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O preço e a saúde da democracia brasileira

O Centrão carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar o dinheiro público

Quando o Congresso aprovou uma verba de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral, muitos, como eu, protestaram. É o preço da democracia, falou-se em defesa do assalto ao Tesouro. De fato, as eleições têm um preço para todos, sobretudo depois que se decidiu transitar do financiamento privado para o público. Precisava ser um preço tão alto?

A ideia na transição era a de que os gastos excessivos, as campanhas rocambolescas dariam lugar a um processo de debates, e com custos mais modestos. Reconheço que a expressão custos mais modestos tem um valor subjetivo. No entanto, outro argumento se impõe: já que são gastos públicos, devem ser orçados com transparência.

Não foi o que aconteceu. A transparência desejada deu lugar a uma opacidade calculada. O fundo eleitoral deveria ser votado em destaque separado.

Nessa hipótese, os defensores da proposta deveriam explicar o sentido daquela soma de R$ 5,7 milhões. Por que esta soma e não outra, que cálculos os levaram a concluir por um volume de recursos quase três vezes superior ao que foi votado no passado recente?

Adianta pouco pessoas que conhecem a complexidade e os mistérios da política dizerem pura e simplesmente: o volume é esse e pronto, um custo democrático. O que se espera é uma discussão transparente e realista sobre os custos eleitorais, até porque podem ser feitos ainda num contexto de pandemia. Caem as internações, mas a variante delta avança no Brasil e já é a segunda encontrada entre as novas contaminações.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumentou numa entrevista que os gastos eram apenas um quarto dos custos totais das eleições. Mais uma razão para nos inquietarmos: se isso é verdadeiro, as eleições no Brasil custarão R$ 24 bilhões. As de 2018 teriam custado R$ 21,8 bilhões e não estávamos devastados pela pandemia. Não estou acrescentado a esse custo os R$ 2 bilhões necessários para implantar o voto impresso, uma bandeira de Bolsonaro que já está desbotando na Câmara, embora tenha sua votação apenas adiada.

Há algum tempo os especialistas consideram as eleições brasileiras as mais caras do mundo. Em 2006, o brasilianista David Samuels comparou as eleições brasileiras e americanas: as nossas custaram entre US$ 3,5 bilhões e US$ 4,5 bilhões, ante US$ 3 bilhões nos EUA. Os cálculos de Samuels não incluem o chamado horário eleitoral gratuito, que tem esse nome para atenuar seu impacto nas contas, mas representa custo real para o País.

O ato de orçar as eleições brasileiras não envolve, pois, apenas uma parte do preço da democracia, mas também uma porção considerável de sua saúde, expressa em legitimidade.

Dominado pelo Centrão, o Congresso sente-se forte ante um presidente acossado por mais de uma centena de pedidos de impeachment. E carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar dinheiro público.

Esse movimento perdulário não se esgota no fundo eleitoral. O próprio Estado denunciou uma espécie de orçamento secreto, em que as emendas parlamentares são destinadas sem transparência.

Esse processo foi introduzido por meio de um artifício que intitularam “emendas do relator”. Só neste ano Arthur Lira deverá dispor de R$ 11 bilhões para destinar a deputados e partidos fiéis, dentro dessa rubrica.

O chamado preço da democracia brasileira está influenciando a sua saúde. Todos os ressentimentos que já existem sobre a atuação do Congresso acabam ganhando dimensão maior quando se acrescentam essas variáveis financeiras.

Por essas razões foi necessário protestar contra o fundo eleitoral. Bolsonaro não pode simplesmente vetá-lo. Será necessário buscar uma saída conciliatória, pois não podemos voltar subitamente ao financiamento privado.

Aliás, a situação de Bolsonaro é muito cômoda. Ele é candidato e seus gastos de campanha até o momento não são computados como tal. Eles são bancados pelo governo federal, que financia seus deslocamentos no Brasil para passear de motocicleta e fazer discursos eleitorais, às vezes disfarçados, às vezes não. Os custos da campanha já em curso não se esgotam aí. Seu passeio no Rio custou ao Estado R$ 645 mil na montagem do esquema de segurança. Em São Paulo, esse custo praticamente dobrou e foi a R$ 1,2 milhão.

Bolsonaro venceu as eleições em 2018 surfando a onda da luta contra a corrupção e o desprezo do sistema político pelas preocupações das pessoas comuns. Alguns analistas acham que Bolsonaro venceu por causa de um moralismo primário dos eleitores e de alguns formadores de opinião. Essa acusação de moralismo se volta agora contra quem protesta pelo alto custo do fundo eleitoral. No entanto, nosso protesto pode resultar em economia concreta para os cofres públicos, sem prejuízo da disputa eleitoral.

Esses R$ 5,7 milhões serão de alguma forma reduzidos.

A análise do moralismo é precária se não leva em conta o fato de que o sistema político continua de costas para a sociedade e prepara reformas ainda mais escabrosas que o valor do fundo eleitoral.

O grande perigo para a democracia acontece quando o povo se volta contra ela. É o aprendizado que o processo de redemocratização tem de fazer, para evitar que aventuras autoritárias se tornem viáveis de novo.


Vera Magalhães: São todos cúmplices

Não resta espaço para dúvida de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ameaçando caso o voto impresso não fosse aprovado.

Lira trucou a ameaça e, como o governo Jair Bolsonaro tem DNA golpista, mas é eminentemente composto de pessoas despreparadas e algo covardes, o presidente e seu general recolheram as ameaças, ao menos por ora, e o resultado foi que o PP e o Centrão avançaram algumas casas para tomar conta de tudo — se apossando de novo até de espaços dos militares.

