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Carlos Pereira: Isolamento social é coisa de rico?

O 'medo da morte' relativiza as preocupações com as potenciais perdas econômicas

Tem ganhado força a interpretação de que a política de isolamento social, preconizada pela Organização Mundial da Saúde e implementada pelos governadores dos estados, estaria sendo primordialmente apoiada por aquelas pessoas que teriam recursos financeiros para se manter confortavelmente em quarentena. A pressuposição, inclusive reverberada pelo presidente Bolsonaro, é a de que seria mais fácil para o grupo social de maior renda priorizar os cuidados com a saúde e relegar os problemas econômicos gerados pela pandemia para segundo plano.

Por outro lado, as famílias com rendimentos mais baixos, que dependem de rendas do trabalho e/ou de transferências governamentais, seriam mais vulneráveis e, portanto, necessitariam voltar mais cedo às suas atividades profissionais e apresentariam assim maior resistência a manutenção do isolamento social. Na realidade, as famílias menos abastadas já estariam sendo atingidas pela crise.

Muitos não teriam recursos para alimentação, aluguel, remédios etc. Sabem que seus empregos, casas, negócios, estariam em risco iminente, especialmente o setor de serviços, onde as famílias mais pobres e de menor qualificação estão mais empregadas. Por isso, prefeririam enfrentar o risco de serem contaminados pelo vírus e voltar ao trabalho.

Será que este aparente antagonismo em relação ao isolamento social é realmente baseado nas diferenças de renda ou risco de prejuízo econômico? Para responder essas perguntas, eu e meus colegas Amanda Medeiros e Frederico Bertholini fizemos uma pesquisa de opinião, com o apoio do Estado. O questionário foi divulgado nas redes sociais, em especial pelo WhatsApp, entre os dias 28 de março a 04 de abril. A amostra total foi de 7848 respostas válidas.

A grande maioria dos respondentes que se auto identificam como de esquerda, centro-esquerda e centro discordaram da atuação de Bolsonaro durante a pandemia e aprovaram o isolamento social. Resolvemos, portanto, concentrar a análise apenas no segmento onde observamos variância de opiniões, entre os respondentes que se auto identificam como centro-direita e direita. Será que o nível de renda ajuda a explicar as diferenças de opinião?

A Figura 1 mostra que, ao contrário da expectativa de que as pessoas com diferentes faixas de renda deveriam exibir distintos padrões de apoio a política de isolamento social, a diferença entre as médias das distintas faixas de renda não é estatisticamente diferente. Ou seja, pelo menos até a semana que os dados foram coletados, a sociedade não está cindida pela renda. Os mais pobres e os mais ricos ainda estão no mesmo barco, apoiando majoritariamente o isolamento social e se opondo a recomendação do presidente de volta ao trabalho.

O que dizer dos potenciais prejuízos econômicos gerados pela política de isolamento social? A Figura 2 mostra a distribuição dos distintos níveis de prejuízo econômico em função do apoio à flexibilização do isolamento social pelo presidente, correlacionada com o conhecimento de pessoas infectadas pela Covid-19 e seus respectivos graus de gravidade.

Distribuição do nível de prejuízo econômico em função do apoio à flexibilização do isolamento social pelo presidente, correlacionada com o conhecimento de pessoas infectadas pela Covid-19 e seus respectivos graus de gravidade.

Enquanto os que não conhecem pessoas contaminadas (linha escura) chegam a apoiar a política do presidente e identificam risco de grande prejuízo econômico como consequência isolamento social, os que conhecem pessoas que se contaminaram e que vieram a falecer (linha amarela) não apresentam variação em relação aos níveis de prejuízo econômico. Em outras palavras, a gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito, leva as pessoas a minimizar as potencias perdas econômicas que o isolamento social possa vir a lhes proporcionar.


Carlos Pereira: De quem será a conta da pandemia?

O presidente pode se beneficiar ao empurrar para governadores o custo econômico da pandemia

É certo que, em situações de normalidade, o chefe do Executivo não é capaz de transferir responsabilidade pelo desempenho de políticas macro ou universais para outros. Por exemplo, se a inflação e/ou desemprego aumentam, o presidente será inexoravelmente responsabilizado. Por outro lado, se os indicadores da atividade econômica melhoram, é também o chefe do Executivo federal quem será capaz de extrair os maiores benefícios políticos decorrentes dessa boa performance.

Essa responsabilização do presidente decorre da distribuição geográfica da sua representação política. Como recebe votos em todo o território nacional, é dele a responsabilidade de políticas nacionais. Os legisladores e governadores, por sua vez, por serem eleitos por uma base geográfica delimitada, respondem às preferências das redes locais e estaduais de interesse, respectivamente.

Será que esse perfil de responsabilização seria também observado quando o País é acometido de choques exógenos de grande magnitude, como a atual pandemia do Covid-19?

A pandemia criou um novo tipo de polarização política no Brasil. Governadores e legisladores, de um lado, têm apresentado preocupação com os riscos de estrangulamento do sistema de saúde causado pela pandemia, que pode levar a um grande número de vítimas fatais. Como resposta, os governadores têm implementado medidas muito duras, como o fechamento de escolas, cinemas, praias, teatros, e comércio em geral.

De outro lado, Bolsonaro tem minimizado os riscos de contágio bem como os impactos epidemiológicos da doença. Sua maior preocupação tem se concentrado nas consequências negativas que medidas de isolamento social acarretam para a economia.

