arminio fraga

Armínio Fraga: Linha fina e rede furada

Tripé macro é provavelmente o único viável para uma economia moderna e livre

Arminio Fraga / Folha de S. Paulo

Caro Ciro Gomes, atendo aqui a seu convite feito no artigo publicado terça-feira (2) nesta Folha ("A rede está furada") em resposta ao meu de domingo ("Banco Central age como se estivesse pescando com uma linha fina", 31/10). Mantenho aqui o construtivo espírito de busca de convergências. Digo de cara que, sim, a rede (fiscal) está de fato furada!

Uma resposta mais completa pode ser encontrada em artigo que publiquei nesta Folha em 29 de setembro de 2019 ("No final do arco-íris tem um pote de ouro"). Lá está exposta uma estratégia consistente de combate à desigualdade e aceleração do crescimento. Contém, inclusive, propostas praticamente idênticas às suas para o lado da receita, e apresentadas em mais detalhe na revista Novos Estudos Cebrap em dezembro de 2019. Vale dar uma debruçada lá.

Estamos juntos no entendimento de que responsabilidade social e fiscal se complementam e representam uma base sólida para a construção de um futuro melhor. Concordo com a necessidade da construção de um arcabouço fiscal sustentável no tempo (ou seja, robusto para permitir políticas macroeconômicas e sociais anticíclicas).

Não há política anticíclica sem se acumular gorduras em épocas boas. E mais: não há possibilidade de juros baixos e sustentáveis e, portanto, câmbio competitivo, sem a casa em ordem. Não há crescimento sustentado sem estabilidade e previsibilidade na macroeconomia. Não há país que resista a recorrentes crises cambiais e inflacionárias, como sabemos melhor do que ninguém. Não há investimento em infraestrutura sem regras claras para preços públicos e confiança no longo prazo. Não há renda para o trabalhador no caos da inflação e no escuro da bagunça fiscal.

tripé macro foi criado para consolidar o sucesso do Plano Real. Sigo acreditando que é o melhor sistema, provavelmente o único viável para uma economia moderna e livre. Penso que, enquanto foi praticado com disciplina e coerência, gerou bons resultados. Não há nada no tripé que proíba crescimento, muito pelo contrário. Gostaria de ver uma alternativa coerente que pare de pé.

Experimentos voluntaristas de reduções de juros na marra sempre acabaram em inflação mais alta do que antes. Aventuras com controles de preços e de câmbio, com renúncias fiscais e subsídios absurdos e direcionamento massivo do crédito sempre nos levaram ao caos e à desigualdade.

O regime de meta para inflação permite incorporar a inércia de preços (como os administrados) e os choques de oferta, desde que conduzido com transparência e apoiado pelas outras pernas do tripé. Permite também combater recessões e inflações.

Dizer que o tripé vigorou desde 1999 não procede. A criatividade fiscal começou no segundo mandato de Lula, e o colapso final do regime fiscal data de 2014, quando Dilma Rousseff buscava a reeleição.

Destacam-se no "modelo" o uso indiscriminado de subsídios e dos bancos públicos e as pedaladas. Desde então, convivemos com déficits primários, crescimento negativo e desigualdade crescente. Não houve continuidade do tripé.

É verdade que o gasto público vem crescendo há décadas, e com ele a carga tributária. Não dá para falar em reduzir a carga sem reduzir o gasto. Tenho defendido um ajuste de grandes proporções, para ancorar a paz macroeconômica e redirecionar recursos para áreas que, ao mesmo tempo, geram mais crescimento, igualdade e oportunidades (tais como saúde, educação, infraestrutura e uma rede de proteção social melhor).

Sei que você é a favor disso tudo. Mas faltou dizer de onde vêm os recursos. Tenho me esgoelado de repetir aqui que o grosso deve vir de três áreas: dos espaços da receita já mencionados, da folha de pagamentos do setor público e da Previdência. Estes dois últimos itens representam 79% do gasto do governo como um todo! Não temos chance sem uma boa reforma do RH do Estado e de mais esforços na Previdência, que consome 13% do PIB versus 10% para saúde e educação.

Por fim, não procede dizer que recursos foram torrados com a privatização. A extraordinária revolução que ocorreu em vários setores, mormente na telefonia, não teria ocorrido. E o fracasso no setor elétrico, não privatizado e mal regulado, teria sido evitado.

Um abraço cordial.

*Arminio Fraga é sócio-fundador da Gávea Investimentos, é presidente dos conselhos do IEPS e do IMDS, ex-presidente do Banco Central e colunista da Folha

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/11/linha-fina-e-rede-furada.shtml


Foto: Beto Barata\PR

Para onde queremos ir?

Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor

Armínio Fraga
Foto: Beto Barata\PR

Neném Prancha foi um olheiro e treinador de futebol no Rio de Janeiro, famoso por suas frases: “pênalti é uma coisa tão importante que quem devia bater é o presidente do clube”; “quem pede, tem preferência; quem se desloca, recebe”; “o importante é o principal; o resto é secundário”.

Yogi Berra foi o seu equivalente norte-americano, do mundo do baseball. Falando sobre um restaurante em Nova York, disse: “ninguém mais vai lá, está sempre muito cheio”. Minha favorita é: “se você não sabe para onde vai, em geral não chega lá”.

