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Carlos Pereira: Candidatura avulsa: ter ou não ter?

Potencial ganho de representatividade pode gerar perdas expressivas de governabilidade

A convite do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso participei no último dia 09/12 de audiência pública para debater a constitucionalidade da candidatura avulsa no sistema político brasileiro.

Ficou evidente uma grande polarização de preferências entre os convidados. Os partidos políticos e colegas cientistas políticos presentes se posicionaram enfaticamente contrários a adoção de candidaturas avulsas. Acreditam que os partidos políticos seriam os verdadeiros veículos da representação em uma democracia e, portanto, deveriam ter o monopólio do acesso ao sistema político. Candidatos avulsos colocariam em risco a própria democracia, já que seriam representantes deles mesmos.

Por outro lado, os movimentos sociais se manifestaram com veemência a favor de candidaturas independentes. A despeito do expressivo número de partidos (30 deles têm pelo menos um representante na Câmara dos Deputados), os movimentos sociais ali presentes se disseram não representados por nenhum dos partidos. Argumentaram que as estruturas partidárias são excessivamente hierarquizadas, viciadas e, muitas delas, corrompidas. A presença de candidatos independentes, portanto, iria oxigenar e gerar maior competitividade ao jogo partidário.

Em estudo que investiga os efeitos de candidaturas avulsas na Índia (Independent Candidates and Political Representation in India), publicado em 2018 na revista APSR, os pesquisadores Sasha Kapoor e Arvind Magesan mostram que a presença de candidatos independentes aumenta consideravelmente o número de eleitores participando do processo eleitoral. Por outro lado, diminuem substancialmente a probabilidade de eleição de legisladores que faziam parte da coalizão de governo.

Em que pese a Índia apresentar diferenças institucionais marcantes em relação ao Brasil (parlamentarismo com voto distrital majoritário e não obrigatório), os resultados dessa pesquisa podem ser úteis para se pensar o caso brasileiro, pois sugerem que alterações no sistema eleitoral, como as candidaturas avulsas, também repercutem na governabilidade de um país ao reduzir o tamanho da coalizão que dá suporte ao governo.

Não existe sistema político ideal em nenhuma democracia do mundo, mas sistemas que combinam diferentes elementos que equilibram governabilidade e representação. Sociedades escolhem o que querem privilegiar e qual custo querem arcar. Esses dois elementos se complementam. Um não pode ser pensado sem o outro.

O legislador constituinte de 1988 optou pela inclusão dos mais variados interesses no jogo político, por meio de sistema eleitoral que combina representação proporcional com lista aberta. Esta escolha gerou a formação de muitos partidos, que entretanto são ideologicamente amorfos e fracos na arena eleitoral, o que em grande parte justifica as críticas a eles feitas pelos movimentos sociais.

Para compensar esses elementos de fragmentação, o mesmo legislador constituinte determinou que os partidos teriam o monopólio da representação e delegou muitos poderes (medida provisória, urgência, orçamentário, de agenda etc.) ao Executivo para que tivesse condições de governar. Partidos passaram a ter interesse em apoiar de forma disciplinada esse Executivo para ter acesso a recursos políticos e financeiros controlados pelo presidente.

A presença de candidatos independentes, portanto, tem o potencial de comprometer a governabilidade na medida em que tende a aumentar as dificuldades de coordenação e os custos de transação do presidente nas suas relações com legisladores. Não é racional parlamentares agirem individualmente no Congresso, como também não é racional o Executivo negociar individualmente com cada parlamentar.

A candidatura avulsa é uma inovação institucional que atende as demandas de maior representação. Porém, deve-se pensar em um mecanismo que equilibre a balança em prol da governabilidade do presidencialismo multipartidário.


Carlos Pereira: A janela de Toffoli

Avizinha-se assim uma janela de oportunidade para que Dias Toffoli possa vir a fazer História

Janelas de oportunidade que mudam o curso da História não se abrem todos os dias. O mais intrigante é que, mesmo sendo raras, a grande maioria dessas oportunidades tende a ser desperdiçada e sociedades parecem ficar aprisionadas a equilíbrios insatisfatórios.

Um elemento crucial e necessário para que janelas de oportunidade sejam efetivamente aproveitadas é a presença de uma liderança. Não me refiro necessariamente a lideranças políticas carismáticas, mas a líderes capazes de compreender a realidade do que se passa no País, galvanizar energias, superar problemas de coordenação e, acima de tudo, ter autoridade moral na proposição de soluções que visem a resolução de impasses políticos e institucionais.