O presidente tem tentado transferir para outros atores políticos a responsabilidade pela potencial diminuição ou mesmo recessão da atividade econômica. A estratégia do presidente será bem-sucedida?

Para responder a essa e a outras perguntas, eu e minha colega da FGV EBAPE, Amanda Medeiros, fizemos, com apoio do Estadão, uma pesquisa experimental via WhatsApp. Uma das perguntas quis justamente saber quem seria o principal responsável pelo controle e consequências da pandemia do Covid-19. Os resultados preliminares, obtidos com uma amostra de 1148 respondentes, indicam que 79,5% responsabilizam o presidente e apenas 19,5% os governadores.

A maioria dos respondentes acredita que o presidente não está fazendo um bom trabalho (68%). Entre os que avaliam positivamente o presidente, 72% se identificam como de direita e 9% como de esquerda, o que evidencia uma grande polarização. Por outro lado, essa polarização não ocorre na avaliação do desempenho positivo dos governadores (75% dos respondentes), dos quais apenas 20% e 19% se identificam como de esquerda e direita, respectivamente.

Os respondentes também foram aleatoriamente submetidos a dois choques informacionais: 1) consequências negativas para a saúde, com crescimento exponencial do número de mortes; e 2) para a economia, com retração de 3 pontos percentuais do PIB. Surpreendentemente, receber as manipulações aumenta a chance de as pessoas avaliarem mal o trabalho do governador e de avaliarem bem a atuação de Bolsonaro.

Portanto, o comportamento do presidente de minimizar as consequências da pandemia e enfatizar o impacto para economia, tido por alguns como irracional, pode vir a se revelar uma estratégia bem-sucedida.

Análises mais aprofundadas da pesquisa serão publicadas em breve.

*É professor titular da FGV/EBAPE, no Rio de Janeiro


Carlos Pereira: O preço da loucura

Insanidade de Bolsonaro de ir a manifestação é expressão do presidencialismo plebiscitário

Diante dos últimos comportamentos do presidente Bolsonaro, muitos têm vaticinado que o presidente está louco. Alguns, inclusive, defendem que o Ministério Público peça que uma junta médica avalie a sanidade mental de Bolsonaro para saber se ele de fato teria condições para exercício do cargo de presidente da República.

Ter conclamado e participado de manifestação contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal em plena pandemia do novo coronavírus e ainda sob suspeita de estar contaminado, colocando em risco os demais participantes da manifestação, seria um sinal de perturbação mental ou, pelo menos, de enorme irresponsabilidade.

Existiria cálculo racional nesse comportamento aparentemente insano?

A loucura é um fenômeno muito complexo e multifacetado. A negação da realidade é uma das suas expressões ou sintomas mais comuns. No caso específico do presidente Bolsonaro, sua suposta insanidade nasce da negação da própria política.

Bolsonaro é produto de uma sucessão de eventos inusitados. A conjunção de recessão econômica de graves proporções e exposição visceral a escândalos sucessivos de corrupção gerou, em uma parcela considerável do eleitorado brasileiro, uma espécie de aversão à política. Como se a política “tradicional” fosse necessariamente “suja”.

Bolsonaro preencheu as expectativas de “limpeza” da política brasileira. Fez uma associação direta entre o tipo de presidencialismo de coalizão predatório implementado pelo petismo à corrupção. Ao mesmo tempo em que essa estratégia se mostrou vitoriosa nas eleições, fez, paradoxalmente, o presidente vítima desta narrativa. Terminou por aprisionar o governo a um modelo de governar que contraria a essência do nosso sistema político.

Diante da negação sistemática dos instrumentos tradicionais de governo em um presidencialismo multipartidário, restam poucas alternativas a Bolsonaro. A conexão direta com seus eleitores mais fiéis, que beira a insanidade, tornou-se o modus operandi do governo. A estratégia dominante passou a ser o desenvolvimento de crises quase que diárias, confusão e belicosidade com adversários, briga com os próprios aliados, ataques indiscriminados a todos que lhe impõem restrições.

É por isso que Bolsonaro governa sempre testando e avançando os limites institucionais. Portanto, na aparente loucura do estilo de governar confrontacional há uma estratégia nítida de sobrevivência política.

É sonho de todo governante que quer deixar um legado histórico enfrentar crises agudas tais como guerras ou pandemias para unir o país em torno dele e assim enfrentar o inimigo comum. Entretanto, Bolsonaro não consegue se desvencilhar das amarras que se auto impôs. Para Bolsonaro, essa oportunidade foi perdida. Em vez de unir o País para combater o inimigo mortal e invisível, ele o dividiu. Ao invés de reconhecer a gravidade da guerra, ele a menosprezou.

Bolsonaro não percebeu que o medo da população em perder vidas com o coronavírus suplantava os riscos de crise econômica, pois não se deu conta que as pessoas tendem a descontar o futuro. Ou seja, as preocupações de hoje são sempre maiores do que as que estão por vir. Bolsonaro, portanto, contrariou os anseios da população e os sinais de rejeição entre seus supostos seguidores começaram a aparecer.

O panelaço e os vários pedidos de impeachment evidenciam isso. Dessa vez, a loucura de Bolsonaro pode lhe custar caro.


Carlos Pereira: Tubarões, inundação, vírus e o governo

É pouco provável que essa pandemia seja aproveitada pela gestão Bolsonaro como uma oportunidade para implementação de mudanças

Em julho de 1916, a costa leste dos EUA, especialmente Nova Jersey, foi acometida por uma série de ataques de tubarão que ocasionaram a morte de vários americanos. Esses eventos inesperados alcançaram grande repercussão no noticiário e considerável sofrimento emocional, especialmente da população das comunidades costeiras. O então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, concorria à reeleição no fim daquele ano.

