cloroquina

Como o CFM silenciou diante do negacionismo de Bolsonaro e abraçou a cloroquina

Cúpula do CFM permitiu que presidente convertesse o uso de remédios fora da bula em uma política para covid-19

Beatriz Jucá / El País

Do púlpito da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em Nova York, no dia 26 de setembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro discursou para o mundo: “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina (CFM)”. Bolsonaro aproveitou o encontro para seguir defendendo o uso de medicamentos sem eficácia contra a covid-19 um ano e sete meses depois de o vírus chegar ao seu país, e enquanto as mais respeitadas agências internacionais desaconselhavam o uso de medicamentos como cloroquina. Para isso, usava um artifício do qual lançou mão muitas vezes: ancorava-se em um suposto respaldo do CFM, que emitiu uma autorização para o uso destes remédios off label ―fora da bula― no início da pandemia e, até hoje, não a revisou, apesar das novas evidências científicas de sua ineficácia. A narrativa de Bolsonaro se favoreceu do silêncio da entidade, que jamais foi a público contradizer o presidente.

A alta cúpula do Conselho mostrou-se repleta de nomes ligados ao bolsonarismo. Hoje investigada pela CPI da Pandemia e pelo Ministério Público Federal por endossar o chamado kit covid, tem tentado se proteger, argumentando que apenas autorizou o uso dos medicamentos e que na verdade nunca os recomendou. O papel de recomendar era do presidente, que exibiu caixas de cloroquina em suas lives semanais e praticamente converteu o uso de remédios fora da bula em política pública. Contou inclusive com a participação de alguns membros do CFM nos vídeos publicados nas redes sociais, defendendo autonomia médica para prescrever o kit covid ou criticando governadores que tentavam trazer médicos estrangeiros durante o auge da crise. Enquanto isso, na prática, a autarquia responsável por fiscalizar e regular a atividade médica no país, mostrava-se cada vez mais alinhada ao Governo. Que caminhos levaram o CFM a respaldar a errática política de Bolsonaro na pandemia?

As últimas eleições das diretorias dos conselhos regionais e federal de Medicina ocorreram em 2019, primeiro ano do Governo Bolsonaro. Vários foram eleitos na esteira do bolsonarismo e sob o discurso da polarização entre direita e esquerda. No ano anterior, Cuba havia anunciado o fim do acordo com o Brasil para enviar médicos cubanos ao programa Mais Médicos, criado pelo PT para garantir atendimento nas áreas mais remotas do Brasil. O controverso programa recebia forte oposição na classe médica. O CFM se contrapunha à dispensa do Revalida, uma prova necessária para permitir a prática médica no país. Ao assumir, Bolsonaro, que já era um crítico do programa e foi eleito sob o manto do antipetismo, abriu espaço aos conselhos no Governo. Começava ali a se fortalecer uma relação que trouxe desdobramentos questionáveis durante a pandemia.

‘Cobaias’ da proxalutamida: como o Brasil entrou no que pode ser uma das infrações éticas mais graves da história

“Há muito tempo o Conselho Federal de Medicina não tem uma relação de proximidade com o Governo Federal. A nova gestão abriu essa oportunidade para as entidades médicas”, admitiu ao EL PAÍS o então primeiro secretário do CFM, Hermann Von Tniesehause, em fevereiro de 2019. Segundo ele, o Governo compartilhava proposta e ouvia a classe médica. Alguns meses depois, enquanto Bolsonaro tinha seu negacionismo exposto em plena pandemia, esta relação parecia estar ainda mais consolidada. O próprio presidente do CFM, Mauro Luiz Ribeiro, admitiu apoio ao Ministério da Saúde e ao presidente, além de sugerir que participa de decisões normativas, sem citar quais.

CFM desembarca no Planalto

“O presidente Bolsonaro já nos recebeu cinco vezes no Palácio do Planalto desde que ele assumiu o Governo, há um ano e quatro meses. Todas as nossas reivindicações foram atendidas pelo presidente da República”, disse em uma live de maio de 2020 um representante do Conselho Regional de Medicina de Goiás. “Quando existe diálogo, antes que as normas sejam postas, você tem a oportunidade de consensuar aquilo que vai ser proposto. E este é o caminho que estamos seguindo no Governo Bolsonaro”, afirmou em gravação recuperada pelo site Metrópoles.

Aquela efervescência com a qual membros dos conselhos criticavam os médicos cubanos em nome da boa prática médica e da regulação arrefeceu mesmo quando Bolsonaro posicionou-se contra o isolamento social, prometeu curas milagrosas ou pôs em xeque a eficácia das vacinas. Paralelamente, cargos-chave do CFM iam abandonando a discrição e expondo suas posições políticas. É o caso do terceiro vice-presidente do CFM, Emmanuel Fortes, que não costuma esconder seu apoio ao presidente. Filiado ao PSL, ele tentou cargos públicos nas três últimas eleições, mas não conseguiu se eleger.

Fortes se estabeleceu como um dos maiores defensores do chamado “tratamento precoce”, mesmo com falta de comprovação científica, e teria integrado o gabinete paralelo do Governo, geralmente desalinhado em relação às políticas conduzidas pelo Ministério da Saúde. “A gente tem que dizer àqueles que prescrevem [a cloroquina] que a salvaguarda deles é muito maior do que para quem não prescreve”, afirmou a colegas, em vídeo recuperado pelo The Intercept Brasil. Foi ele o representante do Conselho em uma reunião promovida em julho do ano passado pela secretária de Gestão e Trabalho, Mayra Pinheiro, para propagandear a cloroquina.

Apelidada de “capitã cloroquina” por insistir no uso do medicamento enquanto pessoas com covid-19 morriam asfixiadas na crise de oxigênio em Manaus, Mayra Pinheiro integra a Comissão Mista de Especialidades Médica do CFM. Ela tem conseguido manter seu cargo no Ministério da Saúde mesmo após Bolsonaro mudar o ministro três vezes. Assumiu na gestão Mandetta, atravessou o rápido período de Nelson Teich, seguiu com Eduardo Pazuello e continuou na gestão de Marcelo Queiroga, mesmo com supostos atritos entre eles. Recentemente, um assessor do ministro a acusou de conspirar para derrubá-lo e Pinheiro chegou a registrar um boletim de ocorrência após se sentir ameaçada por ele.

Apoio ao negacionismo

A CPI da Pandemia ―que já vinha investigando membros do Governo e médicos que teriam participado de um gabinete paralelo e dado sustentação à tese de oferecer remédios como curas milagrosas ― avançou também sobre o Conselho Federal de Medicina. O presidente Mauro Luiz Ribeiro foi incluído entre os investigados por “apoiar o negacionismo”, dar “suporte dos medicamentos sem comprovação científica” e “apoio dos crimes cometidos”, segundo o relator Renan Calheiros. Na prática, o peso da entidade terminou ajudando a estimular a população a se expor em nome de uma imunidade de rebanho almejada pelo Governo. O EL PAÍS tentou ouvir o CFM, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Há, no mínimo, um timing curioso entre as ações do Ministério da Saúde e a atuação do Conselho na estratégia de distribuição de medicamentos sem eficácia para a covid-19, apontam especialistas. Em abril de 2020, o então ministro Luiz Henrique Mandetta autorizou o uso da cloroquina para casos graves de covid-19. No mesmo mês, foi publicado o parecer do CFM que autoriza o médico a prescrever a cloroquina para pacientes com diagnóstico confirmado em diferentes fases da doença. No documento, o Conselho deixa claro que o médico que optar pela prescrição não responderá a um processo ético-profissional que poderia culminar com punição como advertência, suspensão ou até perda do registro.

“O problema é o contexto político do parecer”, explica o advogado e médico sanitarista Daniel Dourado. Após o parecer do CFM, o Governo federal passou a distribuir cloroquina aos Estados. Mandetta já havia deixado o cargo por divergências com Bolsonaro sobre as ações da pandemia. Seu sucessor, Nelson Teich, ficou apenas um mês como ministro e saiu após resistir em publicar um protocolo de uso da cloroquina. Foi apenas durante a gestão do terceiro ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, que um documento que expandia o uso da cloroquina foi publicado, também para casos leves e iniciou-se a narrativa do chamado “tratamento precoce”. Era maio de 2020.

