúncia, sensibilização e mobilização social, que também é usado no cinema, com fotos em movimento, para criar a atmosfera, o ritmo e o olhar narrativo da obra.

> Compreender as novas direitas é imprescindível para combatê-las, afirma professor Marcus Vinícius Oliveira

> Relação mais confiante entre Estado e cidadãos ainda está incompleta, diz historiador Alberto Aggio

> Violência contra mulher: Historiadora diz que Estado brasileiro “mata” por omissão e desmonte de políticas públicas

Democratizar resultados

Diretor de ficção e documentários desde os anos 1960 e premiado internacionalmente, Andrade reconhece a importância do progresso tecnológico, mas diz que seus resultados devem ser democratizados, de fato. Segundo ele, a grande maioria da população é apenas usuária das inovações nessa área, sem qualquer poder de intervenção nesse processo. “Os chamados avanços tecnológicos são usados como exploração absurda da população. Sob o ponto de vista humano, não houve avanços”, afirma ele, em um cenário de crescente consumo de imagens que deixa pessoas presas a telas de celular e distantes da vida real.

O principal resultado dos avanços tecnológicos, de acordo com Andrade, é o “aumento do poder para quem tem domínio da tecnologia”, como o bilionário Elon Musk, proprietário do X e um dos cofundadores da OpenAI. “Nunca os avanços tecnológicos foram distribuídos na humanidade de forma tão mesquinha e pequena. Apesar de a tecnologia parecer permitir ‘fazer tudo’ – como robôs que andam e falam como gente ou a capacidade de falar com milhões de pessoas simultaneamente –, esse avanço não é democrático”, afirma o ex-ministro.

As camadas da população que possuem algum contato com a tecnologia ainda estão muito abaixo em termos de domínio do que o uso feito pelos detentores dessas tecnologias. “Essa situação deixa a humanidade perplexa, sem saber como se comportar, pois tudo vem de fora. A capacidade individual de criação é menor do que antes. Um núcleo poderoso pensa por nós e vende tudo o que quer para nós, transformando a população em massa de consumo de imagens e de manobra”, diz ele.

Guerra do Vietnã

Ao longo da história, a imagem, segundo Andrade, serviu como força política em grandes episódios. Na Guerra do Vietnã (1959-1975), por exemplo, o núcleo de dirigentes compreendeu a importância da imagem na luta contra os Estados Unidos. “Eles sabiam que a imagem multiplicaria o poder de luta dos vietnamitas”, lembra o cineasta.

Na época, fotógrafos, incluindo os norte-americanos que cobriam o conflito, ficaram perplexos com as imagens da guerra, que registraram realmente o que o país imperialista estava fazendo com o povo vietnamita. Fotos memoráveis como a da menina queimada são lembradas. “A Guerra do Vietnã teve marco importante do uso da imagem como marco de luta”, observa Andrade. “É, talvez, o exemplo mais antigo e quase inaugural de a fotografia interferir numa disputa, numa guerra”, acrescenta.

O fotógrafo Nick Ut, de 21 anos, estava na Estrada 1, entre Saigon e Phnom Penh, registrando o bombardeio a uma distância segura. Quando percebeu civis correndo do vilarejo em chamas na sua direção, ele continou acionando sua máquina. Uma daquelas pessoas em pânico era Kim. A menina de 9 anos tinha rasgado as próprias roupas enquanto o napalm corroía sua pele. Aos prantos e nua, ela gritava: “Nóng quá! Nong quá” (“Muito quente! Muito quente!”).

Comparando com a atualidade, Andrade mencionou a situação da Palestina. Se as notícias chegassem apenas pelo rádio, poderiam causar impacto, mas nada se compara com fotos de crianças, cidades arrebentadas, explosões, medo. “Israel está isolado atualmente”, destaca.

> “Abolição da escravidão não libertou o negro”, diz o historiador Ivan Alves Filho, autor do livro Memorial dos Palmares

Não alienação

De acordo com Andrade, a não alienação, com o uso consciente da tecnologia e das imagens, torna-se crucial para evitar que essas ferramentas se voltem contra a própria população. Em um contexto de overdose de imagens e informações, especialmente nas redes sociais e na internet, a capacidade de discernimento e a resistência à manipulação são essenciais.

O consumo crítico de imagens, na fotografia e no cinema, segundo Andrade, também pode servir como um remédio para que a avalanche delas, incluindo os registros de conflitos, como as de guerra urbana, não resulte na banalização da violência e do sofrimento. Um olhar crítico e consciente permite ir além da simples visualização, buscando compreender o contexto e o propósito da imagem, em vez de ser apenas mais uma massa de consumo e de manobra exposta a um bombardeio visual que pode dessensibilizar e desumanizar.

Privacy Preference Center