Embora o presidente Wilson não tenha tido responsabilidade direta pelos ataques aleatórios de tubarão, estudos (Achen e Barthels, 2012) identificaram uma forte correlação entre aqueles ataques e a significativa redução no número de votos a favor da reeleição do presidente naquela região em relação à quantidade de votos no pleito de 1912, quando Wilson foi eleito presidente pela primeira vez.

Por outro lado, o devastador desastre provocado pelas inundações que aconteceram na Alemanha em 2002 trouxe consequências bem distintas para o seu governante. O governo ofereceu ajuda monetária imediata e, estrategicamente, organizou uma visita do chanceler, Gerhard Schröder, usando botas de borracha, às vilas inundadas. Esta atitude foi interpretada pela mídia como símbolo da credibilidade do chanceler como gerente de crises. Após as inundações e, pelo menos em parte pelo que foi percebido como bem-sucedida gestão de desastres, o governo ganhou apoio popular e venceu as eleições federais vários meses depois.

Desastres nem sempre têm impacto político negativo. Dependendo do contexto, as consequências para os líderes políticos também podem ser positivas. Se o governo de plantão for capaz de liderar com autoridade moral e ofertar respostas adequadas ao problema, é possível que desastres se transformem em janelas de oportunidade para galvanizar apoio e conseguir implementar reformas.

Albrecht (2017) argumenta que a mídia exerce papel relevante nas consequências políticas dos desastres. Quanto maior for o tempo de cobertura e a exposição de fragilidades organizacionais das estruturas governamentais para lidar com as consequências do desastre, maiores serão as chances de impactos negativos para o governo de plantão.

Especificamente em relação aos efeitos políticos do coronavírus para a gestão de Jair Bolsonaro, é muito difícil fazer previsões no momento atual. Isso ocorre porque vários aspectos importantes ainda são desconhecidos, tais como a extensão da contaminação, a gravidade dos casos, o número de mortos, o tempo de duração da epidemia e a eficácia das respostas oferecidas pelo governo.

Mas, diante das dificuldades governativas enfrentadas até o momento pelo governo Bolsonaro, que é minoritário e tem desenvolvido uma relação adversarial com o Legislativo e com a mídia, é pouco provável que essa pandemia seja por ele aproveitada como uma oportunidade para implementação de mudanças.

O governo corre o risco de ser visto como responsável pelos efeitos da pandemia. A dúvida que fica é em relação ao tamanho do dano, pois a confiança social tende a diminuir significativamente, especialmente quando a epidemia começar a causar fatalidades.


Carlos Pereira: A gangorra dos poderes

Equilíbrio entre Poderes, que levou mais de cem anos para ser alcançado, está sob ameaça

A história do Brasil foi marcada por desequilíbrios extremos entre o Executivo e o Legislativo. Uma espécie de efeito gangorra onde, em alguns momentos, preponderou uma descentralização de poderes para o Legislativo e, em outros, uma centralização de poderes nas mãos do Executivo.

Na primeira República (1989-1930), observamos o fortalecimento do federalismo com um domínio das elites regionais por meio da chamada “política dos governadores”. Diante de uma grande fragmentação de partidos estaduais, verificou-se problemas crescentes de governabilidade do presidente e, ao mesmo tempo, alienação de grupos regionais que não eram contemplados no jogo oligárquico.

Como reação a esse desequilíbrio, a Era Vargas (1930-1946) praticamente extinguiu o federalismo oligárquico. A autonomia dos Estados foi enfraquecida, foi quebrado o monopólio do partido único nos Estados e foi observada uma excessiva centralização decisória no Executivo federal e uma concomitante fragilização do Legislativo.

A Constituição de 1946 vai para o outro extremo, ao abominar tudo que parecia ser sinônimo de centralização. O federalismo é restabelecido, e o presidente torna-se constitucionalmente fraco em um ambiente multipartidário. Governos minoritários são eleitos e crises sucessivas de governabilidade com riscos iminentes à democracia tornam-se a marca desse período democrático.

Com a ditadura militar (1964-1985), o Brasil viveu um novo período de centralização excessiva, o que é esperado de regimes autoritários. O executivo recuperou os Poderes Constitucionais, de agenda e orçamentários. Por outro lado, os partidos políticos se enfraqueceram e o Legislativo se fragilizou.

É só a partir da Constituição de 1988 que as relações Executivo-Legislativo alcançaram um equilíbrio relativamente virtuoso. Foi preservado o multipartidarismo fragmentado. Mas, para evitar os problemas de governabilidade vividos no período de 1946 a 1964, foi delegada uma ampla gama de poderes constitucionais e orçamentários para o presidente da República. O presidente passou a ser o grande coordenador do jogo político e com capacidade de atrair apoio por meio da formação de coalizões majoritárias e estáveis.

Este equilíbrio de forças gerou estabilidade democrática e cooperação entre o Executivo e Legislativo a um custo relativamente baixo se o presidente souber gerenciar bem a coalizão. Além do mais, criou base para responsabilidade fiscal, equilíbrio macroeconômico e inclusão social.