“Mesmo sem qualquer evidência de eficácia e segurança, a gente autoriza o médico que quiser usar. É uma autorização perigosa pra um contexto de pandemia, tem um caráter até de incentivo quando juntamos as peças do quebra-cabeça”, critica Leonardo Furlan, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP. Junto com Bruno Caramelli, que é cardiologista e professor na mesma instituição, ele publicou um artigo na revista científica britânica The Lancet no qual denunciam o uso de medicamentos ineficazes para a covid-19 sob o incentivo do Governo e a inação do CFM.

Um escudo para a retórica de Bolsonaro

Se Bolsonaro usava o CFM como escudo e incorporava o discurso da autonomia dos médicos para prescrever os remédios mesmo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) rechaçar seu uso, profissionais passaram a denunciar que eram obrigados a receitá-los por planos de saúde alinhados ao Governo. O CFM poderia ter agido para minimizar os danos à população, mas seu presidente até hoje se recusa a rever a decisão e diz que há polarização política sobre o tema. Em entrevista ao Estado de S. Paulo, Mauro Ribeiro chegou a dizer que estudos científicos internacionais adotados como parâmetro pela OMS não são suficientes para mudar de posição e que é preciso considerar a observação dos médicos na ponta.

“Você está deturpando o raciocínio da prática clínica baseada em evidências. A observação ou experiência clínica é fundamental, mas ela não pode passar por cima das evidências científicas”, retruca Furlan. “Além disso, não estamos falando de um uso off label aqui e ali, estamos falando de algo que tomou uma proporção enorme na pandemia e virou uma política de saúde pública no país. Este é o problema”, acrescenta.

Dourado lembra que Bolsonaro costumava usar com frequência a nota do CFM como escudo para defender a cloroquina, e o conselho nunca publicou uma nota desmentindo. Soma-se a isso a reprodução de discurso similar ao do presidente sobre outros temas. Por exemplo, o CFM diz que é favorável à vacinação contra a covid-19, mas é contra a obrigatoriedade da imunização. “Essa conivência deles criou um conselho político que incentivou muitos médicos, até de boa fé, a prescreverem estes medicamentos acreditando que estavam ajudando o paciente. A ação política do CFM foi deletéria”, analisa.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-15/como-o-conselho-de-medicina-silenciou-diante-do-negacionismo-de-bolsonaro-e-abracou-a-cloroquina.html


CPI ouve paciente da Prevent Senior e médico que denunciaram operadora

Prevent teria sido negligente com paciente, colocado em 'cuidados paliativos'; Walter Correa de Souza Neto ajudou a revelar supostas irregularidades

Agência Estado

Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid terá dois depoentes nesta quinta-feira, 7: o primeiro será o usuário da Prevent Senior Tadeu Frederico Andrade. Na sequência, quem depõe é o médico Walter Correa de Souza Neto, que trabalhou na operadora de planos de saúde e ajudou a revelar irregularidades na conduta da empresa no tratamento de pacientes com covid-19

Andrade, advogado de 65 anos, esteve internado por 120 dias em um hospital da rede, em São Paulo. Ele entregou ao Ministério Público paulista um prontuário assinado por uma médica que chegou a orientar a suspensão de medicamentos à época em que estava internado, com o objetivo de encaminhá-lo ao paliativo e, supostamente, reduzir os custos do tratamento. Mas a família de Andrade não acatou a orientação e o advogado conseguiu se recuperar. Como mostrou o Estadão, o caso é tratado como possível tentativa de homicídio. Leia matéria completa.

A Prevent Senior também é acusada de pressionar médicos a prescreverem remédios ineficazes contra a covid-19, sem respeitar a autonomia médica, além de ocultar mortes de pacientes que tiveram coronavírus e realizar estudo em pacientes para testar a eficácia da hidroxicloroquina associada à azitromicina no tratamento da covid, sem o consentimento de pacientes e familiares. A rede também é suspeita de se associar ao chamado "gabinete paralelo".

O requerimento para ouvir paciente e médico partiu do senador Humberto Costa (PT-PE). No documento, o parlamentar relata que Tadeu Frederico de Andrade contou ter sido infectado pela covid-19 no fim do ano passado e, após atendimento por telemedicina na Prevent Senior, foi-lhe receitado o chamado "kit covid" - conjunto de medicamentos sem eficácia contra o coronavírus. Seguindo a prescrição, Andrade tomou a medicação, mas seu quadro clínico se agravou, necessitando de internação em unidade de tratamento intensivo (UTI). Foi a partir daí que a operadora teria pressionado a família a colocá-lo sob "tratamento paliativo". Ele passou um mês na UTI. 

Já Walter Correa de Souza Neto deverá relatar aos senadores se havia cerceamento da autonomia médica dos profissionais que atuavam na Prevent Senior e se a distribuição do kit covid era feita indiscriminadamente, além de conduzir estudo irregular e agir sobretudo para reduzir custos, como o caso de Andrade. 

Acompanhe a CPI da Covid:



Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/ao-vivo/cpi-da-covid-depoimentos-paciente-tadeu-prevent-senior-medic


CPI ouve presidente da ANS sobre denúncias contra Prevent Senior

Relator da CPI suspeita que a Prevent Senior foi blindada pela ANS enquanto executava o protocolo de "tratamento precoce" contra a covid-19

Mário Scheffer / O Estado de S. Paulo

Sem nada de novo para apresentar na sessão desta terça-feira, 5, a CPI da Covid exibiu involuntariamente outro “merchan”, nome que se dá à propaganda comercial feita dentro de um programa de TV pelos próprios apresentadores.

Após o vídeo com o programa motivacional da Havan para funcionários, foi a vez da VTCLog mostrar como funciona o sistema de empacotamento de encomendas da empresa.

“O senhor confirma que foi condenado por corrupção ativa, entre 2004 e 2009, envolvendo dois servidores da extinta Cenadi?”, indagou o senador Renan Calheiros ao depoente, Raimundo Nonato Brasil, na última sessão pública destinada a esmiuçar a corrupção no Ministério da Saúde.

Se confirmada a nova promessa do relator – “não vamos falar grosso na investigação e miar no relatório” – a CPI poderá esclarecer porque o setor de logística do SUS federal tem sido particularmente suscetível à corrupção ao longo dos anos.

A atividade é essencial, foram os aviões e caminhões fretados pela empresa investigada que entregaram, em cada canto do País, 300 milhões de doses de vacinas contra a covid. O volume de dinheiro reservado é alto, há muitos CNPJs e pessoas envolvidas em armazenagem, separação, distribuição e transporte de insumos. Ou seja, uma área de risco para más condutas com fins ilícitos.

A Cenadi mencionada foi a Central Nacional de Armazenamento e Distribuição de Imunobiológicos, que funcionou por duas décadas antes de sua discutível troca pela VTCLog, decisão de Ricardo Barros à frente da Saúde.

Caso se confirme, o fato de existir um mesmo personagem envolvido em desvios, passados mais de dez anos, pode ser indício de corrupção estrutural, profundamente arraigada, de permissões dadas aos mesmos grupos em diferentes governos e ocasiões.

A CPI reviu detalhes sobre possíveis subtrações milionárias, embutidas na relação mais recente entre VTCLog e governo federal, que firmaram contrato “multimodal sob demanda” , aditivos sem licitação, sem contar os esqueletos no armário, da época em que Barros era ministro.

Espera-se, contudo, que o rol de indiciados sugeridos pela CPI seja acompanhado de estratégias de mitigação da ladroeira de recursos do SUS daqui em diante.

Brandida por Calheiros, a diferença de decibéis, entre a voz grossa do homem e o miado do gatinho, poderá ser medida com mais precisão na sessão da CPI desta quarta-feira, quando é aguardado o depoimento do diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello.

Em seu novo livro, Catástrofe, fundamental para nossos dias, o britânico Niall Ferguson, após percorrer várias desgraças da humanidade, oferece nova perspectiva sobre responsabilidades na pandemia do coronavírus.

