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Carlos Pereira: Redescobrimento?

A democracia americana não foi redescoberta, mas reafirmada

No dia 20 de janeiro, data da posse do novo presidente americano, estava na Barra do Cahy, praia paradisíaca localizada no extremo sul da Bahia, que reúne falésias deslumbrantes, vasta mata atlântica e águas claras que se encontram com as curvas sinuosas do rio que dá nome à praia. De acordo com a descrição de Pero Vaz de Caminha em carta enviada em 1500 ao Rei de Portugal, Dom Manoel I, foi nesta praia que supostamente o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral e sua tripulação. Mas apenas em janeiro de 2017 a Barra do Cahy recebeu o título de “primeira praia do Brasil” pela prefeitura do município de Prado.

Parece que neste dia 20 de janeiro o mundo redescobriu a democracia, supostamente ofuscada por quatro anos do governo de Donald Trump. Esse sentimento ficou evidente especialmente a partir dos eventos do último dia 06 de janeiro, quando o Capitólio, símbolo máximo da democracia americana, foi invadido por apoiadores radicais e insurrecionados do ex-presidente.

A posse de Joe Biden como presidente dos EUA, portanto, teve o significado de reafirmação dos valores e princípios da democracia. Nas palavras de Biden “a democracia prevaleceu”. 

Mas será que a democracia americana estava em risco? Quando as instituições estão, de fato, fragilizadas ao ponto de sofrerem mudanças que ameacem o equilíbrio democrático?

No livro, “Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change”, eu e meus coautores argumentamos que mudanças institucionais de grande monta, como a quebra de regimes democráticos, não ocorrem de forma incremental, mas em momentos muito específicos na história de uma sociedade.

A eleição de governantes populistas estremados e não comprometidos com princípios e valores democráticos não é razão suficiente para que democracias estáveis quebrem ou mesmo que fiquem sob risco. Afinal de contas, eleições, mesmo quando livres e competitivas, quase nunca selecionam os melhores governantes ou aqueles consistentes com nossas preferências. E mesmo quando o fazem, não demora muito para que estes frustrem os eleitores.

Para haver quebra de regime, é necessário que as instituições em vigor não mais consigam oferecer resultados congruentes com as expectativas da sociedade. Mais especificamente, quando as instituições democráticas estejam desconectadas do conjunto de crenças dominantes dos atores políticos e agentes econômicos relevantes e influentes no processo decisório. Ou seja, mudanças institucionais requerem mudanças de crenças. Quando essa desconexão acontece, abrem-se janelas de oportunidade a mudanças, as quais podem ou não ser aproveitadas. 

Não existe qualquer evidência de que as crenças dos atores políticos e agentes econômicos relevantes dos EUA estariam inconsistentes com as instituições democráticas americanas. Ou seja, que as instituições não estariam funcionando como esperado. Ainda que as crenças de parcela do partido Republicano tenham se tornado maleáveis, se a maioria dos atores sociais e econômicos relevantes acreditam que seu país está realizando eleições livres e justas e que o vencedor é legítimo, é muito improvável que as instituições democráticas quebrem, pois, nesse caso, crenças e instituições se reforçam mutuamente.  

O mundo tem agido como se a democracia tivesse sido redescoberta com a posse de Biden. Mas a democracia estava lá, com suas instituições, ritos e procedimentos, dando os contornos aos conflitos e disputas pelo poder. O que vai ficar para a história é que o ex-presidente Trump saiu derrotado, não apenas nas urnas. Quer tenha sido apenas uma “estratégia de saída” ou uma tentativa de autogolpe, as instituições democráticas, como esperado, foram capazes de ofertar solução pacífica ao conflito, desencorajando outras ações iliberais nos EUA e em outras democracias.

*Cientista Político e professor titular da FGV Ebape


Carlos Pereira: Não consegue ou não sabe governar?

Problemas de governabilidade têm origem nas escolhas equivocadas de presidentes

O presidente Jair Bolsonaro parece ter “jogado a toalha” ao se referir às dificuldades econômicas que o Brasil tem enfrentado e afirmar, de forma peremptória: “o Brasil está quebrado... Eu não consigo fazer nada”.

Discursos de vitimização, de impotência governativa ou de transferência de responsabilidade para outros Poderes sob o argumento de que o governo estaria impedido de governar não são novidade em regimes democráticos e muito menos em sistemas presidencialistas multipartidários, como o brasileiro.

Um exemplo extremo é o do ex-presidente Getúlio Vargas que, em carta-testamento, invocou “as forças e os interesses contra o povo” para justificar seu suicídio em meio a uma grave crise política de seu governo minoritário, agravada após o atentado perpetrado contra o principal líder da oposição, o jornalista Carlos Lacerda.

De forma similar, em sua carta de renúncia à Presidência, o ex-presidente Jânio Quadros argumentou que estaria sendo impedido de governar por “forças ocultas”. Ele desprezou as regras do jogo político, não negociou com os partidos e tentou governar apesar do Legislativo. O descaso de Jânio com o Congresso Nacional era patente.

O ex-presidente José Sarney também reclamou veementemente da suposta dificuldade de se governar o Brasil ao afirmar que “a Constituição de 1988 tornou o País ingovernável”. Chegou a aconselhar o então presidente eleito Fernando Collor que “não se governa sem apoio político”. “Nós tentamos tudo, experimentamos de tudo. O que faltou foi apoio político. O problema do País não é econômico, é político”, vaticinou Sarney.

Parece que o ex-presidente Collor não deu ouvidos aos conselhos de seu antecessor. Recentemente reconheceu que o principal equívoco de seu governo “foi não ter construído uma base parlamentar de apoio que concedesse a solidariedade do Congresso ao presidente da República em um momento de necessidade”. Para Collor, “governo sem base sólida não dura”, pois considera que “o presidencialismo de coalizão traz no seu bojo a incerteza e o vírus da ingovernabilidade”.