Os conflitos crescentes entre o Executivo e Legislativo iniciados no governo de Jair Bolsonaro decorrem da tentativa do presidente de substituir o presidencialismo de coalizão pelo presidencialismo plebiscitário. Bolsonaro incita seus seguidores a se voltarem contra as instituições democráticas como uma forma clara de sobrevivência política.

Entretanto, essa estratégia traz riscos para o próprio Executivo, que tende a perder poderes vis a vis o Orçamento Impositivo e as recentes iniciativas de restringir o uso de Medidas Provisórias por parte do Congresso.

O poder é essencialmente relacional; não existe no vazio. O poder só se realiza ou se torna concreto quando é exercido. O poder de jure, que se encontra formalizado nas leis, estabelece apenas os contornos do espaço que poderá ou não ser de facto preenchido. Quando quem tem poder formal se recusa a exercê-lo, outros inexoravelmente tendem a fazê-lo.


Carlos Pereira: Quem tem medo do papangu?

O que tem ameaçado a democracia é, na realidade, apenas uma quimera

Hoje é segunda-feira de carnaval. Estamos em pleno reinado de Momo, quando a irreverência, o excesso e o risco tomam conta das pessoas. Como bom pernambucano, sempre levei o carnaval muito a sério. Lembro, ainda criança, brincando carnaval pelas ruas estreitas do centro do Recife e pelas ladeiras íngremes de Olinda, de várias figuras então “ameaçadoras” do carnaval de Pernambuco. Logo de manhã cedo, ouvia troças carnavalescas com suas orquestras de frevo ou simplesmente batedores de lata. À frente, alguém fantasiado de urso, vestindo um velho macacão de veludo e com uma máscara de papel marche, gritava: “a La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro!”.

No Pátio do Terço, à meia-noite da segunda-feira de carnaval, participava da “Noite dos Tambores Silenciosos”, cerimônia de sincretismo religioso que reúne maracatus da região. O que mais me causava espanto era o maracatu “de baque solto”, formado por canavieiros da zona da mata com sua cútis curtida pelo sol. Esses “caboclos de lança” vestem fantasias coloridas, com sinos de metal pendurados nas costas que soam de forma ritmada a cada movimento. Carregam lanças enormes e dançam como verdadeiros ninjas do canavial.

Entretanto, as figuras mais amedrontadoras do carnaval de Pernambuco eram os enigmáticos papangus, cuja definição é homem ridículo, sem compostura, tolo, mané ou otário. Se fantasiam com túnicas que os cobrem dos pés à cabeça, com abertura apenas para olhos e boca. Os mais famosos vêm de Bezerros, no agreste pernambucano. Quando se ouve de longe o barulho das castanholas que anunciam sua chegada, todas as crianças morrem de medo. Acredita-se que o papangu nasceu de uma brincadeira de dois irmãos que comiam muito angu. Resolveram cortar as pernas das calças e cobrir o rosto com capuz para não serem reconhecidos, mas o disfarce não funcionou. Terminaram descobertos pela gula.

Assim como as crianças do Recife, uma boa parte da sociedade brasileira tem temido um enfraquecimento democrático, se deixando atormentar por um papangu com jeito autoritário, que elogia torturadores, ameaça fechar o STF e decretar um novo AI-5, tenta reinterpretar a história dizendo que o regime militar de 1964 não foi uma ditadura, pois não matou o suficiente para extirpar o comunismo. Esse papangu também assusta ao perder o decoro difamando jornalistas, ao dar banana a repórteres, ultrapassando, assim, os limites da boa convivência democrática. Sem maioria legislativa estável, esse personagem é necessário para manter o apoio de seu eleitorado mais retrógrado.

Independentemente da capacidade das instituições políticas e dos sistemas de freios e contrapesos de conter os arroubos autoritários do nosso papangu, as evidências científicas disponíveis (Przeworski e Limongi 1997) mostram, de forma inequívoca, que a chance de reversão da democracia em países com a renda per capita superior à da Tailândia de 2006 (US$ 10 mil) é zero. Vale lembrar que a renda per capita no Brasil é superior a US$ 15 mil.

Outro fator crucial de estabilidade democrática é sua maturidade. Przeworski (2015) demonstra que a probabilidade de uma democracia ruir diminui drasticamente ao mesmo tempo em que o país acumula experiências de alternância de poder de forma pacífica e por meio de eleições. Entre 88 democracias consolidadas, apenas uma em cada dez entrou em colapso quando não testemunhou mais de três alternâncias, e apenas uma (Chile) caiu quando o número de alternâncias passadas chegou a quatro. O Brasil já possui seis alternâncias desde a redemocratização.

Mas, mesmo diante das evidências de que nossa democracia permanece sólida, a sociedade e suas instituições não devem baixar a guarda e diminuir a vigilância a cada afronta à democracia vinda do nosso papangu.

Bom carnaval a todos!


Carlos Pereira: Bolsonaro, governe enquanto há tempo

Sem mecanismos de resolução de conflitos, o protagonismo do Legislativo não é funcional no Brasil

Um maior ativismo ou mesmo protagonismo do Legislativo brasileiro durante o governo Bolsonaro tem sido interpretado como uma alternativa positiva para um governo que se recusa a utilizar suas armas legislativas e governar por meio de coalizões majoritárias. Alguns, inclusive, chamam esse modelo de “parlamentarismo informal” ou “semipresidencialismo branco”, situação na qual um presidente minoritário não seria o real chefe do governo, mas os líderes no

Como o Legislativo seria a representação mais direta da democracia, por congregar os mais variados interesses na sociedade, poderia parecer, inicialmente, que o seu fortalecimento seria algo benéfico para a própria democracia.