O autor argumenta que existe uma geometria fractal dos desastres. Como um cristal de neve que se amplia, há várias versões menores aninhadas em um evento gigante devastador.

No finalzinho da prorrogação da CPI, eis que surge a ANS, a exibir seu quinhão lúgubre do enterro de 600 mil corpos.

Caso fosse superada a arguição diagonal, o uso do presidente da ANS só para chegar à Prevent Senior, a CPI ampliaria a linha das responsabilizações sobre a catástrofe sanitária.

Num exercício imaginário, o blog Diário da CPI preparou um roteiro de 10 questões dirigidas ao presidente da ANS:

  • Por que a ANS acobertou, durante tanto tempo, a propagação criminosa do “tratamento precoce”, feita não só pela Prevent, mas por outros planos de saúde como Hapvida e Unimed, segundo documentos da CPI?
  • Por que nada foi feito pela ANS quando, em março de 2020, a Prevent ocupava o noticiário ao divulgar dados de óbitos de idosos por covid à revelia da vigilância epidemiológica do SUS?
  • A ANS pretende decretar o regime de direção técnica na Prevent, assegurando a portabilidade dos clientes da empresa para outros planos?
  • ANS irá providenciar a saída de atuais clientes da Prevent Senior, se assim desejarem, para outros planos ou retorno a seus planos anteriores, sem carência, garantindo as mesmas condições de cobertura e preço?
  • A CPI tem dados que indicam a morte de mais de 20 mil pessoas por covid em UPAs no Brasil, devido à falta de leitos para internação. Por que a ANS emitiu posição contrária ao uso público de leitos hospitalares privados durante a pandemia?
  • Por que a ANS desobrigou os planos de saúde, até agosto de 2020, de cobrir a realização de testes para covid?
  • Por que a ANS permitiu reajustes de mensalidades, sem concessões, de março até agosto de 2020, o que levou pessoas e empresas a perderem seus planos nos momentos mais críticos da pandemia?
  • Por que a sabatina no Senado, em julho de 2021, que aprovou Rebello para a ANS, foi antecedida da retirada de sua indicação por Bolsonaro e, mesmo assim, seu nome foi imposto por Ricardo Barros, pelo Progressistas e Centrão?
  • Por que na ANS é tão comum a indicação, por parlamentares e partidos políticos, de diretorias e cargos, ocupados por pessoas sem competências e habilidades na saúde?
  • Por que tantos presidentes e diretores da ANS praticam a “porta giratória”, vêm do setor privado e voltam imediatamente a trabalhar para empresas que antes eram fiscalizadas por eles?

Assista!



Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/diario-da-cpi/cpi-da-covid-o-que-a-ans-precisa-explicar/


Elio Gaspari: Quem protegeu a Prevent?

Na quarta-feira deverá comparecer à CPI da Covid o doutor Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho, diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS). Ele poderá contar o que fez diante das denúncias do comportamento da Prevent Senior durante a pandemia. A primeira suspeita de que havia fogo debaixo daquela fumaça veio do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em abril de 2020, quando ela tinha no acervo 58% dos mortos de São Paulo. O dono da operadora chamou-o de “irresponsável” e, pelo que se viu, colocou sua empresa debaixo da asa do Planalto, maquiando mortes, empurrando cloroquina e ameaçando médicos com retórica de miliciano.

O que a ANS fez? A autossatanização da Prevent tem no seu bojo uma competição empresarial, e a Agência a conhece muito bem. Nesse mercado há de tudo: portas giratórias, capilés e jabutis em medidas provisórias. A Justiça guarda pelo menos duas delações premiadas de uma empresa corretora de planos que concordou em pagar R$ 200 milhões de multa.

Durante os dias da Lava-Jato, chegou-se a especular que os procuradores voltassem seus olhos para a privataria da saúde. Quando apareceu a lista de operadoras de planos entre os patrocinadores das palestras de um deles, viu-se que rendiam pelo menos “R$ 10 mil limpos”. A Lava-Jato olhou para outros lados.

A Prevent é um caso em si, e seus maganos estão sofrendo pelo que fizeram, mas a ANS sabe muitos mais. Basta lembrar que foi ela que obrigou as operadoras de planos a cobrirem os custos dos testes para o vírus. Até a terceira semana de março do ano passado havia operadoras se recusando a fazê-lo. Até agosto, quando os mortos passavam de 90 mil, alguns planos continuavam negando cobertura aos testes sorológicos. Só a ação da ANS os levou a mudar de conduta.

De Pedro@gov para Fabio.Jatene@edu

Prezado doutor Jatene,

Escrevo-lhe por sugestão de meu médico, o conde de Motta Maia, do nosso velho amigo Louis Pasteur e de seu pai, o doutor Adib.

Na noite de 17 de novembro de 1889, quando uns militares me embarcaram como negro fugido, mandando-me para a morte no exílio, eu lhes disse: “Os senhores são uns doidos”.

Passou-se o tempo e vejo que, de tempos em tempos, nossa terra fica nas mãos de doidos. Em março do ano passado, vosmicê disse que 45 mil moradores de São Paulo seriam atingidos pela epidemia desse novo vírus. Foi um Deus nos acuda, como se o senhor fosse mais um doido. Na semana passada, os infectados da sua cidade passaram de 1,5 milhão. Os mortos foram 30 mil.

O doutor Pasteur horrorizou-se com os charlatães que empurravam cloroquina nos pacientes e pediu-me que vosmicê lembrasse aos seus colegas e a esse moço que governa o Brasil o que lhe aconteceu, lidando comigo, em 1884.

Ele pesquisava uma vacina contra a raiva. Aplicando-a em cães, havia dado resultado, mas era preciso testá-la em gente. Foi quando me escreveu, oferecendo-se para testá-la no Brasil. Pedia que eu a oferecesse a presos condenados à morte, no dia da execução. Tomariam a vacina. Se morressem, ficaria tudo igual. Se sobrevivessem, estariam livres. Eu lhe disse que no Brasil não aplicávamos mais a pena de morte, pois eu a comutava.

(Como bom dissimulador, estava desconversando, reconheço.)

Os doidos daí testaram a tal cloroquina sem informar aos pacientes, e o moço do governo fez propaganda do remédio até em reuniões de chefes de Estado.

Mesmo entristecido, sinto-me vingado: os senhores são uns doidos.

Atenciosamente,

Pedro de Alcântara.

Jango em Moscou e na China

Passados 60 anos, veio à tona o relatório do embaixador João Augusto de Araújo Castro, narrando a visita de João Goulart à China, em agosto de 1961. O texto é de 4 de setembro, quando a crise provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros já havia esfriado, com a solução do parlamentarismo que permitiria a posse de Jango.

Em 30 páginas, Araújo Castro conta a passagem da comitiva do então vice-presidente por Moscou e Beijing. No dia 25 de agosto, quando Jango já estava em Singapura, Jânio renunciou. Mais tarde, Araújo Castro viria a ser o último chanceler de Goulart e morreria em 1975, como embaixador do governo do general Médici em Washington.

O relatório de Araújo Castro mostra como os chineses tentaram forçar a transformação de um acordo interbancário num sinal de reconhecimento do governo de Beijing, com o qual o Brasil não tinha relações diplomáticas. Jango e Castro habilmente contornaram a manobra e acabou tudo bem.

Antes de chegar a Beijing, a comitiva de Goulart passou por Moscou, onde Jango se encontrou com o primeiro-ministro Nikita Kruschev e ouviu o seguinte: “Eu disse a Kennedy (o presidente dos Estados Unidos): Fidel Castro não é comunista, mas acabará sendo. Ele não tem alternativa.”

Kruschev tinha um viés fanfarrão, mas sabia do que estava falando.

Naqueles dias, os Estados Unidos já haviam rompido relações com Cuba, e a Casa Branca havia patrocinado uma fracassada invasão da ilha.

No dia em que Araújo Castro assinou seu relatório, Fidel mandou uma carta a Kruschev pedindo 388 mísseis de curto alcance. Era o início de uma negociação que evoluiu para a entrega de ogivas nucleares capazes de atingir os Estados Unidos e, um ano depois, levou o mundo para a beira da Terceira Guerra Mundial.

