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Cora Rónai: Somos todos idiotas

Sendo uma das idiotas que não saem de casa, na gentil descrição do senhor Presidente da República, tenho tido muito tempo para pensar na vida; o que me leva, invariavelmente, a concluir que, num mundo de idiotas, o melhor a fazer é não pensar.

Todos nós, idiotas, estamos cansados. Do isolamento e das restrições da pandemia, da solidão e da monotonia, mas, sobretudo, das notícias que nos chegam a respeito dos outros idiotas, aqueles que se rebelam contra as máscaras, não respeitam distanciamento social e acham que vírus se combate no grito.

Eles não aprenderam que, além dos cientistas que desenvolvem vacinas, ninguém pode fazer nada de concreto contra uma pandemia.

Nós idiotas que ficamos em casa fazemos o possível para evitar que o vírus circule. É pouco, de fato, mas é o que podemos fazer. Ficar em casa quando se pode ficar em casa não é desdouro nem falta de coragem, é consciência social: quanto menos gente houver nas ruas menos o vírus estará em circulação e menos pessoas serão contaminadas.

Não parece difícil de explicar, mas, pelo visto, é impossível de entender. Há alguma mutação genética ou ausência de atividade cerebral que impede que os idiotas, aqueles, compreendam essa verdade basilar. Um dia eles ainda vão ser estudados pela Ciência.

A nossa idiotice de isolados é um sentimento tingido pela melancolia, intenso mas inofensivo. Passamos os dias trabalhando, lendo, cozinhando, lavando louça, participando de lives, cuidando de plantas e de bichos, refletindo e torcendo para que haja vacina logo para todo mundo.

Enquanto isso o idiota lá desdenha das máscaras, aglomera, voa de helicóptero, faz churrasco, anda de moto, cavalga pela Esplanada dos Ministérios e oferece ao mundo o espetáculo da sua estupidez relinchante e orgulhosa de si mesma.

Genocida.

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Desde os tempos em que trabalhei em Brasília, numa outra encarnação, eu já sabia que educação, caráter e hombridade não são requisitos básicos para assumir cargos importantes na administração pública. Mas eu ainda guardava uma ilusão solitária, e imaginava que era preciso ter um mínimo de inteligência e de sofisticação intelectual para ser Ministro das Relações Exteriores.

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A Mauritânia fica na costa africana, ao Norte, logo abaixo do Marrocos e colada à Argélia, em pleno Saara: sua capital Nouakchott, com cerca de um milhão de habitantes, é a maior cidade do deserto.

Eu não sabia disso, e não foi por falta de interesse na região, porque antes da chegada do Exército Islâmico ao Mali cheguei a fazer planos de viajar para o país, ali ao lado. Eu também não sabia que a Mauritânia só aboliu a escravidão oficialmente em 1981 e que conserva o antigo hábito berbere de engordar as mulheres: meninas com 8 ou 9 anos são obrigadas a beber leite de camelo aos litros e, aos 12, já são obesas de 30 anos.

Como idiota que sou, tenho fugido da vida real mergulhando em documentários, e foi no canal Tracks, no YouTube, que encontrei uma série holandesa sobre os países do Saara. Ela é apresentada por Bram Vermeulen, e está em inglês; há opção de legendas automáticas. O Tracks é um aglutinador de conteúdo que reúne documentários sobre o mundo todo realizados por emissoras de diversos países, e tem uma coleção extraordinária de vídeos.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/cultura/somos-todos-idiotas-25025013


Cora Rónai: Sem respostas para o futuro

Um dia o futuro vai olhar para nós e perguntar como foi que, a maior crise sanitária de todos os tempos, deixamos na presidência do país um homem que se aliou ao vírus e cortejou a morte

Ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter. Cada vez que entro passo raiva. Esta semana, por exemplo:

“Onde houver consenso, Bolsonaro estará fora. Vacina salva vidas, Bolsonaro ataca. Máscara previne? Ele tripudia. Isolamento evita o contágio? Bolsonaro vai pra rua. SUS colapsado? Bolsonaro debocha. No curto prazo pode até funcionar para ele manter a base de radicais unida. No longo, é certeza de colapso.”

Isso foi no domingo.

 “Bolsonaro inaugurou o governo do cada um por si. Estados e municípios que se virem e comprem vacina; doentes que se virem pra achar vaga em UTI; investidores que se virem com as intervenções do governo; o país que se vire para vencer a pandemia.”

Isso, anteontem.

Dois ótimos tuítes, que qualquer pessoa sensata compartilharia sem restrições... desde que não soubesse que foram assinados pelo único homem que, durante dois anos, teve o poder real de fazer alguma coisa para livrar o Brasil de Bolsonaro, mas não fez: Rodrigo Maia.

Descobrir quem é Bolsonaro agora é muito pouco e muito tarde, deputado. Há mais de 60 pedidos de impeachment fechados numa gaveta da sua biografia.

