cloroquina

Marcelo Godoy: Documento de general expõe mapa da cloroquina e a 'cadeia de comando' para produzi-la

Em resposta ao TCU, comandante da 1.ª Região Militar detalhou quem foi responsável pelos pedidos e ordens para que o laboratório do Exército produzisse milhões de comprimidos

Caro leitor,

Enquanto Jair Bolsonaro exige até certificado de reservista para aprovar vacinas, coube ao general André Luiz Silveira, comandante da 1.ª Região Militar, no Rio, a tarefa de explicar por que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu mais de 2 milhões de comprimidos de cloroquina para combater a covid-19 se, desde março, o tratamento era contestado pela comunidade científica. O militar teve de justificar ao Tribunal de Contas União (TCU) também por que o insumo farmacêutico ativo - cloroquina difosfato - foi comprado na Índia por um preço em dólar 77% superior ao adquirido em 2019 pelo laboratório.

Após o estudo Solidarity, feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com 11 mil pacientes em 32 países e 400 hospitais, mostrar a inutilidade da cloroquina contra o vírus Sars-Cov 2, não há mais quem defenda a droga para tratar os doentes - exceto Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. O general fez sua reposta em 31 de julho - antes da publicação do estudo da OMS. E usou a lei 13.979 e na MP 926/2020, que afrouxaram os critérios para as compras públicas na área da Saúde durante a pandemia, para se justificar. 

A argumentação do general se baseou no fato de que cumpriu a legislação para a compra e afirmou que a variação do preço do produto se justificava pelo aumento do preço da mercadoria no mercado internacional. A história mostra ser comum o aparecimento de espertalhões diante do pânico da peste. O medo das epidemias e das doenças incuráveis é combustível para mercadores de esperanças. Há quem venda a cura da aids. Há quem ofereça remédio contra a covid-19. O presidente não queria que a economia parasse, que o desemprego aumentasse e sua reeleição fosse para o vinagre. Exigiu coragem dos maricas e divulgou a cloroquina. 

Mas a lei só dispensa a licitação e reduz suas exigências para a "aquisição de insumos necessários ao combate á covid-19". Eis aqui o problema: é a cloroquina necessária para combater a covid-19? Se não serve, se havia dúvida razoável durante os atos do governo, a legalidade dos procedimentos de compra pode ser questionada? Essa é a lógica que estava por trás da apuração do TCU. Algo semelhante à aquisição de respiradores médicos inadequados para os pacientes com covid-19.

O general contou no ofício ao TCU - documento revelado pelo jornalista Luiz Fernando Toledo, no site Fiquem Sabendo - que o preço de US$ 230 por quilo do insumo farmacêutico era o valor de mercado do produto, incluindo o frete da Índia - onde é produzido - para o Brasil. No ano passado, o mesmo quilo valia US$ 130. Ao justificar a compra, o general foi além. Apontou toda a cadeia hierárquica responsável pela LQFEx ter produzido o medicamento, que tem validade de dois anos.

Diz que o governo mobilizou o Itamaraty - embaixada em Nova Deli - que informou que a empresa indiana Alcon Biosciences Pvt Ltd poderia fornecer 3 mil quilos ao Brasil.  O general se queixou das notícias da imprensa e disse que LQFEx é uma repartição séria, que integra o Complexo Industrial da Saúde (CIS) com outros 20 laboratórios públicos. Ele produz medicamentos para doenças negligenciadas, como tuberculose e hansenpiase, que a indústria farmacêutica não tem interesse em fazer. E lamentou: "Infelizmente não há cicatrização social do dano causado pela desinformação provocada".  

Em seguida, o general citou portarias dos Ministério da Saúde e da Defesa e a mensagem 116/2020, do Centro de Coordenação de Logística e Mobilização (CCML) do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), que pôs sob coordenação do EMCFA a cadeia produtiva e a distribuição de medicamentos para covid-19. Até aí, nada de mal. É o que ocorre em qualquer plano de mobilização. A polêmica começa com a nota informativa nº 5/2020 do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF), do Ministério da Saúde, que regulamentou o uso da cloroquina em casos graves.

A nota traz como justificativa para a medida quatro trabalhos. Dois deles são de pesquisadores de Marseille (França), do grupo do médico Didier Raoult, o homem que 'inventou' o uso da cloroquina contra a covid-19. Ele assina um dos trabalhos. Os outros dois são sobre os efeitos da droga em pacientes cardíacos e um que desaconselhava seu uso contra a covid-19. Este é da pesquisadora Rachel Riera, do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde, do Hospital Sírio-Libanês (NTAS-HSL) e foi publicado no dia 20 de março, sete dias antes da nota do ministério.

Sobram, portanto, os trabalhos dos franceses. A atuação de Raoult  e seus estudos sobre a covid-19 foram bombardeados pela comunidade científica francesa. O que era contestação aos métodos no início, virou há duas semanas em acusação de charlatanismo, com direito a processo no Conselho Francês de Medicina contra Raoult, conforme mostrou o jornal Le Monde. Foi com base em trabalhos de equipes ligadas a Raoult que o ministério liberou o uso da cloroquina para ser distribuída à rede SUS.

O general revelou em seguida o mapa da cloroquina. Contou que, sob a coordenação da Saúde e da Defesa, distribuiu-se 1 milhão de comprimidos de 150 mg em razão de pedidos feitos nos dias 13 e 28 de abril. São Paulo recebeu 316 mil. Em 2.º no ranking da cloroquina estava o Amazonas, com 160 mil comprimidos. Na época, Manaus enterrava os mortos em covas coletivas. O Rio ganhou 100 mil. Seis Estados ocuparam a última posição, com 5 mil comprimidos (Alagoas, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Piauí, Sergipe e Tocantins). Entre os militares, quem mais recebeu a droga foi a Marinha. O Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio, ficou com 16,8 mil comprimidos, número superior ao entregue a 11 Estados. Já o Hospital Central do Exército, também no Rio, ganhou 9,6 mil. E o Hospital das Forças Armadas, em Brasília, 6,5 mil.   