Mas, no nosso mundo real, de presidencialismo multipartidário, não seria bem assim.

Por que um Legislativo proeminente e proativo não seria funcional?

A concentração de poderes nas mãos do presidente e o protagonismo político do Executivo, que no passado eram vistos como ameaças à democracia, em função dos potenciais riscos de tirania ou de comportamentos autoritários do chefe do Executivo, são, hoje, interpretados como precondições para a efetividade governativa do presidente, especialmente em um ambiente multipartidário.

Por mais paradoxal que possa parecer, o presidencialismo multipartidário requer que o presidente seja constitucionalmente forte para que tenha condições de governar. Influenciar ou mesmo controlar a agenda do Legislativo é uma prerrogativa para o funcionamento adequado desse sistema que privilegia a representação.

Quando o presidente em um ambiente partidariamente fragmentado não faz uso de poderes constitucionais e orçamentários, problemas de coordenação emergem, sua produção legislativa e taxa de sucesso no Congresso diminuem e dificuldades governativas se tornam mais frequentes.

A falta de um líder que coordene e sirva de vetor dos mais variados interesses e partidos no Congresso leva à formação de maiorias cíclicas, esporádicas e não comprometidas com uma política de governo de longo prazo.

Além disso, não existem nos presidencialismos multipartidários válvulas institucionais flexíveis de resolução de conflitos governamentais, comuns em regimes parlamentaristas, tais como voto de confiança, dissolução do Parlamento ou eleições antecipadas.

A passividade do Executivo em relação ao Legislativo tende a deixar brechas políticas e institucionais que fatalmente serão preenchidas pelos legisladores, que, progressivamente, tenderão a diminuir os poderes do presidente. Sinais de enfraquecimento do Executivo já podem ser identificados nas decisões recentes do Congresso de tornar impositiva a execução das emendas individuais e coletivas dos legisladores ao Orçamento. Convém lembrar que essas decisões enfraquecem o Executivo em si, e não apenas o governo de plantão.

Já vimos esse filme antes no Brasil entre 1946 e 1964, quando presidentes minoritários e constitucionalmente fracos enfrentaram graves problemas governativos ou mesmo de paralisia decisória, que os fizeram abreviar seus mandatos seja por renúncia, suicídio ou golpe.

O “milagre” institucional que levou à superação desses problemas foi a decisão da Constituinte de 1988 de delegar uma ampla gama de poderes para que o presidente pudesse agregar interesses em torno da sua plataforma política e sob a sua liderança. Neste desenho, o melhor papel que o Legislativo pode executar é ser reativo ao protagonismo presidencial.

Se existe algum risco para a democracia brasileira, este se localiza na relutância do presidente em utilizar os seus poderes que outrora foram delegados pelos próprios legisladores.


Carlos Pereira: Há vacina contra iliberalismos?

O Brasil possui anticorpos contra antígenos iliberais tanto de esquerda como de direita

É paradoxal o comportamento iliberal de líderes políticos eleitos democraticamente que, uma vez no poder, tentam subverter e enfraquecer as instituições democráticas.

O que diferencia e qualifica regimes democráticos são as respostas que sociedades e instituições ofertam a tentativas de líderes populistas de usurpá-los.

No Brasil, vários presidentes eleitos apresentaram comportamentos iliberais.

Fernando Collor, por exemplo, vilipendiou direitos de propriedade ao confiscar a poupança de milhares de brasileiros. Lula, por sua vez, interferiu nas agências reguladoras e tentou reduzir sua independência. Ameaçou controlar a mídia por meio do “novo marco regulatório dos meios de comunicação”. Dilma tentou dar nova roupagem ao controle da mídia via regulação econômica. Lula também defendeu o controle externo da Justiça como forma de abrir a “caixa-preta” do Poder Judiciário. Haddad falava abertamente em controle social do Ministério Público e do Judiciário.

Como a chegada do PT à Presidência foi marcada por grande esperança, iniciativas iliberais ficaram camufladas e só se tornaram explícitas quando os sucessivos escândalos de corrupção vieram à tona. Até hoje os atos iliberais do petismo têm sido tolerados com base na crença de que as políticas de inclusão social os justificavam. Raciocínio semelhante pode ser atribuído ao governo Collor, com os efeitos de controle da hiperinflação de curto prazo.

As iniciativas e discursos de conteúdo iliberal também têm sido a tônica do governo Bolsonaro. Elogios recorrentes à ditadura e a torturadores já o condenam. Quando candidato, falava em aumentar o número de ministros da Suprema Corte. Tem atacado jornalistas e órgãos de imprensa. Seu ex-secretário de Cultura plagiou discurso nazista ao lançar edital iliberal que excluía do financiamento público a diversidade de expressões culturais que não se adequasse aos valores nacionais e conservadores.

Entretanto, diferentemente de outros populistas do passado recente, o governo Bolsonaro já teve início sob um intenso escrutínio. Essa atitude vigilante da sociedade e das organizações de controle é consequência direta da retórica belicosa e desrespeitosa desde quando Bolsonaro ainda era candidato à Presidência. Portanto, o espaço do governo de agir de forma iliberal já é menor que o de outros populistas, assim como os riscos de que suas ações enfraqueçam a democracia.

