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Maria Cristina Fernandes: Aos eleitores, o inferno

Câmara desconvocou Braga Netto mas confirmou Guedes

Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico

A publicidade da conta em paraíso fiscal da principal autoridade econômica do país era tudo o que os dirigentes do PP que trabalham pela filiação do presidente da República poderiam almejar. A filiação traz otimismo para as ambições da legenda, que passam pelo cargo do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, mas se concentram mesmo é no Orçamento de 2022. O constrangimento do ministro da Economia vem num momento tão propício que, não fosse a independência cristalina da fonte das informações que vieram à lume, daria pra pensar que foram encomendadas.

A retaguarda governista na comissão que aprovou o requerimento de convocação de Paulo Guedes era tão frágil que a defesa do ministro coube a um deputado do Novo que nem da base do presidente é. Da leitura do requerimento de convocação até sua aprovação, por 12 votos a 8, passaram-se duas horas, tempo suficiente para uma articulação capaz de transformá-la em convite, como no Senado, adiá-la ou cancelá-la, mas isso não aconteceu.

Até num governo de base mais frágil, como o da ex-presidente Dilma Rousseff, o então presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), foi capaz de anular a convocação de um ministro, Antonio Palocci, acusado, em 2011, de acumular um vertiginoso crescimento de sua consultoria. O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi ágil o suficiente para encontrar firula regimental capaz de anular a convocação do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, em abril deste ano, para explicar a picanha superfaturada na Defesa.


Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coletiva do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Paulo Guedes durante cerimônia do Novo FUNDEB. Foto: Isac Nóbrega/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
Paulo Guedes e Bolsonaro durante o Latin America Investment Conference. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante palestra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coletiva do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Paulo Guedes durante cerimônia do Novo FUNDEB. Foto: Isac Nóbrega/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
Paulo Guedes e Bolsonaro durante o Latin America Investment Conference. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante palestra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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Guedes, porém, não teve a mesma sorte. Lira viajou para Roma enquanto todos os caminhos do ministro o levavam para o labirinto. Sua convocação foi aprovada em plenário por mais do que o dobro dos votos. O líder do PP foi o primeiro a aderir à oposição.

Nada melhor para uma Câmara que quer destelhar o Orçamento do que ter um ministro da Economia na berlinda. Não que lhe faltem pecados. Todos serão abundantemente expostos na campanha. Darão trabalho à única Pasta que funciona no governo, a da comunicação.

Nem se Jim Carville viesse comandar a campanha do presidente Jair Bolsonaro daria conta da exposição do eleitor, cuja renda é corroída por inflação de dois dígitos, às reservas financeiras protegidas do titular da política econômica. No limite, poderia recriar a máxima da campanha de Bill Clinton: não é crime, estúpido, é escárnio.

Mas qual seria mesmo o interesse do PP em colocar Guedes na berlinda? O mesmo que impera sobre a aliança. As políticas lideradas pelo partido têm conduzido o país a um buraco fiscal sem fim, mas o PP passa bem. Pode se manter como uma das maiores bancadas da Câmara em 2023 e reeleger Lira à presidência, desde que disponha de recursos para tanto.

Não está fácil. Tome-se, por exemplo, as dificuldades da MP 1055, que imporia uma conta de R$ 33 bilhões para o consumidor de energia em benefício de um único empresário. Muitos daqueles que votaram a privatização da Eletrobras o fizeram, sob desgaste, sabendo que a fatura viria. Se resistem agora a dar continuidade ao despautério é porque o modelo de repartição está em crise.

À medida que se aproxima a eleição aumenta também a cobrança de promessas não cumpridas junto à base parlamentar. Por isso, o inferno de Guedes é, no momento, a canção do paraíso. Nem que o espaço a ser conquistado no Orçamento se dê em detrimento do país. Os parlamentares ouviram de uma autoridade econômica que há U$ 13 trilhões que hoje rendem zero de juro e não vêm para o Brasil pela turbulência. A publicidade dos Pandora Papers deu ainda mais veracidade ao relato.

Do que os aliados de Bolsonaro precisam? No PP, por exemplo, calcula-se que um fundo eleitoral num total de R$ 4 bilhões, o dobro do atual, permitiria ao partido reservar até R$ 50 milhões de sua cota apenas para abrigar Bolsonaro sem desfalcar as campanhas proporcionais.

Mas as ambições extrapolam o fundo eleitoral. Se sobem o preço para realizar seus desejos é porque os parlamentares apostam na solvência do credor - o governo -, o que não significa que esta se estenda ao eleitor.


Senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Foto: Pedro França/Agência Senado
Rodrigo Pacheco, Bolsonaro e Arthur Lira no dia da posse dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Foto: PR
Arthur Lira durante anúncio sobre o voto impresso ir ao plenário. Foto: Najara Araújo/Câmara dos Deputados
Arthur Lira, presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, no início do ano legislativo. Foto: Agência Senado
Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
Arthur Lira durante a sessão sobre o voto impresso. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Jair Bolsonaro acompanhando de Ministros, entregam a MP do Auxílio Brasil ao Presidente da Câmara, Arthur Lira. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Foto: Pedro França/Agência Senado
Rodrigo Pacheco, Bolsonaro e Arthur Lira no dia da posse dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Foto: PR
Arthur Lira durante anúncio sobre o voto impresso ir ao plenário. Foto: Najara Araújo/Câmara dos Deputados
Arthur Lira, presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, no início do ano legislativo. Foto: Agência Senado
Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
Arthur Lira durante a sessão sobre o voto impresso. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
 Jair Bolsonaro acompanhando de Ministros, entregam a MP do Auxílio Brasil ao Presidente da Câmara, Arthur Lira. Foto: Marcos Corrêa/PR
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O combustível do embate

A primeira solução apresentada por Lira para a redução no preço dos combustíveis, a de uma subvenção financiada pelo Petrobras, esbarrou na resistência do general Joaquim Luna e Silva, que se mantém prestigiado, a abrir um novo rombo na estatal.

Sobrou a mudança no cálculo do ICMS dos combustíveis que deixaria de ser sobre o preço dos últimos 15 dias para incidir sobre o dos últimos dois anos - um puxadinho à altura dos tempos em que se vive.