Foi o Centrão que tirou o general Eduardo Pazuello da Saúde. Mantendo Roberto Dias, o assessor que o general e seu sub, o coronel Elcio Franco, não conseguiram demitir.

Agora é de novo um alto expoente do PP, seu presidente, Ciro Nogueira, que faz outro general pegar o quepe. Luiz Ramos, assim como Pazuello, verga a espinha e aceita ir para um ministério de menor importância.

O mesmo faz Paulo Guedes, ao bater continência para o capitão e para a ala política que já comanda a maior parte do Orçamento e aceitar perder um naco de seu “superministério” para acomodar outro demitido de luxo.

Para onde esses arranjos por baixo da mesa levam o Brasil? Para a esculhambação institucional e política a cada dia mais absoluta e para a constatação óbvia de que não temos um governo, mas uma bodega tocada à base de muita fisiologia, nenhum trabalho, zero planejamento e uma única ideia fixa: a reeleição cada vez mais difícil de alguém que nunca poderia presidir qualquer país.

Quem ameaçou, Braga Netto, e o aliado de quem foi ameaçado, Ciro Nogueira, dividirão a mesa às reuniões ministeriais como se nada tivesse acontecido. O resto das autoridades, aquelas a quem sempre cobro neste espaço, seguirão fingindo acreditar nos desmentidos frouxos, sem se dar conta de que, de bravata em bravata, vai-se corroendo a democracia a partir de dentro.

Está claro que Braga Netto não fala em nome do conjunto das Forças Armadas. Mas também resta evidente que a quantidade de golpistas que ousam dizer suas ideias em voz alta é maior hoje no meio militar que em 2018. Isso já é altamente nocivo para o ambiente político e institucional brasileiro. E nos cobrará um preço enorme.

Também é evidente que Lira, Nogueira e os demais “progressistas” — ah, as ironias das siglas partidárias — não vão com Bolsonaro para uma tentativa canhestra de invasão do Congresso, à Trump. Mas também é cristalino quanto ganharam poder e dinheiro do Orçamento, em múltiplas frentes, só para blindar o presidente e tentar ajudá-lo a se livrar da CPI da Covid e a emplacar seus nomes no Senado.

Além dos bilhões das emendas do relator, nome oficial do orçamento secreto cujo tesoureiro é Lira, agora há o fundão multiplicado. Será que Bolsonaro, agora que o PP deixou vazar a ameaça de Braga Netto e que Ciro Nogueira está de mudança para o Planalto, vai mesmo vetar a farra? Ainda mais diante da possibilidade de fusão de PSL, PP e DEM, partido que pode ser seu próprio destino numa cara campanha eleitoral no ano que vem? Difícil de acreditar nisso, hein?

Não espanta que Bolsonaro, diante desse cenário, declare seu amor filial ao Centrão. Nem mesmo surpreende que os militares, tirados por ele da caserna, comecem a demonstrar nostalgia da ditadura.

Mas chama muito a atenção o silêncio covarde dos que se diziam democratas, iam às ruas pedir o fim da corrupção — e agora se calam diante da escalada diária de mortes, ruína social e econômica e autoritarismo.

São industriais, integrantes do mercado, profissionais liberais e outros que apertaram 17 e agora não têm a coragem de admitir que elegeram o pior presidente do Brasil. São tão cúmplices quanto os fardados e o Centrão.


Folha de S. Paulo: Debate do voto impresso é legítimo, diz Braga Netto

Militar também deu recado indireto a ministros do STF que têm atuado nos bastidores pela manutenção do atual sistema

Daniel Carvalho e Danielle Brant, Folha de S. Paulo

Ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto fez coro com o presidente Jair Bolsonaro e disse em nota nesta quinta-feira (22) que existe no país uma demanda por legitimidade e transparência nas eleições.

Segundo ele, mais uma vez levantando uma bandeira bolsonarista, a discussão sobre o "voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima".

“Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas as instâncias”, afirmou o militar.

“A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima, defendida pelo governo federal, e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema”, afirmou, em um recado indireto a ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta quinta afirma que o ministro teria mandado um recado por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de que, sem a aprovação do voto impresso, não haveria eleições em 2022.

Braga Netto negou. O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que as eleições de 2022 serão realizadas independentemente da aprovação ou não da proposta do voto impresso.

"É lógico que vai ter eleição. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana", disse.

"Lógico [que] não [tem espaço para um regime autoritário]. Que regime autoritário? O Brasil é um país, a sociedade brasileira é complexa. Acontece que tem muita gente ainda na sociedade brasileira que está olhando pelo retrovisor; olha 50, 60 anos atrás sem entender o processo histórico que nós estamos vivendo."

Ministros do Supremo articularam com 11 partidos um movimento contra a mudança na urna eletrônica e botaram em xeque a maioria que Bolsonaro tinha em relação ao tema na Câmara.

Bandeira do bolsonarismo, o voto impresso quase foi derrotado em reunião na sexta-feira (16) em uma comissão especial da Câmara, mas uma manobra de governistas adiou a votação para 5 de agosto, depois do recesso parlamentar, que vai de 18 a 31 de julho.

O tema tem sido usado insistentemente por Bolsonaro para fazer ameaças golpistas contra as eleições de 2022. Ele já afirmou, várias vezes, que, se a mudança não ocorrer, não haverá eleições. Uma reação de 11 partidos, porém, virou o jogo e, até a última sexta, garantia uma maioria para rejeitar a proposta.

Mesmo que avance na comissão especial, para aprovar uma PEC são necessários ao menos 308 votos na Câmara (de um total de 513 deputados) e 49 no Senado (de um total de 81 senadores), em votação em dois turnos. Para valer para as eleições de 2022, a proposta teria que ser promulgada até o início de outubro.