Valentia incompleta

A Universidade de Campinas cassou o título de doutor honoris causa que concedeu em 1973 ao então ministro da Educação, Jarbas Passarinho.

Coronel da reserva, Passarinho morreu em 2016. Ele mandou às favas os seus escrúpulos de consciência quando defendeu a edição do AI-5, em 1968. É direito de qualquer universidade conceder e mesmo cassar títulos de doutorado honoris causa, mas fazê-lo depois da morte do homenageado, é coisa meio girafa. A Federal do Rio de Janeiro cassou o título do presidente Emílio Médici em 2015, 20 anos depois de sua morte.

Seria o jogo jogado se as congregações das universidades divulgassem, junto com a cassação da honraria, quase sempre bajuladora, a lista dos professores doutores que a concederam. Afinal, nem Médici nem Passarinho pediram coisa alguma.

Sinal do Centrão

Jair Bolsonaro assumiu sabendo que não tinha base parlamentar além do cacife da Bolsa da Viúva. Fala em “bancadas temáticas”, uma espécie de cloroquina política.

Aninhando-se no Centrão, conseguiu a proeza de ver derrubados 12 de seus vetos num só dia.

O Centrão sentiu cheiro de queimado.

O repórter Lauro Jardim informa que Lula combinou um jantar para quarta-feira. Nele poderão estar, além do ex-presidente José Sarney:

Eunício de Oliveira, dono da casa, foi ministro das Comunicações de Lula.

Edison Lobão foi ministro de Minas e Energia de Lula e de Dilma Rousseff.

Jader Barbalho foi ministro da Previdência de Sarney.

Renan Calheiros foi ministro da Justiça de FHC.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/quem-protegeu-prevent-1-25222231


Elio Gaspari: Quem protegeu a Prevent?

A Prevent é um caso em si, e seus maganos estão sofrendo pelo que fizeram, mas a ANS sabe muitos mais

Elio Gaspari / O Globo

Na quarta-feira deverá comparecer à CPI da Covid o doutor Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho, diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS). Ele poderá contar o que fez diante das denúncias do comportamento da Prevent Senior durante a pandemia. A primeira suspeita de que havia fogo debaixo daquela fumaça veio do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em abril de 2020, quando ela tinha no acervo 58% dos mortos de São Paulo. O dono da operadora chamou-o de “irresponsável” e, pelo que se viu, colocou sua empresa debaixo da asa do Planalto, maquiando mortes, empurrando cloroquina e ameaçando médicos com retórica de miliciano.

O que a ANS fez? A autossatanização da Prevent tem no seu bojo uma competição empresarial, e a Agência a conhece muito bem. Nesse mercado há de tudo: portas giratórias, capilés e jabutis em medidas provisórias. A Justiça guarda pelo menos duas delações premiadas de uma empresa corretora de planos que concordou em pagar R$ 200 milhões de multa.

Durante os dias da Lava-Jato, chegou-se a especular que os procuradores voltassem seus olhos para a privataria da saúde. Quando apareceu a lista de operadoras de planos entre os patrocinadores das palestras de um deles, viu-se que rendiam pelo menos “R$ 10 mil limpos”. A Lava-Jato olhou para outros lados.

A Prevent é um caso em si, e seus maganos estão sofrendo pelo que fizeram, mas a ANS sabe muitos mais. Basta lembrar que foi ela que obrigou as operadoras de planos a cobrirem os custos dos testes para o vírus. Até a terceira semana de março do ano passado havia operadoras se recusando a fazê-lo. Até agosto, quando os mortos passavam de 90 mil, alguns planos continuavam negando cobertura aos testes sorológicos. Só a ação da ANS os levou a mudar de conduta.

De Pedro@gov para Fabio.Jatene@edu

Prezado doutor Jatene,

Escrevo-lhe por sugestão de meu médico, o conde de Motta Maia, do nosso velho amigo Louis Pasteur e de seu pai, o doutor Adib.

Na noite de 17 de novembro de 1889, quando uns militares me embarcaram como negro fugido, mandando-me para a morte no exílio, eu lhes disse: “Os senhores são uns doidos”.

Passou-se o tempo e vejo que, de tempos em tempos, nossa terra fica nas mãos de doidos. Em março do ano passado, vosmicê disse que 45 mil moradores de São Paulo seriam atingidos pela epidemia desse novo vírus. Foi um Deus nos acuda, como se o senhor fosse mais um doido. Na semana passada, os infectados da sua cidade passaram de 1,5 milhão. Os mortos foram 30 mil.

O doutor Pasteur horrorizou-se com os charlatães que empurravam cloroquina nos pacientes e pediu-me que vosmicê lembrasse aos seus colegas e a esse moço que governa o Brasil o que lhe aconteceu, lidando comigo, em 1884.

Ele pesquisava uma vacina contra a raiva. Aplicando-a em cães, havia dado resultado, mas era preciso testá-la em gente. Foi quando me escreveu, oferecendo-se para testá-la no Brasil. Pedia que eu a oferecesse a presos condenados à morte, no dia da execução. Tomariam a vacina. Se morressem, ficaria tudo igual. Se sobrevivessem, estariam livres. Eu lhe disse que no Brasil não aplicávamos mais a pena de morte, pois eu a comutava.

(Como bom dissimulador, estava desconversando, reconheço.)

Os doidos daí testaram a tal cloroquina sem informar aos pacientes, e o moço do governo fez propaganda do remédio até em reuniões de chefes de Estado.

Mesmo entristecido, sinto-me vingado: os senhores são uns doidos.

Atenciosamente,

Pedro de Alcântara.

Jango em Moscou e na China

Passados 60 anos, veio à tona o relatório do embaixador João Augusto de Araújo Castro, narrando a visita de João Goulart à China, em agosto de 1961. O texto é de 4 de setembro, quando a crise provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros já havia esfriado, com a solução do parlamentarismo que permitiria a posse de Jango.

Em 30 páginas, Araújo Castro conta a passagem da comitiva do então vice-presidente por Moscou e Beijing. No dia 25 de agosto, quando Jango já estava em Singapura, Jânio renunciou. Mais tarde, Araújo Castro viria a ser o último chanceler de Goulart e morreria em 1975, como embaixador do governo do general Médici em Washington.

O relatório de Araújo Castro mostra como os chineses tentaram forçar a transformação de um acordo interbancário num sinal de reconhecimento do governo de Beijing, com o qual o Brasil não tinha relações diplomáticas. Jango e Castro habilmente contornaram a manobra e acabou tudo bem.

Antes de chegar a Beijing, a comitiva de Goulart passou por Moscou, onde Jango se encontrou com o primeiro-ministro Nikita Kruschev e ouviu o seguinte: “Eu disse a Kennedy (o presidente dos Estados Unidos): Fidel Castro não é comunista, mas acabará sendo. Ele não tem alternativa.”

Kruschev tinha um viés fanfarrão, mas sabia do que estava falando.

Naqueles dias, os Estados Unidos já haviam rompido relações com Cuba, e a Casa Branca havia patrocinado uma fracassada invasão da ilha.

No dia em que Araújo Castro assinou seu relatório, Fidel mandou uma carta a Kruschev pedindo 388 mísseis de curto alcance. Era o início de uma negociação que evoluiu para a entrega de ogivas nucleares capazes de atingir os Estados Unidos e, um ano depois, levou o mundo para a beira da Terceira Guerra Mundial.

Valentia incompleta

A Universidade de Campinas cassou o título de doutor honoris causa que concedeu em 1973 ao então ministro da Educação, Jarbas Passarinho.

Coronel da reserva, Passarinho morreu em 2016. Ele mandou às favas os seus escrúpulos de consciência quando defendeu a edição do AI-5, em 1968. É direito de qualquer universidade conceder e mesmo cassar títulos de doutorado honoris causa, mas fazê-lo depois da morte do homenageado, é coisa meio girafa. A Federal do Rio de Janeiro cassou o título do presidente Emílio Médici em 2015, 20 anos depois de sua morte.

Seria o jogo jogado se as congregações das universidades divulgassem, junto com a cassação da honraria, quase sempre bajuladora, a lista dos professores doutores que a concederam. Afinal, nem Médici nem Passarinho pediram coisa alguma.