O que há de comum em todos esses reclamos de presidentes em relação ao sistema político brasileiro?

Todos esses presidentes escolheram governar na condição de minoria ou tiveram grande dificuldade de construir e de gerenciar de forma sustentável coalizões majoritárias.

Não entenderam que no presidencialismo multipartidário o presidente é o agente central, uma espécie de CEO do jogo político. Suas escolhas acarretam consequências, a despeito das instituições. Não existe “piloto automático” para se alcançar a governabilidade. As decisões e estilo de gerência do presidente são essenciais. Sem esse CEO coordenando os partidos de sua coalizão, as maiorias legislativas, quando formadas, tornam-se instáveis e imprevisíveis, fazendo com que os custos de governabilidade aumentem ou mesmo se tornem proibitivos.

No sistema multipartidário, presidentes necessitam tomar pelo menos quatro decisões na montagem e sustentação de coalizões: 1) número de partidos que farão parte da coalizão; 2) perfil ideológico dos aliados; 3) poder e recursos compartilhados entre os parceiros; e 4) proximidade entre a preferência da coalizão e a mediana do Congresso.

A escolha do presidente por montar coalizões com muitos partidos, ideologicamente heterogêneas, que não contemplam a distribuição proporcional de poder e recursos e que são distantes da preferência do Congresso tendem a gerar menor sucesso legislativo e a ser mais caras ao longo do tempo.

Portanto, quando Bolsonaro choraminga argumentado que “não consegue fazer nada” revela, na realidade, que não sabe governar.


Carlos Pereira: Bolsonaro 2021: um político tradicional

Pandemia levará presidente a formar coalizão com o Centrão e a intensificar agenda conservadora de costumes

O acontecimento de maior relevância política do ano de 2020 não foi propriamente um evento político, mas sanitário: a covid-19. A pandemia causada pelo novo coronavírus foi um choque exógeno tão devastador que, ao gerar medos e incertezas sem precedentes, produziu efeitos políticos de grande magnitude.

As três rodadas da pesquisa de opinião que desenvolvi ao longo do ano, em parceria com Amanda Medeiros e Frederico Bertholini e com o apoio da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Estadão, mostrou que a pandemia alterou, de forma inequívoca, os eixos da polarização política no Brasil.

Por um lado, a ideologia política perdeu capacidade de explicar o comportamento das pessoas e suas próprias crenças. Ser de esquerda ou de direita deixou de ter importância diante do “medo da morte”. Por outro lado, os vínculos afetivos de pertencimento a um grupo (ou de aversão ao grupo rival) baseados em identidades valorativas de seus membros ganharam preponderância explicativa e passaram a nortear a principal clivagem política: aprovar ou rejeitar o governo do presidente Jair Bolsonaro.

Esta nova polarização se consolidou a partir de quatro reações de Bolsonaro em relação à pandemia: 1) minimização da gravidade e dos riscos de contágio da doença; 2) oposição às medidas de isolamento social; 3) valorização dos impactos negativos que as medidas de isolamento social trariam para a economia; e 4) oposição à obrigatoriedade da vacina.

Ficou evidente que um contingente não trivial de eleitores, incluindo muitos que votaram em Bolsonaro em 2018, passou a rejeitar o presidente da República. Esta rejeição foi diretamente proporcional à proximidade a pessoas que se contaminaram e desenvolveram a covid-19 com graus variados de gravidade. Quanto maior o “medo da morte”, maior a rejeição ao presidente, independentemente da ideologia ou da renda. Por outro lado, o grupo de eleitores que se conecta com Bolsonaro por meio de identidades conservadoras passou a aprovar ainda mais o presidente.

A Figura abaixo exemplifica claramente essa nova clivagem política. Embora a concordância com o isolamento social tenha perdido força ao longo das três rodadas da pesquisa, fica claro que quanto maior a rejeição a Bolsonaro, maior o apoio ao isolamento social e vice-versa.

Além de perder capital político com a gerência da pandemia, Bolsonaro assumiu uma atitude conflituosa com os outros Poderes, levando seu governo a sofrer várias derrotas no Legislativo e no Judiciário. As organizações de controle também aumentaram o cerco às atividades suspeitas de seus filhos, acusados de envolvimento com “rachadinhas”, com lavagem de dinheiro e com o crime organizado.

Para evitar que o fantasma do impeachment voltasse mais uma vez a rondar o Palácio do Planalto, o presidente, que se elegeu negando a política e os partidos, fez uma das maiores inflexões da história da República. Converteu-se às instituições do sistema político brasileiro ao se aproximar dos partidos do Centrão em busca de sobrevivência política. Moderou seu discurso belicoso e confrontacional e tem se engajado diretamente na eleição dos presidentes das duas casas legislativas.

Se Bolsonaro almeja governabilidade e competitividade eleitoral em 2022, é esperado que se comporte daqui para frente seguindo duas estratégias aparentemente contraditórias. Por um lado, o governo precisa garantir, com recompensas, que o Centrão continue a apoiá-lo. Daí ser esperada uma reforma ministerial ampla que acomode esses interesses. Na medida em que essa estratégia tende a enfraquecer o suporte político do seu “núcleo duro” de eleitores, precisará se engajar na defesa de uma agenda de costumes conservadora. Mesmo com o risco de vir a ser derrotada no Legislativo e no Judiciário, essa agenda de costumes cumpre o papel de alimentar e manter o engajamento das conexões identitárias com os que aprovam o seu governo.

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)


Carlos Pereira: Subserviência do Legislativo?