A despeito das inúmeras demonstrações de resiliência a retóricas e ações iliberais de populistas de esquerda e de direita, alguns analistas insistem que os riscos à democracia seriam reais e maiores com Bolsonaro. Citam exemplos de Venezuela, Polônia, Hungria ou Turquia, onde o enfraquecimento da democracia foi possível inclusive com apoio popular. Esse risco seria potencializado em contextos de extrema polarização, em que eleitores estariam dispostos a abrir mão de um sistema democrático para ter um país que se aproximasse de suas preferências extremas.

Entretanto, consentimento popular a saídas autoritárias só é dado em um contexto de terra arrasada do ponto de vista institucional, o que nem de longe é o caso do Brasil. Ao contrário de se esgarçarem, os freios e contrapesos do sistema político brasileiro só se fortaleceram desde a redemocratização, ainda que de forma não linear. Mesmo que parte da sociedade brasileira se seduza com iniciativas iliberais, encontrará organizações de controle já imunizadas contra diferentes cepas de populismos.


Carlos Pereira: Para que haja menos partidos

Presidencialismo brasileiro continuará fragmentado

A formatação de sistemas políticos e partidários é fruto de escolhas que sociedades fazem ao longo da sua história. Essas escolhas se dão por tentativa e erro, com adaptações e correções de potenciais problemas que vão sendo identificados por gerações futuras.

O sistema político brasileiro é conhecido pela grande permissividade de suas regras eleitorais. Uma combinação de representação proporcional com lista aberta em distritos de grande magnitude, que tem estimulado a inclusão dos mais variados interesses da sociedade no jogo político, gerando assim fortes incentivos para a criação de muitas legendas partidárias. A escolha por esse sistema inclusivo foi uma resposta aos efeitos negativos dos partidos regionais oligárquicos da Primeira República decorrentes do voto distrital majoritário.

Entretanto, os partidos, na grande maioria, não têm sido veículos de agregação ideológica ou mesmo programática, mas fundamentalmente organizações políticas que unem interesses eleitorais. Daí porque os eleitores terem tanta dificuldade de identificá-los e diferenciá-los entre si.

Atualmente, 30 partidos ocupam pelo menos uma cadeira na Câmara dos Deputados. A fragmentação é alta mesmo quando a medimos a partir do número efetivo de partidos (NEP), que leva em consideração não apenas o número de siglas partidárias, mas também o tamanho do partido em relação ao total de cadeiras do Parlamento e às demais bancadas partidárias. E, portanto, considera também a dispersão/concentração do mercado partidário. Entre 1989 e 2010, por exemplo, o NEP ficou em torno de 9, passou para 13 em 2014 e pulou para mais de 16 partidos em 2018, tornando o Brasil a democracia presidencialista mais fragmentada do mundo.

A decisão da Suprema Corte permitindo a mudança de legenda sem a perda de mandato do parlamentar como decorrência da criação de um novo partido também tem contribuído para a criação de novas legendas e o aumento da fragmentação. Além disso, a criação dos fundos eleitoral e partidário também gerou estímulos à fragmentação, pois a possibilidade de acesso e de controle desses novos recursos públicos tem incentivado políticos a querer ter um partido para “chamar de seu”.

Diante desta pletora de partidos políticos, duas grandes reformas foram implementadas recentemente visando ao enxugamento do sistema: a cláusula de desempenho, que já teve início nas eleições de 2018, e o fim das coligações proporcionais, que terá início nas eleições municipais de 2020.

A cláusula de desempenho estabelece que o partido obtenha ao menos 1,5% dos votos válidos nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação (9 unidades), com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas, para ter acesso ao Fundo Partidário e ao tempo gratuito de TV e rádio de propaganda eleitoral. Nas eleições de 2022, a exigência de desempenho eleitoral será ainda maior, de 2%.

Nas eleições de 2018, 14 partidos não conseguiram cumprir tais exigências da nova legislação. Mesmo que esses partidos ainda recebam recursos do Fundo Eleitoral em anos de eleições, dificilmente terão condições de sobreviver, pois terão que concorrer em desigualdade de condições em função de terem perdido acesso ao fundo partidário e ao tempo de rádio e televisão.

Portanto, é esperada uma redução no número absoluto de partidos políticos com a fusão/extinção de legendas que não tenham alcançado o desempenho mínimo nas últimas eleições. Entretanto, pelo menos no curto prazo, a cláusula de desempenho tende a não ter o mesmo efeito de diminuir os partidos mais relevantes, que continuarão a ser numerosos mesmo com a ocupação relativamente menor de cadeiras no Legislativo.

Dessa forma, embora o sistema partidário possa parecer mais enxuto, o presidencialismo brasileiro continuará fragmentado, necessitando de um presidente que saiba montar e gerenciar coalizões com partidos efetivos para ter condições de governar.

*Carlos Pereira é professor titular da FGV Ebape


Carlos Pereira: Ih... a democracia brasileira não ruiu...

As chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas

Nove em cada dez cientistas ou analistas políticos, no Brasil e no exterior, esperavam o pior da chegada à presidência de um populista de direita. Com bazófia autoritária e retórica belicosa e polarizada, Jair Bolsonaro colocaria em risco a sobrevivência da democracia.

Afirmavam que a derrocada da democracia não se daria por rupturas institucionais drásticas, golpes, tanques nas ruas, censura à imprensa, e o fechamento do Congresso. A ruina viria de forma insidiosa. Como se um miasma de espectro autoritário fosse se apoderando de maneira imperceptível de uma sociedade indefesa e fosse solapando as frágeis instituições democráticas, até ser tarde demais.

Até que ponto líderes populistas, sejam eles de direita ou de esquerda, ameaçam democracias?