Sinal do Centrão

Jair Bolsonaro assumiu sabendo que não tinha base parlamentar além do cacife da Bolsa da Viúva. Fala em “bancadas temáticas”, uma espécie de cloroquina política.

Aninhando-se no Centrão, conseguiu a proeza de ver derrubados 12 de seus vetos num só dia.

O Centrão sentiu cheiro de queimado.

O repórter Lauro Jardim informa que Lula combinou um jantar para quarta-feira. Nele poderão estar, além do ex-presidente José Sarney:

Eunício de Oliveira, dono da casa, foi ministro das Comunicações de Lula.

Edison Lobão foi ministro de Minas e Energia de Lula e de Dilma Rousseff.

Jader Barbalho foi ministro da Previdência de Sarney.

Renan Calheiros foi ministro da Justiça de FHC.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/quem-protegeu-prevent-1-25222231


Míriam Leitão: Falsos remédios e muitos venenos

Cloroquina é o símbolo deste governo que sempre tem falsos remédios com efeitos tóxicos para os problemas do país. O Brasil está diante de um devastador retrocesso na educação por causa da pandemia, e a proposta pela qual o governo Bolsonaro se bate é o homeschooling. O país vive uma grave crise na democracia, em parte criada por este governo, mas Bolsonaro exige a volta do voto impresso e por ele ameaça até a realização das eleições. Em vez de uma política de segurança, o projeto que tem sido posto em prática é a liberação das armas. Para o trânsito, o projeto, felizmente atenuado no Congresso, foi o da menor punição para infratores e o fim da cadeirinha das crianças. Em cada área pode-se encontrar a solução “cloroquina”, um falso remédio, que é, na verdade, um veneno.

Na semana passada, a CPI mostrou o efeito da cloroquina na política de saúde brasileira. Ela impede que se desenvolvam boas práticas para enfrentar a pior pandemia em um século, passou a ser a peça central da política pública, a única questão que mobiliza o presidente e o entorno do Palácio. Por ela, um ministro foi demitido, outro pediu demissão, o terceiro se escondeu atrás do Exército e o quarto engasgou. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) fez seis vezes a mesma pergunta ao ministro Marcelo Queiroga, o senador Omar Aziz (PSD-AM), outras duas vezes. Queiroga não conseguia desengasgar e dizer se compartilhava ou não compartilhava da opinião do presidente sobre a cloroquina. “Apego ao cargo”, concluiu o senador Otto Alencar (PSD-BA). O remédio usado em caso de malária e lupus, com ineficácia comprovada para Covid-19, traz para o Brasil o pior dos efeitos colaterais. Por causa da obsessão do presidente, o país deixou de ter uma política de combate à pandemia. “Canalha”, disse Bolsonaro para definir quem discorda do uso da cloroquina. Um espelho o ajudaria a encontrar um bom destinatário para o adjetivo.

Foi uma semana dilacerante. O país perdeu um artista querido que lotava cinemas e teatros, que nos fazia rir em momento que tanto precisamos. Perdemos Paulo Gustavo com 42 anos e uma vida pela frente e isso nos lembra que a morte por Covid está ficando mais jovem. No dia mesmo em que seu corpo era cremado, o Rio viu mais uma chacina. Jacarezinho foi palco de um horror de país em guerra. O governador Claudio Castro disse que a operação da Policia Civil, que vitimou um policial e 27 moradores, foi fruto de ação de inteligência. A identidade dos moradores mortos não havia ainda sido divulgada, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, definiu-os como “tudo bandido”. Mais tarde, repetiu que eram todos “marginais”. Se forem, então, podem ser executados, sem direito a um processo? As leis brasileiras não têm pena de morte, mas para o vice-presidente pessoas podem ser mortas, sem direito a um processo. Para completar, Mourão disse que no Rio “é a mesma coisa que se a gente tivesse combatendo no país inimigo. Quase a mesma coisa.”

A solução cloroquina que ele oferece aqui é letal. Em vez de uma política de segurança, execução em massa, suspensão do devido processo legal, e a transformação do Rio em território inimigo. Mourão pelo visto quer mostrar a Bolsonaro que merece continuar sendo seu vice. Compartilha dos mesmos valores. Resta perguntar à dupla o que fazer com a milícia nesse “país inimigo”.

Durante a semana em que a CPI exibiu uma radiografia de como o governo tem contribuído para o aumento do contágio e das mortes por Covid-19, Bolsonaro esteve sob o comando do filho Carlos. Para tentar desviar a atenção posta na CPI, Bolsonaro empilhou absurdos. Ameaçou baixar um decreto autoritário, atacou o principal parceiro comercial do Brasil e fornecedor de insumos para vacinas e disse que pode não haver eleições, se não for aprovado e implantado o voto impresso.

Bolsonaro quer impor uma pauta estranha às urgências do país, em todas as áreas. Mais de cinco milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação durante a pandemia, e, quanto mais pobre, menos o aluno está aprendendo. Estamos vivendo uma tragédia que recai sobre uma geração inteira de estudantes. Mas a solução cloroquina é permitir que um grupo de fanáticos tenha o direito de aprisionar a cabeça dos filhos numa educação medieval, que elimina a escola. Assim é o governo Bolsonaro. Tóxico.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/falsos-remedios-e-muitos-venenos.html


Ricardo Noblat: Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, pinta o pai outra vez para a guerra

Basta de intermediário! Por que não o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o Zero Dois do presidente Jair Bolsonaro, para Secretário de Comunicação Social do governo do pai?

Licenciar-se do mandato não lhe faria tão mal assim. Ele é vereador desde que se elegeu pela primeira vez, com 17 anos, e Bolsonaro o levou pela mão para que tomasse posse.

É difícil que outro filho de Bolsonaro demonstre tanto amor por ele quanto Carlos. Só Carlos concordou em disputar um mandato de vereador para derrotar a própria mãe, também candidata.

Às vezes, temperamental como é, Carlos some do radar do pai e se nega a atender seus telefonemas. É quando Bolsonaro fica mais desesperado e se rende a todas as suas vontades.

Mas logo os dois fazem as pazes, e Carlos volta a grudar no pai, principalmente quando ele precisa de ajuda. Como agora, alvo de uma CPI e com a popularidade em queda.

Carlos é o responsável pela mudança de tom do discurso de Bolsonaro de poucos dias para cá. Convenceu-o a radicalizar outra vez para manter unida sua tropa de apoio.

Por isso, Bolsonaro voltou a bater na China, indiretamente no Supremo Tribunal Federal, e ameaçar com uma crise institucional. Conversa mole para enganar bolsonaristas, mas funciona.

Bom filho, bom pai, que, ontem, o citou em público:

“Na minha eleição, meu marqueteiro não ganhou milhões de dólares fora do Brasil. Ele é um simples vereador, o Carlos Bolsonaro. Há ainda o Tércio Arnaud e o Mateus Sales. São pessoas perseguidas, como se tivessem inventado um gabinete do ódio.”

O gabinete do ódio eles inventaram, sim. Serve para defender Bolsonaro, infernizar a vida dos seus adversários e distribuir notícias falsas nas redes sociais.

A expressão “gabinete do ódio” não é da autoria deles, mas do jornal O Estado de São Paulo, que a usou pela primeira vez. Sempre que Carlos é convocado pelo pai, é hora de relâmpagos e trovoadas.

Fonte:

Blog do Noblat/Metrópoles

https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/carlos-bolsonaro-o-zero-dois-pinta-o-pai-outra-vez-para-a-guerra


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O presidente da República e o comandante do Exército não podem ter a mesma expectativa em relação ao depoimento do ex-ministro da Saúde na Comissão Parlamentar de Inquérito. Para tirar a CPI das suas costas, interessa a Jair Bolsonaro mostrar a autonomia de Eduardo Pazuello, como general do Exército, nas condutas ora investigadas. Ao general Paulo Sérgio de Oliveira, convém o inverso. Que, na condição de militar agregado ao serviço civil, fique claro que Pazuello cumpriu ordens do presidente da República. Se o Palácio do Planalto fracassou em treinar o ex-ministro para enfrentar os senadores e o Ministério da Defesa encaminhou o pedido de adiamento de sua presença na CPI, foi o Exército quem negociou com o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), o depoimento daquele que hoje é adido à Secretaria-Geral da corporação.