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A derrota política de um país não acontece só por causa dos seus governos, mas também (e talvez sobretudo) por causa das suas oposições, porque cabe a elas denunciar erros, cobrar competência e oferecer alternativas reais ao eleitor.

Uma oposição digna do nome enfrenta o poder; uma oposição responsável é comprometida com o país, e não com os seus eventuais líderes.

Ao definir Ciro como “candidato de direita”, o ex-prefeito Fernando Haddad mostra bem de que lado está.

A esquerda liderada pelo PT está ansiosa para repetir o catastrófico desempenho de 2018, jogando todo mundo que não é subserviente a Lula no mesmo monturo.

Bando de lemingues.

Não aprendem nada, nunca.

Que país desesperador.

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Eu escrevi lá no início que ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter, mas a verdade é que ando sem estrutura emocional para enfrentar o Brasil.

Quando Flávio Bolsonaro gasta R$ 6 milhões numa mansão incompatível com os seus ganhos, no momento mais crítico da nossa História recente, não está apenas comprando uma casa. Está mandando um recado para a sociedade, mostrando como a sua família se julga inatingível e inimputável.

E, pelo que se viu até agora, é mesmo.

Daqui a dois dias ninguém mais vai falar no assunto, e mais um “gênio das finanças” seguirá sossegado em sua trajetória milionária.

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Um dia o futuro vai olhar para nós e perguntar como foi que, durante a maior crise sanitária de todos os tempos, deixamos na presidência do país um homem que se aliou ao vírus e cortejou a morte.

Como foi que aceitamos os seus disparates dia após dia, enquanto morríamos como moscas, e não fizemos nada?

Colapso no sistema de saúde, falta de vacinas, hospitais recorrendo a contêineres frigoríficos para receber mortos — e uma população sem reação diante das suas falas obtusas, da sua falta de compaixão, dos seus rompantes de asno perverso.

Os que estivermos vivos vamos olhar nos olhos do futuro e para dentro de nós mesmos, e não vamos encontrar resposta.


Cora Rónai: Kruela Kruel e o paradoxo da intolerância

A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar

Esta coluna é, como todas são, como tudo o que não é amanhã é, um eco do passado. São oito da noite de terça-feira, e, se o meteoro não atingiu o planeta entre agora e logo mais, Karol Conká terá sido eliminada do “Big Brother 21” com uma rejeição recorde, ou quase isso, porque afinal bater os 98,76% anteriores, do Nego Di, é difícil até para uma arquivilã de caricatura.

(Sim, foi: 99,17%. Só mesmo eleições na Coreia do Norte atingem esse nível.)

Karol Conká cabe como uma luva na clássica definição que o ministro Luis Roberto Barroso pregou na testa do colega Gilmar Mendes, uma das joias mais perfeitas da História do Brasil: ela é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.

Nem o seu fã-clube aguentou, e desativou a conta que tinha criado para segui-la na casa:

“Nós, como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para informar e acompanhar ela no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Iremos desativar a página e desejamos que ela se f*.”

Pronto, fãs, desejo atendido.

O problema é que uma trama sem vilões perde muito. Ainda sobram vilões no “BBB 21”, mas nenhum com o talento para o papel da Karol Conká. Karol aparece na tela e o público imediatamente se alvoroça, porque sabe que lá vem treta.

Karol é cruel, falsa e fofoqueira — mas é inteligente, interessante e tem uma capacidade de liderança inquestionável. É carismática e vistosa como a madrasta da Branca de Neve ou a Cruela Cruel. Sabe plantar dúvidas nos corações, semear a discórdia e ferir os outros. O mais fascinante é que faz tudo isso sem perceber, convencida de que é boa gente e que não fez nada de mais. Fica genuinamente surpresa quando alguém se queixa das patadas, e se exime de responsabilidade moral com o argumento de dez entre dez pessoas grosseiras: “Eu sou assim mesmo!”.

(Tiago Leifert foi no ponto na eliminação ao questionar os brothers sobre quem são; e foi cauteloso e gentil ao criar um colchão metafórico para atenuar o tombo descomunal da Conká.)

O “BBB 21” vai perder muito da dinâmica e da graça com a ausência da sister — mas isso me perturba.

A questão é: a que custo nos divertimos? Os participantes fazem questão de frisar, continuamente, que o programa não passa de um jogo. Mas é um jogo jogado por humanos reais, com os sentimentos de que dispõem.

Os jogos do Coliseu romano também eram jogados por humanos, e também eram considerados divertidos illo tempore.

O que vai acontecer com Karol Conká?

Horrível ou não, ela é uma pessoa real. Vê-la experimentar do próprio veneno só é gratificante até o momento em que nos damos conta de que esse veneno é, exatamente, o que nos causa tanta repulsa.

Pessoas boas odeiam pessoas más por serem más, mas acham justificável serem más com os maus.

Quem somos, afinal?

A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar.