Alinhamento entre os chefes do Executivo e do Legislativo não se traduz em autocracia

Tem existido uma crescente preocupação com a possibilidade de vitória de Arthur Lira (PP), candidato apoiado pelo Presidente Jair Bolsonaro, na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Esse desassossego não é totalmente destituído de razão, pois o alinhamento político entre chefes do Executivo e do Legislativo sempre traz o risco de subserviência do poder Legislativo ao já extremamente poderoso Executivo no Brasil. 

Alguns, inclusive, enxergam que esta suposta subordinação do Legislativo ao Executivo traria perigos reais para a própria democracia brasileira. Essa preocupação ficou explícita no discurso de lançamento do deputado Baleia Rossi (MDB) como candidato de oposição ao governo Bolsonaro à presidência da Câmara. A narrativa construída buscou inspiração no “pai” da democracia brasileira e da “Constituição cidadã”, Ulysses Guimarães, repetindo o mote: “temos ódio e nojo da ditadura”. 

O cientista político Scott Morgenstern, Professor da Universidade de Pittsburgh, propõe uma tipologia para entender quando legislativos seriam proativos, situação na qual seria a força preponderante no processo de formulação e de aprovação das leis, ou reativos, quando o Legislativo raramente inicia uma legislação, atuando fundamentalmente em negociações ao reagir a iniciativas legislativas preponderantemente do Executivo.

Para Morgenstern, os legislativos na América Latina são de três perfis; 1) subserviente: não oferece qualquer veto ou resistência ao Executivo, inclusive aos seus potenciais desvios; 2) cooperativo: frequentemente concordando com projetos presidenciais, mas geralmente exigindo compromissos ou recompensas em troca do consentimento; e 3) recalcitrante: bloqueia a maioria das iniciativas do Executivo se posicionando como adversário do presidente. 

O alinhamento político entre os chefes do Executivo e do Legislativo não é condição suficiente para definir o perfil de atuação do Legislativo. Outros aspectos como sua profissionalização, padrão de carreira dos parlamentares e a proximidade de interesses entre o Executivo e o legislativo exercem papel decisivo no perfil e no padrão de atuação do Congresso vis-à-vis o Executivo. 

Legislativos que apresentam pouca profissionalização e baixo índice de reeleição tendem a ser subservientes. Por outro lado, quanto maior a motivação dos legisladores em permanecer no Legislativo e maiores os incentivos à sua profissionalização, mais proativo e influente será o Legislativo. Quando o governo não desfruta de maioria no Congresso, legislativos podem apresentar um padrão cooperativo com o Executivo ou mesmo migrar para o perfil recalcitrante com os interesses do Executivo em caso de polarização entre governo e oposição. 

O alinhamento político entre os poderes legislativo e executivo tem sido a regra e não a exceção no Brasil. Todos os presidentes da República que minimamente entenderam o funcionamento do presidencialismo multipartidário, fossem eles de esquerda, de centro ou de direita, atuaram ativamente para que a presidência das casas legislativas fosse ocupada por parlamentares do seu partido, ou, pelo menos, de partidos da coalizão. Portanto, não tem necessariamente nada de antidemocrático em o presidente buscar a congruência de interesses entre o Executivo e o Legislativo. 

É precipitado concluir que o Legislativo seria uma “vítima indefesa” dos poderes do presidente, pois, na medida em que esses poderes foram delegados pelos próprios legisladores, podem ser por eles também retirados. Um bom exemplo foi a restrição imposta pelos legisladores em 2001 à reedição indefinida de Medidas Provisórias, que aconteceu quando, pasmem, o presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves (PSDB), era do mesmo partido do Presidente FHC. Ou seja, a despeito de um alinhamento político com o Executivo, o Congresso não se furtou em restringir os poderes do presidente. 

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)


Carlos Pereira: Bolsonaro se curvou e a democracia não quebrou

O engajamento do governo na eleição dos presidentes da Câmara e do Senado é sinal de aprendizado

Jair Bolsonaro, eleito presidente com uma plataforma antipolítica e antiestablishment, resolveu se engajar diretamente no processo político de escolha dos novos presidentes da Câmara e do Senado. O que explica essa mudança aparentemente contraditória no comportamento do presidente? 

Muito está em jogo com a eleição dos novos presidentes das duas Casas Legislativas. Tanto o presidente da Câmara dos Deputados como o do Senado são verdadeiros gatekeepers. Ou seja, têm o poder de vetar ex ante iniciativas que julguem indesejáveis ou de promover ações estratégicas que mudem o status quo de acordo com seus interesses. 

Esses poderes procedimentais e de agenda não são triviais. As regras internas da Câmara garantem a seu presidente um papel central na condução do processo legislativo e na definição e funcionamento do sistema de comissões permanentes e especiais. Em legislativos muito centralizados e fortemente hierarquizados, como o brasileiro, o papel do gatekeeper se torna ainda mais relevante, pois pode, inclusive, decidir unilateralmente a sorte do próprio governo de plantão ao, por exemplo, dar prosseguimento a pedidos de impeachment de presidentes. 

O desenho institucional hierarquizado do Congresso brasileiro se parece muito com o do Congresso americano do início do século 20. O speaker, equivalente ao presidente da Câmara, costumava ser tão poderoso que muitos o chamavam de “Czar”, pois não hesitava em usar seus poderes para nomear membros e presidentes de comissões e remover aqueles que não seguiam a sua liderança. Em 1910, um grupo dissidente de republicanos progressistas decidiu se aliar aos deputados de oposição do Partido Democrata em uma revolta contra os superpoderes do presidente da House of Representatives, Joseph Cannon. A revolta resultou na aprovação de uma resolução que diminuiu drasticamente os poderes do speaker. Essa reforma abriu caminho para um processo vigoroso de descentralização e profissionalização do Congresso americano.

Embora a concentração de poderes na mão do speaker não fosse tão decisiva para o funcionamento do sistema político dos Estados Unidos, caracterizado pelo bipartidarismo majoritário, ela gera ganhos de coordenação necessários ao presidencialismo multipartidário adotado no Brasil. 