A permanência de Pazuello na ativa e a produção maciça de hidroxicloroquina pelos laboratórios do Exército arrastaram a corporação para a vala bolsonarista. Nos dois lados da linha, porém, havia um senador e um general interessados em preservar o Exército. A consequência só pode ser em prejuízo do presidente da República. A começar pelo adiamento. Quando Pazuello chegar ao Senado, em 19 de maio, a CPI já terá acumulado depoimentos, como os dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que convergem para responsabilizar o presidente da República, além daqueles, aprovados ontem, dos ex-ministros Fabio Wajngarten e Ernesto Araújo, que são pura combustão. Por mais que Pazuello seja pressionado a nadar contra a maré, terá mais dificuldade em fazê-lo. Com o cerco já formado, o custo para o ex-ministro atestar a origem das ordens que recebeu será menor.

O presidente se deu conta do que estava por vir e tentou reforçar sua retaguarda na CPI. Pressionados a serem mais ofensivos, os senadores governistas partiram para cima da bancada feminina que, sem assento na CPI, havia arrancado um acordo que a permitisse participar dos debates. O senador Fernando Bezerra, líder do governo, ganhou uma vaga de suplente, mas não dá sinais de que será capaz de conter a avalanche. A reação ainda passou por dar ao ministro da Secretaria- Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, a missão de intermediar as relações entre o Palácio do Planalto e a CPI. Sai o ministro das Comunicações, Fábio Faria, que mandou para Mandetta a pergunta que lhe seria feita pelo senador Ciro Nogueira, e entra outro atrapalhado. Onyx, que é veterinário, já enalteceu nebulização de cloroquina, depois de o procedimento ter provocado mortes, e disse que o isolamento social não funciona porque inexiste “lockdown de insetos portadores do vírus”. A transmissão do SARS-CoV-2 dá-se por pessoas contaminadas.

O presidente age como se fizesse a coisa certa em meio a incompetentes. Foi capaz, por exemplo, de surpreender seus adversários pela quantidade de manifestantes que levou às ruas no 1º de Maio. A intenção era intimidar a CPI antes da tomada de depoimentos. O slogan dos manifestantes (“eu autorizo”) não poderia ser mais eloquente. Tanto que Bolsonaro se sentiu autorizado a ameaçar novamente com um decreto contra o isolamento social de prefeitos e governadores, a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal em defesa da autonomia federativa.

Bolsonaro pretendia manter a dobradinha. Ele convocaria a turba, ao lado dos filhos, para defendê-lo, desenterrando até mesmo o conflito, em Rondônia, com a Liga dos Camponeses Pobres, para criar uma ameaça contra a família e propriedade, enquanto seus articuladores agiriam para aglutinar a retaguarda no Congresso. Deu ruim. De um lado, a comoção popular com a morte do humorista Paulo Gustavo pela covid-19 neutralizou a arregimentação do 1º de Maio e aumentou a indignação com a incúria da pandemia. Do outro, sua retaguarda na CPI é incapaz de fazer a defesa do governo.

Numa terceira frente, na Câmara dos Deputados, seus aliados entram em modo xepa. É mais ou menos isso que move a ânsia reformista na Casa. Ao dissolver a comissão de reforma tributária antes mesmo que o relator, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), concluísse o relatório que havia encomendado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não apenas cumpriu o desejo do governo de fatiar a proposta como tem a possibilidade de distribuir seus pedaços entre aliados de sua confiança. Com temas sensíveis como uma espécie de refis da crise e a tributação dos fundos fechados, a Câmara caminha para um vale-a-pena-ver-de-novo da era Eduardo Cunha.

Movimento no mesmo sentido aconteceu com a instalação da comissão de reforma política. O deputado que presidirá a comissão, Luís Tibé (Avante-MG), é pivô de um inquérito que corre no STJ sobre relações suspeitas entre advogados e magistrados. Este inquérito conta com conversas interceptadas pela Polícia Federal em que um desembargador relata as ingerências que o levaram a salvar o deputado de cassação. A comissão presidida por este parlamentar pode não apenas jogar por terra a maior chance de o país dar mais representatividade ao seu sistema eleitoral, com o fim das coligações e a cláusula de barreira (que ameaçam seu próprio partido), como também ressuscitar o financiamento privado de campanha.

Para a sorte da República, o ativismo da Câmara esbarra no Senado. Da mesma maneira que o projeto que liberava vacinação privada antes dos grupos prioritários, esses projetos correm o risco de naufragar na inexistência de um acordo com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Não é apenas um governo em frangalhos que move esta xepa, mas a perspectiva do poder em 2022. As costuras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília esta semana, com Eunício Oliveira (MDB), Rodrigo Maia (ainda no DEM, em conversa com o PSD), Marcelo Freixo (Psol) e Fabiano Contarato (Rede) sugerem que o petista almeja avançar sobre o centro, engolir o espaço da terceira via e deixar o presidente como a única opção do radicalismo. Os aliados de Bolsonaro seguram o governo até a última raspa do tacho para chegar a 2022 posicionados para negociar. É o que rola por trás do picadeiro da CPI.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/politica/coluna/por-tras-do-picadeiro-da-cpi-da-pandemia.ghtml


Míriam Leitão: O presidente e o delito continuado

O que a CPI mostrou até agora foi que o presidente Jair Bolsonaro impediu dois ministros da Saúde de agirem conforme as orientações técnicas e científicas durante a pandemia. O ato foi continuado. O ex-ministro Nelson Teich repetiu ontem diversas vezes a informação de que ele não concordava com a recomendação de uso da cloroquina e, por divergir disso, saiu. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta entregou carta a Bolsonaro, fez cenário, mostrou a gravidade da crise e teve que enfrentar uma assessoria paralela no Planalto que queria o uso da cloroquina. Não aceitou e, por isso, foi demitido. As orientações dos ministros poderiam ter salvado vidas.

O presidente da República amarrou a mão de seus ministros, os impediu de agir, não ouviu técnicos, ignorou a ciência, desafiou a medicina e impôs a sua forma de conduzir o país numa pandemia. E isso está nos levando à morte. Bolsonaro deu várias vezes sinais explícitos de que aposta na tese perigosa de ampliar a contaminação para chegar ao fim mais rápido da pandemia. Ontem, Nelson Teich foi claro: “Essa tese de imunidade de rebanho, onde você adquire a imunidade através do contato e não da vacina, isso é um erro.”

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou que a crise seria longa, trágica, mataria, no pior cenário que fez, 180 mil brasileiros em 2020. Foram 11 mil a mais. Disse que não havia remédio, portanto era para seguir o que sempre foi usado nas epidemias de doenças infecciosas: o distanciamento social. O presidente o ignorou. Nem mesmo a máscara ele adotou. Pelo contrário, quem entra no Planalto é até constrangido a tirar a máscara, como me disse uma autoridade. Da mesma forma que o general Eduardo Ramos tomou vacina escondido, o código perto de Bolsonaro é esconder a máscara. Essa é a lógica tacanha de quem preside o país.

Mandetta diz que foi chamado a uma reunião no terceiro andar, gabinete do presidente, e lá viu a minuta de um decreto que imporia a mudança da bula da cloroquina. Estavam presentes pessoas estranhas ao governo, mas que o presidente ouvia sobre saúde, em vez de o ministro. Presente também o filho Carlos, que participa de reuniões ministeriais com direito a assento na mesa. Tudo era o retrato de um governo distorcido.

Teich contou que num dia houve uma live em que o presidente garantiu que ampliaria o uso da cloroquina e, no dia seguinte, ele falou a mesma coisa em uma declaração na saída do Alvorada. Isso sem a aprovação do ministro da Saúde. Foi essa a sequência final dos eventos que levou Teich a sair do governo, 29 dias depois de ter entrado.

Nesses dois dias da CPI ficou claro que o único ministro da Saúde que ele permitia ficar no cargo era um que aceitasse dizer a frase: “Senhores, é simples assim: ele manda, eu obedeço.” A propósito, Teich aceitou o general Pazuello como seu secretário-executivo, e com a experiência da proximidade disse que ele não tinha o conhecimento técnico suficiente em gestão de saúde para ocupar a posição de ministro da Saúde.