A fartura das emendas jogou no passado remoto o tempo em que governador tinha bancada. Agora os parlamentares comandam o jogo. A ponto de quererem mexer nos impostos estaduais sem alteração constitucional.

A saída ainda colide com o Senado, que avança numa reforma tributária para mexer nisso tudo. Sua relevância não está na chance de que prospere mas no apoio de governadores, prefeitos e até de Guedes, num movimento contrário ao da Câmara.

Não se confrontam apenas duas Casas legislativas em defesa de suas prerrogativas. PP, PL e Republicanos constituem o núcleo duro da base bolsonarista, dominam a Câmara e privilegiam, acima de tudo, a formação de bancada para manter o presidente sob permanente sequestro.

O PSD, por outro lado, partido em torno do qual gira o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), mantém-se próximo da sigla que emergirá da fusão DEM-PSL e, assim, também cultiva a ambição de formar um bloco de poder. Mas vai além. É hoje um dos partidos mais aplicados na montagem de palanques estaduais. Está ancorado na expectativa de ocupar espaços na federação que extrapolam a sucessão presidencial.

Agora vai

A indicação do ex-advogado-geral da União, André Mendonça, ao Supremo voltou a respirar, ainda que por aparelhos. A indicação completa três meses. E nada de sabatina. As vagas preenchidas pelos ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso ficaram seis meses em aberto. A do ministro Luiz Edson Fachin, oito. Mas nesses casos o que demorou foi a indicação. Desta vez, a escolha foi oficializada quatro dias depois da saída do ex-ministro Marco Aurélio Mello. A demora é do Senado. O Congresso terá sessão dedicada ao Orçamento depois do feriado. O oxigênio de André Mendonça volta junto com a perspectiva de empenho das emendas.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/aos-eleitores-o-inferno.ghtml


Tensão sobre o 7 de setembro gera troca frenética de telefonemas

Braga Netto, PGR e ministros do Supremo trocaram uma série de telefonemas para garantir que o Dia da Independência do Brasil transcorra dentro da normalidade

Bela Megale / O Globo

Após a operação da PF que mirou o cantor Sérgio Reis, além do caminhoneiro Zé Trovão e outros oito alvos, autoridades de Brasília trocaram uma série de telefonemas preocupados sobre como será o dia 7 de setembro. Na tarde de sexta-feira, horas depois de a operação ser deflagrada, o ministro da Defesa, Braga Netto telefonou duas vezes para membros da cúpula da Procuradoria-Geral da República (PGR) para externar sua preocupação. O general também procurou integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). O tema das conversas era o mesmo: garantir que o Dia da Independência do Brasil transcorra dentro da normalidade. As convocações para a data aumentaram após a deflagração da operação.

Ligações ainda foram feitas entre os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e a PGR, além de integrantes do governo. Foi Moraes quem acatou o pedido da PGR para realizar buscas em endereços de pessoas que articulavam manifestações antidemocráticas para o dia 7 de setembro.

As conversas sobre medidas para garantir alguma estabilidade sobre as manifestações ainda aconteciam, quando Bolsonaro fez questão em jogar mais lenha na fogueira. O presidente apresentou o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bela-megale/post/tensao-sobre-o-7-de-setembro-gera-troca-frenetica-de-telefonemas-entre-braga-netto-pgr-e-ministros-do-supremo.html


Míriam Leitão: General, muitos não estão aqui

Míriam Leitão / O Globo

O general Braga Netto mentiu sobre a História do país, ao dizer que não houve ditadura no Brasil. Ontem foi a vez de o general Ramos ofender os fatos. O ministro da Defesa disse que se tivesse havido ditadura “muitos não estariam aqui”. Ele está querendo dizer que as mortes foram poucas, e isso é odioso. Mas está também usando o mesmo método identificado pela Polícia Federal nos disseminadores de fake news, que é o de dissolver a fronteira entre a mentira e a verdade. Essa técnica de Steve Banon serve para o assalto ao poder, mas tem tido também como consequência trágica a morte de centenas de milhares de brasileiros pela Covid.

Muitos não estão aqui porque foram assassinados pela ditadura que o general Braga Netto nega ter existido. Para o general Ramos, segundo disse ontem, tudo é apenas uma questão semântica. Nesse raciocínio, basta usar algum eufemismo que o problema desaparece. Generais, muitos brasileiros foram assassinados dentro de quartéis militares e por ordem de seus comandantes. Por isso não estão aqui. A técnica da negação faz vítimas ainda hoje. Milhares de vítimas desta pandemia poderiam estar aqui. Teriam sido protegidos da morte se mentiras sobre a Covid-19 e sobre as medidas de proteção, o uso de máscara, a cloroquina e as vacinas, não tivessem sido divulgadas com tanta insistência pelo presidente da República e pelos bolsonaristas.

A mentira do general Braga Netto tenta matar os fatos de ontem. As mentiras do presidente Bolsonaro e de seus apoiadores matam pessoas no presente. A mentira colocada em documento oficial pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo é uma colaboração à morte de brasileiros e um flagrante de desvio de função. Em vez de proteger a sociedade, a Procuradoria-Geral da República (PGR) nega a ciência, rasga o princípio da precaução e desmoraliza a máscara.

Lindôra Araújo tenta desmentir o que a ciência já provou. Disse que não “é possível realizar testes rigorosos” sobre a eficácia da máscara. Segundo ela, os estudos que existem são “somente observacionais e epidemiológicos”. E ela continua com seu insulto à ciência afirmando que o presidente não foi notificado de que deveria usar máscaras em eventos públicos e chega ao cúmulo de afirmar que na ocasião dos fatos Bolsonaro “não estava doente, nem apresentava sintomas de Covid-19”, como se só os pacientes devessem usar a medida de proteção. O presidente fora questionado em ação pelo seu comportamento delinquente de promover aglomerações, em geral com recursos públicos, e nelas não usar máscaras, e ainda ter tirado a proteção de duas crianças. Lindôra acha que “inexistem elementos mínimos” para uma ação contra o presidente.

A mentira é terrível. A mentira histórica dos generais, a da subprocuradora, e a dos influenciadores bolsonaristas. E é terrível porque atinge a vida e a democracia.