Essa última lição tem tudo a ver com o momento de grande incerteza e ansiedade que vivemos no Brasil. O quadro geral não é bom. Cenários os mais variados se descortinam, muitos a evitar. Faz falta uma visão de longo prazo que sirva de bússola para cada passo do caminho.

Que visão? No topo da lista, preservar a democracia, hoje ameaçada. Me refiro sobretudo à preservação do Estado de Direito, o Império da Lei. Alguns ainda preferem tapar o sol com a peneira. Ignoram que estamos vivendo um momento de estresse nessa área. Manifestações públicas do Executivo contra o Congresso.

Acusações não comprovadas de fraude em eleições. Ameaças de cancelamento de eleições ou de não aceitação do resultado. Tensões crescentes entre Executivo e Judiciário. Participação de militares da ativa no governo. Fake news para todo lado. São sinais assustadores, especialmente quando se leva em conta que em nossos tempos é exatamente assim que as democracias morrem.

Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor. A despeito dos inegáveis avanços ocorridos desde 1985, há bastante espaço para acelerar o ritmo de desenvolvimento do país.

Temos tido dificuldade em avançar. Deixo de lado hoje os detalhes ligados ao necessário aumento da produtividade da economia para focar na importância de uma estratégia responsável e sustentável. Penso na noção de responsabilidade de forma ampla: social, ambiental e fiscal.

Responsabilidade social significa compartilhamento dos frutos e dos riscos do crescimento. Não há desenvolvimento digno do nome sem sucesso nessa área. Vou além: na ausência de políticas inclusivas, não há desenvolvimento possível, posto que a desigualdade compromete a democracia e oferece campo fértil ao populismo e à demagogia.

O Brasil segue imensamente desigual, não apenas sob a ótica da renda, mas também pela reduzida mobilidade social. Temos um longo caminho a percorrer para chegar perto de qualquer noção decente de igualdade de oportunidades. Sem me alongar muito, menciono apenas que nos faltam educação e saúde públicas de qualidade. Temos que reduzir a informalidade (e precariedade) do trabalho e repensar a rede de proteção social. Aspectos regressivos do regime tributário também requerem correção. Uma boa reforma do Estado me parece imprescindível.

No campo ambiental, nos defrontamos com uma questão existencial. O planeta não aguenta o tratamento que vem recebendo da humanidade. Crescimento sem responsabilidade ambiental é uma ilusão. A conta está chegando. Só não vê quem não presta atenção (ou é negacionista).

O Brasil é relevante nessa área. O governo precisa urgentemente dar um cavalo de pau em sua atuação. Somos infelizmente vistos como predadores do planeta, quando deveríamos ser seus defensores. Além do mais, os benefícios de uma mudança de rumo vão além da contribuição para o combate ao aquecimento global: incluiriam melhorias na qualidade de vida da população, tais como águas e ar limpos e saneamento adequado. Temos tudo para ser um paraíso verde, o que elevaria em muito a nossa autoestima.

No campo fiscal, a questão vai muito além da estabilidade macroeconômica que tanta falta nos faz. Uma estratégia de desenvolvimento requer a definição de prioridades para o gasto público. Trata-se de uma questão política e econômica de primeira ordem de grandeza. Um orçamento confuso, opaco, curto-prazista e cronicamente desequilibrado não funciona.


Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2021/07/para-onde-queremos-ir.shtml


Armínio Fraga: O futuro da democracia e os desafios do Brasil

O liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento

Passeando pela minha estante me chamaram a atenção os títulos de vários livros que li (ou folheei...) recentemente: "como a democracia chega ao fim", "como as democracias morrem", "crises da democracia", "por que o liberalismo fracassou?", "o liberalismo em retirada", "o futuro do capitalismo", "a batalha dos poderes" e "o Brasil dobrou à direita".

Não sou tão pessimista, mas é inegável que o liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento. Lideranças populistas e autoritárias consolidam-se mundo afora. A China, que parecia caminhar em direção a alguma abertura, deu um cavalo de pau com Xi Jinping. Nesse cenário, a derrota de Trump é uma luz no fim do túnel.

Seria absurdo pensar que a democracia vai ter que se reinventar? As pressões por mudança vêm de várias frentes: a crescente desigualdade, a falta de mobilidade social, a incerteza quanto ao emprego, ameaçado pela tecnologia, as dinâmicas das redes sociais, as questões existenciais da mudança climática e da biodiversidade, as tensões do nacionalismo e os riscos do populismo. Há pressa!

Dei costas para a minha estante, desisti da lista acima e peguei na cabeceira uma obra das que mais gostei nos últimos tempos: a biografia do irlandês conservador Edmund Burke, membro do parlamento britânico, publicada em 2013 pelo também parlamentar Jesse Norman. Muito raramente faço anotações nos livros, mas marquei esse, talvez por tocar em questões muito em voga: a ordem social, os partidos políticos, as facções, os princípios da democracia e as possíveis implicações para os nossos tempos.

Correndo o risco de dar uma de Procusto, o personagem da mitologia que mutilava corpos para que se encaixassem em sua cama de pedra, faço aqui algumas pontes entre temas explorados no livro por Burke e Norman e a realidade brasileira.