Pazuello ocupou o cargo, no meio de uma pandemia, porque era o único a aceitar o cabresto do presidente. Cabresto que ele tenta impor ao país com seu mandonismo agressivo. Ontem foi mais um dia de ameaças institucionais ao país, gritadas no meio de um evento oficial. Disse que vai baixar um decreto contra as medidas protetivas adotadas por prefeitos e governadores.

— Se baixar esse decreto, ele será cumprido e não será contestado, não ousem contestar — berrou Bolsonaro, querendo dizer que a Justiça não poderia revogar tal ato.

Ontem também o presidente fez novo ataque à China, insinuando que o vírus teria sido parte de uma guerra química, bacteriológica.

Poderia ser só insensatez, mas é muito mais. Bolsonaro está acuado. Está ficando claro que ele cometeu delito continuado na gestão da pandemia. Derrubou os ministros que queriam nos conduzir para um cenário de menos mortes e mais proteção, impôs um que seguiu todas as suas ordens e que agora está se escondendo na barra da farda do Exército. O comando de Bolsonaro foi claro: exposição ao vírus, cloroquina e ameaças autoritárias. Enquanto a CPI fazia nova radiografia do seu absurdo modo de governar, Bolsonaro deu mais um dos seus gritos. Queria distrair a atenção. O risco é o país não reagir a esse candidato a ditador.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-presidente-e-o-delito-continuado.html


Merval Pereira: Bolsonaro no limite

Por mais que o Exército faça para se distanciar de Bolsonaro, o presidente faz questão de incluí-lo em suas ameaças, voltando a confrontos institucionais que já o colocaram em desacordo anteriormente com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e o ex-comandante do Exército e general Edson Pujol. Voltou a chamar de “meu Exército” os militares que, segundo ele, podem sair às ruas para proteger o direito de ir e vir em caso de lockdown. E nenhum juiz ousará contestar essa decisão, garantiu em sua retórica abusiva.

A convocação do ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello pela CPI quase se transformou em princípio de crise, não fosse a iniciativa do senador Omar Aziz, presidente da CPI, de ligar ao novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, para esclarecer que Pazuello era convocado na qualidade de ministro civil, e não de general da ativa.

O novo comandante era chefe do Departamento do Pessoal do Exército, encarregado da logística de combate à Covid-19 dentro da corporação, e agiu de acordo com as orientações médicas. Por isso, Pujol certa vez deu o cotovelo para Bolsonaro, que lhe estendia a mão e ficou irritado.

O próprio general Paulo Sérgio escreveu um artigo em que se rejubilava pelo fato de a pandemia, no Exército, estar sendo muito menos letal entre os seus do que na média brasileira, justamente por seguirem orientações científicas. O artigo, que também provocou a ira de Bolsonaro, não impediu que a antiguidade se impusesse na escolha do novo comandante do Exército e mostra bem a diferença de visão entre os dois.

O presidente está claramente a perigo, se sentindo acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI da Covid. Mais uma vez está escalando a retórica que domina, a da ameaça e do extremismo, para tentar criar uma situação crítica que obrigue as Forças Armadas a se posicionar. Aproveitando um discurso em cerimônia do Palácio do Planalto sobre a tecnologia 5G — que nada tem com o tema que abordou —, Bolsonaro deu um jeito de voltar a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir a autonomia de governadores e prefeitos na definição de medidas restritivas durante a pandemia, que ele considera uma “excrescência”, por ter dado “competências esdrúxulas” a eles.

O ex-ministro Pazuello se preparava justamente para atacar o Supremo em seu depoimento na CPI, que acabou adiado por incapacidade do convocado de postar-se minimamente bem diante de seus arguidores. Bolsonaro é capaz de fazer um ato extremo, como ameaçou, com o objetivo de criar uma situação-limite e confrontar instituições como o STF para testar sua força popular. As manifestações do fim de semana a seu favor, em várias capitais, devem tê-lo convencido de que ainda é capaz de acionar multidões para reforçá-lo no poder.

Trata-se de movimento perigoso porque, estando acuado, é capaz de transpor a linha da legalidade.

Pode ser só uma bazófia, mas pode perfeitamente se transformar em realidade diante dos fatos, que estão sempre contra ele nos últimos tempos. Com essas bravatas, é possível acelerar um processo de impeachment, que está latente na CPI. Está protegido pela pandemia, que impede as pessoas de ir à rua. Mas, nesse ritmo, provoca ações de seus seguidores e dos contrários. E, se isso acontecer, as instituições terão que funcionar, inclusive o Exército, que terá de dizer se está do lado da democracia ou de um presidente claramente desequilibrado, que tenta fazer tudo para criar um ambiente político que facilite o autoritarismo.

A sorte é que, aparentemente, ele é minoria. A questão é saber se irá até o final, se testará nas ruas sua força. O mais grave, diante da falta de vacinas e do tamanho da tragédia que vivemos, é voltar a pensar alto besteiras como uma guerra biológica da China, que teria “inventado” o vírus da Covid-19 para poder crescer economicamente e superar seus competidores ocidentais. São os ecos ainda da visão conspiratória do ex-ministro Ernesto Araújo, que ficou no inconsciente dos remanescentes do governo e levaram o ministro Paulo Guedes a repetir a besteira numa reunião que era transmitida.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/bolsonaro-no-limite.html


Juan Arias: Por que Lula prefere que Bolsonaro chegue politicamente vivo às eleições?

Para entender esta estranha postura do petista, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo

Muita gente acha estranho que Lula veja com desagrado a abertura da CPI da covid-19, que poderia acabar com uma condenação de Bolsonaro, e a abertura de um processo de impeachment presidencial no Congresso.

Lula não diz isso abertamente, mas é o que dá a entender através de seus assessores mais íntimos. Jacques Wagner, por exemplo, um dos caciques do PT a quem Lula mais escuta, causou surpresa ao se manifestar no Senado contra a abertura da CPI da Covid. Da mesma forma, Lula não demonstra nenhum interesse em que o Congresso abra um processo que possa resultar na destituição do capitão.

Para entender esta estranha postura de Lula, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo. Nisso poucos ganham.

Assim, de olho na candidatura presidencial em 2022, ele considera, conforme confidenciou a alguns amigos que mais o frequentam, que definitivamente o melhor adversário para um duelo político tão crucial para ele seria Bolsonaro, mais do que qualquer outro.

Por isso prefere que o presidente não caia antes das eleições. Lula sabe que sua maior vitória, inclusive em nível internacional, seria destronar o genocida que arrastou o Brasil para o inferno. Para Lula, ganhar de qualquer outro candidato não teria a mesma força simbólica que derrotar o psicopata que está transformando o país um cemitério com seu negacionismo e com seu hábito de inclusive zombar da pandemia.

Lula sabe que, se Bolsonaro for impedido de disputar as eleições, a única alternativa à disposição do bolsonarismo seria seu vice, o general Hamilton Mourão, um militar duro, mas que tem um maior gabarito intelectual e uma maior capacidade de diálogo político.

Lula sabe que muitos direitistas que não votariam mais em Bolsonaro poderiam fechar com seu vice. Isso incluiria muita gente no mercado e no mundo das finanças que está desiludida com Bolsonaro e, embora em condições normais nunca votasse na esquerda, poderia optar por Lula se ele tiver um vice oriundo do mundo que domina a economia, como foi o caso do empresário José Alencar em seus mandatos anteriores (2003-2011).

Ao mesmo tempo, até os militares hoje em dia estão no mínimo perplexos com o capitão, que acabou desprestigiando a instituição com suas loucuras e seu afã de apresentar as forças armadas como “seu Exército”. Com Mourão, os militares poderiam ter um candidato mais confiável.

Lula sabe disso e por esse motivo prefere enfrentar Bolsonaro, que certamente, se não cair antes disso, chegará muito debilitado às eleições. Quanto aos militares, Lula já está tateando para abrir um diálogo com os quartéis. Pensou inclusive na hipótese de escolher um militar como vice.