Quando procuram se esconder na semântica ou na falsificação histórica, os generais Braga Netto e Ramos mostram que essa geração militar é cúmplice dos que naquele tempo fecharam o Congresso, aposentaram ministros do Supremo, censuraram, torturaram e mataram. Braga Netto parecia querer se referir até aos próprios parlamentares. A fala dele na Câmara foi assim: “Se houvesse ditadura, talvez muitos dos… muitas pessoas não estariam aqui.”

Muitos não estão aqui, general Braga Netto. Stuart Angel não está aqui. Tinha 25 anos quando foi assassinado, seu corpo jamais foi entregue à família, teria hoje 75 anos. Sua mãe Zuzu também foi morta. Vladimir Herzog não viu os filhos crescerem, morreu aos 38. Rubens Paiva não esteve com a mulher Eunice na criação dos filhos. O que o general quis dizer? Que aquele horror precisava ter matado mais para que fosse chamado de ditadura? O ministro da Defesa pode gostar da ditadura, mas negar que ela existiu é mentir.

A técnica dos sites bolsonaristas é mentir também. A Polícia Federal explicou ao TSE que eles tentam “diminuir a fronteira entre o que é verdade e o que é mentira”. Usaram isso nas postagens sobre as urnas eletrônicas, nas divulgações falsas sobre a pandemia, nos ataques ao Judiciário e ao Congresso. Eles usam fragmentos de verdade para construir suas mentiras. Os bolsonaristas tentam enfraquecer a democracia e, nas fake news sobre a pandemia, atentam contra a vida humana.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/general-muitos-nao-estao-aqui.html


TCU pede explicações a Braga Netto e Guedes sobre dinheiro do SUS em gastos militares

Relatório enviado à CPI da Covid indicou uso de dinheiro da pandemia para despesas como material de cama, mesa e banho e manutenção de prédios da Defesa

Vinicius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que os ministérios da Defesa e da Economia ofereçam explicações sobre o uso de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), destacados para o combate à pandemia, para gastos corriqueiros de militares.

O despacho de segunda-feira, 2, de autoria do ministro Bruno Dantas, tem o propósito de apurar suspeitas de irregularidades na descentralização de recursos do Ministério da Saúde, em 2020, para execução de ações de saúde pelo Ministério da Defesa.

Os indícios de mau uso da verba vieram à tona em estudo da procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo, enviado à CPI da Covid.

Dos recursos extraordinários desembolsados em 2020 pela União para o combate à covid, a Defesa ficou com R$ 435,5 milhões. Do dinheiro que deveria ter ido ao SUS, a Defesa gastou R$ 58 mil com material odontológico, R$ 5,99 milhões com energia elétrica, água e esgoto, gás e serviços domésticos. Também há gastos com R$ 25,5 mil com material de coudelaria ou de uso zootécnico, R$ 1 milhão com uniformes e R$ 225,9 mil com material de cama, mesa e banho e R$ 6,2 milhões com a manutenção e a conservação de bens imóveis.

Outros R$ 100 milhões foram para despesas médico-hospitalares com materiais e serviços em hospitais militares, “sem que se tenha prova de que foram gastos em benefício da população em geral, ao invés de apenas atender aos hospitais militares, os quais se recusaram a ceder leitos para tratamento de pacientes civis com covid-19”.

A procuradora sustenta que usar dinheiro de um crédito extraordinário para cobrir gastos cotidianos seria uma burla ao teto dos gastos. No documento enviado à CPI, Graziane também salienta que, apesar de ter tido uma dotação autorizada de R$ 69,88 bilhões para enfrentamento da pandemia, dos quais R$ 63,74 bilhões foram destinados ao Ministério da Saúde, o SUS efetivamente só contou com R$ 41,75 bilhões “porque o governo federal deixou de executar praticamente o expressivo saldo de R$22 bilhões em relação aos créditos extraordinários abertos no Orçamento de Guerra (Emenda 106/2020) no ano passado.”

“É preciso que a CPI da Pandemia, o MPF (Ministério Público Federal), o TCU (Tribunal de Cotas da União) e o CNS (Conselho Nacional de Saúde) apurem, mais detidamente, a motivação e a finalidade de várias despesas oriundas de recursos do Fundo Nacional de Saúde realizadas por diversos órgãos militares”, afirma a procuradora, no relatório.

No despacho, Bruno Dantas deu 15 dias para que o Ministério da Defesa, chefiado pelo general Braga Netto, e o da Economia, de Paulo Guedes, apresentem uma série de explicações. Eles deverão informar os objetivos pormenorizados da descentralização e as orientações às unidades orçamentárias para a execução dos créditos da Saúde.

Sobre o relatório da procuradora, a Defesa informou ao Estadão, no mês passado, somente que “os assuntos pautados na Comissão Parlamentar de Inquérito da covid-19, no Senado Federal, serão tratados apenas naquele fórum”. Procurada novamente nesta terça, 3, a pasta não se manifestou. A Economia também não respondeu até a publicação desta reportagem.

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Comissão de trabalho da Câmara convoca Braga Netto para explicar ameaça às eleições

Ala do Patriota perde recurso e já descarta filiação de Bolsonaro


Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tcu-pede-explicacoes-a-braga-netto-e-guedes-sobre-dinheiro-do-sus-usado-em-gastos-militares,70003799462


Leão sem dentes contra o fundo eleitoral

Malu Gaspar / O Globo

Já virou padrão: toda vez que é pego em contradição com o que ele mesmo defendia em 2018, Jair Bolsonaro diz que não teve escolha. Do contrário, “viriam para cima” dele. Foi o argumento que o presidente da República tirou da cartola ao explicar a seus seguidores, no cercadinho do Alvorada, o recuo sobre o fundo eleitoral de 2022, aprovado pelo Congresso há duas semanas — que pode chegar a R$ 5,7 bilhões.

Depois de reagir indignado ao valor, que classificou como “enorme”, uma “casca de banana”, uma “jabuticaba”, Bolsonaro surgiu nesta segunda-feira no cercadinho bem mais manso e circunspecto. “Vou deixar claro (sic) uma coisa: vai ser vetado o excesso do que a lei garante, tá? É de quase 4 bilhões o fundo. O extra de 2 bilhões vai ser vetado. Se eu vetar o que está na lei, eu tô incurso na lei de responsabilidade.”