Não muito tempo atrás, a grande maioria dos brasileiros acreditava que as elites políticas, burocráticas e empresariais sempre encontrariam maneiras de escapar de malfeitos. Entretanto, desde o julgamento do mensalão, vimos organizações de controle se fortalecerem e saírem do controle dos seus criadores (políticos), especialmente a partir de 2016 com o entendimento da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) de acatar a execução provisória da pena após a condenação em segunda instância e não somente após o trânsito em julgado. Ocorreu um alinhamento entre o comportamento dessas organizações de controle e a preferência da maioria da população de intolerância à corrupção e de combate à impunidade.

Diante da evidente polarização atual de preferências no plenário do Supremo em relação à interpretação constitucional da execução da pena, existe um risco real de reversão de expectativas. O que está em jogo é o dilema entre eficiência no combate à impunidade e à corrupção versus garantias a direitos individuais de condenados.

É possível analisar a interação estratégica entre os 11 membros da Suprema Corte diante dos seus comportamentos pregressos e/ou preferências já reveladas. Cada “jogador” possui pontos ideais em relação ao início da execução da pena do condenado: segunda instância representa o status quo, transitado em julgado e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Assume-se que os ministros agem de forma racional e, portanto, maximizam ganhos quando a decisão da política em questão se aproxima do seu ponto de preferência e diminuem ganhos quando se distancia.

Embora ainda falte colher o voto de quatro ministros, é possível inferir a formação de dois blocos polares, com cinco ministros (Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Carmem Lúcia) votando pela manutenção do status quo, segunda instância, e cinco ministros (Marco Aurélio, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Melo ) votando pela mudança da política de início do cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado.

O presidente do STF, Dias Toffoli, que terá a oportunidade de votar por último, já revelou informalmente uma posição intermediária, quando o condenado iniciaria o cumprimento da sua pena após condenação em terceiro grau (STJ). Esta posição mediana (pivô) não é a ideal para nenhum dos dois grupos polares, mas substancialmente melhor do que se alguma dessas posições polarizadas for perdedora. Diante do risco de derrota, é racional esperar a migração de votos de membros de um ou dos dois polos para a posição mediana. O plenário do STF também pode ter o entendimento de que algumas das posições já estariam contidas no voto mediano do Toffoli, configurando assim uma maioria.

Um novo equilíbrio, portanto, pode emergir dessa interação estratégica com a vitória da posição pivô. Avizinha-se assim uma janela de oportunidade para que Dias Toffoli possa vir a fazer História. Será que ele vai aproveitar?


Carlos Pereira: Por que tamanho desconforto?

O mal-estar decorre da polarização de preferências e não do desenho institucional

Em visita recente à Inglaterra tive a oportunidade de interagir com vários cientistas políticos e economistas britânicos. Chamou a atenção o mal-estar generalizado proporcionado pela grande incerteza sobre os rumos que o Reino Unido poderá tomar em relação a União Europeia. Tanto os favoráveis como os contrários ao Brexit não conseguem sequer saber se o Brexit vai de fato ser implementado; se com ou sem acordos comercial, aduaneiro e fronteiriço; quais os termos desses acordos; e quais as consequências econômicas e políticas desta decisão.

O grau de incerteza é tamanho que alguns têm argumentado que a democracia britânica estaria ameaçada, especialmente após a decisão do primeiro-ministro, Boris Johnson, de suspender as atividades do Parlamento até meados de outubro, próximo da data limite (31/10) da decisão sobre o Brexit.

Este cenário é surpreendente porque o sistema político britânico, conhecido como Westminster, foi historicamente desenvolvido para ser gerador de estabilidade, previsibilidade e governabilidade. Esse sistema unificado de poderes é considerado “majoritário puro” por possuir um número muito reduzido de vetos institucionais e partidários. Além disso, o Reino Unido não tem uma constituição escrita, é um país unitário, é de facto unicameral e todo o poder deriva do Parlamento. Uma vez que uma maioria seja forjada, o governo teria amplas condições de governar de forma decisiva e diligente.

A despeito de todas essas características institucionais favoráveis à estabilidade política, o povo britânico viu nos últimos três anos a instabilidade tomar conta do seu país, com três mudanças de primeiro-ministro: David Cameron, Theresa May e, atualmente, Boris Johnson. Essas sucessivas mudanças de governo aconteceram desde que o Brexit foi vencedor no referendum em junho de 2016.

Diferentemente do parlamentarismo do Reino Unido, o sistema de separação de poderes baseado na representação proporcional do Brasil não privilegia a eficiência governativa, mas a inclusão do maior número possível de interesses da sociedade no jogo político. Daí o sistema partidário ser altamente fragmentado. Além disso, o País possui uma grande quantidade de instituições (federalismo, bicameralismo, Judiciário com poder de controle de constitucionalidade, etc.) com a capacidade de vetar iniciativas de mudança. Por isso que é tão difícil aprovar e implementar reformas no Brasil.