Presidentes que conseguem ter aliados políticos como chefes das Casas Legislativas definitivamente dormem mais tranquilos. Conseguem ter mais sucesso na arena congressual aprovando mais reformas e enfrentam menores custos de governabilidade. Além do mais, quando existe alinhamento entre os chefes do Executivo e do Legislativo, é esperada a criação de um menor número de Comissões Parlamentares de Inquérito investigando as ações do Executivo. 

Existe, entretanto, um risco de o engajamento excessivo do governo criar animosidades com o Legislativo se seu candidato não for o vencedor, colocando-o em uma situação pior do que a que estaria se continuasse a se negar a fazer política com o Parlamento. 

Nos dois processos de impeachment bem-sucedidos no Brasil, o presidente da República não tinha como aliados os presidentes da Câmara dos Deputados. Fernando Collor (PRN) não se engajou na escolha de Ibsen Pinheiro (PMDB) e Dilma Rousseff apoiou explicitamente Arlindo Chinaglia (PT), derrotado por Eduardo Cunha (PMDB). 

Demorou quase dois anos de seu mandato para que Bolsonaro percebesse que uma atitude de negação da política gera custos proibitivos de governabilidade. Parece que finalmente o presidente acordou e percebeu que é muito mais difícil governar sem aliados em postos-chave no Congresso. Se houve aprendizado, este se deu a partir de perdas sucessivas impostas pelas instituições políticas. Quanto mais Bolsonaro se verga e joga o jogo institucional do presidencialismo multipartidário, mais a democracia brasileira mostra a sua força. 

*CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR TITULAR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS DA FGV


Carlos Pereira, Amanda Medeiros e Frederico Bertholini: Traídos pelo ódio

Pesquisa mostra que eleitores podem apoiar uma medida contrária a suas preferências desde que ela gere benefícios políticos ao governo

Você admitiria apoiar uma política contrária às suas preferências apenas porque ela gera benefícios eleitorais para o governo que você apoia? Por outro lado, você abriria mão da política em que acredita se ela viesse a gerar benefícios eleitorais para o governo a que você se opõe? 

Ideologicamente, é esperado que eleitores que se auto classificam de esquerda defendam políticas que diminuam a desigualdade e aumentem a inclusão social, tais como Bolsa Família ou auxílio emergencial. Por outro lado, eleitores que se consideram de direita tendem a preferir políticas que enfatizam competição e meritocracia e, portanto, tenderiam a se opor a políticas de proteção e inclusão social. 

No presente artigo, baseado na terceira rodada da pesquisa de opinião que investiga os impactos políticos da pandemia desenvolvida em parceria com a FGV e o Estadão (realizada entre os dias 21/10 e 10/11, aplicada com 4569 brasileiros), mostramos que algumas das políticas implementadas pelo governo Bolsonaro com o objetivo de mitigar as consequências negativas da pandemia da covid-19 geraram efeitos paradoxais entre os eleitores brasileiros. 

Ganhos eleitorais

Com a previsão do pagamento da última parcela do auxílio emergencial programado para dezembro de 2020, o governo federal conjecturou a criação de um novo programa de transferência de renda que funcionaria como uma espécie de substituto ao auxílio emergencial. Este novo programa, nomeado de Renda Cidadã, unificaria outros programas sociais como o Bolsa Família.

Os institutos de pesquisa identificaram que o auxílio emergencial gerou um potencial novo “mercado eleitoral” até então inexplorado por Bolsonaro, que começou a ser surpreendentemente bem avaliado por eleitores de baixa renda, reduzida escolaridade e residente do norte e nordeste do Brasil. 

Diante desta performance inesperada, conduzimos um experimento com o objetivo de investigar se a aprovação do Renda Cidadã seria afetada pelos potenciais ganhos eleitorais do presidente com este programa. 

Para isso, distribuímos aleatoriamente entre os respondentes dois textos distintos sobre o Renda Cidadã. O primeiro, de caráter mais neutro, mencionava critérios técnicos para a criação do programa e continha uma foto genérica de pessoas enfileiradas para saques do auxílio emergencial na Caixa Econômica Federal. Os que receberam essa informação genérica faziam parte do grupo controle do experimento. 

A segunda mensagem enfatizava os possíveis ganhos eleitorais de Bolsonaro com o Renda Cidadã. Continha uma foto do presidente em evento público no Nordeste, montado a cavalo e vestindo chapéu de couro, reproduzindo uma frase de autoria do próprio Bolsonaro dizendo que o Renda Cidadã iria “varrer o PT do Nordeste”. Os respondentes que receberam esse texto fizeram parte do grupo tratamento. 

Dividimos a nossa amostra em dois grupos: 1) apoiadores de Bolsonaro (aqueles que o avaliam o governo como bom ou ótimo). Esse grupo é formado basicamente por eleitores que se autodesignam de direita ou centro-direita; 2) opositores de Bolsonaro (aqueles que o avaliam o governo como ruim ou péssimo). Esse segundo grupo é predominantemente formado por eleitores de esquerda e centro-esquerda, mas também por eleitores de outras matizes ideológicas que se frustraram com Bolsonaro. 

Como pode ser observado na Figura 1, os apoiadores do presidente, que ideologicamente seriam contrários a políticas de transferência de renda, mostram suporte ao programa Renda Cidadã. Entretanto, reagem de forma muito mais positiva quando submetidos ao tratamento. Em outras palavras, passam a avaliar melhor o programa ao perceberem que tal política gera potenciais ganhos eleitorais para o seu líder. 