Para Lula, seria paradoxalmente mais fácil derrotar Bolsonaro do que um candidato conservador que tivesse o apoio das elites econômicas, que começam a abandonar o presidente, mas ao mesmo tempo estão contra a bipolaridade entre esquerda e direita.

Para muitos, continua valendo o lema “nem Lula nem Bolsonaro”, mas, tendo que escolher entre um deles, afinal poderiam acabar apostando em um Lula que se apresente mais como centrista do que como representante da velha esquerda. Foi o que confirmou pessoalmente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao admitir que, se tivesse hoje que decidir entre Bolsonaro e Lula, votaria no petista, seu histórico adversário.

Na situação do ex-presidente FHC estão muitos que também hoje prefeririam votar em Lula a não no capitão, cada dia mais desprestigiado. Lula sabe que, hoje, quem desperta maior rejeição da direita democrática é Bolsonaro. Por isso seu instinto o leva a preferir desafiar o capitão ferido politicamente a qualquer outro candidato.

Para Lula na verdade seria melhor duelar com um Bolsonaro desmoralizado dentro e fora do país do que com um candidato do centro, que poderia ser o preferido daqueles que hoje rejeitam tanto as cavernas direitistas do bolsonarismo-raiz como a velha e desgastada esquerda. Por isso Lula já está flertando com o centro e até com a direita com a qual já governou.

Lula tem um olfato político que acaba desorientando até seus colaboradores mais próximos. 2022 já está às portas, e poderemos ver se ele tem ou razão em querer que Bolsonaro chegue ferido às eleições, mas politicamente vivo.


Marcelo Godoy: Brigadeiro chama de traidor general que se opõe a Bolsonaro

Clube Militar publica artigos que declaram guerra aos críticos do governo; Jobim é tratado como comunista e Sarney como esquerdista

As fragilidades do governo de Jair Bolsonaro e a perda de apoio que se consolida à medida que aumentam as mortes evitáveis da pandemia levaram o Clube Militar a atacar em sua revista pela primeira vez os militares que criticam o presidente, cuja reeleição cada vez se vê mais ameaçada. Caminha-se no Planalto ainda entre uma provável ida ao segundo turno e uma improvável vitória diante do antibolsonarismo majoritário que se forma no País, enquanto as forças de centro tentam se unir e ultrapassá-lo. E teme-se a CPI da Covid, que vai atrás dos generais do governo.

Com sua sede no centro do Rio, o Clube Militar se radicalizou, expondo-se como baluarte do bolsonarismo e das ações do partido militar, aquele que se pensava morto com o início da Nova República e com as reformas de Castelo Branco na estrutura das Forças Armadas. A entidade é presidida pelo general Eduardo José Barbosa, que acredita viver em um país majoritariamente saudosista da ditadura militar, uma nação que começaria na Avenida Brasil e terminaria na Avenida Rio Branco.

Com o título O Brasil Vencerá, a revista do Clube abre a sua edição com a Ordem do Dia do Ministro da Defesa, Walter Braga Netto,  para "saudar" o golpe de 31 de Março de 1964. A publicação lista os inimigos do bolsonarismo: ali estão a imprensa, as universidades e políticos de oposição, todos tratados – como sempre e indistintamente – como vermelhos. Vermelho é tudo o que limita os desejos liberticidas dos que sofrem de incontrolável medo hobbesiano? Fazer do triunfo despótico da vontade um objetivo indisfarçável não seria uma traição à República e à busca do bem comum? 

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é chamado na revista do Clube de "criptocomunista" e o ex-presidente José Sarney é qualificado como "enrustido esquerdista, líder da ala esquerda da União Democrática Nacional (UDN)". Está no texto Os Sovietes Brasileiros, do coronel Jorge Baptista Ribeiro, que termina a peça afirmando que Bolsonaro “foi obstado em seus propósitos” pela “ditadura das togas vermelhas”. 

Na Itália dos anos 1990, o direitista Silvio Berlusconi costumava chamar os magistrados da Operação Mãos Limpas de toghe rosse, togas vermelhas. No Brasil dos anos 2000, depois de o procurador-geral da República nomeado por Bolsonaro acabar com a Operação Lava Jato, os acólitos do presidente passaram a atacar os juízes – os mesmos que devem analisar o caso de Flávio Bolsonaro, o senador que comprou uma casa de R$ 6 milhões em Brasília – de idêntica maneira à dos aliados de Berlusconi. 

O coronel nos remete ainda mais ao passado ao citar Sarney e a UDN. Principal líder udenista, Carlos Lacerda manchetou uma vez em seu jornal, A Tribuna da Imprensa: “Somos um povo honrado, governado por ladrões”. Era 2 de agosto de 1954. Coronéis como o autor do artigo publicado pelo Clube Militar  subscreviam manifestos e liam provocações públicas aos chefes militares de então. Vivia-se um permanente alvoroço. A Força Terrestre se dividia em grupos, imperavam os peixes e os políticos na caserna.

Era nessa época que os relatórios reservados costumavam apontar criptocomunistas, inocentes úteis e abertamente comunistas como forma de deslegitimar quem se opunha aos desejos de radicais – como o almirante Pena Botto – que buscavam impor seus propósitos ao País. Lacerda, que planejou e apoiou a deposição de João Goulart em 1964, acabaria cassado em 1968 e preso. Ele disse: "A Revolução de 1964 destruiu-se a si mesma, na medida em que seus aproveitadores consolidaram o domínio das oligarquias". No passado, eram as oligarquias; no presente, o Centrão. No país sonhado pelo coronel, Lacerda seria cassado novamente. Quanto aos corruptos, estes sempre vicejam, desde que apoiem o Idi Amin Dada de plantão.

Em outro artigo da revista, o major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez chama de traidor “um oficial general” que, segundo ele, age como os “brigadistas incendiários” de Santarém – reparem que o oficial toma como verídicas as acusações do controverso inquérito do Pará. Diz que, se tudo o que mídia publica a respeito do tal oficial for verdade, "o general que protagonizasse essa traição não seria digno do que aprendeu na Academia, muito menos das estrelas que ostenta no ombro". O brigadeiro não teve a coragem de nomear o general em seu artigo, mas dez entre dez de seus colegas apostam que ele se referia a Carlos Alberto dos Santos Cruz. 

Sanchez continua sua argumentação, afirmando que "ordem absurda não se cumpre", mas afirma que não se deve "desmoralizar o comandante diante da tropa (Jair Bolsonaro), especialmente se provocado pelos inimigos, que todos sabemos bem quais são". Em 23 de outubro de 2020, pouco depois da famosa frase de Eduardo Pazuello (“Um manda e o outro obedece”), Santos Cruz escreveu: “Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres. Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'... Como mandar varrer a entrada do quartel". 

Sanchez culpa a imprensa por tentar indispor Bolsonaro com o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Como se Bolsonaro precisasse da imprensa para tanto. A acusação do brigadeiro equivale a receber um aviso de cobrança e culpar o carteiro pelo dívida. Diz ainda não existir divisão nas Forças Armadas em razão do presidente. Para tanto, o estabelecimento militar deveria ter exatamente os mesmo anseios do partido militar. Se isso é verdade, a Nação espera ansiosa a explicação do brigadeiro para a decapitação da cúpula das Forças Armadas operada por Bolsonaro. Talvez diga que é encenação, que todos caminham juntos para preservar sinecuras e privilégios conquistados e mantidos em meio à mais grave crise do século. E a CPI nem começou...

Sanchez diz pertencer a um grupo, os 504 Guardiões da Nação. Seu artigo despertou reações entre militares que o leram. Viram no texto "falta de responsabilidade institucional", ideias saudosistas e afinadas com teorias da conspiração, que fazem de todos os que não são bolsonaristas traidores e comunistas. Enfim, textos marcados pelo fanatismo, enquanto o "Brasil está à deriva, voando no escuro e com o GPS quebrado". Não que a gritaria mude grande coisa; o que não falta nesse País é candidato a Simão Bacamarte. Para o consolo do brigadeiro, se for derrotado em 2022, Bolsonaro ainda poderá chamar a Casa da República de "meu Clube Militar".