Cora Rónai: O silêncio cúmplice dos generais

Cada vez que um general na administração pública se revela incompetente ajuda a destruir a reputação das Forças Armadas

A Academia Militar das Agulhas Negras é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro. Copiei essa frase da Wikipédia para não errar na definição. Ensino. Superior.

Lá se formam os oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Não é qualquer um que tem acesso à AMAN. Jovens militares entre 17 e 22 têm que prestar concurso público para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde passam um ano antes de ser admitidos.

O ensino é puxado. Só no primeiro ano, por exemplo, os alunos têm que aprender idiomas estrangeiros, Economia, Estatística, Filosofia, Introdução à Pesquisa Científica, Informática, Língua Portuguesa, Técnicas Militares e Química, entre aulas de tiro e de treinamento físico. Eles têm ainda aulas de Direito e Psicologia no segundo ano e Metodologia do Ensino Superior no terceiro, e concluem os estudos com Direito Administrativo e Relações Internacionais, entre muitas e muitas matérias de cunho especializado.

Eu não conhecia os detalhes desse currículo até consultar a Wikipédia, mas, como todo mundo, conhecia a fama da AMAN, tida por formadora de pessoas disciplinadas e com bons conhecimentos técnicos.

Como os militares tiveram o bom senso de se manter em low profile depois da ditadura, muitos brasileiros passaram a acreditar no preparo dos seus generais. Eles podem não ser democráticos — ninguém que obedece hierarquia às cegas é inteiramente democrático —, mas imaginava-se que seriam bem preparados.

Bolsonaro é egresso da Academia Militar das Agulhas Negras, mas não teve sucesso como militar. Não mancha a imagem das Forças Armadas diretamente, porque elas tiveram a sorte (ou o bom senso: há divergências) de livrar-se dele a tempo.

Indiretamente, porém, os danos feitos pela sua eleição são incalculáveis. Cada vez que um general alçado à administração pública se revela incompetente, ou dá declarações fora de propósito, ajuda a destruir mais um pouco a reputação que as Forças Armadas levaram tantas décadas para recuperar.

Nenhum estrago, porém, se compara ao general Eduardo Pazuello, o “especialista em logística” que garantiu a pior resposta possível à pandemia — e que garante ao governo o vexame diário de ver os números da contaminação e da mortalidade divulgados por um consórcio de empresas jornalísticas, já que nos dados oficiais é impossível confiar.

Ele é a desmoralização concreta das FFAA, um homem que não se envergonha de faltar com a verdade, um estrategista incapaz de fazer uma simples licitação pública para comprar seringas, um ministro da Saúde que, até agora, não entendeu o que está acontecendo.

Um general que derruba, sozinho, o mito da boa preparação dos oficiais superiores do Exército Brasileiro.

Não é que não dê para se imaginar como chegou ao ministério: o fraco do presidente por pessoas inadequadas é bem conhecido. Num governo que tem Ricardo Salles no Meio Ambiente e Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello faz todo o sentido na Saúde.

O que não dá para imaginar é como chegou ao generalato.

É duro constatar que, enquanto brasileiros morrem asfixiados pela sua incompetência, seus colegas de farda observam calados.

Tomem tenência, senhores: quem cala é cúmplice.


Cora Rónai: As redes sociais concentram poder demais

Sua ação trouxe à luz o debate que, há tempos, elas tentam evitar

O presidente dos Estados Unidos é, em tese, o homem mais poderoso do mundo. Entre outras coisas, ele tem acesso a um aparato de comunicação sem igual: jornalistas das principais organizações de mídia do planeta cobrem a Casa Branca 24 horas por dia, ávidos por ver o que faz e ouvir o que tem a dizer. Seu nome é pronunciado incontáveis vezes por dia em boa parte dos 7.117 idiomas falados por seres humanos. O que não lhe falta é palanque. Mas Donald J. Trump considera-se mudo sem as suas redes sociais — e, de certa forma, está mudo mesmo.

Ele foi expulso da ágora contemporânea, da praça onde se travam hoje as discussões, onde se marcam encontros informais e ataques terroristas, passeatas e golpes de Estado.

Não tem mais conta no Twitter, e suas contas no Facebook, no Instagram, no Snapchat e até no Shopify e Pinterest estão suspensas. O Parler ainda o tolera — mas a rede foi banida das lojas do Google e da Apple e, mais importante, dos servidores da Amazon, o que a tirou efetivamente do ar.

As redes sociais demoraram muito para tomar uma decisão em relação a Trump e, quando tomaram, erraram a mão. O que acabaram fazendo foi chamar a atenção para o poder descomunal que está concentrado em meia dúzia de empresas. Tinham outra saída? Objetivamente, não: a democracia dos Estados Unidos estava sob ameaça. Mas a sua ação trouxe à luz, de maneira espetacular, o debate que, há tempos, elas tentam evitar — afinal, qual é o grau de responsabilidade que têm em relação ao que é postado nas suas páginas?