Inicialmente, cabe uma breve reflexão sobre a ordem social, entendida como uma herança que passa de geração a geração, algo a preservar e a aperfeiçoar, gradualmente. No caso da Grã-Bretanha, aspectos legais e culturais se confundem, num "contrato informal", sem cláusula de escape, entre as gerações passadas, presente e futuras. Essa noção de permanência faz parte da essência do conservadorismo de Burke, e não se confunde com conservadorismo de costumes ou falta de solidariedade social.

No caso do Brasil, um novo "contrato" foi formalmente codificado em 1988, quando da promulgação da nova e muito detalhada Constituição.

Desde então os gastos públicos têm crescido quase que continuamente. A partir desta constatação, muitos concluem que o Brasil é inadministrável ou inviável. Mas cabe algum cuidado aqui. Desde sua promulgação, a constituição foi emendada 108 vezes (versus 27 no caso da americana, promulgada em 1789, sendo que 17 emendas ocorreram após a ratificação da Declaração de Direitos em 1791). Logo, não parece razoável culpar a Constituição por nossos problemas quando o Congresso pode com relativa facilidade aprovar emendas (o que não ocorre nos Estados Unidos).

Uma característica básica do caso brasileiro parece ser que há mais a aprimorar do que a conservar. Um exame do quadro orçamentário do Brasil exemplifica a gravidade do desafio. Por que o Orçamento? Porque é lá que desejos e carências são transformados em prioridades.

A despeito dos gastos públicos terem aumentado cerca de 10% do PIB desde 1988, os investimentos públicos caíram de um pico de 5% para 1% do PIB e os gastos com saúde limitam-se a apenas 4% do PIB (muito pouco para um sistema que se pretende gratuito e universal). Sem falar no desequilíbrio fiscal que se observa desde o descalabro de 2014-2015. A falta de prioridades sugere que o problema não é apenas econômico —é político também.

Tendo um pano de fundo como esse, o Brasil precisa repensar alguns aspectos de sua vida orçamentária, um elemento crucial de qualquer democracia. A despeito de avanços institucionais importantes nas últimas três décadas, o sistema vem deixando a desejar, sobretudo a partir de 2014. A trágica farsa do Orçamento que hoje vivemos não é novidade.

Cabe, portanto, a pergunta mais geral de Burke: como conseguir que a política vá além dos interesses pequenos de todo tipo? A soma destes interesses raramente entrega como resultado o interesse público, o bem comum. Parte relevante das respostas a essa indagação viria, segundo Burke, do bom funcionamento dos partidos "uma força moderadora e promotora de bom governo".

Em tese. Num de seus primeiros escritos, Burke afirma: "no momento não temos entre nós partidos propriamente ditos, apenas facções, sem princípio algum, um bando fazendo intrigas em benefício próprio". Faz algum eco aqui. Com 24 partidos representados no Congresso, sem clareza programática e mesmo ideológica, e nem um deles sequer com mais do que 10% dos assentos, os horizontes se encurtam, os projetos se apequenam e o bem maior da nação fica em segundo plano.

As reformas políticas já aprovadas apontam na direção certa, mas há um longo caminho pela frente. O equilíbrio entre interesses locais, regionais e federal é complexo. O mesmo se pode dizer de interesses temáticos, hoje particularmente presentes com as bancadas.

Não creio que o nosso sistema partidário seja a origem de todos os males. Mas, diante de desafios que só fazem crescer, as chances de sucesso parecem pequenas sem uma significativa melhoria em nossos mecanismos de governança.


Arminio Fraga: ‘Não é só uma crise fiscal, há crise política e institucional’

Ex-presidente do BC ressalta que, enquanto não for superada, pandemia continuará sendo um freio para a recuperação da economia

Cassia Almeida, O Globo

RIO - Ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Gávea Investimentos, o economista Arminio Fraga diz que o Brasil passa por uma crise que vai além da área fiscal. Segundo ele, o Brasil é percebido hoje como um país de visão atrasada, que passa ao largo de grandes debates, como meio ambiente e qualidade da democracia.

Arminio diz que nenhum país cortaria o auxílio à população de forma abrupta. Ressaltou que mesmo em uma situação econômica e sanitária não tão negativa, a saída teria seria “suavizada”.

Tivemos a maior recessão desde o Plano Collor. O que nos espera?

O Brasil, na verdade, sofreu dois tombos. Tivemos o de 2014, 2015 e 2016, e agora esse. Olhando o gráfico com os dados trimestrais do PIB, é qualquer coisa de extraordinário: desde 2012, o PIB caiu mais que subiu. A queda do PIB per capita chegou a bater quase 10%. É um sinal muito ruim.

E a pandemia?

É um momento que requer muita reflexão. A economia só vai ter chance de se recuperar quando a pandemia estiver dominada. Há um consenso de que a reação do governo deixou muito a desejar, custando caro em número de vidas e em termos de PIB. Há a visão clara e pacífica de que, enquanto a pandemia não estiver superada, vai funcionar como um freio.

Há outras fontes de incerteza?

Outra fonte de incerteza é a política geral. Já falei isso no passado e continuo achando que os efeitos qualitativos, como a questão ambiental, a resposta à crise sanitária e temas em geral ligados à qualidade da nossa democracia, como esses vários decretos sobre armas, criam um pano de fundo tenso.