Ou seja, as chances de a proposta prosperar para o próximo pleito eram consideradas remotas mesmo antes da fala de Bolsonaro admitindo a provável derrota.

Nas últimas semanas, Bolsonaro provocou uma crise institucional ao afirmar que as eleições de 2022 podem não ocorrer caso não seja adotada uma modalidade de voto confiável —na visão dele, o impresso.

Sem apresentar provas, Bolsonaro alegou mais uma vez ter indícios de fraude na eleição presidencial de 2014, apesar de o próprio derrotado no segundo turno daquele ano, o hoje deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), ter declarado não acreditar que tenha existido essa irregularidade naquela disputa.

O mandatário também já afirmou —de novo sem provas— que houve fraude na eleição de 2018, quando ele derrotou Fernando Haddad (PT). A alegação de Bolsonaro é que ele teria recebido mais votos do que os que foram computados. Ele nunca apresentou evidências dessa acusação.

Como mostrou a Folha na semana passada, em meio a essa crise, Braga Netto virou o "provocador-chefe da República", na opinião de ministros do Supremo e mesmo de alguns de seus subordinados na cúpula militar.

Na visão dessas autoridades, o general tem sido tão bolsonarista quanto o chefe, estimulando o clima de conflito institucional que o próprio presidente tentou abafar após ter sido admoestado pelos chefes do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e do TSE, ministro Luís Roberto Barroso.

Isso tem incomodado diversos oficiais-generais. Integrantes da cúpula do Exército e da Marinha afirmaram que a polêmica nota em resposta ao senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid que falara sobre o "lado podre" das Forças Armadas, foi uma imposição de Braga Netto aos comandantes militares.

Ainda nesta quinta-feira, na mesma nota em que trata do voto impresso, Braga Netto disse que existe no país uma tentativa de criar “uma narrativa sobre ameaças feitas por interlocutores a presidente de outro Poder” e afirmou não se comunicar com presidentes de outros Poderes por interlocutores.

“O Ministério da Defesa reitera que as Forças Armadas atuam e sempre atuarão dentro dos limites previstos na Constituição”, diz o comunicado.

“A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições nacionais, regulares e permanentes, comprometidas com a sociedade, com a estabilidade institucional do país e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro."

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta quinta afirma que o ministro teria mandado um recado por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de que, sem a aprovação do voto impresso, não haveria eleições em 2022.

De acordo com o jornal, Lira teria dito ao interlocutor que não participaria de nenhuma ruptura institucional. Abordado por jornalistas ao chegar ao Ministério da Defesa, Braga Netto chamou a reportagem de "mentira, invenção".

Também nesta quinta, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, disse ter conversado com Braga Netto e com Lira e afirmou que ambos “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”.

“Temos uma Constituição em vigor, instituições funcionando, imprensa livre e sociedade consciente e mobilizada em favor da democracia”, afirmou.

Questionado pela Folha sobre o teor da reportagem, Lira respondeu "MENTIRA", em letras maiúsculas. Ao tratar do assunto em uma rede social, o presidente da Câmara, no entanto, não desmentiu as ameaças.

"A despeito do que sai ou não na imprensa, o fato é: o brasileiro quer vacina, quer trabalho e vai julgar seus representantes em outubro do ano que vem através do voto popular, secreto e soberano”, escreveu.

“As últimas decisões do governo foram pelo reconhecimento da política e da articulação como único meio de fazer o país avançar."

O deputado se referia à decisão de Bolsonaro de convidar o presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), para ser ministro da Casa Civil, em substituição ao general Luiz Eduardo Ramos.

Com o movimento, Bolsonaro dá mais poder ao centrão, bloco do qual Lira faz parte e que era criticado em discurso pelo presidente da República.

Também nesta quinta-feira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), publicou no Twitter uma mensagem na qual afirma que as decisões sobre o sistema político-eleitoral cabem ao Congresso e que as eleições são inegociáveis.

"Seja qual for o modelo, a realização de eleições periódicas, inclusive em 2022, não está em discussão. Isso é inegociável. Elas irão acontecer, pois são a expressão mais pura da soberania do povo​", escreveu.

Em uma rede social, Gilmar Mendes, ministro do STF, escreveu: "Os representantes das Forças Armadas devem respeitar os meios institucionais do debate sobre a urna eletrônica. Política é feita com argumentos, contraposição de ideias e, sobretudo, respeito à Constituição. Na nossa democracia, não há espaço para coações autoritárias armadas".

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seguiu na mesma linha, também em postagem: "Não serão ameaças golpistas e autoritárias que vencerão a democracia brasileira. Nossas instituições são sólidas. Teremos eleições em 2022".


O Globo: Mourão afirma que é 'lógico' que Brasil terá eleições mesmo sem voto impresso

Vice-presidente afirmou que país não é 'república de banana' e questionou quem iria 'proibir eleição'

Daniel Gullino, O Globo

BRASÍLIA — O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta quinta-feira que é "lógico" que o Brasil terá eleições no ano que vem mesmo sem a aprovação do voto impresso, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Mourão disse que o país não é uma "república de banana" e questionou quem iria "proibir eleição".

Leia mais:Ministro da Defesa nega ameaça às eleições e diz que cabe ao Congresso decidir sobre voto impresso

Há duas semanas, Bolsonaro afirmou que não haverá eleição no ano que vem se a disputa não for "limpa". O presidente não explicou o que ele considera uma eleição "limpa", mas ele tem defendido uma mudança no sistema de votação, apesar de nunca ter apresentado nenhuma prova de fraude no modelo atual.

— É lógico que vai ter eleição (mesmo sem voto impresso), pô. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana — disse Mourão, ao chegar no Palácio do Planalto no início da tarde.