A fórmula encontrada pelo constituinte de 1988 para lidar com os potencias problemas de governabilidade gerados por esses elementos de consenso foi delegar poderes constitucionais, orçamentários e de agenda para que o Executivo se transformasse no coordenador do jogo político. Um presidente poderoso poderia atrair apoios e construir coalizões pós-eleitorais majoritárias e estáveis e, assim, ter condições implementar sua plataforma de reformas.

Para além do sistema político, a unificação ou a divisão de preferências em uma sociedade é uma outra dimensão fundamental para se entender o funcionamento de um determinado país. Por exemplo, se os poderes são separados, mas as preferências entre os atores políticos muito semelhantes, levaria a uma redução drástica do número de pontos de veto, dado que as várias instituições estariam trabalhando com o mesmo objetivo. O consenso em torno da reforma da Previdência recentemente aprovada na Câmara é um bom exemplo. O inverso também seria verdadeiro; ou seja, a combinação de poderes unificados com polarização de preferências tem o potencial de gerar impasses, instabilidades e, até mesmo, paralisia decisória, como tem sido o caso do Brexit no Reino Unido.

Portanto, o mal-estar político sentido no Reino Unido e no Brasil não seria decorrente de problemas de desenho institucional, mas sim, fundamentalmente, da forte polarização de preferências políticas nos dois países. Diante dessa polarização crescente, os eleitores medianos tornam-se reféns das opções extremas e tendem a equivocadamente identificar como razão de seu desconforto o funcionamento das instituições ao invés da distribuição de preferências.


Carlos Pereira: Presidente sem asas

Bolsonaro arrisca perder protagonismo; Legislativo está disposto a assumir esse papel?

Seria crível atribuir ao Congresso mérito ou responsabilidade pelo sucesso ou fracasso de políticas de perfil universal, como a reforma da Previdência? Se a inflação ou o desemprego subirem, seria possível que eleitores eximam o presidente dessa responsabilidade e a transfiram para os legisladores?

Em regimes políticos presidencialistas, presidentes são eleitos por uma base eleitoral ampla, distribuída em todo o território nacional. Por outro lado, legisladores são eleitos por uma base eleitoral bastante reduzida, concentrada em poucos municípios em um determinado Estado.

Bases eleitorais diferentes geram preferências distintas de políticas e estratégias diferenciadas de sobrevivência eleitoral. É esperado que presidentes sejam motivados pela implementação de políticas universais. Legisladores, por outro lado, seriam fundamentalmente orientados pela implementação de políticas locais, capazes de alimentar as suas redes de interesse.

Em função da potencial diferença de preferências e estratégias de sobrevivência política entre o Executivo e o Legislativo, existiria um grande potencial de conflito.

Ao delegar uma ampla gama de poderes constitucionais, orçamentários e de agenda para o presidente na Constituição de 1988, os legisladores criaram as bases institucionais para que esses potenciais conflitos fossem dirimidos. Por meio desses poderes, presidentes seriam capazes de sustentar coalizões estáveis em troca de recursos políticos (ministérios, cargos na burocracia pública etc.) e financeiros (execução de emendas individuais e coletivas, por exemplo) para aliados no Legislativo.

Todo processo de delegação se caracteriza por uma transferência de poder para que um “agente” (no caso, o Executivo) utilize esses poderes delegados de forma consistente com as preferências medianas dos “principais” (no caso, os legisladores).

Quando isso acontece, presidente e legisladores e a própria sociedade se beneficiam, pois é esperado maior cooperação a um custo relativamente baixo. Verifica-se uma taxa maior de aprovação de reformas de autoria do Executivo, aumentando assim as chances de reeleição do presidente e dos legisladores de sua coalizão. Uma espécie de democracia retrospectiva virtuosa.

Entretanto, quando o presidente negligencia as preferências dos legisladores, é esperada maior desconfiança. No limite, os custos de governabilidade aumentam e a taxa de sucesso do presidente diminui. Além do mais, iniciativas do Legislativo que visam controlar e diminuir os poderes do presidente tendem a aumentar.

Como o presidente Bolsonaro tem se recusado a governar por meio de uma coalizão majoritária e estável, bem como interpretado o Congresso como uma arena de adversários, expondo continuamente legisladores como representantes de uma suposta velha política, não seria surpresa que parlamentares considerassem o presidente com desconfiança, e não mais agente de suas preferências.