Ninguém ainda descobriu a resposta exata para essa pergunta. As redes sociais são um fenômeno recente, e estão se desenvolvendo de forma complexa demais para caber em moldes conceituais e legais antigos. Elas não podem ser responsabilizadas por tudo o que publicam, mas também não podem ser irresponsáveis socialmente no grau em que tem sido.

Onde traçar a linha?

Antes de convocar seus apoiadores para “protestos selvagens”, Trump escreveu muita mentira no Twitter, atacou muita gente, gerou muito ódio; a invasão do Capitólio não foi consequência de apenas 240 caracteres. No dia 26 de maio do ano passado, o Twitter pela primeira vez marcou dois tuítes de Trump com advertências sobre a sua confiabilidade: ele estava pondo em questão os votos enviados pelos correios, e desmoralizando o processo eleitoral. Mas foi pouco, e foi tarde.

Como deveriam ter agido?

Ninguém sabe. Não há fórmula. Não há legislação. Onde fica a fronteira entre a liberdade de expressão e a ameaça pública? Até que ponto podemos ser tolerantes com a intolerância?

Uma boa providência para começar seria proibir chefes de Estado de ter contas individuais tout court. Quem assume um cargo desses representa um país, e um país não pode correr o risco, interno ou externo, de ficar submisso aos caprichos de um único tuiteiro maluco. Trump não é o Fulano Trump, é — até o próximo dia 20, ou até ser impichado, o que vier antes — o representante máximo dos Estados Unidos. Assim como Jair Bolsonaro não é (infelizmente) apenas um bolsonaro qualquer.

As redes sociais concentram poder demais; o que era óbvio agora está escancarado, e a discussão sobre a sua regulamentação está na ordem do dia.


Cora Rónai: Já não era sem tempo

Gente má faz mais barulho, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível

31 de dezembro de 2020: enfim, o último dia do ano mais longo que já vivemos, o ano que nos enganou no começo com a linda ressonância dos seus números dobrados, vinte-vinte, mas logo se revelou mais angustiante, divisivo e mortal do que qualquer outro na nossa memória recente. O que mais dói é que não precisava ter sido assim.

Em circunstância nenhuma teríamos escapado da Covid-19, mas não precisávamos ter enfrentado tantas epidemias ao mesmo tempo — de obscurantismo, de arrogância e de politicagem, de descaso e de deboche, de incompetência e de estupidez.

O ano leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro de ponta a ponta.

Teria sido bastante ruim enfrentar tantas mortes e tanta devastação em circunstâncias “normais”, se é que se pode falar em normalidade numa hora dessas, mas foi medonho viver tudo isso tendo no mais alto cargo da nação esse homem inculto e mau, esse ignorante absoluto da própria ignorância, incapaz de entender o pouco que se pedia dele diante da pandemia: calar a boca, seguir os especialistas, dar o exemplo.

Teria sido tão mais simples, tão menos devastador.

Nem precisava ser uma Jacinda Arden ou uma Angela Merkel. Bastava ter um mínimo de inteligência — um pouquinho, não muito, o suficiente apenas para perceber que vírus não tem ideologia e não se combate no grito.

Teria sido tão mais fácil atravessar o ano ouvindo palavras de consolo e de encorajamento; ou, pelo menos, não ouvindo nada.

Mas foram tantos absurdos, tantas ofensas e desaforos, que chegamos a esse fim de ano exaustos, sem energia sequer para manifestar indignação — a tal ponto que o capitão foi para a televisão fazer pronunciamento na noite de Natal e, salvo raras exceções, as panelas permaneceram mudas na cozinha.

Além da Covid-19, tivemos que nos proteger de idiotas negacionistas e de gente grosseira em geral que se sente respaldada por atitudes irresponsáveis vindas de cima. Se o presidente não tem compostura, por que o cidadão precisa ter? Se o presidente não usa máscara, por que o desembargador vai usar?

Ainda assim, amanhã vai ser outro dia, outro ano. Já estamos adultos, sabemos que nada muda de verdade — mas, se a gente não tiver alguma esperança no dia 31 de dezembro, quando vai ter?

Tenho repetido como um mantra que, ainda que haja muita gente má à nossa volta, a quantidade de gente boa continua sendo maior. Gente má faz mais barulho, se faz notar melhor, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível, que nos parecem apenas naturais.

Pois não são.

Eles brotaram ano a ano, século a século, milênio a milênio. São fruto de um longo processo civilizatório, foram cultivados, adubados, cuidados. Às vezes temos recaídas coletivas e regredimos, mas a tendência é nos tornarmos mais atentos e melhores com o passar do tempo. Percebemos o mal porque já conhecemos o bem, e isso faz diferença.

Você acredita mesmo nisso, Cora Rónai?

Acredito, muito. O problema é que nem sempre me lembro de que penso assim. Felicidade — ou, vá lá, fé na Humanidade — é, também, um exercício de memória.