Do lado da economia, o investimento vem muito parado, a taxa de investimento é muita baixa. A do setor público caiu de 5 % do PIB para 1%. Mesmo um liberal como eu consegue imaginar um espaço importante de investimento tipicamente público complementar ao do setor privado.

Há outros pontos de preocupação?

Ao lado, temos um quadro fiscal precário, a respeito do qual pouco se fez. A reforma da Previdência foi aprovada, é importante, mas teremos déficit primário a perder de vista. Com a inflação arregaçando as mangas, o lado fiscal pode ficar ainda mais preocupante. Isso é algo para o que não está se encontrando resposta.

O vento a favor está muito forte lá fora, preço das commodities subindo, uma situação, para o Brasil, rara. Mesmo assim, a taxa de câmbio foi para R$ 5,70. As pessoas deveriam se perguntar o que está acontecendo. É um quadro geral extremamente preocupante, dificílimo, não há como negar.

O auxílio emergencial deve ser mantido?

Como parecia previsível, o governo não tomou nenhuma medida considerada antipática para viabilizá-lo, mas antipático é jogar o país em outra recessão. A situação sanitária recomenda auxílio. Não há a menor dúvida: nenhum país cortaria esse auxílio, nas circunstâncias atuais, de maneira radical. Mesmo em uma situação nem tão ruim, haveria uma saída minimamente suavizada do auxílio.

Sou a favor, mas correr mais risco na economia, caminhar para outra recessão é um risco social incalculável. Algumas pessoas esquecem que a crise do real em 1998 e 1999 foi equilibrada com o tripé macroeconômico (câmbio flutuante, meta fiscal e de inflação), que o colapso da economia entre 2014 e 2016 veio na esteira de um colapso fiscal.

Corremos o risco de colapso fiscal?

A irresponsabilidade do governo não foi surpresa. Vejo o Congresso ansioso, mas mais reativo e não proativo. O que quero dizer é que, quando a chapa esquenta, o Congresso se move. Não vejo o Congresso pensar na estrutura tributária, na reforma do Estado para valer. Cerca de 80% do gasto vão para folha de pagamento e Previdência.

Na esmagadora maioria dos países, inclusive os de renda média, a parcela corresponde a 60%. É um trabalho de uma década. Não é só uma crise fiscal, é muito mais que isso. No Brasil hoje, há elementos de crise política, institucional, da credibilidade do nosso arcabouço maior. O Brasil está com uma imagem externa ruim e, pior, com uma imagem interna também ruim, por isso o investimento aqui, que é o mais importante, está tão fraco.

Como fica a imagem lá fora?

O Brasil fica mal. Em muitas dimensões, é visto como um país que tem visões atrasadas e incompatíveis com as grandes questões existenciais do planeta, sobre meio ambiente, da qualidade da democracia.


Arminio Fraga: Reestatizar o Estado e privatizar as estatais

O Estado empresário falha como Estado e como empresa

Em função da substituição do presidente da Petrobras, várias perguntas têm vindo à tona. Faz sentido o Estado ter empresas? Ter sócios? Subsidiar o preço dos combustíveis?

Reina no Brasil enorme confusão sobre o papel do Estado e das empresas na organização da sociedade. Ao Estado o cidadão delega responsabilidades que incluem da definição de regras de convivência social à provisão de bens e serviços.

Para cumprir seu papel, o Estado tem várias opções: contratar pessoas e atuar diretamente; contratar empresas privadas; criar empresas, com ou sem sócios privados, com ou sem controle acionário e contratar organizações privadas sem fins lucrativos.

Algumas funções são indelegáveis: administrar o Estado, fazer leis, julgar, ter Exército e polícia me parecem casos claros.

Em muitas áreas, a contratação de empresas privadas pelo Estado faz todo sentido. Empresas são organizações que visam maximizar o seu valor, através da geração de lucros ao longo do tempo. Para tanto, buscam minimizar custos e inovar.Um bom exemplo é o saneamento, um setor regulado. Um governo pode licitar o serviço de saneamento de um território ao menor preço. O setor é particularmente adequado ao modelo em função da facilidade de se desenhar e monitorar o contrato. O que se deseja basicamente é entregar água limpa bem como recolher e tratar o esgoto.Privatizações nas áreas das telecomunicações, energia e bancos mostraram que empresas privadas são superiores ao Estado por serem mais eficientes, sem, no entanto, comprometer a qualidade (o que requer monitoramento). Coleta de lixo e correios exibem o mesmo potencial. Em setores não regulados, como petróleo, mineração, aço e fertilizantes o argumento a favor da privatização é ainda mais forte, pois há plena transparência do binômio preço/ qualidade.

Existem razões adicionais para que o Estado não seja dono de empresas. A propriedade cria a tentação da oferta de vantagens a seus clientes, funcionários e fornecedores, não raro em troca de propinas, de motivação política ou meramente patrimonial. Pensem no caso de um banco: empréstimos baratos para aliados, contratos de propaganda com amigos, salários acima de mercado...

Visto por outro ângulo, empresas públicas podem praticar formas disfarçadas de gasto público, que não constam de orçamento, um atentado à democracia e à boa prática econômica. Não deve causar surpresa que os beneficiários dessas benesses sejam contra a privatização.