Movimentos recentes do Legislativo no sentido de diminuir a discricionariedade do Executivo (i.e., tornar impositivas as emendas individuais e coletivas ao Orçamento) e a imposição de algumas derrotas ao presidente no Congresso são exemplos de medidas do Legislativo de cortar as asas de um presidente não representativo dos legisladores.

Mas, como as regras do jogo de sobrevivência política e eleitoral tanto do Executivo como do Legislativo não mudaram, não parece ser plausível que um maior protagonismo do Legislativo seja suficiente para que o Congresso seja responsabilizado por fracassos na implementação de políticas universais. O Executivo continuará a ser o centro nevrálgico no presidencialismo multipartidário, mesmo quando enfraquecido.


Carlos Pereira: A democracia brasileira corre riscos com Bolsonaro?

O Brasil tem sido capaz de eleger governos de forma livre, competitiva e sem fraudes. Partidos perdem eleições e se alternam no poder. As eleições ocorrem com alto grau de incerteza sobre quem será o vencedor. Perdedores se subordinam ao resultado final, e o jogo se repete de forma estável.

As democracias eleitorais possuem salvaguardas institucionais robustas capazes de proteger direitos individuais dos cidadãos? Seriam aptas a restringir potenciais comportamentos oportunistas de governantes que, uma vez eleitos, subvertam as regras do jogo e coloquem em risco a própria democracia?

Não tem sido incomum presidentes fazerem uso exagerado de poderes unilaterais. Usam mecanismos plebiscitários para subverter regras constitucionais e se perpetuar no poder. Exemplos recentes como os de Turquia, Polônia, Filipinas, Hungria, Venezuela, Peru, El Salvador têm levado estudiosos a identificar uma onda de recessão da democracia.

Alguns alertam que, nos dias atuais, democracias não morreriam via golpes, mas via deterioração gradativa das instituições. O novo mecanismo de quebra seria lento, através da eleição de políticos que distorcem de forma insidiosa o sistema representativo.

A eleição de um candidato “pré-moderno”, como Jair Bolsonaro, à Presidência tem gerado preocupações. Afinal de contas, não são poucas as declarações do novo presidente que revelam pouco apreço aos valores democráticos, exaltação a torturadores, apologia do uso de armas e contestações de direitos das minorias.

Tais preocupações fazem sentido? A democracia brasileira está consolidada e imune a comportamentos que a coloquem em risco? Para responder a essas perguntas, impõe-se não apenas saber se seus jogadores se comprometem com princípios democráticos, mas identificar se, de fato, existe uma crença dominante em favor da democracia e antídotos institucionais contra comportamentos iliberais.

O Brasil vem passando por transformações estruturais notáveis a partir da Constituição de 1988. O presidencialismo e o sistema eleitoral proporcional com lista aberta para o Legislativo foi preservado. Diante dos potenciais riscos de governabilidade, o constituinte delegou um conjunto de poderes constitucionais e orçamentários para que o chefe do Executivo tivesse condições de governar em ambiente multipartidário através de coalizões pós-eleitorais.

Ao antecipar que um presidente muito poderoso dificilmente seria controlado de forma efetiva pelo Legislativo, o constituinte também delegou uma série de poderes a instituições “externas” à política capazes de fiscalizar o chefe do Executivo. Um arcabouço vigoroso e multifacetado de instituições de freios e contrapesos foi criado e/ou fortalecido ao longo desses 30 anos. Tem-se um Judiciário e um Ministério Público independentes e profissionalizados. Tribunais de Contas ativos. Polícia Federal atuante contra a corrupção. Imprensa livre. Em outras palavras, a combinação de cachorro grande com coleira forte gera equilíbrio.

Embora o ativismo das instituições de controle não venha se dando de maneira linear, seus múltiplos pontos de veto têm servido como escudo protetor contra os comportamentos desviantes. Não muito tempo atrás, a grande maioria dos brasileiros acreditava que as elites políticas, burocráticas e empresariais sempre encontrariam maneiras de escapar de seus malfeitos. Entretanto, desde o julgamento do mensalão, vimos instituições de controle saírem do controle dos políticos.

Nada disso é excluir que um presidente eleito possa ter intenções iliberais — a questão é que, no Brasil de hoje, querer isso não é sinônimo de poder fazer isso. Presumir que a eleição de candidatos conservadores e/ou pouco comprometidos com os valores democráticos traz riscos à democracia é o mesmo que ignorar os constrangimentos gerados por uma crença democrática dominante na sociedade e as restrições que as instituições de controle exercem no comportamento dos próprios atores políticos. No mínimo, é não perceber que o Brasil não é mais o mesmo.