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde expandiu o uso da cloroquina para casos leves. A medida foi feita por meio de nota informativa da secretaria executiva da pasta, ocupada pelo coronel Antônio Élcio Franco Filho, um dia antes. A nota lista mais de 40 trabalhos para justificar por que a cloroquina devia ser utilizada contra a covid-19. Mais uma vez estão ali quatro trabalhos do francês Raoult. Nenhum dos outros artigos atestava a eficácia do fármaco,  exceto um feito por médicos militares espanhóis.

Em 7 de julho, o LQFEx mandou outra remessa de 1,024 milhão de comprimidos para os Estados. Desta vez, só 12 receberam a droga - o campeão foi o Rio Grande do Sul, com 323 mil comprimidos. São Paulo, Rio e Amazonas não constam da lista. Onze capitais foram agraciadas com o remédio. Vitoria (54 mil), Porto Velho (40 mil)  e Maceió (30 mil) lideraram a lista. Para o general, não se podia exigir outra conduta do LQFEx diante das demandas e da convocação da Defesa. Para justificar a decisão de fabricar cloroquina, ele alegou não haver tratamento consagrado contra a covid-19 ou consenso na comunidade médica a respeito de seu uso.

Não é bem assim. Desde maio a cloroquina foi excluída pela OMS das opções de tratamento da doença, assim como pelos médicos que observam a ciência. Em junho, foi a vez da FDA americana revogar a licença para seu uso emergencial contra o coronavírus.  Todos a consideram ineficaz, como a farinha dos placebos. E seu principal advogado - o francês Didier Raoult - se vê agora às voltas com as acusações de seus pares. Se há médicos que a recomendam no Brasil, é porque há bolsonaristas entre os médicos. 

Por fim, o general afirmou que não poderia ser exigida outra conduta do LQFEx, alegando que a produção de cloroquina, "por seu baixíssimo custo", equivalia "a produzir esperança a milhões decorações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no mundo".  O general resumiu o discurso do governo: produzir esperança para si e para os seus em vez de ciência. Ainda que isso signifique atrasar a vacinação - esta sim uma opção eficaz contra a covid-19. Bolsonaro diz não estar nem aí para o fato de uma dezena de países começarem a vacinar nesta semana. E é defendido por militares ouvidos pela coluna sob o argumento que ele está certo em exigir que as vacinas sejam seguras. Ninguém questiona por que os outros páises foram eficientes onde o Brasil fracassou.

Se o bolsonarismo não fosse esse estado de espírito que acredita em qualquer coisa que escuta, talvez tivessem razão os militares críticos ao governo que enxergam apenas cinismo nos colegas do partido militar interessados em se manter no poder. O homem que se diz preocupado com a segurança da vacina gastou milhões com uma "esperança" inútil, a cloroquina. Diante da ação do presidente, o ofício do general André Luiz Silveira mostra o mapa da droga e parte de sua cadeia de comando. É um desses documentos que a Justiça e a História deviam guardar. A primeira para indagar os chefes do general. A segunda para contar às gerações futuras como a pandemia chegou a 190 mil mortos no Brasil.


Eliane Cantanhêde: Troféu dos 180 mil vai para...

Com plano confuso de vacinas, Saúde quer mesmo é desovar cloroquina contra o 'bichinho'

Acerta o ministro Paulo Guedes em deixar de lado o foco fiscal e se dispor a destinar até R$ 20 bilhões para a vacinação em massa contra a pandemia. Erra o ministro Eduardo Pazuello ao entrar numa guerra política insana e planejar gastar R$ 250 milhões na distribuição de um remédio encalhado e desautorizado para a covid em todo o mundo. 

Tão fundamental, o equilíbrio das contas públicas é sempre ignorado pelo Brasil, entra governo, sai governo, mas não é hora de pensar nisso e, sim, em como combater o maior mal do século. Dinheiro para vacinação não é gasto, é investimento: na vida, na volta à normalidade, na sustentabilidade do sistema público e privado de saúde, na recuperação da economia e na volta dos empregos.

Não basta, porém, a decisão de investir, é preciso ter no que investir. Ou seja: é obrigatório ter planejamento, cronograma, meta, acordos com fornecedores de luvas, seringas, embalagens, refrigeradores e, o mais importante, vacinas. O Ministério da Economia diz que tem dinheiro, o da Saúde tem o plano? Qual a consistência do que foi entregue ao STF?

Perdido, depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro a negociar a vacina do Instituto Butantã, Pazuello joga datas ao léu e agora fala em dezembro. Mas, se o presidente diz que a pandemia “está no finalzinho”, o que está mesmo no finalzinho é dezembro, é 2020. O que foi feito, foi; o que não foi, não foi. Com o mundo inteiro desesperado por vacinas, os países que chegaram primeiro nas farmacêuticas chegam primeiro aos seus cidadãos. O resto fica chupando dedo.

Sem vacina em tempo e em quantidades seguras, o Ministério da Saúde imagina atalhos espinhosos, como “requisitar” (ou confiscar?) vacinas de quem foi mais diligente e criar um “kit covid” para desovar os estoques de cloroquina encomendados teimosamente por Bolsonaro ao amigão Trump e aos laboratórios das Forças Armadas. Senão, vai ter de prorrogar a validade da cloroquina, como a gente não faz com o iogurte da geladeira, mas eles fizeram com os 7 milhões de testes jogados no almoxarifado da incompetência.

Agora, é torcer para a pressão que partiu de São Paulo chegar ao resto do País e gerar senso de urgência e ação, porque somos 210 milhões e é necessário apostar no máximo de vacinas, com rapidez, segurança e a confiança da população na nossa Anvisa, de tão boa imagem, serviços prestados e quadros de excelência.