Todo mundo sabe que o presidente é pródigo em espalhar desinformação, mas essa aí constaria fácil numa coletânea de melhores momentos. Primeiro porque, hoje, não há nenhuma lei dizendo que o fundo eleitoral para 2022 tem de ser de R$ 4 bilhões.

Nos últimos dias, consultei especialistas em legislação eleitoral e deputados de vários partidos. Não encontrei ninguém que soubesse apontar de que lei o presidente Bolsonaro está falando. Portanto, se não há lei, evidentemente não há excesso de R$ 2 bilhões.

Segundo os limites estabelecidos pelas fórmulas em vigor hoje, o valor obrigatório para o fundo eleitoral é de R$ 800 milhões (reembolso estatal às redes de TV pelo horário eleitoral), mais uma porcentagem do total destinado às emendas de bancada, decidida a cada ano eleitoral.

No último dia 15, os parlamentares decidiram que a fatia das emendas a ser destinada ao fundo eleitoral de 2022 deverá corresponder a 25% do orçamento de dois anos da Justiça Eleitoral. Somando o reembolso das TVs com essa cota, mais correção pela inflação, chega-se a R$ 5,7 bilhões para 2022. Em 2020, o total foi de R$ 2 bilhões.

Sejam esses critérios casca de banana, jabuticaba ou pequi roído, eles foram aprovados com a participação e o aval de todos os líderes do governo no Congresso.

Apesar do que disse no Alvorada, o que Bolsonaro tenta agora, nos bastidores, é encontrar uma maneira de vetar essa forma de cálculo, mantendo sua narrativa, e de, ainda assim, contentar os parlamentares com um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões. É disso que se trata.

Se quisesse, o presidente poderia fazer isso de modo transparente, liderando um debate adulto com a sociedade brasileira sobre de onde deve vir o dinheiro que financia as campanhas, quanto os cidadãos estão dispostos a pagar em forma de impostos e quanto aceitam que venha de outras fontes, como empresas e pessoas físicas.

Num momento de tantos ataques à democracia, em que o próprio presidente da República dissemina desconfianças sobre a lisura do processo eleitoral, uma discussão aberta, civilizada e consequente sobre financiamento de campanha seria muito bem-vinda.

Mas é claro que Bolsonaro não está interessado em nada disso. Seu único objetivo é continuar fingindo que o país é um grande cercadinho onde ele pode disseminar suas confusões nada aleatórias, enquanto tenta garantir sua sobrevivência política.

É só por isso que, às claras, ele insiste em dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, mesmo sem apresentar prova alguma — mas, por debaixo dos panos, avaliza acordos que multiplicam o orçamento dessas mesmas eleições, elevando o fundo eleitoral a valores recordes

A verdade que nem mesmo o cercadinho é capaz de esconder é que, depois de passar os primeiros meses de mandato enchendo a boca para dizer “sou eu que mandoo presidente sou eu”, Bolsonaro gasta cada vez mais tempo justificando decisões impopulares com o “se eu não fizer, vão vir para cima de mim”.

Tudo o que ele tem para brandir a seus seguidores é o mito do herói ameaçado pelos inimigos. Na segunda-feira, ele encerrou a explicação sobre o fundo eleitoral com o apelo: “Espero não apanhar do pessoal aí, como sempre, né? Porque, se começar a bater muito, vai ter de escolher no segundo turno Lula ou Ciro”.

Por enquanto, esse tipo de ameaça ainda funciona para uma parcela dos eleitores. Mas nenhum fingimento dura para sempre. Quanto mais o tempo passa, mais fica claro que o mandatário que hoje se expõe ao cercadinho é um leão sem dentes, domesticado pelos profissionais — da política, do lobby, dos negócios.

Nesse contexto, o “excesso” do fundo eleitoral é só um detalhe.


Dualidade de políticas marca comunicação do governo Bolsonaro nas redes sociais

Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Um episódio emblemático demonstra que o governo Bolsonaro passará a ter duas políticas, que podem se antagonizar no decorrer do processo. No mesmo dia em que o novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), sentava na cadeira de ministro, a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou nas redes sociais uma mensagem comemorativa do Dia do Agricultor, com uma foto de um homem armado com um rifle, em vez das tradicionais imagens de agricultores exibindo as mãos calejadas, suas ferramentas de trabalho ou mesmo um trator. Diante da repercussão negativa, a nota foi substituída por uma tabela com indicadores de invasões de terra. Para bom entendedor, foi um recado subliminar de que a paz no campo seria obtida fazendo justiça pelas próprias mãos.

Sabe-se que Bolsonaro governa com um grupo de generais de sua confiança — Luiz Ramos, transferido para a Secretaria-Geral da Presidência; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e o general Braga Netto, ministro da Defesa — e o clã formado com os filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado federal) e Carlos (vereador), o verdadeiro responsável pela política de comunicação do governo e operador das redes sociais de Bolsonaro. Foi dele, provavelmente, a ideia de publicar a foto. Como em outros momentos do governo, toda vez que Bolsonaro se afasta da narrativa de sua campanha eleitoral, como agora, ao empoderar o Centrão no Palácio do Planalto, logo surge alguma coisa que sinaliza para a base bolsonarista que o presidente não abandonou seus compromissos de extrema-direita.

Político profissional habilidoso, Ciro Nogueira não é ingênuo e sabe muito bem o que vai enfrentar na Casa Civil para mudar o eixo de atuação do governo. Trata-se de abandonar a radicalização e o confronto com os demais Poderes e optar por uma política de formação de maioria no Congresso e reaproximação com os eleitores que se afastaram de Bolsonaro, por causa do seu radicalismo e do mau desempenho do governo. Sua presença na Casa Civil não terá nenhum sentido se tudo continuar como antes. Bolsonaro até tentou retroceder do convite, mas não lhe foi possível, porque seria uma desfeita com Nogueira e o PP oferecer-lhe outra pasta de menor importância. Políticos profissionais não são como generais que aceitam ordem unida, tudo tem algum tipo de barganha.