O vice-presidente ressaltou, no entanto, que ele também é favorável à proposta de voto impresso.

Mourão também questionou uma reportagem do jornal "O Estado de S. Paulo" que afirmou que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, teria feito uma ameaça e condicionou as eleições de 2022 ao voto impresso. De acordo com a publicação, Braga Netto enviou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por meio de um interlocutor que não teve o nome revelado.

— Eu conheço o ministro Braga Netto há muito tempo, sei que ele não manda recado e não é, vamos dizer, da forma dele proceder que as coisas ocorressem dessa forma, até porque é um assunto que não diz respeito (a ele).

Veja também: 'Eu sou do Centrão', diz Bolsonaro em aceno ao PP

Braga Netto negou que tenha feito ameaças às eleições e afirmou que a discussão e a decisão acerca do voto impresso cabem exclusivamente ao Congresso Nacional, onde tramita uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.


Igor Gielow: Episódio Braga Netto é primeiro tiro do centrão para desalojar militares

Comandantes em geral defendem voto impresso, mas não endossam suposta ameaça às eleições

Na operação de ocupação do agônico governo Jair Bolsonaro pelas forças do centrão, os militares novamente pagaram o preço de ter apadrinhado o capitão reformado do Exército em 2018 e integrado sua administração de forma ostensiva.

O episódio no qual o ministro Walter Braga Netto (Defesa) foi apontado como mentor de uma ameaça de golpe contra as eleições de 2022 é apenas o primeiro salvo no conflito que se seguirá, com o centrão buscando desalojar os militares da miríade de cargos que amealharam no governo federal.

Foi um movimento ao mesmo tempo sofisticado, por envolver alguns fatos reais, e tosco, pelo explícito de seu objetivo.

Ninguém, seja dentro das Forças Armadas, no governo ou no Congresso, tem dúvida de que Braga Netto é hoje um dos mais bolsonaristas ministros de Bolsonaro.

Que ele defenda o tal voto auditável por impressão, não é novidade. Praticamente toda a cúpula militar brasileira o faz em conversas reservadas.

Fazer dessa defesa, inadequada porque afinal de contas ele é ministro que cuida de militares e não de área política, uma ameaça de suspensão do pleito do ano que vem é outra coisa. Mesmo que o relato apresentado pelo jornal O Estado de S. Paulo seja fidedigno, não haveria tropas disponíveis para tal intento.

Ao menos neste momento, já que no Brasil até o passado é incerto, na frase atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Só o fato de haver a discussão sobre o papel institucional das Forças já diz muito do estado em que o país está e obriga monitoramento atento.

O vazamento da versão traz elementos verdadeiros. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), esteve de fato com Bolsonaro e disse que não toparia aventuras antidemocráticas —esta Folha mesmo o reportou.

Mas o contexto era posterior à fala do presidente ameaçando as eleições, feita em público na semana retrasada. Disse Lira que iria até a uma derrota no ano que vem, mas só isso.

O mundo político caiu em cima de Bolsonaro, que aquiesceu por um momento, acelerando inclusive o processo de mudança no governo em nome de uma sobrevivência mínima visando a campanha de 2022.

Braga Netto não disfarçou seu intento na nota que publicou, onde novamente arrogou às Forças Armadas poderes constitucionais inexistentes, como a tutela sobre a "liberdade dos brasileiros". O ministro é incorrigível, como sua nota ameaçando a CPI da Covid já provara, reforçando a imagem de tigre de papel de seus comandados.

Alguns oficiais-generais ouvidos nesta quinta (22) voltaram a se queixar do ministro, naturalmente sob reserva. Consideram que o texto que editou para negar ter feito ameaças a Lira poderia dispensar a defesa da suposta vontade legítima dos brasileiros pelo voto impresso.

Leite derramado, o substrato da confusão é duplo. Bolsonaro ganhou vapor para sua decadente campanha pela mudança legal que não irá ocorrer, e que muitos temem ser a semente para uma reação anárquica caso seja derrotado nas urnas em 2022.

E o centrão, quem diria, ganha a pecha de defensor da democracia acossada ao mesmo tempo em que arrebenta as porteiras do governo que estaria ameaçando as instituições.

De quebra, o plano supõe que os militares sob fogo irão bater em retirada, deixando sob as ordens do derrotado general Luiz Eduardo Ramos as casamatas (e as mamatas, para ficar na terminologia presidencial) para os novos inquilinos.

Para um governo altamente militarizado, a impressão que fica é que, neste primeiro assalto, os fardados tomaram uma surra do antigo inimigo —que, diga-se de passagem, deixou tal condição desde pelo menos meados do ano passado, quando o namoro ora consumado começou.

Seja como for, foi uma primeira batalha. A guerra continua, com impactos institucionais ainda imprevisíveis, ainda mais com um comandante supremo notável em sua instabilidade.


O Estado de S. Paulo: Partidos querem enterrar ideia do voto impresso

Ideia é que a proposta, uma resposta a Braga Netto, seja votada na volta do recesso legislativo, em agosto

Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Os presidentes do PSDB, DEM, MDB, Solidariedade e PSD articulam a derrubada da proposta de emenda à Constituição (PEC) do voto impresso, defendida pelo governo. O movimento já existia há algumas semanas, mas agora ganhou impulso, após a ameaça do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, de não haver eleições em 2022 caso o Congresso não aprove o voto impresso, conforme revelou o Estadão. Há outros partidos que são contra a PEC, mas esses são os que encabeçam a linha de frente do movimento para adiantar a votação e rejeitar o texto.