Em pesquisa que acaba de ser publicada no periódico Perspective on Politics, com o título “Populism’s Threat to Democracy: Comparative Lessons for the United States”, o professor da Universidade do Texas, Kurt Weyland, demonstra que os riscos que a democracia liberal corre com a eleição de populistas têm sido superestimados.

Weyland argumenta que líderes populistas conseguem sufocar democracias apenas quando duas condições cruciais estão presentes.

A primeira seria a fraqueza institucional. Em alguns países, as instituições são razoavelmente abertas a mudanças, sem pontos de veto robustos e, portanto, incapazes de resistir a interferências de executivos poderosos, podendo assim ser facilmente desmanteladas ao longo de um ciclo eleitoral. Entretanto, mesmo em ambientes institucionais mais frágeis, iniciativas iliberais só teriam sucesso diante de uma segunda condição: a presença de crise econômica aguda que tenha sido rapidamente resolvida ou, seu oposto, bonança exagerada, que tenha o potencial de proporcionar apoio político massivo para o governo.

Como nenhuma dessas condições é encontrada no Brasil, um retrocesso antidemocrático, mesmo que soturno, como temem alguns, seria muito improvável.

Em primeiro lugar, o sistema de freios e contrapesos na Constituição permanece operando em pleno vapor. O Brasil, na realidade, possui um mosaico muito sofisticado de organizações de controle com graus variados de independência das escolhas do Executivo e com força de impor limites ao presidente – Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Polícia Federal, Banco Central, agências reguladoras, dentre outras.

O STF, por exemplo, tem imprimido derrotas expressivas ao governo, envolvendo a extinção dos conselhos, a transferência da demarcação de terras indígenas da Funai, publicação de editais de licitação em jornais, compartilhamento irrestrito de dados coletados pela Receita Federal e pela UIF, manutenção do DPVAT e do Conanda etc. Além do mais, estando à frente de um governo minoritário e sem uma coalizão estável, Bolsonaro vem acumulando derrotas importantes no Congresso, tais como, reforma da previdência sem regime de capitalização, orçamento impositivo, decreto das armas, Coaf no Ministério da Economia, Funai no Ministério da Justiça, decreto sobre informações em sigilo, medidas provisórias que caducaram e perderam a validade etc.

Bolsonaro também não encontrou crises agudas, já que o pior já havia sido sanado no governo Temer. Nem teve grande e súbito ganho econômico. Consequentemente, seu apoio junto à população tem sido limitado. Também tem enfrentado forte resistência de uma sociedade civil vibrante e de uma imprensa vigilante para denunciar desvios ou excessos do governo.

Portanto, as chances de o populista brasileiro destruir a democracia são mínimas. Em vez disso, é possível que as reações da sociedade às transgressões de Bolsonaro às normas de civilidade democrática possam fortalecer ainda mais a democracia.

Mas, os descrentes na resiliência das instituições brasileiras não precisam se desesperar... Ainda há três anos de governo para que suas profecias alarmistas de erosão sorrateira da democracia possam se concretizar.

Correções
A versão anterior, que foi publicada às 3h desta segunda, 13, já estava no site do 'Estado' desde o dia 16 de dezembro de 2019.


Carlos Pereira: Candidatura avulsa.Ter ou não ter

Presença de candidatos independentes tem potencial de comprometer governabilidade

A convite do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, participei no último dia 09 de dezembro de audiência pública para debater a constitucionalidade da candidatura avulsa no sistema político brasileiro. Ficou evidente uma grande polarização de preferências entre os convidados. Os partidos políticos e colegas cientistas políticos presentes se posicionaram enfaticamente contrários à adoção de candidaturas avulsas. Acreditam que os partidos políticos seriam os verdadeiros veículos da representação em uma democracia e, portanto, deveriam ter o monopólio do acesso ao sistema político. Candidatos avulsos colocariam em risco a própria democracia, já que seriam representantes deles mesmos.

Por outro lado, os movimentos sociais se manifestaram com veemência a favor de candidaturas independentes. A despeito do expressivo número de partidos (30 deles têm pelo menos um representante na Câmara dos Deputados), os movimentos sociais ali presentes se disseram não representados por nenhum dos partidos. Argumentaram que as estruturas partidárias são excessivamente hierarquizadas, viciadas e, muitas delas, corrompidas. A presença de candidatos independentes, portanto, iria oxigenar e gerar maior competitividade ao jogo partidário.

Em estudo que investiga os efeitos de candidaturas avulsas na Índia (Independent Candidates and Political Representation in India), publicado em 2018 na revista APSR, os pesquisadores Sasha Kapoor e Arvind Magesan mostram que a presença de candidatos independentes aumenta consideravelmente o número de eleitores participando do processo eleitoral. Por outro lado, diminuem substancialmente a probabilidade de eleição de legisladores que faziam parte da coalizão de governo.

Em que pese a Índia apresentar diferenças institucionais marcantes em relação ao Brasil (parlamentarismo com voto distrital majoritário e não obrigatório), os resultados dessa pesquisa podem ser úteis para se pensar o caso brasileiro, pois sugerem que alterações no sistema eleitoral, como as candidaturas avulsas, também repercutem na governabilidade de um país ao reduzir o tamanho da coalizão que dá suporte ao governo.

Não existe sistema político ideal em nenhuma democracia do mundo, mas sistemas que combinam diferentes elementos que equilibram governabilidade e representação. Sociedades escolhem o que querem privilegiar e qual custo querem arcar. Esses dois elementos se complementam. Um não pode ser pensado sem o outro.