O novo ministro da Casa Civil, porém, precisa fazer uma demonstração de força política. Até agora, seu maior trunfo é o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A oportunidade para isso será a cerimônia de posse no cargo, prevista para o próximo dia 3, à qual pretende convidar os velhos caciques do PP remanescentes da antiga Arena e do PDS, como Delfim Neto e Francisco Dorneles, e seus aliados dos demais partidos do Centrão. Nos bastidores no Senado, o Palácio do Planalto tenta se reaproximar da maioria da bancada do MDB, que tem dois líderes de governo, o do Senado, Fernando Bezerra (PE), e o do Congresso, Eduardo Gomes (TO). A ideia é forçar uma reunião para desautorizar o líder, Eduardo Braga (AM), e o relator da CPI da Covid, senador Renan Calheiros (AL). Não é da tradição da legenda confrontos dessa ordem, porque o MDB é uma confederação de caciques regionais, que convivem na divergência, uns na oposição e outros na base do governo.

Verdades e mentiras
A maior demonstração de que há uma dualidade de políticas no Palácio do Planalto foi dada pelo próprio presidente Bolsonaro, que voltou a responsabilizar o Supremo Tribunal Federal (STF) pela desastrosa atuação do Ministério da Saúde, ao afirmar que uma decisão da Corte impediu que o governo combatesse a pandemia. A resposta do STF foi inédita e pelas redes sociais, o que assinala uma mudança de postura.

Seu presidente, ministro Luiz Fux, mandou divulgar um vídeo no qual parafraseou o chefe de propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não. É falso que o Supremo tenha tirado poderes do presidente da República de atuar na pandemia. É verdadeiro que o STF decidiu que União, estados e prefeituras tinham que atuar juntos, com medidas para proteger a população. Não espalhe fake news! Compartilhe as #Verdades-doSTF”. Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-dualidade-de-politicas/

'Confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema', diz Arthur Lira

Presidente da Câmara dos Deputados defende manutenção do calendário eleitoral

Raphael Di Cunto / Valor Econômico

BRASÍLIA - O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou ontem que é completamente comprometido com a democracia no país e que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, já desmentiu qualquer ameaça à realização das eleições em 2022 se não for aprovada a proposta de emenda constitucional (PEC) do voto impresso.

“[Eu] Não precisava ser claro [ao negar o caso nas redes sociais] porque o próprio ministro, em nota oficial, desmentiu o acontecido. Eu não participei da conversa”, disse Lira, em entrevista à GloboNews. “O ministro deixou claro que não fez e, naquele momento, a mim, de maneira muito coerente, não cabia tocar fogo num momento de recesso. Cabe, sim, tratar do que interessa: teremos sempre a eleição como forma de escolher nossos dirigentes no Brasil”, reforçou.

O jornal “O Estado de S. Paulo” publicou na semana passada que um presidente de partido levou a Lira, no começo de julho, uma ameaça feita pelo ministro da Defesa, ao lado dos comandantes das Forças Armadas, de que não ocorreriam eleições em 2022 se a PEC que exige a impressão de um comprovante do voto para futura auditagem não fosse aprovada pelo Congresso. Braga Netto negou em nota a ameaça e disse que não se comunica com presidentes dos Poderes através de intermediários, mas defendeu o debate “legítimo” sobre a PEC. Lira respondeu a matéria nas redes sociais e não negou que tenha ouvido a ameaça, mas defendeu que o julgamento dos eleitores sobre os políticos ocorrerá nas urnas.

Ontem o presidente da Câmara não fez comentários específicos sobre a defesa de Braga Netto do voto impresso, mas, em outro trecho da entrevista, quando comentava sobre a reforma eleitoral e dizia que não influenciaria na decisão dos deputados sobre o tema, o presidente da Câmara afirmou que “muitas pessoas opinam muito sem poder opinar porque deveriam se restringir ao seu mister constitucional”.

“Não entro nessa briga de dizer que o sistema não é confiável, mas, por confiável que seja, não vejo nenhum problema em ter regras de auditagem se parte da população e dos parlamentares pede esse debate”, afirmou Lira. “Mas repito: confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema pelo qual fui eleito oito vezes.”

A votação da PEC deve ocorrer na comissão especial no dia 5 de agosto e a tendência é pela rejeição após presidentes de 11 partidos se reunirem com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e defenderem a confiabilidade das urnas eletrônicas. Aliados do presidente Jair Bolsonaro marcaram manifestações no dia 1º de agosto a favor da PEC. Lira disse ontem que os partidos decidirão democraticamente e que, independentemente do resultado, “ocorrerão eleições em outubro de 2022, de 2024 e 2026”.

Ele afirmou que a nomeação do presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), para ministro-chefe da Casa Civil “demonstra que o caminho” escolhido por Bolsonaro “é o do diálogo e não há nenhum risco à democracia”. Na opinião dele, o aliado conseguirá melhorar a articulação política do governo com o Congresso, o Judiciário e até internamente, com “mais firmeza nas proposições em que o governo tem que demonstrar unidade” e uma negociação mais efetiva no Senado.

O presidente da Câmara voltou a defender que não há condições políticas e sociais para abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro e afirmou que as propostas da oposição que repassam ao plenário o poder de decidir sobre a instauração do processo são “casuísmo”. “Casuísmo é isso, é ficar discutindo situação de querer mudar uma regra quando já existe e persiste há vários anos”, afirmou, citando que presidentes da Câmara do PT e do PSDB seguraram processos contra seus governos.

Segundo Lira, a Câmara começará a analisar na primeira semana de agosto os projetos de reforma do Imposto de Renda, privatização dos Correios e reforma eleitoral. Se a PEC que muda o sistema de eleição para deputado for rejeitada, serão votados projetos para valorizar o voto em mulheres e reservar vagas para elas no Legislativo.


Amigos de Israel se necessário, amigos do antissemitismo sempre que possível

A verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias

Rarael Kruchin e Sebastião Nascimento

Nos últimos dias, a sorridente recepção de Jair Bolsonaro, seu gabinete e deputados da base governista a Beatrix von Storch, representante do partido neonazista alemão AfD (Alternativa para a Alemanha), foi o “último suspiro” para aqueles que ainda achavam que Jair Bolsonaro e seus seguidores tinham qualquer apreço pelos judeus.

Mas não é de hoje que o governo Bolsonaro vem nos familiarizando com algo que se mostra cada vez mais comum nos círculos da extrema direita mundo afora: é possível defender simbolicamente Israel e, ao mesmo tempo, quando o assunto é a memória do Holocausto e as vidas e preocupações dos judeus de carne e osso, ter uma postura negacionista e próxima ao antissemitismo.

