Ditaduras não começam com tanques nas ruas, mas com o estupro da linguagem

Foto: Joédson Alves/EFE/El País
Foto: Joédson Alves/EFE/El País

Eliane Brum / El País

O que você acha? Vai ter golpe ou não?”. Esta é a pergunta recorrente, do sul ao norte do Brasil. Diferentes grupos têm marcado reuniões privadas pela Internet para debater o assunto. Encontros virtuais com a família, a versão pandêmica do famoso almoço de domingo, desde a eleição de 2014 mais perigoso do que um vidro inteiro de pimenta malagueta, foi tomado pelo tema. Eu mesma ouço essa pergunta várias vezes por dia. Há pessoas respondendo a convites internacionais com um texto padrão: “Atualmente, a média de mortes por covid-19 no Brasil é de mais de 1000 por dia, a variante Delta está se espalhando pelo país, a vacinação é lenta e Jair Bolsonaro pode dar um golpe a qualquer momento. Assim, torna-se difícil confirmar minha presença com tanta antecedência. O mais prudente seria confirmar o mais perto possível da data….”. Quando se torna corriqueiro falar sobre a possibilidade de um golpe de Estado e planejar os dias já incluindo essa “variável” é porque o golpe já está acontecendo —ou, em grande medida, já aconteceu. O golpe já está.

Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.  

Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.

No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.

No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.

Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?

É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.

O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.

É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.

A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.

Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.

Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.

Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.

As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.

As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.

A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.

Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.

Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

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