Tenham um bom Ano Novo, pessoas queridas.


Cora Rónai: As emoções das urnas

Vontade de bater a porta na cara dessa cidade sem vergonha que não aprende, e ir embora para algum lugar onde as pessoas raciocinem

Ainda me emociono quando vou votar. Isso se define como “o triunfo da esperança sobre a experiência”. Não me lembro mais quando foi a última vez em que consegui eleger um vereador, ou comemorar o resultado das urnas. Mesmo as (poucas) alegrias que elas me trazem são alegrias capengas, ofuscadas pelas criaturas dos pântanos que vicejam entre os votos vencidos.

Na semana passada escrevi sobre a eleição nos Estados Unidos. A vitória de Biden e de Kamala Harris foi festejada no mundo inteiro, mas antes de ficarmos muito felizinhos convém não esquecer que mais de 70 milhões de americanos votaram em Trump; e…

—Tá, tá! — disse a minha Mãe, quando fui jantar com ela. — Amanhã a gente pensa nisso. Por enquanto, vamos aproveitar e nos regozijar com o resultado.

Mamãe tem bastante experiência de governos medonhos, e foi com regozijo que sacou a palavra regozijo da algibeira. Claro: um verbo dessa grandeza não pode ficar guardado em qualquer bolso ou envelope, precisa mesmo de uma algibeira.

De modo que nos regozijamos então, e mais um pouco até domingo, quando a quantidade de votos no Crivella provou, por A + B, que o Rio não tem moral nenhuma para criticar ninguém. Os evangélicos e as esquerdas cariocas nos garantiram, como de costume, um segundo turno eletrizante.

Detesto a frase idiota que os sinalizadores de virtude usam para se mostrar superiores aos circunstantes, mas ela é perfeita para a ocasião: parabéns aos envolvidos.

Beto Santos, um amigo do Facebook, fez a melhor analogia: “A derrota de Martha Rocha e Benedita da Silva bem juntinhas me remete à lembrança da cena final de um dos episódios do filme ‘Relatos selvagens’, em que dois motoristas travam uma luta insana e sem sentido dentro dos carros acidentados até morrerem carbonizados e abraçados”.

Se Eduardo Paes ganhar no outro domingo estamos salvos; mas se perder, olha só para quem perde! Vontade de bater a porta na cara dessa cidade sem vergonha que não aprende, e ir embora para algum lugar onde as pessoas raciocinem.

(Quando vocês descobrirem onde há um lugar assim, por favor avisem.)

Por outro lado, foi bom ver Tarcísio Motta como campeão de votos. Ele fez um excelente trabalho na Câmara, e não foi por sua culpa que o bispo deixou de ser impichado, como deveria ter sido.

Em compensação, o 02 ficou em segundo: um vereador omisso, que passou a maior parte do mandato em Brasília, e ainda assim conseguiu 71 mil votos dos seus empregadores.

Só não digo que o Rio merece estar na situação em que está porque nenhuma cidade no mundo merece.

A entrevista que Barack Obama deu a Pedro Bial e a Flávia Barbosa, colega querida aqui do jornal, foi uma pausa no mundo grotesco que nos cerca, um ponto de luz e de civilidade.

Não há, no nosso tempo, líder mais carismático, ou orador mais eloquente.

Ao contrário dos seus contrários, quando Obama fala a gente presta atenção, porque tudo o que diz parece ser extremamente relevante — e é, no mínimo, muito interessante e bem contado. A entrevista terminou depois das duas da manhã, mas eu teria atravessado a noite acompanhando aquela conversa.

Educação, bom-senso, cordialidade, elegância — tantas coisas que não vemos mais.

Um grande entrevistado, com entrevistadores à altura.


Cora Rónai: A menina

Uma criança abandonada no meio de uma guerra ideológica sádica em que o que menos importa é o seu bem-estar

A menina não é uma exceção. Todos os dias, sete dias por semana, semana a semana, mês a mês, 365 dias por ano, seis meninas, entre 10 e 14 anos, são internadas em hospitais brasileiros para fazer abortos ou para tratar das consequências de abortos mal feitos, improvisados. Seis meninas estupradas, seis meninas grávidas. Por dia. Todos os dias. Vá saber quantas sequer chegam aos hospitais, quantas não levam a gravidez a termo, quantas abortam em casa, quantas apenas têm seus filhos por aí e morrem como crianças para se tornar mulheres partidas, mães de outras meninas que, meninas, vão ser estupradas e ter outras meninas e outras e outras, num círculo vicioso de perpétuo descaso.

A menina só virou exceção por causa da covardia da equipe médica que a atendeu inicialmente no Espírito Santo, e que não só a obrigou a atravessar o país em busca de socorro como, provavelmente, vazou a notícia do que lhe acontecia para a curriola pestilenta que cerca o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (que ironia).