Observadores da política brasileira há muito destacam o uso sistemático de símbolos ligados ao Estado de Israel por parte do atual governo. Já durante a campanha eleitoral de 2018, a bandeira israelense tremulou em inúmeros comícios tanto do candidato à Presidência da República quanto de postulantes a cargos do Legislativo próximos a ele. E ainda tremula em manifestações pautadas pelo negacionismo da tragédia da pandemia e de ameaças renitentes ao processo democrático. O próprio Jair Bolsonaro e os chamados “bolsonaristas” têm utilizado estridentes declarações de um suposto apoio a Israel para se defenderem quando veem denunciada sua proximidade a ideias, figuras e expressões do nazifascismo europeu.

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Com a mesma profusão das bandeiras agitadas, avolumam-se os episódios de declarações de membros e aliados do governo que emulam, evocam ou aludem ao legado nazifascista. O Museu do Holocausto, em Curitiba, já se declarou estarrecido por não passar sequer uma semana sem que se veja obrigado a denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou um ato supremacista.

Alguns desses momentos assustaram pela desfaçatez com que foram acolhidos e normalizados,

  • como o slogan da campanha presidencial de 2018 (Brasil acima de tudo), paráfrase direta do slogan nazista Deutschland über alles;
  • ou quando Ernesto Araújo em dezembro de 2018 afirmou que a cerimônia de posse de Bolsonaro representava o “triunfo da vontade” do povo, rigorosamente o mesmo slogan celebrizado no filme de propaganda nazista de 1934 Triumph des Willens, que retrata o grande comício de Nuremberg, considerada a cerimônia de entronização de Hitler como Führer da Grande Alemanha;
  • ou a homenagem do Exército em julho de 2019 ao major nazista von Westernhagen;
  • ou a difusão pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência em maio de 2020 de uma versão local do infame bordão Arbeit macht frei,que adornava os portões de entrada de Auschwitz e de tantos outros campos nazistas de extermínio;
  • ou quando, em janeiro deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão, após ter sido acusado de tramar para derrubar o presidente, renovou seu compromisso com Bolsonaro proclamando “minha honra está ligada à lealdade”, ligeira paráfrase do bordão hitlerista “Meine Ehre heißt Treue”, adotado como lema pela SS para se contrapor às hostes da SA acusadas de tramar contra a liderança do partido nazista.

Outros momentos, porém, assombraram o mundo, como o vídeo oficial de lançamento do Prêmio Nacional das Artes publicado em janeiro de 2020 pelo então secretário de cultura Roberto Alvim — no qual não só a estética nazista é celebrada como são solenemente reproduzidas passagens inteiras do discurso do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels — e mais recentemente a visita a Brasília de Beatrix von Storch, representante do partido alemão de extrema direita AfD, agremiação reconhecidamente racista e xenofóbica, que abriga grande número de destacadas figuras do neonazismo alemão e que é investigada em diversos processos pelo Estado alemão por conta de sua atuação para minar a ordem democrática do país.

Na Alemanha, provocações da extrema direita com o intuito de acolher ou normalizar o legado nazista e testar os limites da ordem constitucional democrática não foram recebidas com a mesma leniência que no Brasil. Vêm-se acumulando contra a AfD, desde sua fundação em 2013 e mais intensamente desde sua entrada no Parlamento Federal em 2017, investigações, processos e condenações judiciais, além de declarações formais de repúdio e chamados para o isolamento e o boicote ao partido da parte de todo o espectro da sociedade civil organizada na Alemanha. Praticamente todas as entidades representativas da comunidade judaica declararam formalmente a AfD como agrupamento antidemocrático, racista e antissemita, dedicado a reviver a ideologia nazista. Movimentos similares e com alcance igualmente amplo foram observados da parte das comunidades católicas, evangélicas e muçulmanas, das entidades atuantes na proteção de pessoas com necessidades especiais e psiquiatricamente vulneráveis, dos grupos de defesa da comunidade LGBTQIA+, das entidades representativas das comunidades sinti e roma e engajadas no combate ao anticiganismo, todos unidos na denúncia dos esforços do partido em promover a ideologia nazista e de sua incompatibilidade com o convívio numa sociedade plural e democrática.

Na Alemanha, nenhum outro partido no Parlamento Federal ou nos parlamentos estaduais admite negociar com a bancada da AfD, nenhuma figura pública alemã que preze a democracia e o humanismo se digna a ser fotografada ou sequer a apertar a mão de seus representantes. No Brasil, porém, foi com fraternos abraços e amplos sorrisos, que Beatrix von Storch e seu marido foram recebidos na semana passada pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Marcos Pontes (que, diante da repercussão negativa, apressou-se em remover os registros do encontro), pelos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF) e pelo próprio presidente.

Fora da Alemanha, são raríssimos os casos de autoridades de Estado que recebem representantes da AfD. Antes da calorosa recepção em Brasília, as poucas ocasiões em que seus emissários realizaram encontros oficiais com altos escalões governamentais mundo afora haviam sido ao visitar membros do regime genocida de Bashar al-Assad em Damasco em 2018 e 2019 e em viagens à Rússia em 2020 e 2021, no auge da reação internacional à repressão e eliminação física dos opositores, para demonstrar a prontidão que têm em emprestar seu apoio de duvidoso valor a regimes contestados e isolados.

Embora a AfD mobilize fortes e inegáveis elementos neonazistas, costuma também enaltecer Israel e o sionismo. Foi justamente essa a retórica que Bia Kicis utilizou para se defender das acusações de ter se encontrado com a representante de um partido racista, xenófobo e neonazista. Contrariando as críticas, ela disse que a AfD é, no fundo, um partido amigo de Israel. Mas a verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias. Até porque, a Israel que professam apoiar não condiz com a realidade local. Ao contrário, trata-se de uma construção quase ficcional, que ignora por completo a pluralidade e os elementos progressistas e seculares do Estado de Israel contemporâneo.