Enquanto isso, o País e os próprios governadores se dividem. Ronaldo Caiado (GO), errático, está irado com João Doria (SP) – que “criou dois Brasis, um com e outro sem vacina”, ao anunciar para 25 de janeiro uma vacina ainda sem autorização da Anvisa –, mas passa a mão na cabeça de Bolsonaro, quem efetivamente criou esses dois Brasis.

(Detalhe: médico ortopedista, Caiado já fez 32 testes, todos negativos, mas sua mulher e duas filhas estão com covid. Nenhuma das três tomando cloroquina...)

O curioso, ou drástico, é como as situações se confundem nos Estados Unidos e no Brasil, onde o coronavírus ganha a guerra e vai fazer uma grande festa no Natal e no ano-novo. Há, porém, duas diferenças. Nos EUA, a vacinação está para começar e tudo muda de figura em janeiro. Lá, há definição e horizonte. Cá, indefinição e nebulosidade.

À Globonews, na sexta-feira passada, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta previu uma segunda onda em março/abril e contou como fez de tudo para tentar convencer Bolsonaro da gravidade do vírus, desde um denso documento até explicar que é “um bichinho que entra pelo nariz e passa de uma mão para outra”. E avisou: no pior cenário, se nada fosse feito, o Brasil chegaria a 180 mil mortes em dezembro. Bolsonaro optou pelo ego e os terraplanistas. Para quem vai o troféu dos 180 mil?


Hélio Schwartsman: Governantes se dividem entre quem apoia ou refuta a ciência

Jair Cloroquina Bolsonaro e Donald Lysol Trump não dão pelota a especialistas

Não me parece muito prudente a posição dos mais de 6.000 cientistas e médicos que assinaram uma carta aberta pedindo aos governos dos EUA e do Reino Unido que estimulem a circulação de jovens para atingir a imunidade de rebanho, mas acho importante que esse tipo de manifestação ocorra e gere discussões.

A polarização política fez com que dividíssemos os governantes no campo dos que seguem a ciência e no dos que a rejeitam. Não há a menor dúvida de que dirigentes como Jair Cloroquina Bolsonaro, Donald Lysol Trump e Alexander Sauna & Vodca Lukashenko agem sem dar pelota para o que os especialistas têm a dizer sobre a pandemia, mas daí não decorre que a ciência tenha respostas únicas e inequívocas para todas as nossas perguntas. Pelo contrário, se há algo que caracteriza a ciência (ainda que não os cientistas) é a dúvida metódica e o ceticismo em relação a suas próprias conclusões. Em ciência, até as certezas são necessariamente provisórias.

Nesse contexto, é fundamental que existam pessoas que desafiem os chamados consensos (que nunca são tão consensuais assim), especialmente se o fizerem com bons argumentos. Mesmo que sua posição não seja a melhor nem a que triunfará, a simples necessidade de responder às críticas já leva a maioria a reformular seus próprios argumentos, aperfeiçoando-os. Com alguma frequência, esses questionamentos acabam gerando programas de pesquisa em áreas que vinham sendo negligenciadas.

No caso específico da Covid-19, penso que os constantes avanços no manejo do paciente crítico e a perspectiva da chegada de várias vacinas, ainda que imperfeitas, nos próximos meses recomendam que não se dê nenhum passo precipitado. Já está em curso um movimento natural de relaxamento do distanciamento social. Nem os países mais atingidos pela segunda onda cogitam fazer novos lockdowns tão duros quanto os da primeira. Não parece sábio reforçar ainda mais essa tendência.


Ricardo Noblat: Ministério da Saúde inunda o país com hidroxicloroquina

Bolsonaro, o garoto propaganda da droga, agradece

Jamais se viu e dificilmente se verá algo que supere o absurdo protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro e os que o ajudam a governar ou a desgovernar o país. Verdade que ele seguiu os passos de Donald Trump a quem imita por falta de referência que mais o agrade. Verdade também que Trump recuou ao ver a enrascada em que se metera. Bolsonaro segue em frente como um celerado.

Em questão, o uso da hidroxicloroquina no combate a Covid-19. O mal começou a preocupar o mundo quando fez suas primeiras vítimas na China ainda em novembro do ano passado. Oito meses depois, não surgiu um único estudo científico que tenha comprovado a eficácia da droga contra a doença que ganhou status de pandemia. Nem por isso Bolsonaro desistiu dela.

A Organização Mundial de Saúde, em junho último, interrompeu os testes com o remédio para tratamento do coronavírus após revisão de estudos não atestar efeitos positivos. Um mês depois, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou um comunicado em que propõe que as medicações com a hidroxicloquina sejam abandonadas “no tratamento de qualquer fase” da doença. E daí?

Daí que o governo não ligou a mínima. Durante a pandemia, o Ministério da Saúde quintuplicou a distribuição da droga a estados e municípios. E agora tenta desovar na rede pública doses em estoque doadas pelo governo dos Estados Unidos depois que Trump mudou de lado. Foi o que apurou o jornal Folha de S. Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação.

De março a julho deste ano, já foram enviados 6,3 milhões de comprimidos de cloroquina, na dosagem de 150mg, para abastecer as unidades do Sistema Único de Saúde. Segundo o jornal, é 455% a mais do que o repassado no mesmo período do ano passado (1,14 milhão), quando a aplicação se dava apenas em terapias contra a malária e outras doenças.

Até julho, cerca de 5 milhões de comprimidos foram remetidos pelo ministério só para uso em pacientes com o novo coronavírus. As remessas cresceram em maio e junho graças ao papel desempenhado por Bolsonaro de garoto propaganda do remédio. No período, foram afastados dois ministros de Saúde contrários ao aumento do uso do medicamento – Mandetta e Nelson Teich.

Disciplinado, o atual ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, não se opôs à vontade de Bolsonaro. Missão dada, missão cumprida. No final de junho, o Ministério da Defesa informou que havia 1,8 milhão de comprimidos de cloroquina em estoque no Laboratório do Exército. O valor representa cerca de quase 20 vezes a produção anual da droga nos anos anteriores.