A mobilização dos partidos foi informada pela CNN e confirmada pelo Estadão. Na prática, os partidos se mobilizam para evitar qualquer possibilidade de adiamento da comissão formada para analisar o tema. A ideia é que a proposta seja votada logo na volta do recesso legislativo, na primeira semana de agosto.

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“O nosso trabalho é para rejeitar esse absurdo”, disse o presidente do DEM, ACM Neto, ao Estadão. “Essa coisa do Braga Netto acaba reforçando a articulação contra (a PEC)”, declarou o ex-prefeito de Salvador. “A gente vai fazer tudo para votar esse negócio do voto impresso e derrubar logo na comissão”, completou o presidente do DEM.

Como mostrou o Estadão, a Comissão Especial da Câmara sobre o tema chegou a ter maioria de votos favoráveis para aprovar voto impresso, mas presidentes de partidos e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) agiram para trocar os integrantes da comissão e deixar o texto sem apoio suficiente. No fim de junho, presidentes de 11 partidos fecharam um posicionamento contra o voto impresso. Os caciques das legendas, incluindo os da base do presidente Jair Bolsonaro no Congresso, decidiram derrubar a proposta discutida na Câmara e patrocinada pelo chefe do Planalto.

Na semana passada, no último dia antes do recesso legislativo, deputados contra a PEC tentaram convocar o colegiado para rejeitar o texto, mas o presidente da comissão, o deputado bolsonarista Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), adiou a votação com uma manobra regimental. “O presidente (da comissão) fez uma manobra e não deixou votar. Se tivesse concluído a votação, a gente tinha derrubado”, disse ACM Neto.

‘Ameaça do Braga Netto aumentou a indisposição com a PEC’, diz deputado

O deputado Fábio Trad (PSD-MS), integrante titular da comissão especial, afirmou que a “orientação do partido é para rejeitar”. De acordo com ele, as ações do ministro reforçam as articulações contra a ideia. “Esta ameaça do Braga Netto aumentou a indisposição com a PEC”, declarou.

A proposta de emenda à Constituição do voto impresso é uma das principais bandeiras políticas do presidente Jair Bolsonaro, que já deu declarações consideradas golpistas ao dizer que “ou fazemos eleições limpas ou não temos eleições”. 

Bolsonaro afirma, seguidamente, que sem esse mecanismo as eleições serão fraudadas. Ele também repete, sem nunca ter apresentado qualquer prova, que teria vencido a eleição de 2018 já no primeiro turno e que o deputado Aécio Neves (PSDB) venceu a disputa de 2014, algo que o próprio tucano disse não acreditar.  

Voto impresso auditável

O voto impresso já foi implantado em caráter experimental nas eleições presidenciais de 2002 — e acabou reprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Naquele ano, para testar o sistema, a medida foi adotada em 150 municípios, atingindo 6,18% do eleitorado.  

“Sua introdução no processo de votação nada agregou em termos de segurança ou transparência. Por outro lado, criou problemas”, apontou um relatório do TSE. 

O tribunal concluiu que, nas seções com voto impresso, foram maiores o tamanho das filas e o percentual das urnas que apresentaram defeitos, além das falhas verificadas apenas nas impressoras.  “Houve incidência de casos de enredamento de papel, possivelmente devido a umidade e dificuldades de manutenção do módulo impressor”, apontou o relatório do TSE.  

No Distrito Federal, que adotou o voto impresso em todas as seções eleitorais em 2002, o índice de quebra de urna eletrônica no primeiro turno foi de 5,30%, enquanto a média nacional foi bem inferior: 1,41%.

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Bernardo Mello Franco: Os estribos do general

O novo ministro da Defesa está empenhado em agradar o chefe. Walter Braga Netto estreou no cargo com uma exaltação ao golpe de 1964. Em seguida, passou a usar cerimônias militares para endossar o discurso do capitão.

Ontem o general aproveitou a troca de comando do Exército para fazer mais um comício bolsonarista. Às vésperas da Cúpula do Clima, ele tentou rebater as críticas da comunidade internacional pela devastação da Amazônia. “Os brasileiros que estão presentes na região sabem que a floresta continua de pé”, afirmou.

A patriotada não apaga o que as imagens de satélite mostram ao mundo. Ao analisá-las, o Imazon constatou que o desmatamento em março foi o maior para o mês nos últimos dez anos.

Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que “é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso.

O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de “intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições”.

Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI.

O general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão “prontas” e “sempre atentas à conjuntura nacional”. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de “meu Exército”.

Braga Netto assumiu a Defesa no momento em que o presidente cobrava mais manifestações de apoio dos militares. Sua primeira medida foi derrubar o general Edson Pujol, que tentava controlar a exploração política da tropa.

Ontem o ministro se despediu do ex-comandante com um bordão da caserna: “Que nossos estribos se choquem em cavalgadas futuras”.


Bruno Boghassian: Militares mantêm escolta política e retórica golpista de Bolsonaro

Novo ministro da Defesa indica que vai seguir discurso de intimidação do presidente

Se alguém tinha dúvidas sobre as intenções de Jair Bolsonaro ao trocar o comando das Forças Armadas, basta acompanhar os pronunciamentos do novo ministro da Defesa. Em poucas semanas, o general Walter Braga Netto mostrou que pretende manter a escolta política dos militares ao governo e seguir a retórica conflituosa do presidente.

Desde o início do mandato, Bolsonaro usa as Forças Armadas como ferramenta para intimidar adversários políticos e outros Poderes. Foi assim em seu embate com governadores e em ameaças que fez ao STF. Braga Netto indicou que vai ajudar o presidente nesse delírio autoritário.

Na semana passada, com o governo acuado pela CPI da Covid, o ministro agiu como auxiliar político de Bolsonaro e repetiu a tática de desviar o foco das investigações. "O uso de recursos pelos gestores dessas instâncias, estadual e municipal, deve ser acompanhado pela população e sofrer apuração rigorosa", declarou.