Uma pesquisa realizada em 2017, às vésperas da entrada da AfD no Parlamento Federal alemão, procurava avaliar o posicionamento dos candidatos mais viáveis de todos os partidos diante da relação entre Alemanha e Israel. Em todos os tópicos que diziam respeito à política israelense, a AfD se colocava como pró-Israel. Porém, quando o assunto era a situação dos cidadãos judeus na Alemanha, a migração, a responsabilidade alemã sobre o Holocausto e o imperativo da educação das novas gerações sobre o tema — tópicos estes que contavam com posição 100% favorável dos membros de todas as outras agremiações políticas —, ao chegar à AfD, esbarrava em uma posição dividida e ambígua. Ou seja, em meio a todo o espectro político-parlamentar alemão contemporâneo, há um só partido disposto a atentar contra um tema tão sensível na Alemanha, assumindo-se “reticente” em relação ao passado nazista, que foi o partido que o governo brasileiro abraçou.

É nesse sentido que os abraços trocados com Beatrix von Storch constituem o registro mais recente e palpável de que o suposto apoio a Israel, de ambos os lados, não representa apoio algum aos judeus ou à comunidade judaica. Isolados no cenário global, Storch e seu partido, tanto quanto Bolsonaro e seus seguidores, tentam se agarrar à simbologia de Israel como quem se agarra a uma bóia de salvação num abraço de afogados.

Rafael Kruchin é mestre em sociologia pela USP, coordenador executivo do Instituto Brasil-Israel e pesquisador colaborador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da Unicamp

Sebastião Nascimento é mestre em direito internacional pela USP, doutorando em ciências sociais pela Universität-Flensburg, na Alemanha, e pesquisador do CEMI-Unicamp


Ditaduras não começam com tanques nas ruas, mas com o estupro da linguagem

Eliane Brum / El País

O que você acha? Vai ter golpe ou não?”. Esta é a pergunta recorrente, do sul ao norte do Brasil. Diferentes grupos têm marcado reuniões privadas pela Internet para debater o assunto. Encontros virtuais com a família, a versão pandêmica do famoso almoço de domingo, desde a eleição de 2014 mais perigoso do que um vidro inteiro de pimenta malagueta, foi tomado pelo tema. Eu mesma ouço essa pergunta várias vezes por dia. Há pessoas respondendo a convites internacionais com um texto padrão: “Atualmente, a média de mortes por covid-19 no Brasil é de mais de 1000 por dia, a variante Delta está se espalhando pelo país, a vacinação é lenta e Jair Bolsonaro pode dar um golpe a qualquer momento. Assim, torna-se difícil confirmar minha presença com tanta antecedência. O mais prudente seria confirmar o mais perto possível da data....”. Quando se torna corriqueiro falar sobre a possibilidade de um golpe de Estado e planejar os dias já incluindo essa “variável” é porque o golpe já está acontecendo —ou, em grande medida, já aconteceu. O golpe já está.

Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.  

Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.

No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.

No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.

Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?

É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.

O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.

É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.

A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.

Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.

Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.

Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.

As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.

As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.

A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.

Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.

Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Toque de retirada

Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão da vulnerabilidade a que está exposta a condução da política econômica

Salta aos olhos a escalada de dificuldades que vêm sendo enfrentadas pela condução da política econômica nos últimos meses, em decorrência da perda de ascendência do governo sobre o Congresso. Basta ter em conta episódios recentes mais marcantes para discernir os contornos de um processo, cada vez mais claro, de avanço do Centrão sobre a condução da política econômica.

Não é que o governo tenha perdido o controle do Congresso para a oposição. Longe disso. O que se observa é algo bem distinto. Fragilizado como está, o governo perdeu ascendência sobre o bloco parlamentar que supostamente lhe dá apoio. Matérias de seu interesse acabam, sim, sendo aprovadas pelo Congresso. Mas sempre à moda do Centrão. O governo já não tem como impedir que sejam brutalmente desfiguradas.

É o que fica claro quando se tem em conta os episódios do orçamento secreto, da pilhagem da privatização da Eletrobrás e, agora, da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com amplo espaço para reedição do orçamento secreto, em 2022, e triplicação do financiamento público de partidos políticos nas eleições do ano que vem.

Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão dessa vulnerabilidade tão séria a que está claramente exposta a condução da política econômica. E, dessa perspectiva, é fácil perceber quão temerária foi a decisão do governo de enviar ao Congresso, justo agora, um projeto tão complexo de reforma da tributação direta no País.

Mesmo que se tratasse de projeto cuidadosamente concebido e bem articulado, sobre o qual o governo tivesse inabalável convicção, ainda teria sido decisão imprudente, tendo em conta o alto risco de que, nas atuais circunstâncias, as medidas propostas acabassem desfiguradas no Congresso. Tendo em vista, contudo, que não se trata em absoluto de um projeto bem concebido e que, sobre ele, nem mesmo o Ministério da Economia se mostra convicto, a decisão já não pode ser considerada meramente imprudente. Só pode ser percebida como deplorável temeridade.

Constatados os furos, as inconsistências e as desarticulações do projeto, o que agora se vê é o complexo sistema de tributação de renda pessoal, lucros e aplicações financeiras no País sendo drasticamente reconcebido pelo Centrão, ao sabor de uma pororoca de lobbies de todo tipo. No Congresso, brinca-se com dispositivos e parâmetros tributários com a mesma leveza com que uma criança encaixa peças de um jogo de armar, ao acaso, sem maiores preocupações com o que está sendo montado. Não é excesso de pessimismo temer que disso dificilmente sairá um sistema de tributação direta melhor do que o que hoje se tem.

Vendo-se agora relegado a mero coadjuvante na tramitação da reforma no Congresso, o ministro da Economia tem razões de sobra para estar alarmado com o desfecho que poderão ter as negociações no Legislativo quando, afinal, o projeto for votado em plenário, na Câmara e no Senado.

Tudo indica que o presidente, devidamente alertado, já compartilha dessa apreensão. Há poucos dias, Bolsonaro achou oportuno esclarecer que, a seu ver: “Houve um exagero por parte da Economia na reforma tributária, já está sendo acertado com o relator. Realmente, a Receita, no meu entender, como é muito conservadora, foi com muita sede ao pote”. E acrescentou: “Mesmo sendo projeto meu, se passar no Congresso e chegar para mim aumentando a carga tributária, eu veto” (O Globo e Estadão, 21/7).