A menina só virou exceção porque Sara Giromini, filha espiritual da ministra Damares, a expôs na internet, e fundamentalistas religiosos fizeram tanto barulho que, hoje, quando a gente diz "a menina", todos sabem de qual menina estamos falando.

A menina.

A vítima de uma sucessão de crimes, do estupro e da incúria familiar à indizível atitude da equipe do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, que se recusou a cumprir a lei, passando pela exposição do seu nome na internet e pelo furor de hipocrisia que a perseguiu em casa e na porta do hospital.

Os obscurantistas que se manifestaram contra o direito de uma criança de dez anos de continuar a viver como criança são tão criminosos quanto o tio que a estupra desde os seis.

Uma inocente cercada de culpados e de gente má, uma criança abandonada no meio de uma guerra ideológica sádica em que o que menos importa é o seu bem-estar. Dom Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, chegou a dizer que, "se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa, culminando com violento estupro, gravíssimo foi o aborto realizado em Recife, quando todo o esforço deveria ser voltado para a defesa das duas crianças, mãe e filha".

Não, Vossa Excelência Reverendíssima; o aborto realizado no Recife foi uma benção, um milagre da lucidez operando num país tenebroso. Não há "mãe" nessa história horrenda, há apenas uma criança violentada, que não tem condições físicas ou psíquicas de exercer a maternidade.

Num mundo digno e são, líderes religiosos teriam dado apoio à vítima, e não respaldo ao crime. Mas Dom Fernando foi secundado pelo presidente da CNBB, Dom Walmor, para quem é "lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses cuja mãe é uma menina de dez anos".

Eu queria muito saber a opinião do Papa Francisco sobre esses dois senhores. O Papa Francisco lançou no começo desse ano um livro sobre tolerância e paz para crianças, e dizem que ele é um homem bom.


Cora Rónai: É impossível acreditar em Bolsonaro

Torço para que Bolsonaro fique bem para, um dia, responder pelos seus atos diante do Tribunal Internacional de Haia

Quando Bolsonaro disse que não estava com Covid-19, em março, ninguém acreditou. Agora ele diz que está — e, claro, ninguém acredita de novo. Parece bobagem, mas só isso já bastaria para torná-lo inapto para o cargo em qualquer país minimamente funcional: um presidente em cuja palavra ninguém acredita nunca não tem condições de governar um país.

Aqueles famosos 30% não estão, claro, incluídos nesse “ninguém”. Eles acreditam. Mas eles também acreditam que o seu líder é boa pessoa, que a quantidade de milicianos envolvidos no assassinato de Marielle em torno da famiglia é simples coincidência e que Rodrigo Maia é comunista. Alguns acreditam até que a Terra é plana.

É muito sintomático que, quando a notícia se espalhou, nenhum jornal tenha tido confiança suficiente na fonte para afirmar que o presidente estava infectado. Em vez disso, o que se lia nas manchetes era “Bolsonaro diz que está com Covid-19”. Imaginem se na Alemanha ou na Nova Zelândia, governadas por mulheres de palavra, alguém precisaria tomar esse cuidado.

Quando a imprensa de um país não tem coragem de dar como verdadeira a declaração de um presidente a respeito da própria saúde, por qualquer motivo que seja, quem vai mal é o país.

As manchetes só mudaram quando o atestado foi exibido. E, ainda assim, muita gente — essa colunista y compris — continua não acreditando. Que valor tem um atestado em nome de Jair Messias Bolsonaro? Por que acreditar no atestado de um hospital que já aceitou fazer exames com nomes falsos? Em que circunstâncias foram feitos os exames anteriores? E em que circunstâncias foi feito o atual? Por que os resultados negativos foram ocultados por tanto tempo, e o resultado positivo foi exibido assim que saiu, com tanta festa?

Corta para o garoto-propaganda da cloroquina.

Acho que nunca antes na história deste país descemos tão baixo: um presidente da República fazendo o papel de charlatão oficial, apregoando uma droga equivocada, dando risada.

— Bem, estou aqui tomando a terceira dose da hidroxicloroquina. Tou me sentindo muito bem. Tava mais ou menos domingo, mal segunda-feira, hoje, terça, tou muito melhor do que sábado. Então, com toda a certeza, tá dando certo. Eu confio na hidroxicloroquina. E você?

Apesar do mal que ele já fez, apesar do mal que ele está fazendo e do mal que essa declaração ainda vai fazer, torço para que Bolsonaro se recupere.

Se ele estiver mesmo infectado, coisa na qual não acredito, como não acreditei antes que não estivesse, quero que tenha uma experiência Boris Johnson da doença: suficientemente didática para que saia do hospital convencido de que a Covid-19 não é apenas uma gripezinha, agradecendo aos médicos e enfermeiros pela sua vida e, sobretudo, tendo respeito pelo sofrimento e pela vida dos outros.

Torço para que fique bem e que mantenha o “histórico de atleta” para, um dia, responder pelos seus atos diante do Tribunal Internacional de Haia — o destino dos genocidas quando se faz Justiça no mundo.