Em alguns casos, por razões genuinamente estratégicas ou mesmo políticas, o Estado pode querer algum grau de controle sobre os destinos de uma empresa privatizada. Por exemplo, eu não venderia uma das grandes estatais restantes para uma estatal de outro país ou mesmo para uma única empresa privada.

Neste caso, é possível a adoção de um modelo de capital pulverizado, sujeito à criação de uma ação especial (uma “golden share”) que impediria a concentração exagerada do controle da empresa e daria ao governo veto sobre certas matérias.

Minha conclusão, amplamente amparada pela história do Brasil, é de que apenas sob condições muito raras o Estado deve ser dono de empresa. A perda de eficiência e os riscos de desvios de objetivos são muito grandes e desnecessários. O Estado empresário falha como Estado e como empresa.

Em tese, a existência de acionistas minoritários poderia inibir alguns dos desvios e problemas apontados acima. Na prática não tem sido o caso, como se viu no extraordinário caso do petrolão e no ruinoso uso da Petrobras para reduzir os preços dos combustíveis.

O artigo 238 da Lei das SA dá alguma cobertura ao uso de empresas estatais para objetivos não econômicos (a função social). No entanto, com a Lei das Estatais, o Estado passou a ser obrigado a ressarcir os gastos não econômicos de suas empresas, que agora disputam espaço no orçamento. A transparência aumenta as chances de que as prioridades públicas serão respeitadas e ajuda a minimizar as chances de corrupção. Esta lei representa um avanço, mas blindagem plena, só com venda de controle.

De qualquer forma, subsidiar o preço de commodities parece fazer pouco sentido. Por que não subsidiar outros preços na economia? No caso, em função das notórias externalidades negativas do uso de combustíveis fósseis, parece ainda menos recomendável o subsídio. Essa tentação seria bem menor não fosse o Estado o controlador da Petrobras.

Há casos em que a contratação de empresa privada pode não atingir seus objetivos. Em artigo de 1998, o professor Andrei Shleifer, de Harvard, lista condições para tal, com destaque para as dificuldades de se monitorar o impacto das economias de custos sobre a qualidade do serviço.

Nesse caso, existe um espaço a se explorar pela via das organizações privadas sem fins lucrativos (OSs aqui no Brasil, por exemplo). As OSs podem equilibrar custos e benefícios dos modelos estatal e privado. Evidências preliminares no setor de saúde no Brasil mostram resultados bastante díspares, mas os casos de sucesso sugerem que essa pode ser uma boa alternativa.

Outras áreas merecem experimentos privados, com ou sem fins lucrativos, como por exemplo a educação, onde também há problemas de avaliação de desempenho. Cabe estudar melhor o assunto, o que requer maior acesso a dados, para monitoramento e avaliação adequados.

Muitos, inclusive eu, defendem que parte do nosso frustrante ritmo de desenvolvimento decorre de mecanismos políticos que levam à captura do Estado por grupos de interesse —uma “privatização do Estado”. Defendi aqui a desestatização de empresas públicas e mistas e de algumas atividades de interesse público (que fique claro que o financiamento de áreas cruciais como educação e saúde devem seguir na conta do Estado).

Ou seja, é hora de reestatizar o Estado e privatizar as empresas públicas.


Já está no ar edição 28 da Revista Política Democrática Online

Edição de fevereiro destaca entrevista com o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Reportagem especial analisa como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil

Já está no ar a edição 28 da Revista Política Democrática Online. Armínio Fraga é o entrevistado especial desta edição, que teve a participação de Raul Jungmann e Caetano Araújo como entrevistadores.

Clique para acessar a edição 28 da Revista Política Democrática Online

Nesta edição você também pode conferir a reportagem especial escrita pelo jornalista Eumano Silva, que faz uma análise de como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil, com as incertezas aumentadas pelo fim do auxílio emergencial e as falhas na vacinação da população brasileira pelo Ministério da Saúde do Governo Bolsonaro.

A RPD 28 traz, ainda, artigos dos articulistas Mauro Oddo Nogueira, Ivan Accioly, Lilia Lustosa, Henrique Brandão, Nelson Tavares, Dora Kaufman, José Gomes Temporão, Luiz Antonio Santini, Dawisson Belém Lopes e André Amado, além da charge de JCaesar. Confira, também, o editorial da Revista Política Democrática Online.

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RPD || Entrevista Especial - Arminio Fraga: ‘O Brasil está dando um mergulho no passado e sem liderança’

Por Raul Jungmann e Caetano Araújo

Defensor do auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) durante o segundo mandato do Governo FHC é o entrevistado especial desta 28ª edição da Revista Política Democrática Online. Para 2021, o sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país avalia que um novo auxílio seja necessário para ajudar a sustentar a economia. "Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado", acredita.

Armínio Fraga também faz um alerta sobre a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor. “É um perigo monumental”, completa. Para ele, o governo Bolsonaro não está discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. "Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. Espelha enorme incerteza", acredita. Associado fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Fraga também considera a derrota de Trump como muito importante para o Brasil e o mundo. "Se o Biden for na direção de Clinton, de Obama, será um espetáculo", avalia. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à RPD Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Alguns analistas avaliam que, a partir de suas declarações e artigos mais recentes, você poderia considerado como uma ponte autorizada entre os setores liberais e a esquerda democrática. O que pensa a respeito?
Armínio Fraga (AF):
É mais uma torcida do que uma análise. Eu vejo a necessidade de esquecer um pouco os rótulos e pensar nas propostas concretas. Estou convencido – e não digo que seja um teorema – da ideia de que no Brasil, como em muitos outros países, alguns grandes temas têm que andar juntos, eles se reforçam. Na economia são três. Macroeconomia saudável, para organizar um pouco a casa e impedir que haja uma crise a cada cinco, 10 anos. No plano do crescimento, importa cuidar da produtividade para o país crescer. Há décadas que crescemos muito pouco. Houve momentos de luz, mas sempre mais do que compensados por trevas, colapsos, uma desgraça.