Merval Pereira: Cada morto importa

Não é apenas um número chocante. Não é apenas uma barreira tristemente quebrada. São mais de cem mil pessoas mortas, exatas 100.240 até ontem, na maior tragédia da história brasileira. Para casos como esse, não é possível fazer-se o uso frio dos números, cada morto importa.
Dizer que o país está bem nas estatísticas, porque temos 471 mortes por milhão de habitantes, enquanto países como a Espanha têm 610, ou Reino Unido tem 623, é somente a demonstração de que com estatísticas é possível fazer qualquer coisa, torturando os números. Se fosse esse o caso de comparação, a Argentina tem 98 mortes por milhão de habitantes. A Rússia tem 102, e a China apenas 3 mortes por milhão de habitantes.

A triste realidade é que o Brasil é o segundo país que tem mais mortes no mundo por milhão de habitantes, 471, contra 497 nos Estados Unidos, o país que tem o maior número de mortes, 164.577.
Essa triste competição que estamos ganhando tem na raiz a mesma razão da crise dos Estados Unidos, governos negacionistas que se empenharam em vender a cloroquina como remédio milagroso contra a Covid-19, quando deveriam ter liderado um movimento a favor do distanciamento social, do uso de máscaras, da quarentena e, nos casos mais graves, do lockdown.

Donald Trump, com uma possível derrota nas eleições se aproximando, tenta se recuperar usando máscara, depois de meses preciosos sem usá-la, e já cunhou um bordão patético a essa altura: “Patriota usa máscara”. Bolsonaro, nem depois de pegar a Covid-19, se anima a fazer uma campanha nesse sentido.

O máximo de empatia que conseguiu exprimir foi uma frase abominável: “A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número 100 mil… mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Para quem tem a culpa maior por essa tragédia brasileira, dizer isso ao lado de um ministro interino da Saúde há mais de dois meses, enquanto a mortandade só fez crescer, é sinal de sociopatia, que, aliás, vem demonstrando em vários momentos.
Sua empatia é seletiva, foi ao Rio para o velório de um paraquedista que morreu, mas fez um passeio de jetski quando o número de mortos chegou a 10 mil. A disputa que o presidente Bolsonaro estimulou com os governadores foi uma das principais causas do desacerto do combate à Covid-19.

Essa briga de poder aconteceu porque Bolsonaro queria impor suas idéias, como o uso de cloroquina e a abertura das cidades para não prejudicar a economia. O mais inacreditável foi a briga de Bolsonaro com os ministros da Saúde, Luiz Mandetta e Nelson Teich, querendo impor suas vontades contra a orientação cientifica internacional.
A crise pessoal de Bolsonaro só acabou quando resolveu colocar o General da ativa Eduardo Pazuello na interinidade permanente à frente da Saúde. Como cultor da hierarquia e jejuno em medicina, o General aceitou tornar a cloroquina um medicamente oficial do SUS para combater a Covid-19, o que nenhum dos antecessores, médicos que tinham uma reputação a zelar, aceitou.

O Brasil passou vários dias com uma média de mil mortes, já temos proporcionalmente mais mortos que os Estados Unidos, e não é improvável que em algum momento passemos a ser o país com mais mortes do mundo, em números absolutos. Se é que já não passamos. A estimativa de vários estudos é de que a subnotificação dos infectados por Covid-19, hoje perto de 3 milhões de pessoas, pode chegar a 14 vezes mais.

O número de mortes que hoje nos assombra pode ser 27% maior que os 100.240 oficiais, isso porque as mortes por síndrome respiratória aguda grave (Srag) não apenas aumentaram muito em relação à média, como muitos casos não tiveram o agente causador identificado, o que leva as autoridades médicas a crerem que teriam sido provocadas pela Covid-19.

Sem falar nas periferias e favelas das grandes cidades, e no Brasil profundo, que não têm atendimento médico devido. Um dos maiores problemas brasileiros no combate à Covid-19 foi a falta de testagem, sem o que não se pode ter uma idéia exata de como está a evolução da doença. Este é um problema que a maioria dos países europeus e os Estados Unidos não têm.


El País: Saúde deixa de divulgar balanço de remédios em falta enquanto cloroquina abarrota estoques

Dados mais recentes do Conselho Nacional dos Secretários da Saúde são da semana de 12 a 18 de julho. Medicamentos escassos são usados em pacientes graves para a internação em UTIs

pandemia de coronavírus segue com toda força em diferentes zonas no Brasil, mas um eixo central da política sanitária de Jair Bolsonaro continua a ter um só nome: cloroquina. O Ministério da Saúde acumulava no início de julho mais de 4 milhões de comprimidos do medicamento, utilizado contra a malária, lúpus e outras doenças, mas sem eficácia comprovada contra a covid-19. Paralelamente, os serviços médicos e secretarias de Saúde de vários Estados relatam há cerca de dois meses que estão com dificuldades em adquirir remédios essenciais para tratamento do coronavírus nas UTIs dos hospitais. Eles são usados sobretudo para intubação e sedação de pacientes. Essas dificuldades acontecem no momento em que o país já confirmou ao menos 92.475 mortes por covid-19 e 2.682.465 contágios, segundo dados divulgados nesta sexta-feira, pelo Ministério da Saúde. Somente nas últimas 24 horas foram registrados 1.212 novos óbitos e 52.383 novos casos. O ministério também considera que 1.844.051 pessoas estão recuperadas.

Contudo, o presidente do Conass, Carlos Eduardo Oliveira Lula, demonstrou nesta sexta-feira que segue preocupado com o abastecimento de remédios usados para a intubação de pacientes e pediu ao Ministério da Saúde que adote medidas estratégicas para evitar o pior. “Por precaução, tentaria acelerar um processo de compras com a Opas [Organização Pan-Americana de Saúde]”, afirmou ele durante a 5ª Reunião Ordinária da Comissão Intergestores Tripartite. Todos os Estados participam atualmente de um pregão de compra do remédios anunciado pelo ministério no mês passado. Mesmo assim, Lula alertou para a necessidade de que Governo Bolsonaro esteja preparado para uma eventual demora no processo de aquisição. O ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, garantiu que alternativas estão sendo discutidas, entre elas a aquisição por meio das Opas.