Cora Ronai: Que papelão, Forças Armadas

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil

É madrugada de quarta-feira, dia 20 de maio de 2020. O dia começou há pouco: digito essa frase às 00h37. Há oficialmente 271.885 casos confirmados de Covid-19 no Brasil e 17.983 mortes, mas o que o Ministério da Saúde diz não se escreve, até porque não temos ministro, não temos equipe no segundo escalão, não temos políticas federais minimamente confiáveis, não temos testes suficientes, não temos nada, nada, nada — além de alguns milicos brincando de médico e da certeza absoluta de ter o pior governo possível no pior momento imaginável.

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil. Já se prevê uma vacina em futuro razoável, adivinham-se possíveis anticorpos aqui e ali, a Ciência funciona e, mais cedo ou mais tarde, estaremos livres disso, assim como ficamos livres de outras doenças — a peste bubônica, várias gripes, a paralisia infantil, a meningite, a Aids. Elas não desapareceram, mas já as conhecemos e as combatemos com eficiência suficiente para não temê-las mais (ou não temê-las tanto).

Mais difícil vai ser encontrar uma cura para a maldição que rege Brasília. E que não, não vem de 2018, embora nesse ano tenha chegado a um patamar nunca antes atingido na História desse país. Saímos cheios de esperança da ditadura — para cair em Sarney e Collor. Elegemos Fernando Henrique — mas ele nos legou a reeleição, essa sim a verdadeira Herança Maldita, que fez com que todos os que se sentassem depois naquela cadeira desgraçada sonhassem em se fincar no poder até o fim dos tempos (ou, pelo menos, até o fim das reeleições possíveis).

De desastre em desastre viemos dar aqui: um sociopata genocida apoiado por militares.

Não é difícil entender Bolsonaro. Ele é um Napoleão de hospício com poder real, com a caneta que é, afinal, o sonho de todo Napoleão de hospício. Numa sociedade saudável, porém, Napoleões de hospício estão, obviamente, no hospício, e não na Presidência da República.

O Napoleão de Hospício é doido, mas as pessoas que estão ao seu redor não são.

Por isso, paradoxalmente, é tão difícil entender o fenômeno Bolsonaro, sobretudo para além das eleições. Eleitores desesperados (ou seja, quase todos, sempre) fazem qualquer coisa, de entregar países a tiranos ou cidades a rinocerontes. Mas uma coisa é entregar uma cidade a um rinoceronte, outra deixá-lo governar e, ainda por cima, incentivar os seus arroubos.

Cacareco continuou no zoológico; Jair Bolsonaro é presidente.

Os militares passaram os últimos 35 anos tentando mudar a imagem sombria que conquistaram durante a ditadura. Ainda que não possam reescrever a História, tiveram êxito. Respeitaram a constituição, trabalharam muito e falaram pouco. As pesquisas de opinião mostram que reconquistaram a confiança da população.

Agora, como se 1964 não tivesse acontecido nunca, começam a sair dos quartéis e se aliam a um homem que foi afastado das Forças Armadas por indisciplina e deslealdade.


Cora Rónai: O privilégio de estar aqui e agora

O ano de 2020 será lembrado para sempre, assim como nós nos lembramos até hoje de 1348, o ano em que a peste negra chegou à Europa 

A vida mudou de endereço. Não acontece mais na rua; “lá fora” é um lugar pouco frequentado, exótico, cheio de riscos. Moro numa avenida movimentada e nem preciso ir à janela para saber a quantas anda a quarentena; o barulho ou o silêncio me informa. Há poucos carros. Já houve menos. Num primeiro momento, tudo o que se ouvia eram as motos dos entregadores. No último fim de semana o trânsito aumentou, e ficou equivalente ao do intervalo de um jogo decisivo da Copa, apressado e escasso — mas ainda assim intenso demais para uma população que deveria ficar em casa.

O ar melhorou muito. Antigamente, quando as janelas ficavam abertas, minha sala era vítima de uma poeira preta e pegajosa. Limpava-se, e horas depois, já estava tudo sujo de novo.

(“Antigamente”, hoje, é advérbio que se aplica ao mês passado.)

A poeira sumiu.

Ando descalça e, ao fim do dia, as solas dos meus pés continuam bastante limpas. Eu já nem me lembrava que isso pode acontecer onde não há poluição; aqui nesse apartamento, onde moro há tanto tempo, nunca aconteceu.

Ouço os passarinhos lá do outro lado.

A natureza agradece a pandemia; o planeta respira aliviado sem a nossa presença. Se continuar viva, vou ter saudades desse ar puro, dessa falta de poeira e dos dias claros. Vou ter saudades também da esperança que insiste em achar que vamos sair disso melhores, mais humanos, menos egoístas; não vamos.

O mundo já passou por toda a espécie de calamidade, e nem por isso a humanidade aprendeu os princípios essenciais da empatia e da compaixão.