Por outro lado, respondentes que reprovam o desempenho do governo Bolsonaro, sejam eles de direita ou de esquerda, se opuseram ao Renda Cidadã quando recebem o tratamento; ou seja, quando recebem o texto com menção à frase do Presidente e percebem os riscos de Bolsonaro se beneficiar eleitoralmente do programa. Vale salientar que o efeito negativo dos potenciais ganhos eleitorais do presidente na avaliação negativa da política de transferência de renda é mais forte entre aqueles eleitores de esquerda, que a principio seriam favoráveis a políticas de proteção social. 

Medo da Morte

Um dos aspectos mais relevantes que as rodadas anteriores da pesquisa capturou foi a importância da proximidade de pessoas contaminadas pela covid-19 com graus variados de gravidade (ninguém, leve, grave e morte). Verificamos que quanto maior a proximidade da morte, maior o apoio ao isolamento social e maior a rejeição a Bolsonaro. 

O experimento que realizamos nessa terceira rodada nos permitiu analisar até que ponto o “medo da morte” interfere na avaliação do programa de transferência Renda Cidadã. Como pode ser verificado na Figura 2, os respondentes mais próximos de pessoas que desenvolveram covid-19 com gravidade e que vieram a falecer reagiram mais negativamente ao programa de transferência de renda quando receberam o tratamento informacional polarizado que sugere que Bolsonaro pode auferir benefícios eleitorais com o programa. Ou seja, quanto maior o medo da morte, maior a rejeição ao que pode fortalecer Bolsonaro. 

Reeleição em 2022

O experimento que realizamos na segunda rodada nos permitiu diferenciar dois grupos de eleitores (identitários e pragmáticos) que votaram em Bolsonaro em 2018. Foi possível identificar que os eleitores com vínculos identitários com Bolsonaro invariavelmente pretendem votar no presidente em 2022. Entretanto, a grande maioria dos pragmáticos se frustrou com Bolsonaro e só considera votar outra uma vez nele se for para evitar a vitória do PT ou de outro candidato de esquerda. 

Como era de se esperar, a Figura 3 mostra que os eleitores identitários pró-Bolsonaro passaram a apoiar ainda mais políticas de transferência de renda quando perceberam que o presidente poderia se beneficiar eleitoralmente desta política. Por outro lado, os eleitores que não votariam em Bolsonaro em nenhuma circunstância em 2022 (anti-Bolsonaro) reduziram significativamente o seu apoio a políticas de transferência de renda quando receberam o tratamento. 

Resultado mais surpreendente fica por parte dos eleitores anti-esquerda, predominantemente formados por eleitores pragmáticos de Bolsonaro, que foram indiferentes aos potenciais ganhos eleitorais do Presidente proporcionados pelo programa Renda Cidadã. Ou seja, enquanto os grupos polares (anti e pro-Bolsonaro) traem suas respectivas preferências ideológicas em troca da maximização de seus vínculos identitários/afetivos, os eleitores pragmáticos anti-esquerda se mantiveram consistentes as suas preferências não tendo sido substancialmente afetados pela manipulação experimental. Isso acontece porque esse grupo anti-esquerda é formado de pessoas que reprovam e aprovam Bolsonaro, e, portanto, os efeitos opostos se cancelam. 

Conclusão

Estudos de psicologia social sugerem que a polarização política se expressa a partir de conexões afetivas e identitárias. O valor de pertencer a um grupo aumenta à medida que os conflitos intergrupais se tornam mais salientes, podendo levar membros do grupo a traírem suas próprias preferências políticas diante da possibilidade de fortalecimento eleitoral do seu grupo e de fragilização do grupo rival. Anti e pró-Boldonaro cada vez mais não gostam uns dos outros e chegam mesmo a se odiar. Mas esse efeito só é observado para os membros dos grupos polares. Quem, entretanto, não nutre vínculos identitários com os polos, está mais livre para seguir com suas escolhas de forma consistente com suas preferências políticas. 

* Carlos Pereira, Professor Titular, FGV EBAPE, Rio de Janeiro;

Amanda Medeiros, Professora, FGV EBAPE, Rio de Janeiro;

Frederico Bertholini, Professor Adjunto, Dep. Ciência Política UNB


Carlos Pereira: Nova face da polarização

A não obrigatoriedade da vacina é o novo mote identitário de Bolsonaro

Vínculos identitários para serem duradouros necessitam de novas e constantes narrativas polarizadas que reforcem conexões de lealdade entre seus membros. Funcionam como elos que dão a sensação de aconchego e pertencimento. Também atuam como barreiras de proteção contra informações que contrariem as crenças e preferências do grupo. Como consequência, tendem a desenvolver hostilidades e aversão a valores e crenças de grupos rivais podendo até enxergá-los como inimigos.

Contrariando suas promessas de campanha, o presidente Jair Bolsonaro se aproximou dos partidos do chamado Centrão em busca de uma coalizão mínima que garantisse sua sobrevivência política. Além do mais, moderou o tom de seu discurso como uma forma de diminuir animosidades com outros poderes que caracterizaram o início do seu mandato.

Essas mudanças deram fôlego governativo ao presidente, mas paradoxalmente enfraqueceram suas conexões identitárias ao deixar sua base conservadora dispersa e sem referências. Percebendo a derrota iminente que seus candidatos sofreriam nas eleições municipais, Bolsonaro teve de encontrar, mesmo que tardiamente, um novo mote que reconectasse suas identidades polares com a sua base mais fiel.

A nova face da polarização política no Brasil parece ser a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. Essa é uma das evidências que acabam de ser reveladas pela terceira rodada da pesquisa de opinião sobre os impactos políticos da pandemia, que venho desenvolvendo com os colegas Amanda Medeiros e Frederico Bertholini, com o apoio da FGV e do Estadão.

Das 4.569 respostas válidas obtidas na pesquisa, 58% dos respondentes são favoráveis a que a vacina seja administrada de forma obrigatória aos brasileiros, 34% são contrários e 8% não sabem ou não responderam.