Braga Netto reforçou o gesto de continência nesta terça (20), na posse do novo comando do Exército. Num recado ao Congresso e ao Judiciário, disse que "é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros".

"A sociedade, atenta a essas ações, tem a certeza de que suas Forças Armadas estão prontas a servir aos interesses nacionais", completou. O general só não quis explicar por que os militares deveriam vigiar o que ocorre no terreno da política.

Em contraste, o comandante demitido fez um discurso burocrático, quase sonolento. Edson Pujol passou longe da cartilha bolsonarista e apresentou um relatório de gestão que mencionava até a sinalização de trânsito no setor militar de Brasília.

O antecessor de Braga Netto também dava guarida ao presidente. Fernando Azevedo e Silva sobrevoou com Bolsonaro uma manifestação golpista e assinou uma mensagem ao STF em tom ameaçador, mas foi derrubado mesmo assim. O novo ministro já provou que está disposto a cumprir as missões políticas do chefe para ficar mais tempo no cargo.


Fernando Gabeira: Bem-vindos à Neverlândia

A França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por aqui.

Isso que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar de Neverlândia.

É um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num quadro da oposição.

No final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a luz de padaria e um cenário com cores berrantes.

Em Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta & Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.

Em Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.

Em Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes musculares.

Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.

Aquele país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais. Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.

A ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está aí.

Será um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição para a Neverlândia.

Para reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da Federação, mas um estado de espírito.

Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.

Éramos um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era, indiretamente, uma atração turística.

A pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.

A sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.

Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.

Estamos diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.

Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência.

Mas e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.


O Estado de S. Paulo: CPI da Covid põe militares no foco das investigações

Já na mira do TCU, os generais Eduardo Pazuello e Walter Braga Netto devem estar entre os primeiros a serem ouvidos pela comissão parlamentar no Senado

Mateus Vargas e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Nem o presidente Jair Bolsonaro nem os governadores. A Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Senado para investigar a atuação do governo na pandemia deve mirar primeiro nos militares. Os generais Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa, que comandou um comitê de crise quando estava na chefia da Casa Civil, entre outros oficiais, devem ir a um incômodo “banco dos réus”. Ambos os generais entraram na mira do Tribunal de Contas da União (TCU) e de membros da CPI.

A convocação de Pazuello já era certa, mas ontem senadores da CPI combinaram de incluir entre os primeiros a serem ouvidos também o atual ministro da Defesa. A decisão ocorre após o Estadão revelar que técnicos do TCU consideraram que Braga Netto não atuou de forma a “preservar vidas” quando comandou o comitê da crise. O general teria entrado em contato ontem com ministros da Corte para se defender e tentar sair da mira do tribunal, cujos relatórios costumam pautar as CPIs. Ao Estadão, o Ministério da Defesa negou que o comitê tenha sido omisso com a crise.

Membro da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) disse que as apurações não podem ficar restritas à conduta do ex-ministro Pazuello. “O Ministério da Saúde não é só Pazuello. Existe uma estrutura organizacional de cargos, com responsabilidades. Quando o Pazuello foi ao Senado, por exemplo, o secretário executivo dele (o coronel da reserva Elcio Franco) estava do lado”, disse. Sobre a conduta de Braga Netto, afirmou: “Vamos averiguar, pedir informações ao TCU. A investigação vai ditar os requerimentos de informações e as convocações”.

“Não tenha dúvida que vamos discutir a convocação de Braga Netto. Acompanhamos tudo dos relatórios do TCU, do MPF e denúncias. Vamos atrás de cada uma. O relatório do TCU é muito rico, vai ser uma base importante para os trabalhos”, reforçou o senador Humberto Costa (PT-PE), que também integra a comissão.

“Na medida em que a CPI busca fazer uma radiografia completa da atuação do governo federal no combate à pandemia, avaliar a atuação do comitê presidido pelo ministro Braga Netto será provavelmente indispensável”, complementou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores da CPI.

Diante dos novos fatos envolvendo militares, interlocutores do Planalto já avaliam que o governo estará no lucro se os debates da comissão se limitarem a Eduardo Pazuello. Sua equipe mais próxima na Saúde era formada por cerca de 20 nomes da ativa e reserva.

A disposição dos senadores, contudo, é convocar todos a depor em sessões transmitidas ao vivo. Eles não costumam ter parcimônia com seus investigados e a história registra episódios em que depoentes saíram presos de comissões. Razão pela qual é cada vez mais frequente que depoentes acionem o Supremo Tribunal Federal (STF) para não serem obrigados a dar as caras e prestar depoimentos. Uma CPI também tem poderes para quebrar sigilos fiscal, telefônico e bancário.

“Estão fazendo prejulgamento antes de instalar a CPI. Não é um tribunal de inquisição, temos que ter calma. Já estão condenando, isso não funciona. Primeiro, temos que ver o que está acontecendo”, disse o senador Jorginho Mello (PL-SC), um dos dois governistas na CPI, que tem 11 membros.

Alertas

Sob comando de Pazuello na Saúde, o Brasil saltou de cerca de 15 mil óbitos para 300 mil vítimas da pandemia e tornou-se uma ameaça global. Na quarta-feira passada, o TCU acusou o general de alterar o plano de contingência da Saúde na pandemia para livrar o governo de responsabilidades no monitoramento de estoques de medicamentos, insumos e testes.