Outro ponto não menos importante refere-se ao tema da desigualdade, que, embora não seja monopólio da esquerda, é sua essência. É fundamental olhar para a desigualdade de uma maneira ampla, completa. A pobreza é inaceitável, mas nós temos que ir muito além do combate à pobreza extrema. Temos que criar condições para que as pessoas tenham capacidade de se empregar, ter sua renda, seu espaço, portanto, de oportunidade e mobilidade, e por aí vai. Essa agenda, a meu ver, é de fato uma combinação liberal, social, que não difere muito da agenda do Fernando Henrique Cardoso, tampouco da do Lula em seu primeiro mandato. Naquele momento, parecia que o Brasil político fosse oscilar dentro de um espaço pequeno, um pêndulo que não se tornaria uma bola de demolição, como acho que acabou acontecendo.

Eu me vejo nessa posição. Não sou político, não tenho ambições eleitorais, mas tenho, sim, participado do debate público. Como me dão espaço, procuro aproveitar. E essa ponte, a meu ver, precisa ocorrer mais para o centro, algo mais equilibrado, e não essa loucura que temos hoje, de costumes e ameaças autoritárias, de comportamento truculento, nem tampouco de uma esquerda velha, sonho compreensível, mas que avalio nunca ter dado certo. Menos ainda uma esquerda, entre aspas, que produziu o bolsa-empresário de sete pontos do PIB, quando o Bolsa Família consome meio ponto do PIB. Isso não é esquerda, nem sei muito bem o que era. Embarcou-se numa canoa furada, abraçaram ideias equivocadas e, infelizmente, também a corrupção e tudo mais. Então, se é esse espaço de ponte que querem me atribuir, fico muito feliz, é onde eu gostaria de estar mesmo.

RPD: Você não estaria apostando muito na convicção das pessoas, na capacidade de elas reagirem da maneira descrita? Não faltaria um orquestrador, uma liderança que lhes abrisse o caminho e as conduzisse na aproximação entre o liberalismo e a esquerda?
AF:
Não vejo o que eu faço como sendo uma tentativa política completa, sou apenas uma pessoa que disputa um espaço de opinião. Trata-se de uma tese a ser construída, o que será, em muitos aspectos, difícil. O lado liberal não é muito intuitivo, isso já vem desde Adam Smith. São receitas que, às vezes, levam as pessoas a se sentirem desprotegidas. Penso, assim, que caberia uma campanha de informação, mas isso me faria sair um pouco do meu quadrado.

Há muito tempo venho tentando entender a narrativa da história, por assim dizer. Tentei quando estive no governo. Depois, prossegui conversando com muita gente, inclusive com o próprio presidente Fernando Henrique. Mas como se faz, por exemplo, para lograr vencer o populismo? Muito difícil. Com meu chapéu de economista, diria que é quase impossível. Um dia, ele pode quebrar, mas, até lá, é imbatível, prometendo mundos e fundos, ninguém fazendo contas, ninguém entendendo coisa alguma e, num belo dia, quebramos de novo. Esse é um desafio político de primeira ordem.

Muito francamente, penso que acabaremos reinventando a socialdemocracia. Adaptada às coisas ao século 21. Ótimo: meio ambiente e tecnologia. Eu, por exemplo, sou bem verde. Mas acho que precisamos mais de ideias do que liderança. O Brasil tem de repensar o espaço partidário. Os partidos e suas siglas de hoje não valem nada. Escrevi recentemente na Folha artigo em que mencionei esse ponto. Precisamos evoluir nessa área. Entendo que o número de partidos tende a cair com as cláusulas de barreira e a proibição das coligações, mas, além de uma redução no número de partidos, acho que falta clareza programática, ideológica. Não é suficiente fazer, por exemplo, como tenta fazer o partido Novo que declarou “nós queremos honestidade e eficiência”. Todo partido deveria defender honestidade e eficiência. Falta ir muito mais longe. É necessário mais do que uma pessoa, embora isso sempre ajude. No mundo de redes e de comunicação direta com o eleitorado, o peso da candidata ou do candidato numa eleição presidencial é altamente relevante. Mas, se isso vier sem uma estrutura de valores, de propostas, inclusive no plano partidário, ainda que seja alguma coligação, desde que construída em cima de ideias, temo que o Brasil seguirá patinando.