O legislador constituinte de 1988 optou pela inclusão dos mais variados interesses no jogo político, por meio de sistema eleitoral que combina representação proporcional com lista aberta. Esta escolha gerou a formação de muitos partidos, que entretanto são ideologicamente amorfos e fracos na arena eleitoral, o que em grande parte justifica as críticas a eles feitas pelos movimentos sociais.

Para compensar esses elementos de fragmentação, o mesmo legislador constituinte determinou que os partidos teriam o monopólio da representação e delegou muitos poderes (medida provisória, urgência, orçamentário, de agenda etc.) ao Executivo para que tivesse condições de governar. Partidos passaram a ter interesse em apoiar de forma disciplinada esse Executivo para ter acesso a recursos políticos e financeiros controlados pelo presidente.

A presença de candidatos independentes, portanto, tem o potencial de comprometer a governabilidade na medida em que tende a aumentar as dificuldades de coordenação e os custos de transação do presidente nas suas relações com legisladores. Não é racional parlamentares agirem individualmente no Congresso, como também não é racional o Executivo negociar individualmente com cada parlamentar.

A candidatura avulsa é uma inovação institucional que atende às demandas de maior representação. Porém, deve-se pensar em um mecanismo que equilibre a balança em prol da governabilidade do presidencialismo multipartidário.


Carlos Pereira: O Brasil mudou, só cego não vê

A condenação de corruptos transformou radicalmente a trajetória da política brasileira

Fim de ano nos chama à reflexão. Uma espécie de retrospectiva do que de mais relevante ocorreu nas nossas vidas. Fatos que alteram o curso da nossa história. Que chegam quase a mudar o nosso DNA e, portanto, nos fazem trilhar uma nova trajetória. Para o bem ou para o mal, eventos dessa magnitude não acontecem todos os dias. Vivemos na maior parte do tempo numa condição de piloto automático, em que, mesmo insatisfeitos, continuamos nas nossas rotinas sem realizar grandes transformações. Quando mudanças acontecem, elas são apenas pontuais, como se fossem pequenos ajustes de percurso.

Há ocasiões, entretanto, em que somos acometidos por grandes choques (endógenos ou exógenos) que, se aproveitados, têm potencial de nos catapultar para uma nova direção... para um novo equilíbrio.

Assim como fumantes inveterados podem parar de fumar quando descobrem que o seu melhor amigo está prestes a morrer de câncer de pulmão ou obesos podem passar a reeducar sua alimentação e a praticar exercícios físicos de forma regular após descobrirem que uma de suas artérias coronárias está obstruída, sociedades que se aprisionaram em equilíbrios insatisfatórios durante décadas, caracterizados pelo vale-tudo da corrupção sistêmica, podem, a partir de um evento inusitado ou crise generalizada, mudar o rumo da sua história.

Como reflexão de maior fôlego, o editor de Política do Estado sugeriu que minha última coluna do ano fosse dedicada à análise do evento político mais relevante para o Brasil, não apenas de 2019, mas da última década. Vários fatos políticos foram relevantes nesse período. Mas dois, para mim extremamente concatenados, alteraram definitivamente a trajetória do País. Refiro-me especificamente ao julgamento do mensalão e à Operação Lava Jato.

Esses eventos acarretaram mudanças sem precedentes em várias dimensões da vida política, econômica e ética do País. O julgamento do mensalão quebrou o paradigma predatório de que ricos e poderosos sempre encontrariam maneiras de se livrar de condenações judiciais pelos seus crimes. Os números das 113 operações da Lava Jato falam por si sós: 186 ações penais; 204 condenados; 96 acordos de colaboração; 19 acordos de leniência; mais de R$ 14 bilhões previstos de recuperação. Na conta da Lava Jato também é possível incluir o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff por crimes fiscais e orçamentários, o surgimento de uma direita eleitoralmente competitiva à Presidência da República, fato comum em democracias desenvolvidas, bem como investigação do filho do atual presidente.

Esses eventos certamente não livrarão o País de comportamentos desviantes de agentes políticos, atores econômicos e burocratas. Mas, seguramente, os riscos e os custos de tais comportamentos aumentaram exponencialmente.

Mesmo diante de mudanças institucionais de ampla magnitude que o Brasil tem vivido nesta última década, não é possível assegurar que o País estará imune a retrocessos. Uma vez no trilho, trens podem descarrilar. A recente decisão da Suprema Corte de que a execução da pena de um condenado pela Justiça só pode ter início após o trânsito em julgado, e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau, pode ser interpretada como uma reversão no combate à corrupção. Mas a observação de eventos isolados às vezes gera falsas interpretações do que de fato está acontecendo. Da mesma forma que implementar reformas tem custos, reversões institucionais também têm custos.

Democracias maduras e consolidadas também apresentam inconsistências ao longo da sua história. Após o atentado de 11 de setembro de 2001, por exemplo, os EUA, a partir da sua agência de inteligência (CIA), passaram a adotar técnicas de tortura como meio de obter informações de pessoas supostamente ameaçadoras sob a justificativa de evitar a todo custo novos ataques terroristas. O reconhecimento público e o repúdio de tal prática abominável pelo governo subsequente recolocaram a democracia americana no seu curso.

Desenvolvimento, portanto, não é linear nem constante em nenhum lugar do mundo. O importante é cuidar para que potenciais desvios não se transformem em mudanças de direção.