A obediência de Pazuello ao presidente ficou nítida em outubro de 2020, quando cancelou uma compra de 46 milhões de doses da Coronavac. “É simples assim. Um manda e outro obedece”, disse na ocasião. A promessa de aquisição da vacina havia enfurecido Bolsonaro, pois os dividendos políticos iriam para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Ainda em fevereiro, um ministro do STF demonstrava, em conversa reservada com o Estadão, a preocupação diante da possibilidade de os militares serem alvo de uma CPI. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, que mirou agentes da reserva e questões da história, havia criado uma crise na cúpula militar e um estranhamento entre o governo Dilma Rousseff e a caserna.

Nesta semana, o ministro Gilmar Mendes disse ao Estadão não temer problemas institucionais. Ele observou que os militares foram “reprovados” na gestão pública e defendeu o direito da CPI de investigá-los. Em julho de 2020, o ministro já havia afirmado que o Exército estava se associando a um “genocídio”.

Enquanto Bolsonaro atacava a vacina, as Forças Armadas foram vitais para turbinar a produção da cloroquina, sem eficácia comprovada contra a covid-19. O Laboratório do Exército fez 3,2 milhões de comprimidos na pandemia. O lote anterior, de 2017, foi de 256 mil. A passagem de Pazuello na Saúde ainda ficou marcada por críticas sobre a omissão do governo no colapso no Amazonas. 

O Ministério da Saúde afirmou que “desde o início da pandemia tem trabalhado incansavelmente para salvar vidas”. Braga Netto não quis comentar.

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Vinicius Sassine: Braga Netto assume Defesa com Exército ressentido e crítico a gestos de Bolsonaro na pandemia

Cúpula militar volta a se incomodar com o presidente após anúncio de uso das Forças Armadas como reforço à vacinação

O general da reserva Walter Braga Netto toma posse no cargo de ministro da Defesa nesta terça-feira (6), na presença de Jair Bolsonaro e com parte expressiva da cúpula do Exército ainda ressentida com a troca dos principais postos de comando efetuada pelo presidente na semana passada. A ação detonou a maior crise militar já vista desde a redemocratização.

Generais que integram o Alto Comando do Exército (a maior das três Forças Armadas) criticam em conversas reservadas o mais recente discurso de Bolsonaro sobre a pandemia.

No sábado (3), ao lado do novo ministro da Defesa, o presidente afirmou que as Forças vão começar a participar da aplicação de vacinas contra a Covid-19 e que os quartéis têm condições de colaborar nesse sentido.

No mesmo contexto da fala de Bolsonaro, Braga Netto e o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) discutiram no fim de semana a participação dos militares na vacinação. Queiroga afirmou que essa era uma determinação do presidente.

A fala incomodou a cúpula do Exército porque, segundo militares em postos de decisão, a Força já colabora há tempos com a vacinação, em parceria com instituições e governos locais.

Militares também defendem que, após ser demitido por Bolsonaro, o general Edson Leal Pujol não deve sair pela porta dos fundos do comando do Exército.

A recente crise militar começou quando o presidente demitiu o general da reserva Fernando Azevedo e Silva do cargo de ministro da Defesa, no começo da tarde da segunda passada (29). Braga Netto, então, foi deslocado da Casa Civil da Presidência para o ministério.

No dia seguinte, diante de um movimento dos líderes das três Forças para entregar os cargos, Bolsonaro demitiu os comandantes. Na quarta (31), os novos comandantes de Exército, Aeronáutica e Marinha foram escolhidos e anunciados pelo ministro.

Até agora, não há informações sobre quando e como serão feitas as trocas de comandos. “A data e outros detalhes de passagem de comando do Exército serão definidos após a avaliação e adequação das agendas das autoridades envolvidas no evento, sendo oportunamente informada”, disse o Exército, em nota.

A cúpula da Força quer que a troca de comando ocorra de maneira formal e conforme protocolos militares de eventos do tipo, dentro das limitações impostas pela pandemia, e não sem nenhum tipo de cerimônia.

Em 11 de janeiro de 2019, Pujol assumiu o cargo com pompa, no Clube do Exército em Brasília, com o ritual militar adotado tradicionalmente nessas cerimônias. Seu antecessor, o bolsonarista Eduardo Villas Bôas, hoje abrigado em um cargo no Palácio do Planalto, compareceu e levou um discurso de transmissão do posto. Bolsonaro e diversas autoridades estiveram presentes.

Um consenso também se formou entre integrantes do Alto Comando do Exército: o general da ativa Eduardo Pazuello, demitido do cargo de ministro da Saúde, não tem condições de retornar à Força, muito menos de voltar a comandar uma tropa.

Pazuello foi ministro de junho de 2020 a março de 2021. Exerceu o cargo e permaneceu na ativa do Exército, com o aval de Pujol. Foi demitido em meio ao descontrole da pandemia –no momento da demissão, o país se aproximava de 2.000 mortes por dia; agora a quantidade diária está perto de 4.000.

O general e ex-ministro é investigado pela Polícia Federal por supostos crimes ao se omitir diante da anunciada crise de escassez de oxigênio em Manaus, em janeiro. Pazuello era investigado em inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao perder o foro especial, o caso foi remetido à primeira instância da Justiça Federal em Brasília. Um processo ainda não foi formalizado.

Na avaliação de generais do Alto Comando, o cargo exercido por Pazuello foi essencialmente político. Tanto que o general encampou a política de “tratamento precoce” que é o carro-chefe de Bolsonaro no combate à pandemia. Medicamentos como a cloroquina não têm eficácia comprovada para Covid.

A cloroquina movimentou as estruturas do Exército e da Aeronáutica. Com aval de Pujol e intermediação do então ministro da Defesa, Azevedo e Silva, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército fabricou 3,2 milhões de comprimidos da droga, a um custo de R$ 1,2 milhão. Aviões da FAB transportaram o medicamento a regiões isoladas na Amazônia.