RPD: Para a retomada do crescimento, o auxílio emergencial poderá ajudar? Qual é o dever de casa que o Guedes deve seguir?
AF:
Guedes se define como um liberal. Ao tomar posse, disse que era um liberal político também, um defensor da democracia. Nada disso se revelou evidente. Há que se distinguir crescimento, que, para mim é algo mais sustentado, de recuperação, esta, mais cíclica, de curto prazo, basicamente o que ocorre na esteira de uma recessão, do que já tivemos dois exemplos gigantes nos últimos sete anos. Na primeira, a recuperação foi tímida, pífia, é um momento ainda muito complicado, mesmo que Temer tenha apresentado boa agenda de reformas. Mas, depois, tudo se complicou, como se sabe, e aí veio o que veio.

Para fazer o país crescer, é outra estória. Temos de incluir na política econômica a educação, a saúde. Depende também de confiança, estando tudo interligado. Uma empresa, quando explora a possibilidade de investir, tem que trabalhar com um horizonte de tempo que vá além da recessão.

Defendi o auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico; antes, uma calamidade colossal, agravada pela não resposta pronta do governo federal. Cabia, pois, um auxílio. Depois ocorreu, e forte, só que veio mal calibrado, talvez por razões meio populistas, talvez por uma expectativa de que o negócio não fosse tão sério ou duradouro assim. Não dá, portanto, para repetir o esforço do ano passado. Algum auxílio tem, porém, que acontecer, para ajudar a sustentar a economia. Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado.

Não acredito que se estejam discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. É um nível que espelha enorme incerteza, grande falta de confiança. Em entrevista live recente, Larry Summers, indicou que, se tivesse de escolher um único indicador para entender o que está acontecendo num país, olharia para o que os investidores locais estão fazendo com o dinheiro deles. No nosso caso, a coisa complica.

Estamos tendo essa conversa logo após as votações do Congresso, e nada sugere uma situação que nos vá encher os olhos, com o Brasil embarcando num outro modelo. Ao contrário: acho que a gente está dando um mergulho no passado e sem liderança.

RPD: O enfrentamento da crise sanitária justificaria o abandono de toda preocupação relativa ao equilíbrio das contas públicas?
AF
: Um governo pode se endividar, um governo que não seja um estado falido, mas isso obedece a várias restrições. Mas a restrição mais básica é ter alguém disposto a emprestar esse dinheiro para o governo. Começando por baixo, a ideia de que emitir moeda, emitir dívida na sua própria moeda, é uma garantia de que não há limite para seguir se endividando é um nonsense completo. Imagine se as pessoas seguirão comprando papel do governo, se entupindo de papel do governo, de um governo que não mostra um rumo, que repetir nossa própria história, a história de nossos vizinhos, de vários países, da própria Alemanha no passado? Acho surpreendente que alguém acredite nisso. Escrevi isso num dos meus artigos na Folha que essa ideia de que um governo, que pode emitir sua própria moeda, siga emitindo dívida sem limite é para mim na verdade uma ameaça. Não é à toa que o dólar está tão alto aqui.

Vamos aos fatos. A política fiscal no Brasil, desde a Dilma (2014), virou uma das políticas fiscais mais gastadoras do mundo. Essa política, que foi um total colapso fiscal, alguém pode defendê-la? Eu não sei como as pessoas falam em austeridade, num país que está com déficit primário e acumulando muita dívida desde 2014. Alguns alegam que valeria a pena se endividar para investir.

Os programas de investimento do governo são difíceis de administrar. Defendo mais investimento público, há muito tempo. Defendo mais eficiência do estado, mas isso não resolve, inclusive porque o investimento público é lento, e nós estamos precisando de uma resposta, do ponto de vista conjuntural, imediata.

Acho que é preciso separar. Reconheço alguns passos, mas a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor, é um perigo monumental. O investimento público cair de 5% do PIB para menos do que 1% é um problema. Mas isso é porque, do outro lado, vários outros gastos aumentaram muito e ocuparam o espaço. Vejamos. A folha de pagamento do governo como um todo cresceu imensamente, a previdência brasileira é extravagante dada nossa relativamente jovem estrutura etária, que vem mudando rapidamente, e, sobretudo a partir da gestão Dilma, o Brasil gastou uma fortuna em subsídios. Segundo relatórios muito bem feitos pelo tesouro nacional, a tal da bolsa empresário, se quiser, os gastos tributários, chegaram a 7% do PIB, inclusive os subsídios do BNDES. O Bolsa Família, só para comparar, é 0,5%.

É evidente que o Brasil precisa reorganizar seus gastos, redirecioná-los na direção de mais produtividade e menos desigualdade, esse é o jogo. De onde vem o dinheiro? Dos gastos e subsídios que mencionei há pouco. Ao contrário dos países avançados, no Brasil, com juros de longo prazos ainda altos, e pouco crescimento e credibilidade, a opção de financiar com mais dívida seria muito arriscada.

RPD: A crise do estado de bem-estar social, na década de 1970, foi seguida, a partir de 2008, pela crise do modelo de auto regulação dos mercados mundiais. Está aberto o caminho para estratégias intermediárias de desenvolvimento?
AF:
A pergunta remete a um mundo que desembarcou do “fim da história” do Fukuyama, onde se supunha a vitória de um modelo liberal-democrático. Mas nada disso aconteceu. O estado-nação está mais forte do que nunca. Estou falando de China, Índia, Turquia, os Estados Unidos sob Trump e de outros casos menores, mas não irrelevantes, como Filipinas e o Leste Europeu, para não mencionar um número de combinações entre modelos econômicos e políticos.