Na última semana, Pazuello chegou a afirmar no Paraná que sua pasta ajudaria o Estado em caso de desabastecimento e que, se fosse preciso, se valeria da logística militar para fazer uma entrega emergencial. “Em poucas horas, em um dia, proporcionaremos um estoque de emergência para que os remédios não acabem”.

A escassez de medicamentos essenciais nas UTIs não é novidade para Pazuello. O Ministério da Saúde recebeu sucessivos alertas desde maio de que alguns remédios essenciais na sedação e analgesia de doentes graves nas UTIs estavam se esgotando, como informou o jornal O Estado de S. Paulo. Um documento do Comitê de Operações de Emergência do Ministério da Saúde também recomendou que se omitisse as informações sobre a escassez de suprimentos médicos e medicamentos, relatou o jornal O Globo. Em um documento interno, o ministério também passou a dizer que não é de sua responsabilidade proporcionar equipamentos de proteção individual (EPI), respiradores e leitos de hospital aos Estados e municípios, de acordo com o Estado de S. Paulo. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo que Pazuello priorizava a distribuição de cloroquina para as secretarias da Saúde.

No início da pandemia acreditava-se que a cloroquina poderia ser eficaz contra a covid-19, mas diversos estudos e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) dizem que ou não tem comprovação ou ainda é muito cedo para afirmar que o medicamento é eficaz. A principal investigação conduzida no Brasil por hospitais privados, e publicada na semana passada no The New England Journal of Medicine, concluiu mais uma vez que o medicamento não deve ser prescrito nem mesmo em casos leves da covid-19. “Há evidências confiáveis de que não há eficácia e, portanto, não faria sentido a prescrição para pacientes hospitalizados”, afirmou o pesquisador Alexandre Biasi, diretor do instituto de pesquisa do Hospital do Coração de São Paulo. “Quando não funciona, não funciona, e paciência”.

Apesar do alerta da comunidade científica, o Ministério da Saúde continua indicando o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina na etapa inicial do tratamento da covid-19. Já Bolsonaro, que continua a fazer seu périplo pelo país após se declarar livre da covid-19, assegura que se curou utilizando a medicação. Nesta sexta, ao inaugurar condomínios populares em Bagé, no Rio Grande do Sul, voltou promover o medicamento. “Olha só. Cloroquina. Não é que eu apostei. Eu estudei a questão junto com médicos, via como estava sendo feito no mundo, em especial em países da África e quando você não tem alternativa, não proíba o médico que por ventura queira usar aquele tratamento”, argumentou. “Se não fosse essa tentativa e erro da questão do receituário off label, fora da bula, muitas doenças ainda estariam até hoje existindo no mundo”.

O presidente também admitiu que a eficácia da cloroquina não foi comprovada cientificamente. “Agora ainda não temos alternativa. O pessoal fala ‘ah, não tem comprovação científica’. Todos nós sabemos que não tem comprovação científica, agora não tem também ninguém cientificamente dizendo que não faz efeito. É o que tem. Então vamos usar, ora. Ouvindo o médico, obviamente”.

Num discurso confuso, Bolsonaro, que defende a reabertura irrestrita da economia em meio à pandemia, minimizou as circunstâncias sem precedentes da crise e cobrou que a população “enfrente” a covid-19 que já matou quase 100.000 oficialmente. Afirmou que a miséria provocada pela crise pode abrir as portas do país para “o socialismo”. “É isso que vocês querem no Brasil? Temos é que enfrentar as coisas, acontece. Eu estou no grupo de risco. Eu nunca negligenciei, eu sabia que um dia ia pegar, como infelizmente, eu acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do que? Enfrenta”, afirmou o mandatário. Em seguida emendou: “Lamento. Lamento as mortes, tá certo? Morre gente todo dia de uma série de causas e é a vida. Minha esposa agora tá, depois de quase um mês que peguei o vírus, ela pegou”.


Mariliz Pereira Jorge: É muito difícil ser bolsonarista

Pense no susto se bolsonaristas descobrirem que o establishment são eles

Inegáveis a devoção, a energia e a habilidade que os apoiadores do governo demonstram. A capacidade infinita de enxergar seus ídolos com filtros coloridos não é estranha a nenhum militante, mas a vida do bolsonarista é um malabarismo permanente.

A começar pela exaltação da cloroquina. Todos virados em direção ao Palácio da Alvorada, a meca dos "patriotas", para louvar um remédio que inúmeras pesquisas apontam como ineficaz contra o coronavírus.

Rejeitar a ciência, porém, é nada perto do contorcionismo para apoiar Madonna, que, de feminista de carteirinha e defensora do aborto legal, e portanto inimiga, passou a correligionária após defender o uso do medicamento.

E o que dizer dessa massa que passou a eleição falando em combate à corrupção e à velha política, fim de privilégios e bandido morto e hoje aplaude Bolsonaro de mãos dadas com o centrão, exalta o ex-presidiário Roberto Jefferson, defende o foro privilegiado de Flávio Bolsonaro e a prisão domiciliar de Queiroz?

Um dia o bolsonarista pede a volta da ditadura, desconjura militar frouxo, diz que a mídia mente. No outro, reclama que vive sob uma ditadura, clama pelo direito de ir e vir e de desrespeitar medidas sanitárias de combate à pandemia, defende fake news e liberdade de expressão (a deles).

Eles ainda encontram tempo para, entre uma novela e outra da Globo, seguir os perfis da "extrema imprensa" só para poder cravar seus slogans, #globolixo, #folhalixo, #acabouamamata. Menos, claro, a mamata oficial. O interino da Saúde nomeou uma amiga, sem experiência, para chefiar o ministério em Pernambuco. E daí? O que pega mesmo os bolsonaristas é a propaganda de Dia dos Pais com o transexual Thammy Gretchen.