Um ato do último dia 25, assinado por Pujol, “reverteu, a contar de 23 de março de 2021, ao respectivo quadro o general de divisão intendente Eduardo Pazuello”.

O ex-ministro ainda está sem destino definido. Antes de assumir um cargo da linha de frente do governo Bolsonaro, Pazuello comandou tropas da 12ª Região Militar, em Manaus.

Uma semana depois do começo da maior crise militar desde 1977, as relações ainda não estão integralmente pacificadas, ao contrário do que faz crer uma foto divulgada pelo Exército na quinta-feira (1º), dia seguinte ao anúncio do nome do novo comandante da Força, general Paulo Sérgio de Oliveira.

Aparecem na foto Oliveira, Pujol e Villas Bôas. É o registro de uma visita feita pelos dois primeiros ao ex-comandante, que ganhou um cargo de assessor especial no Planalto desde sua saída do comando do Exército.

Para tentar evitar um aprofundamento da crise, Bolsonaro decidiu respeitar critérios de antiguidade na escolha dos novos comandantes.

Oliveira era o terceiro mais antigo na lista de militares com quatro estrelas e na ativa. O novo comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, era o segundo em antiguidade. E o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, o primeiro da Aeronáutica.

A posse de Braga Netto estava prevista para as 9h no Planalto, sem presença da imprensa e com transmissão pelos canais oficiais do governo federal.

Também participam da cerimônia formal, na mesma ocasião, mais seis ministros anunciados por Bolsonaro no último mês: Flávia Arruda (Secretaria de Governo da Presidência), general da reserva Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Anderson Torres (Justiça e Segurança Pública), Carlos Alberto França (Itamaraty), André Mendonça (AGU) e Marcelo Queiroga (Saúde).


Demétrio Magnoli: Braga Netto, historiador

A ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 foi assinada por Walter Braga Netto, um ministro da Defesa que acabava de ser nomeado em substituição a seu camarada de farda, Fernando Azevedo e Silva, demitido por recusar a subordinação das Forças Armadas aos delírios subversivos de Jair Bolsonaro. No texto, o general vestiu o manto do historiador para, supostamente, inscrever os “eventos ocorridos há 57 anos” no “contexto da época”.

Sabe-se que a ordem do dia estava pronta, assinada por Fernando Azevedo, e foi deliberadamente adotada por seu sucessor para exibir uma imagem de unidade dos comandantes militares. Por isso, deve ser lida como um consenso das cúpulas das Forças Armadas. Seu aspecto mais notável é a tentativa implícita de enterrar o “movimento de 1964” no arquivo do passado.

O general-historiador aprecia o conceito de continuidade e a ideia de harmonia. No texto, o golpe de 31 de março emerge na moldura da Guerra Fria, como derivação longínqua da aliança de guerra contra o nazifascismo, que teve a participação do Brasil. As Forças Armadas não aparecem como agentes principais da derrubada do governo, mas como componente de uma mobilização nacional que abrangeu a “imprensa”, “lideranças políticas”, “igrejas”, o “segmento empresarial” e “setores da sociedade organizada”. Por essa via, a virtude — ou a culpa — fica amplamente distribuída.

Um golpe de Estado constitui, pela sua natureza, uma cisão. Mas a narrativa de Braga Netto exclui a noção de ruptura, tanto para trás quanto para frente. De 1964, o texto salta à Lei de Anistia, de 1979, “um amplo pacto de pacificação”, desviando dos “anos de chumbo” da tortura, que se estenderam até 1976. A acrobacia converte o regime militar em prelúdio necessário das “liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Ditadura produz democracia — a tese paradoxal forma o núcleo do argumento do general.

O exercício historiográfico faz parte da operação política de confrontação dos chefes militares com Bolsonaro. As Forças Armadas declaram-se, hoje, “conscientes de sua missão constitucional” de “defender a Pátria” e “garantir os Poderes constitucionais”. Há, aí, convenientemente oculta, a crítica do golpe de 1964 e, quase explícita, a rejeição dos desvarios golpistas presidenciais. Braga Netto inclina-se à doutrina adotada pelos comandos militares que, desde o processo de abertura, riscaram uma linha no chão separando os quartéis da política.

Na última frase da ordem do dia, tudo que era sólido desmancha no ar. Depois da constatação do óbvio (“o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil”), surge uma conclamação: “Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”. Nela, a conjunção aditiva liga posturas essencialmente diferentes e expõe a fraude.

O historiador busca compreender o passado, mas nunca o celebra. A celebração do golpe militar é um ato político — e, no caso, um gesto condenável, pois nossa Constituição protege a ordem democrática. Atrás do manto que cai, avulta a figura de um agente político. Os militares que servem a Bolsonaro, inclusive os da reserva, reintroduzem a política nos quartéis — mesmo quando afrontam a vontade presidencial.

Toda instituição tem seus lugares de memória. Duque de Caxias e o Marquês de Tamandaré, patronos do Exército e da Marinha, remetem à Guerra do Paraguai. Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, remete à Segunda Guerra Mundial. Por que os militares insistem em celebrar o golpe de 1964, mesmo que sob o pretexto de inscrevê-lo no “contexto da época”?

O governo Bolsonaro representa, entre tantas coisas deploráveis, um projeto de revisionismo histórico. O presidente, um capitão excluído do Exército por indisciplina, assim como seu círculo de místicos extremistas, ergue contra a Constituição o espectro da ditadura militar. A geração atual de militares não participou dos desmandos do regime instituído em 1964. Inexiste um motivo legítimo para que seus expoentes manchem suas biografias associando-se ao revisionismo bolsonarista. Não celebrem um parêntesis sem glória.