Mas nesse momento, isolada há mais de três semanas, consumindo toda informação que posso, acompanhando estatísticas lúgubres e gestos de grandeza, vendo fotos de cidades vazias e de hospitais cheios, não consigo deixar de imaginar que, de agora em diante, vamos repensar as nossas prioridades e prestar mais atenção à nossa volta.

Também não consigo deixar de pensar que é uma espécie de privilégio existencial estar aqui, agora. O ano de 2020 será lembrado para sempre, assim como nós nos lembramos até hoje de 1348, o ano em que a peste negra chegou à Europa.

— As grandes cidades do mundo pararam em 2020 — dirão os netos dos netos dos nossos netos.

Que diferença faz isso se, em algumas décadas, mesmo os mais jovens e saudáveis dentre nós já não estarão mais aqui? A longo prazo, nenhuma. Mas o que se leva dessa vida é um conjunto de experiências e de vivências, e nós estamos passando pela experiência mais extraordinária do século, talvez do milênio.

Nós estamos experimentando em primeira mão o espanto diante das imagens de metrópoles desertas que, amanhã, serão as ilustrações batidas dos livros de História.

(Sim, eu acredito na sobrevivência dos livros.)

Nós somos a primeira geração que ainda não sabe como isso vai acabar. É lógico que, podendo escolher, nenhum de nós escolheria passar por isso; mas essa não é uma escolha.

Então pelo menos vamos observar bem, e vamos tentar ser as melhores testemunhas que pudermos ser.


Cora Rónai: Quando o block é censura

Políticos e autoridades que usam suas redes sociais para pronunciamentos oficiais não podem decidir quem tem ou não permissão para ler

A colunista Mariliz Pereira Jorge , da Folha de S.Paulo, foi bloqueada no Twitter por Abraham Weintraub , o ministro da Educação, e por Marcelo Bretas , juiz da Lava-Jato . Fez observações em relação a tuítes deles de que eles não gostaram. Mariliz levou o assunto à sua coluna em vídeo do canal MyNews , eu compartilhei essa coluna - e, a partir daí, caímos numa discussão sem fim na internet a respeito do uso de blocks por pessoas públicas.

A eleição de Donald Trump deslocou de vez o espaço da discussão política para as redes sociais. Ele não foi o primeiro político a manter contato com o eleitorado através do Twitter - Barack Obama já fazia uso intenso da plataforma durante a sua primeira eleição, em 2008 - mas foi o primeiro presidente a usar uma rede social como ferramenta de governo, e o seu estilo tosco fez escola.

Essa ligação direta com o público, sem passar pelos canais tradicionais de divulgação, levanta, porém, uma questão importante: onde ficam as fronteiras entre público e privado? Mais: essas fronteiras podem sequer existir quando o que está em pauta é o debate político, que diz respeito a todos os cidadãos? Contas pessoais de políticos muitas vezes são mais importantes para compreender o que está acontecendo do que as contas oficiais do governo.

Nos Estados Unidos, essa questão já passou em julgado. Donald Trump foi proibido por um juiz de bloquear qualquer cidadão no Twitter, e a mesma coisa tem acontecido, rotineiramente, com outros políticos pouco afeitos ao diálogo.

Aqui, um grupo de 111 advogadas protocolou um mandado de segurança contra o ministro Weintraub, exigindo que ele desbloqueie a professora Debora Diniz no Twitter - pois é, a Mariliz não foi a única. A professora também teve a ousadia de contestá-lo quando ele se manifestou a respeito do transporte de drogas no avião presidencial.

"Meu Twitter minhas regras!" tuitou o ministro em resposta. "Fui informado que há uma comunistinha querendo que eu a desbloqueie. Regras para ter acesso: não pode ser comunistinha e chato ao mesmo tempo (tenho que dar risada quando ler). Mantive o Cocada, o Dragão, a Tiburi e tantos outros... Estou sendo radical?"

Não, o ministro não está sendo radical. A palavra é outra. Ele está sendo antidemocrático, e está provando que ainda não entendeu a complexidade do seu cargo. Ele não pode estabelecer regras para determinar quem tem o direito de ler o que ele escreve num espaço público.

Vale lembrar que a confusão entre público e privado não se dá por engano dos cidadãos; ela começa quando autoridades transformam as suas plataformas virtuais em espaço de debate. O Twitter do ministro seria privado se ele não o utilizasse para fazer pronunciamentos políticos.

Vale lembrar também que o nome que se dá à proibição de manifestações críticas por autoridades é censura .

Em suma, todo cidadão tem o direito de se manifestar em relação ao trabalho do governo, que não só é pago com o seu dinheiro, como afeta diretamente a sua vida. Se um político não está disposto a ouvir críticas, ou se só está disposto a ouvir aquelas críticas que o fazem rir, é melhor que saia das redes sociais - e, de preferência, do governo.