Sem falar nas reclamações rotineiras contra o establishment, que partem inclusive de integrantes do governo e de filhos do presidente. O contorcionismo é admirável. Pense no susto se descobrirem que o establishment são eles.


Carlos Andreazza: No gogó da ema

Hidroxicloroquina é a salvação para bolsonaristas

Temos um remédio santificado entre nós. Não importarão quantos estudos lhe indicarem a ineficiência, temos — teremos, ecoando no zap profundo — um medicamento santificado, glorificado, comungado no altar do Alvorada. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. O próprio retrato de um Brasil — mui influente — que é teórico da conspiração e negacionista.

Não interessa a ciência — essa senhora formal — que testa, pondera e contraindica. A ciência que prudentemente informa, com base na experiência, assim: são muitos os indicativos de que não sirva — podendo até fazer mal se aplicado — para combater a Covid-19. Não importam os estudos. A fotografia do estado espiritual de nossa sociedade vai toda nesta inabalável afirmação de fé: a hidroxicloroquina é a salvação negada pelos que torcem pela doença e contra Bolsonaro.

Então, de repente, tínhamos — temos — um remédio patriota que seria agente político da direita na luta contra o vírus chinês, o agente político inimigo conspirador comunista. A hidroxicloroquina como a própria infantaria conservadora no campo de batalha da guerra cultural, de cuja fantasia depende a existência do bolsonarismo.

Esse esquema propagandístico prosperou e prospera ainda. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. Jair salva. E que não subestimemos a percepção popular a partir da campanha de desinformação bolsonarista: um medicamento — a solução contra a peste — que se queria ministrar para a população, que se poderia ministrar para a população, mas que foi desqualificado por uma concertação do establishment, disposto mesmo a matar brasileiros em troca de não deixar que o remédio de Bolsonaro mostrasse seu efeito curador. Tudo para que ele, Jair, não triunfasse.

O culto à desconfiança venceu.

“Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Não adianta evidenciar que não trabalha; que não funciona. A mensagem — plantação do nós contra eles total — enraíza-se: “Não escutem os especialistas. Não deem ouvidos à imprensa. Estão politizando a questão”. Sim. Numa inversão tão bárbara quanto eficaz, a politização do vírus e de seu enfrentamento é atribuída aos que mostram como o projeto de poder bolsonarista avança para desacreditar os fatos de modo a que somente haja versões.

O culto à desconfiança venceu.

Bolsonaro faz aquilo que se espera de líderes populistas de sua extração: criação e difusão de mitos. Propagação do que seria, ante a pandemia, o elemento salvador; e elemento salvador — o medicamento — com caráter: acessível ao povo diretamente. Como ele, Bolsonaro: acessível ao povo diretamente. Bolsonaro, segundo a crença bolsonarista: também um remédio. Não é?

Jair salva.

Atenção ao processo discursivo personalista por meio do qual, de súbito, na eucaristia bolsonarista, o presidente e a hidroxicloroquina seriam um só, o mesmo corpo curandeiro sacrificado — aquela panaceia que prescindiria de intermediários para cuidar das pessoas.

Dirão as massas só existentes na narrativa, lá onde Bolsonaro pegaria no batente: “Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Dirá o pastor: “Nós temos a cloroquina. A salvação que nos é interditada. Nós produzimos a cloroquina. A independência salvadora que nos é proibida. Nós podemos — queremos — tomar a cloroquina. Tomemos. Ela está no meio de nós”.

Jair salva. Mas não salvará aqueles que, com responsabilidade pública, legitimaram, ainda que pela omissão, o uso de um remédio como crendice para armar reacionários em cruzada. Muitos médicos. Muitas associações médicas. Muitos hospitais. Muita gente que viu vantagem. Muita gente que fez negócio. Que especulou e faturou.

E há também, triste e gravíssimo, o papel do Exército brasileiro nessa farsa. Uma instituição de Estado, de natureza impessoal, que aceitou se associar — em casamento já indissolúvel — a governo de turno; que aceitou ofertar um seu general da ativa à função de cavalo de Bolsonaro no milagre da multiplicação por meio do qual o presidente se converteu igualmente em ministro da Saúde, púlpito desde onde celebrou, com batina verde-oliva, a missa de canonização da cloroquina.

O Exército chancelou a irresponsabilidade anticientífica e anti-intelectual daquele que ora propagandeia o remédio, a comunhão, para emas.

Não houve Mandetta, um político, nem sequer Teich — aquele que viera para inexistir — que aceitassem tamanha submissão; que aceitassem que seus gogós fossem o da ema. Mas um general — da ativa — topou. O Exército topou. E não foi só. Porque o Brasil, por meio do laboratório do Exército, fabricou, gastando milhões, para satisfazer fetiche de milagreiro, milhões de comprimidos de hidroxicloroquina — resultando em que o país esteja abastecido para a eternidade. Para quê? Para a eternidade de quem? Para investigação conduzida por quem na Terra? Ou caberá somente ao Senhor?

Jair — aqui, entre os mortais — talvez se salve. Salvará o Exército?


Hélio Schwartsman: Mandem a conta para o Jair

Presidente deve ser responsabilizado pelos estoques de cloroquina inutilmente acumulados

Não é assim tão difícil de entender. Estou seguro de que todos, presidentes e militares incluídos, se se esforçarem um pouquinho, conseguem.

Se você quer saber se a droga X é efetiva para tratar a doença Y, deve recrutar um número tão grande quanto possível (de preferência milhares) de pacientes da moléstia e dividi-lo aleatoriamente em dois grupos. O primeiro, chamado de grupo de tratamento, tomará a droga. O segundo, o grupo controle, não. Idealmente, receberá um placebo.

Aí é só esperar um tempinho e comparar os desfechos dos dois grupos. Se a proporção dos pacientes que se curaram (ou que sobreviveram, que tiveram menos complicações etc.) não for maior entre os que tomaram a droga do que entre os que não a tomaram, isso é um sinal de que ela não funciona.