Como pode ser observado na figura 1, a distribuição dessa preferência é extremamente polarizada. A grande maioria dos que aprovam a performance do governo Bolsonaro (ótimo e bom, 20%) é contra a obrigatoriedade da vacina (84%). No extremo oposto, a grande maioria dos que reprovam o desempenho do governo (ruim e péssimo, 71%) defende que a vacina seja obrigatória (74%).

Para se ter uma ideia do impacto político desse tema, perguntamos aos respondentes se eles pretendem votar na reeleição de Bolsonaro em 2022. A figura 2 mostra que, como esperado, a esmagadora maioria dos que defendem a reeleição do presidente (pró-Bolsonaro, 18%) são terminantemente contra a obrigatoriedade da vacina (81%). Por outro lado, a maioria dos eleitores que não votariam em Bolsonaro em nenhuma circunstância (anti-Bolsonaro, 65%) defendem que a vacina seja obrigatória (76%). Existe ainda uma parcela não trivial de eleitores (anti-esquerda, 17%) que consideram votar na reeleição do presidente apenas se for para evitar a vitória do PT ou outro candidato de esquerda no segundo turno. Para esse grupo de eleitores supostamente decepcionados com o Presidente, a preferência em relação a obrigatoriedade da vacina não é polarizada (54% não e 37% sim).

O presidente tem defendido que a vacinação é um direito individual ao afirmar que “quem não tomar a vacina está fazendo mal para si mesmo e não para os outros”. Nas suas próprias palavras, quem defende a vacinação obrigatória é um “ditador”… “Não vou tomar, é um direito meu”, disse ele. Entretanto, para que uma vacina surta o efeito imunizante é necessária uma cobertura mínima. No caso específico do coronavírus, estudos indicam que, para alcançar uma eficácia de 80%, seria necessário a aplicação da vacina em pelo menos 75% da população.

Independentemente da recomendação científica, parece que Bolsonaro não consegue prescindir da polarização.

  • Cientista político e professor titular da FGV Ebape

Carlos Pereira: Combate à corrupção tem ideologia?

Rotular iniciativas e movimentos de combate à corrupção como “de direita” tem sido uma alegação comum da esquerda, não apenas no Brasil.

Tem-se argumentado que, ao expor os meandros e bastidores do suposto “jogo sujo” da política, movimentos anticorrupção desempenhariam um papel central de fortalecimento da antipolítica. A devastação moral do governo de plantão fortaleceria o sentimento de que a política não seria mais um veículo de mudanças – todo o sistema seria corrupto e só um líder messiânico, fora do sistema – ou seja, fora da “política” – seria capaz de exercer mudanças significativas e, finalmente, higienizar a política.

Movimentos de combate à corrupção seriam, assim, paradoxais. A rejeição generalizada da política levaria necessariamente à fragilização do sistema vigente e ao surgimento de políticos de perfil populista e carismático que prometem acabar com a corrupção. Entretanto, uma vez eleitos, esses líderes “antipolítica” acabariam por colocar em risco as próprias instituições do País. Como exemplos, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Silvio Berlusconi na Itália ou Jair Bolsonaro no Brasil.

A resposta que a esquerda tem dado a esse paradoxo, especialmente quando políticas anticorrupção atuam contra governos supostamente progressistas, é a de tratar as alegações ou evidências de irregularidades, ou condenações na Justiça como campanha de difamação da direita e perseguição da mídia conservadora.

Alegam que tais políticas adotam uma concepção de direito punitivista, que não respeitaria o devido processo legal. Pior ainda, associam a retórica anticorrupção e suas lideranças à própria direita. Rechaçam a participação de quem outrora impôs perdas judiciais a líderes corruptos de governos desviantes de esquerda na construção de alternativas políticas não polarizadas. O inverso também é verdadeiro: quando governos conservadores de direita são pegos praticando atos de corrupção, estratégias semelhantes são igualmente adotadas.

Apesar de, num primeiro momento, os movimentos de combate à corrupção terem causado um choque no sistema político, permitindo a eleição de “outsiders” como Bolsonaro, não chegaram a enfraquecer o sistema político nem a destruir o sistema partidário. Os resultados de ontem, das eleições municipais, sinalizam que os candidatos “antipolítica” e que apostaram na polarização foram os grandes derrotados.

É um erro, portanto, associar o combate à corrupção a uma agenda de direita ou de esquerda. O combate contra a corrupção não tem ideologia. É fundamentalmente uma luta contra governantes que apresentam comportamento desviante, sejam de esquerda, centro ou direita.

Na verdade, a luta contra a corrupção é mais que a imposição de restrições a trocas ilícitas no sistema político. Compreende também iniciativas que diminuam a captura do Estado por interesses específicos e escusos. Ela é, em essência, a luta contra a privatização da vida pública.

Em países com extrema desigualdade, como o Brasil, essa luta é um movimento contra os que capturam o Estado para interesses privados. Neste sentido, é uma política de inclusão social. Assim, só uma análise enviesada poderia rotular ideologicamente uma política anticorrupção que, essencialmente, visa diminuir a desigualdade social por meio do aumento da inclusão.

A luta contra a corrupção não é de esquerda ou direita, mas contra o incumbente

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)


Carlos Pereira: A hora da moderação

Incerteza e insegurança trazidas pela pandemia abrem caminho para moderação política

Já é possível observar claros sinais de arrefecimento da polarização política que varreu o mundo, especialmente a partir da crise financeira internacional de 2008.

A disputa entre grupos polarizados estava em relativo “equilíbrio” com cada polo se nutrindo da oposição radicalizada de identidades e preferências políticas. Grupos polares, tanto à esquerda como à direita, se retroalimentavam. Não dialogavam entre si e tendiam a consumir informações que só reforçavam suas crenças anteriores. Ao mesmo tempo, rejeitavam qualquer informação que contrariasse seus valores prévios. Portanto não faziam atualizações que pudessem colocar em risco suas respectivas “zonas de conforto” identitárias. O espaço para alternativas moderadas que buscam o eleitor mediano ficou bastante reduzido.