A ameaça de veto é uma solução descabida. Mas ainda há tempo de evitar o pior. Não é a primeira vez que o governo constata que submeteu ao Congresso um projeto equivocado e impensado. Quando isso ocorre, a solução natural é a simples retirada do projeto. É inegável que há muito o que aprimorar na legislação de Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas. Mas, nas atuais circunstâncias, o que de melhor o governo poderia fazer é retirar o projeto do Congresso e deixar a reforma que faria sentido para momento mais oportuno. Se o Centrão consentir, é claro.

*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO


Um Brasil sem futuro

Falta um ano para as eleições presidenciais, e só tem turbulência em volta. Mas, entre disparates golpistas, a Arena renascendo e os generais aloprados, temos outro problema grave. No longo prazo, talvez mais grave. Quem frequenta o circuito dos encontros com pré-candidatos, lê atento os jornais e conversa com políticos de todos os partidos logo percebe o tamanho. Quase nenhum dos principais líderes políticos vive no século XXI. Constroem suas ideologias, à direita ou à esquerda, sobre os alicerces de uma realidade que não mais existe. E isso quer dizer que, como está, não importa que grupo suceda a Bolsonaro. Governará o país sem um diagnóstico da transformação em curso.

Há exceções. Alguns deputados federais e mesmo senadores, um ou outro dirigente partidário, mesmo técnicos e acadêmicos que dão apoio às candidaturas. Mas são exceções e, quase sempre, gente com influência menor nos altos-comandos das legendas.

Isso não tem rigorosamente nada a ver com idade. Joe Biden é um político do tempo da Guerra Fria que já se candidatara à Presidência quando a internet apareceu, já concorrera duas vezes à Casa Branca quando se falou a sério de mudanças climáticas e, quase octogenário, redirecionou o Estado a toda no sentido da era em que vivemos.

Sua visão de EUA se traduz em dois pilares. Uma sociedade e uma economia que sejam digitais e verdes. As frentes para tocar esse projeto, no entanto, são muitas. Uma é dar infraestrutura ao país para que possa crescer nesse caminho. Isso quer dizer redes físicas de banda larga por toda parte. Também quer dizer subsídios, investimentos e incentivos para a conversão de antigos e criação de novos negócios. Mas também é um cuidado pesado com retreinamento de mão de obra. E, principalmente, a compreensão de que, se a operário basta o ensino médio, no século XXI um percentual maior da população precisa ter formação superior. Este é um século em que o PIB está relacionado ao número de cérebros bem-educados. País que não dá universidade a muita gente é país pobre.

Outra perna do trabalho é enfrentar os monopólios do Vale do Silício. Há motivos pontuais — a pandemia de desinformação, que abala democracias e faz morrer gente. Mas, no médio e longo prazos, é mais que isso. Com talentos e recursos financeiros concentrados em poucos grupos fortes demais, como é a natureza dos monopólios, a criação trava, o mercado congela, a inovação desaparece.

Operários em fábricas não voltarão mais. Toda a classe em cima da qual Karl Marx ergueu sua leitura de uma revolução futura deixará de existir. Afinal, “quarta era industrial” é metáfora, não descrição. A Era Industrial acabou. Assim como o tempo do combustível fóssil está terminando — sim, ele resistirá ainda um quê a mais, só que não muito. Bata na porta de uma petroleira, e a moça da recepção logo corrigirá: “Não, aqui somos uma empresa de energia”.

Isso não quer dizer que não exista mais necessidade de esquerda. O digital criou um tipo de precarização de serviços, com Ubers e Rappis, que precisa ser resolvido. Tampouco aponta para a extinção da direita — empresários precisam de mais apoio do que nunca para fazer a transição digital. É um processo complexo, difícil, inevitável — que, no Brasil, não está sendo feito em inúmeros setores. Isso torna o país ainda menos competitivo.

A conta da incompetência de todos os governos passados com educação chegou. Precisaremos resolver a educação pública de qualidade com urgência. Isso e um projeto econômico verde para a Amazônia são as prioridades do próximo Planalto. Só que formar daqui a 20 anos não bastará. Os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski vêm defendendo um programa de importação de cérebros. Estão certos, e é inevitável.

É o básico para qualquer governo pós-pesadelo.


Recibo de estelionato

A ida de Ciro Nogueira para a Casa Civil muda o desenho dos negócios em Brasília. Até aqui, o Centrão se limitava a fazer escambo: alugava apoio parlamentar e sacava sua parte em cargos e benesses. Agora o bloco vai trocar o balcão pela gerência da loja. Passará a mandar sem intermediários.

O chefão do PP se reaproximou do poder em junho de 2020, quando Jair Bolsonaro começou a sentir o cheiro do impeachment. Para socorrê-lo, Nogueira exigiu o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A autarquia cuida de temas que não costumam emocionar os políticos, como a aquisição de livros didáticos e a organização do transporte escolar. Seu segredo está no orçamento, que ultrapassa os R$ 50 bilhões anuais.

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro ajudou outro pepista, Arthur Lira, a se eleger presidente da Câmara. A ascensão do deputado aumentou o poder de barganha do Centrão. O grupo capturou o Ministério da Cidadania, abocanhou a Secretaria de Governo e agora assume a Casa Civil, coração da máquina federal.

No presidencialismo brasileiro, o chefe da Casa Civil acumula poderes próximos aos de um premiê. Coordena os ministérios, comanda investimentos em infraestrutura e filtra o que sai no Diário Oficial. É o cargo dos sonhos para quem gosta de políticas públicas e para quem busca outros tipos de recompensa do poder.

Para acomodar Nogueira, o capitão chutou mais um general: Luiz Eduardo Ramos será rebaixado a secretário-geral da Presidência. O militar se disse “atropelado por um trem”, mas não demorou a recuperar os sentidos. Horas depois da demissão, sorria ao lado do chefe num estádio de futebol.

O novo ministro é um bolsonarista tardio. Há três anos e meio, descrevia o capitão como “um fascista”. Seu modelo de estadista era Lula, “o melhor presidente da história deste país”. A seu favor, ele não é o único a mudar repentinamente de opinião.

Na campanha, Bolsonaro prometeu combater a “velha política” e definiu o Centrão como “a nata do que há de pior no Brasil”. Ontem ele escancarou que o personagem vendido em 2018 era pura ficção. “Eu sou do Centrão”, disse. “Eu nasci de lá.” Ao autografar a nomeação de Nogueira, o presidente assinará mais um recibo de estelionato eleitoral.