Mas, se é assim tão simples, por que presidentes e generais insistem no uso da cloroquina contra a Covid-19 mesmo quando já há um bom número de estudos mostrando que ela não traz nenhum benefício dramático e pode provocar efeitos colaterais indesejados?

Há uma diferença importante entre micróbios e pessoas. Vírus e bactérias fazem o tipo “no-nonsense”, isto é, obedecem sem questionar às leis da bioquímica. Pessoas são mais complicadas. Solomon Asch mostrou que um indivíduo pode facilmente ser levado a afirmar que uma linha de um centímetro é maior do que uma de três. Basta que algumas pessoas digam isso em público antes dele. Não há muito limite para as besteiras que podemos fazer sob pressão dos pares ou de líderes.

A insistência na cloroquina indica que presidentes e generais ou não entenderam o bê-á-bá da pesquisa clínica, o que deporia contra sua inteligência, ou estão mais interessados em iludir pessoas do que em combater o vírus, o que denotaria irresponsabilidade.

Em qualquer caso, o Ministério Público deveria mandar para o Jair a conta pelos estoques de cloroquina inutilmente acumulados.


Bernardo Mello Franco - Charlatanismo contagioso

Um estudo promovido por 55 hospitais brasileiros testou o desempenho da cloroquina no tratamento da Covid-19. Os médicos acompanharam 667 pacientes em estágio leve ou moderado da doença. A conclusão foi a mesma de pesquisas já feitas no exterior: a droga é ineficaz no combate ao coronavírus. E ainda pode provocar efeitos adversos, como arritmia cardíaca.

O relatório da Coalizão Covid-19 Brasil foi divulgado nesta quinta, com ampla repercussão na imprensa. Poucas horas depois, Jair Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo no Palácio da Alvorada. Diante de milhares de seguidores, o presidente voltou a exibir uma caixinha do remédio. “Enquanto não tem um medicamento claro para atacar o problema, é válido esse aqui”, afirmou.

O capitão não foi o primeiro líder populista a fazer propaganda da cloroquina. Donald Trump lançou a moda no início da pandemia. O americano chegou a anunciar que estava tomando a droga, mesmo sem ter se infectado. Aos poucos, foi deixando a encenação para seus imitadores.

Numa prova definitiva de que desistiu da farsa, o republicano anunciou a doação de dois milhões de doses ao Brasil. Bolsonaro agradeceu, sensibilizado com a generosidade. E mandou distribuir o carregamento para os estados, que não sabem o que fazer com a substância reprovada pelos cientistas.

O Capitão Corona transformou a cloroquina numa espécie de Santo Graal para seus seguidores fanáticos. No último domingo, ele caminhou até a portaria do Alvorada e ergueu uma caixa do remédio como se fosse um troféu. O gesto provocou palpitações na pequena plateia, que se aglomerava à espera de um perdigoto do grande líder.

No ar seco de Brasília, o charlatanismo se tornou contagioso. Em vídeo divulgado na quarta-feira, o comandante do Exército, Edson Pujol, exaltou a produção da substância em laboratórios militares. “Com orgulho, informo que essa pronta resposta já recuperou milhares de integrantes da nossa família verde-oliva”, discursou. E o general já foi visto como uma reserva de racionalidade nos quartéis.


José Casado: Um oceano de cloroquina

Há suficiente para abastecer por 38 anos o mercado nacional

Já são mais de 80 mil mortos. É como se desaparecesse toda a população de uma cidade do tamanho de Três Rios (RJ), Ibiúna (SP), Viçosa (MG) ou Camboriú (SC).

Sem rumo na pandemia, o governo passou a pressionar estados e municípios. Quer impor cloroquina como tratamento do vírus. Sem base científica, não consegue justificar a transformação desse medicamento no motor de suas ações contra o vírus.

Expõe-se na coação de agentes públicos sob motivação política, em decisão moldada à campanha de reeleição de Bolsonaro. Enquanto isso, ele posa para fotografias levantando uma caixa do remédio como troféu. Fez isso no fim de semana nos jardins do Palácio da Alvorada.

Com a encenação tenta ocultar a inépcia administrativa que deve acabar na Justiça. Nela, Bolsonaro envolveu seus generais-ministros Fernando Azevedo (Defesa) e Eduardo Pazuello (interino na Saúde).

Entre abril e junho, o governo recebeu 2,5 milhões de comprimidos do Exército. Em um trimestre o laboratório militar fabricou remédio suficiente para consumo próprio por mais de uma década, considerada a escala de produção antes da pandemia.

Já havia encomendado 3 milhões de unidades à Farmanguinhos para o programa antimalária. Pediu mais 4 milhões para entrega neste mês. Ao mesmo tempo, recebeu outros 2 milhões doados pelos Estados Unidos a pedido de Bolsonaro, de acordo com a embaixada americana.

Somam 11,5 milhões de doses. É suficiente para abastecer por 38 anos o mercado nacional, onde se consomem 300 mil comprimidos por ano. O governo aderna, sem saber o que fazer, num oceano de cloroquina.

Manipulação da Ciência não é novidade na biografia do presidente. Era deputado, 50 meses atrás, quando comandou o lobby da fosfoetanolamina. A “pílula da cura do câncer” foi liberada por lei e sancionada por Dilma Rousseff, mesmo sem base científica. Acabou vetada pelo Supremo, a pedido de entidades médicas, por “risco grave à vida”. Com a cloroquina, Bolsonaro está indo além: arrasta o governo e o Exército numa obsessão que, talvez, Freud explique.