A manutenção de um ambiente polarizado é o ideal para a viabilização eleitoral de candidatos extremos, como o presidente Donald Trump. Entretanto, a grande maioria dos institutos de pesquisa projeta que o candidato democrata, Joe Biden, é o franco favorito, com 90% de chances de derrotar o atual presidente.

Ao contrário de Trump, um outsider com perfil populista e antissistema, Biden é um típico representante da política tradicional americana. Uma espécie de candidato livre de surpresas, representando estabilidade, previsibilidade, segurança e, fundamentalmente, moderação.

Assim como nos EUA, a polarização política tomou conta do Brasil, especialmente a partir das grandes mobilizações de massa que varreram o País em 2013. As eleições de 2018 testemunharam uma escalada da polarização política tanto na grande massa quanto na elite. Naquela ocasião, o número de eleitores que votaram num candidato de um dos polos se aproximou daquele relativo aos que expressaram forte rejeição ao candidato oponente. Os candidatos de centro não tiveram a menor chance e o eleitorado moderado ficou literalmente órfão.

De forma similar ao que vem ocorrendo nos EUA, os candidatos que representam os dois polos extremos, apoiados por Jair Bolsonaro ou por Lula, têm enfrentado grandes dificuldades nas disputas às prefeituras das capitais brasileiras.

Mas por que a política da moderação estaria retornando no exato momento em que a crise da covid-19 estaria aumentando ainda mais as desigualdades sociais?

Parece que os eleitores estão cansados das incertezas causadas pelas opções polares, e por isso começam a procurar por alternativas menos arriscadas e mais seguras. É como se os partidos polares e antissistema tivessem exercido o papel de anticorpos, que ajudaram a construir resistência às desigualdades e injustiças do liberalismo de mercado pós crise financeira de 2008, mas que agora estão causando efeitos colaterais que põem em risco a própria sociedade.

Eleitores ficaram muito alarmados com as ameaças trazidas pela pandemia e podem ter perdido o apetite por um modo de política insurrecional que aumenta ainda mais a instabilidade e a incerteza. Como em tempos de pós-guerra, os eleitores podem almejar estabilidade e garantias efetivas ao invés de mais polarização.

A incerteza contida nos novos desafios gerados pela crise pandêmica tem o potencial de aumentar o apelo emocional das narrativas de moderação política. Em outras palavras, a fadiga da crise pode fazer com que os eleitores rejeitem soluções com consequências desconhecidas e prefiram o tipo de reforma incremental tradicionalmente associada a partidos políticos moderados, posicionados ao centro do espectro ideológico. A hora da moderação parece ter chegado.

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)


Carlos Pereira: O centro deixará de ser órfão?

É no mercado eleitoral nutrido de frustrações e decepções tanto com Bolsonaro como com o petismo que terá o potencial de emergir um candidato de centro em 2022

A polarização entre o PT e Bolsonaro deixou os eleitores ideologicamente de centro órfãos de alternativas nas eleições de 2018. Esses dois extremos se retroalimentaram, não deixando espaço para o fortalecimento de candidaturas competitivas como alternativa a esses dois polos extremados.

Mesmo ainda muito distante das eleições, já é possível identificar alguns sinais de que a polarização PT vs. Bolsonaro tende a se enfraquecer.

Por um lado, já existem claras evidências de que uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018, especialmente para evitar a vitória do PT, não estaria mais disposta a reeleger o Presidente. Esses eleitores de perfil pragmático, especialmente residentes no Sudeste, com alta escolaridade e renda se frustraram fortemente com o governo Bolsonaro diante da má gerência da pandemia da COVID-19.

Resta a Bolsonaro o apoio fiel do seu núcleo ideológico mais conservador que se nutre de vínculos indentitários com a sua liderança carismática. Além do mais, um novo mercado de eleitores se abriu para o presidente a partir do auxílio emergencial da pandemia. Mas esse auxílio já tem data para acabar.

Para que essa nova conexão eleitoral se fidelize, será necessário que o governo consiga novas fontes de recurso, seja por via de remanejamento orçamentário de outras políticas sociais ou aumento da carga tributária. Qualquer uma dessas alternativas encontrará fortes resistências na sociedade e no legislativo.

Pelo lado da esquerda, também existe muita frustração. O PT ainda patina na agenda falida do “Lula livre” e não consegue ser alternativa de oposição crível ao governo. O partido talvez seja, mais uma vez, o grande derrotado das eleições municipais deste ano. Corre o risco de perder o protagonismo de ser o núcleo do qual os outros partidos de esquerda gravitavam.

É justamente neste mercado eleitoral, nutrido de frustrações e decepções tanto com o governo Bolsonaro como com o petismo, que terá o potencial de emergir um candidato competitivo de centro como alternativa à polarização em 2022.

*Cientista político e professor titular da FGV- Ebape


Carlos Pereira: Contorcionismo interpretativo

Restrições do sistema político são responsáveis por mudanças de comportamento de Bolsonaro

Assim como é possível a algumas pessoas fazer acrobacias que envolvem flexões e contorções extremas no corpo, também é possível observar contorcionismos interpretativos de fenômenos políticos.

É surpreendente que, mesmo quando os atores políticos passam a se comportar de acordo com as expectativas geradas pelos incentivos e restrições institucionais, muitos analistas ainda têm imensas dificuldades de reconhecer as virtudes do sistema político brasileiro. Preferem, por exemplo, creditar aos supostos “defeitos” do sistema o enquadramento comportamental do presidente Jair Bolsonaro. Fazem contorcionismo interpretativo ao anunciar a fragilização das organizações de controle como decorrente de supostos “acordos”, como se estas fossem indefesas ou passivas às ações dos políticos.