El País: Cientistas brasileiros vivem pesadelo em meio à politização da cloroquina

Infectologista que coordenou ensaio clínico em Manaus com o medicamento relata as ameaças. Nas redes de saúde, remédio, que teve ensaio clínico suspenso pela OMS, é cada vez mais pedido

O cientista brasileiro Marcus Lacerda e sua equipe vivenciaram um pesadelo particular na tempestade da pandemia de coronavírus. Da noite para o dia, a politização da cloroquina, um fármaco, os atingiu como um meteorito. Esse infectologista, que coordena um experiente grupo de pesquisas dedicado à malária, tuberculose e HIV, nunca imaginou estar envolvido em algo assim. Ainda mais trabalhando em um local tão distante dos centros de poder, como Manaus, a capital do Amazonas. Uma cidade em plena selva tropical em que quase todos chegam de avião ou barco.

O gatilho para os ataques —incluindo ameaças de morte— foi um ensaio clínico com 81 pacientes hospitalizados por Covid-19 e tratados com cloroquina. O medicamento clássico para o tratamento da malária se tornou famoso em meio mundo com a pandemia, graças à direita populista, que o transformou em uma de suas bandeiras. “O linchamento começou assim que os resultados foram publicados”, explica Lacerda por telefone, de Manaus.

O estudo de Manaus foi realizado com a mesma cautela de sempre, embora fossem tempos de emergência. Teve todas as bênçãos das autoridades –incluindo o comitê de ética do Brasil. O consórcio de pesquisadores liderado por Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical, pretendia analisar a letalidade e toxicidade de diferentes doses de cloroquina em pacientes com Covid. Assim se descobre como combater novas doenças. Nosso estudo levanta bandeiras vermelhas suficientes para que se pare de usar altas doses de cloroquina porque os efeitos tóxicos superam os benefícios", escreveu Lacerda em seu artigo no Journal of American Medical Association (Jama).

O ensaio foi suspenso antes do previsto porque 11 dos pacientes morreram. Esses graves riscos, publicados na Jama em abril, não impediram Donald Trump de anunciar há uma semana que toma hidroxicloroquina para prevenção, e seu colega Jair Bolsonaro de divulgar um protocolo sobre seu uso por médicos que assim optarem. Na sexta-feira passada, The Lancet publicou o maior estudo sobre os dois fármacos, que demonstra eles aumentam o risco de morte em pacientes com Covid. E nesta segunda, a OMS declarou a suspensão de ensaios clínicos com esses medicamentos.

“A primeira frustração foi saber que a cloroquina não funcionava; a segunda, descobrir que as pessoas interpretavam o julgamento como um ataque a Bolsonaro”, diz o infectologista. As conclusões da equipe de Manaus foram valiosas para milhares de médicos que tratam pacientes com coronavírus. Mas para a internacional nacional-populista aquilo era um boicote.

“Comecei a receber ameaças de morte, me diziam que eu ia perder meus filhos, que iria acabar como Marielle Franco (a vereadora assassinada em 2018 no Rio de Janeiro)", lembra Lacerda, em Manaus, que registra um dos surtos mais graves no Brasil. Muitas ameaças eram anônimas, mas um tuíte do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, os colocou como alvo de milhões de internautas. “Um estudo clínico realizado em Manaus para desqualificar a cloroquina causou 11 MORTES após os pacientes receberem doses bem acima do padrão”, tuitou o filho de Bolsonaro, ressaltando o dado com letras maísculas. Lacerda teve que ser escoltado.

Embora nos Estados Unidos e na Europa o remédio somente seja usado em pacientes em estado grave e de modo compassivo, a febre da cloroquina chegou ao ponto, no Brasil, de plano de saúde privado distribuir 30.000 kits com o medicamento a seus clientes em Fortaleza, relata Marina Rossi.

Diante desse panorama, muitos cientistas se sentem impotentes. Um tuíte aniquila facilmente diante da opinião pública as conclusões de um ensaio clínico publicado nas revistas de maior prestígio. "As sociedades científicas saíram em nossa defesa, mas as pessoas comuns acreditam nesse tuíte", explica o infectologista brasileiro.

Os defensores da cloroquina triunfam nas redes sociais brasileiras com a cumplicidade do presidente, que criou um clima de hostilidade diante do desprezo aberto da ciência quando suas conclusões contradizem seus desejos ou discurso. Vítimas de ataques furiosos, os cientistas do ensaio brasileiro foram levados à Justiça. E o trabalho que realizaram agora é investigado por promotores em Bento Gonçalves, cidade do Rio Grande do Sul, a quase 4.500 quilômetros de Manaus.

Pedidos de familiares

Diante da propaganda do Governo brasileiro, nos hospitais as famílias dos pacientes pedem cloroquina cada vez com mais frequência, diz Carlos, médico de 31 anos que atende pacientes de covid-19 em unidades de terapia intensiva, tanto na rede pública como na privada do Ceará. O médico, que pediu para ter sua identidade preservada, viu a cloroquina entrar no vocabulário de pacientes de todas as classes sociais e há um mês começou a pedir às famílias de seus pacientes públicos e privados que assinassem um consentimento. Uma precaução dos centros de saúde para evitar problemas legais e que faz parte do protocolo do Ministério da Saúde para a utilização do remédio.

Médico há seis anos anos, Carlos diz que desde o início da pandemia prescreve cloroquina a pacientes sem problemas cardíacos. Não se sente pressionado, como ouviu de colegas que trabalham em clínicas ambulatoriais. Diz que não é contra o uso do medicamento no estágio inicial da doença e, em casos leves, em linha com o que foi aprovado nesta semana pelo Governo Bolsonaro, mas enfatiza que fazer isso com segurança exigiria que os pacientes fossem diagnosticados por meio de uma análise e testá-los para ver se têm arritmia cardíaca. O teste de covid-19 não é realizado no Brasil em pacientes em estado leve e o segundo teste não é fácil de conseguir na rede pública. “Por isso, é complicado porque no nível do Brasil, que tem uma grande desigualdade social e dificuldades para acesso a medicamentos e exames, é muito difícil”, diz ele. O médico, entretanto, afirma que quando propõe o termo de consentimento à família do paciente, "99% assinam assim mesmo. As pessoas decidem mais pela fé do que pela ciência”.