Inebriado pela vitória surpreendente e pelos compromissos antissistema de sua campanha à Presidência, Bolsonaro inaugurou seu governo nadando contra a corrente das regras do jogo político. Ignorou as restrições institucionais do presidencialismo multipartidário e se negou a montar uma coalizão, preferindo governar na condição de minoria.

Baseado em extensa pesquisa empírica produzida pela ciência política brasileira, era esperado que essa estratégia governativa gerasse problemas crescentes de governabilidade. Não deu outra! O governo colheu derrotas sucessivas tanto no Legislativo como no Judiciário. Além do mais, acirrou animosidades e se engajou em conflitos abertos com outros Poderes.

Os custos decorrentes dessa estratégia adversarial de governar tornaram-se proibitivos para Bolsonaro, que viu sua popularidade derreter e aumentarem os riscos de interrupção precoce de seu governo. Independentemente das motivações do presidente (sobreviver, proteger seus filhos de investigações, obter sucesso no Legislativo e no Judiciário etc.), o governo fez, mesmo que tardiamente, consideráveis ajustes e inflexões em seu comportamento.

Ainda sem formar uma coalizão claramente majoritária e estável, bem como sem explicitar quais os termos de troca dessas alianças, Bolsonaro decidiu jogar o jogo do presidencialismo multipartidário. O presidente vem se aproximando dos partidos do Centrão, que têm conferido estabilidade e previsibilidade à democracia brasileira ao participar de quase todas as coalizões dos governos pós-redemocratização.

Bolsonaro também diminuiu o tom do seu discurso belicoso e autoritário que alimentava as conexões identitárias com seu eleitorado mais reacionário. As instituições políticas e de controle, portanto, têm sido capazes de constranger as ações do governo ao ponto do discurso confrontacional de Bolsonaro perder autenticidade. Ou seja, o presidente, ao se domesticar, se rendeu à “política tradicional”. A democracia venceu!

O Brasil, em termos relativos, tem vivido o período mais pacífico, longevo e estável da história de sua democracia. Atores políticos e agentes econômicos que apresentam comportamento desviante têm sido objeto de investigações e sofrido punições judiciais expressivas. Como exemplo, o ex-vice-líder do governo no Senado, senador Chico Rodrigues, acaba de ser flagrado pela Polícia Federal com dinheiro escondido na cueca e teve seu mandato suspenso por 90 dias pelo Supremo Tribunal Federal.

O viés de pessimismo decorrente do comportamento inicial de Bolsonaro parece ser a raiz do mal-estar que, a despeito das virtudes do presidencialismo multipartidário, tem atormentado a maioria das análises políticas sobre a capacidade das instituições brasileiras de constrangê-lo.

*Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)


Carlos Pereira: Maldição ou virtude?

Virtude governativa emerge de instituições de controle fortes e independentes

Nos últimos anos, cinco dos ex-governadores do Rio de Janeiro (Moreira Franco, Antony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão) já foram ou ainda estão presos. Por ampla maioria, o Superior Tribunal de Justiça manteve o afastamento do governador Wilson Witzel.

A Assembleia Legislativa acaba de aprovar, por 69 votos a zero, a continuidade do processo de impeachment do governador por crime de responsabilidade. O prefeito da capital, Marcelo Crivella, foi condenado pelo Tribunal Regional Eleitoral por abuso de poder político e está inelegível por 8 anos.

O que esses eventos recentes dizem do que de fato está acontecendo no Rio de Janeiro? Estaria o Rio de Janeiro condenado à maldição de maus governantes?

O sistema democrático não nasceu necessariamente para gerar eficiência ou resultados consistentes com as nossas preferências. Mas para garantir liberdade competitiva à população na escolha de seus representantes e proporcionar resolução pacífica de conflitos sociais a partir da representação/inclusão dos mais variados interesses no jogo político. Raramente a democracia seleciona os melhores governantes. E mesmo quando o faz, não demora muito para que os eleitos frustrem as expectativas dos eleitores.

A qualidade da democracia, portanto, não é produto dos atributos ou crenças particulares do eleito, mas da qualidade institucional e da capacidade das organizações de controle de fiscalizar e impor medidas repressivas a comportamentos desviantes.

Impor sanções políticas e judiciais a seis de seus governantes não é trivial nem frequente em democracias. Essa performance sugere robustez das organizações de controle estaduais e capacidade de atuação coordenada e conjunta com organizações de controle de outras esferas, principalmente a federal.

É, portanto, míope quem enxerga na situação do Rio de Janeiro apenas a maldição da corrupção, sem perceber que há também virtude institucional.

Com isso não se está ingenuamente argumentando que as instituições de controle no Rio de Janeiro seriam perfeitas. Na maioria das vezes elas agem tardiamente e de forma retrospectiva ao invés de preventiva. As punições ocorrem quando os maus governantes já não estão mais no poder e os prejuízos de suas administrações predatórias já foram consumados.

Embora as organizações de controle tenham apresentado relativa capacidade na responsabilização e punição de governantes, elas ainda não o fazem de forma tão eficiente a ponto de desencorajar o mau comportamento.

Parece que os ganhos esperados com comportamentos desviantes continuam sendo maiores que os riscos de os governantes serem pegos em práticas desonestas. Isso acontece porque as chances de se detectar corrupção são ainda relativamente muito baixas.

O fortalecimento das organizações de controle não é linear. Além do mais, o sistema político é por demais protetivo dos governantes de plantão que dispõem de várias garantias legais e procedimentais que tornam a atividade criminosa atrativa e de relativo baixo risco.

A virtude na administração pública não decorre da conversão moral ou de compromissos políticos de governantes eleitos. Bons governos surgem da existência de organizações de controle fortes e independentes.