Não bastasse a disseminação de um viés autoritário em muitos países, preocupa ainda mais o modelo econômico chinês. Eles abraçaram o mercado, mas com um controle quase que absoluto do partido, com a presença obrigatória de um membro do partido em todos os conselhos das principais empresas. Quanto ao tratamento da informação, o sentido de privacidade sob o comando do Xi Jinping meio que deu um cavalo de pau. No que parecia ser uma suave caminhada para algum grau de abertura, a partir das bases, ele pisou no freio. Pisou no freio também na internacionalização da moeda chinesa. Várias dessas ideias foram deixadas de lado, ante a introdução do controle de câmbio e de outras medidas duras. É um modelo que assusta, como o foi, no passado, o modelo soviético. Mas o chinês, por estar mais adaptado às realidades do mercado, representa talvez desafio maior para a construção de um mundo livre, aberto e pacífico, bom de se viver.

Representa, no fundo, um desafio para a socialdemocracia, para o liberalismo também, e, embora não me sinta qualificado para dar grandes respostas, arrisco supor um repensar do modelo social-democrático, vale dizer, da ideia de um liberalismo progressista e da própria socialdemocracia, conceitos que considero muito parecidos e que estão em crise. Bastaria mencionar o descontentamento das classes médias, em especial nos países desenvolvidos, diante da concorrência global, de um lado, e dos avanços da tecnologia, de outro. É um quadro que requer respostas urgentes, entre as quais se destaca um desafio existencial, que é a questão da mudança climática. Espero que chegada do Biden force maior coordenação no mundo ocidental e que o chamado soft power, não só americano, mas também europeu, cada um do seu jeito, volte a prevalecer.

Quero dizer que a chance de o mundo se desenvolver de uma forma tranquila depende muito do êxito do modelo ocidental. Mas não só. As pessoas que vivem sob regimes autoritários têm que saber que existe um modelo melhor, na linha do que os americanos oferecem, por ser um lugar aberto.

Para o Brasil e o mundo, vejo como muito importante a derrota do Trump. Em que medida essa adaptação política vai acontecer, não saberia dizer. Imagino para o Brasil uma visão que seja solidária e capaz, ao mesmo tempo, de gerar crescimento. Incluiria também o uso de tecnologia para queimar etapas, desde que seja complementar às pessoas e não substitutiva, distinção nada trivial. Recomendaria também – e com ênfase especial – a ideia, que, aliás, tem nossa cara, de um Brasil Verde, que caiba no seu espaço, com qualidade de vida para as pessoas, isto é, a qualidade do ar, da água, da alimentação, comentário autorizado para quem, como eu, mora no Rio.

O Brasil tem tudo para num período de uma ou duas décadas transformar-se transformar num espaço verde extraordinário. Olhem a Nova Zelândia, a Costa Rica. Não importa o tamanho, o modelo é que tem de ser bom. Acho que nossa adaptação ter de ser nessa linha.

RPD: O governo Biden pode influir nessa adaptação?
AF:
Indiretamente, sim, dando o exemplo. Só remover o exemplo péssimo do Trump já é bom. Se o Biden for na direção de Clinton, Obama, será um espetáculo. Mesmo que seja inevitável que os Estados Unidos, junto com os europeus, nos apertem um pouco. Podem até estender a pressão para outros temas, como Amazônia, direitos humanos, respeito à imprensa, respeito à própria democracia. Não dá para viver sem isso. Acho até bom para nós também. Talvez uma pressão externa não chegue a modificar muito o comportamento de nossas lideranças, mas a pressão do mercado pode: a pressão econômica eventualmente vai morder.

RPD: Executivo da BlackRock e Jorge Caldeira, em seu livro, Paraíso sustentável, defendem que a questão ambiental, a questão climática, tem influência direta nas finanças, na produtividade, nos lucros das empresas. Qual sua visão a respeito?
AF:
Considero procedente essa visão. A BlackRock está certa em defender essas causas e trazê-las para o dia a dia das empresas, das pessoas, acho super saudável. Mas nada disso substitui o governo. Acredito em autorregulação, mas ela só funciona, se acima da autorregulação, tiver a regulação do Estado. E, claro, estou pressupondo um Estado de boa qualidade, sem a qual país algum se desenvolve. Essa é a estrutura básica. Vejo como muito positiva as opiniões acima indicadas. Esse movimento, que se identifica como ESG, a meu ver, é saudável, porque toca num nervo sensível das pessoas, uma alma solidária. E essa é uma crítica, inclusive uma autocrítica, que muitos economistas mundo afora vêm fazendo e que, a meu ver, faz todo sentido. Entendo que esse assunto vai longe. Não até onde precisa chegar, no entanto, sem uma participação concreta do Estado. As boas intenções do setor privado têm de ser complementadas por um Estado que também cumpra com o seu papel.

Venho refletindo muito sobre o tema ESG, em geral. O G, de governança, no Brasil tem avançado bastante. O que aconteceu com a Petrobras foi um enorme acidente de percurso, mas foi apenas isso, porque, no mundo privado, as empresas vêm evoluindo muito bem nessa direção, já não é de hoje. Foi um movimento que nasceu dentro do setor privado, na bolsa de valores em particular, no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. É, sem dúvida, uma revolução, o que aconteceu aqui no Brasil, está dando muito certo.

O S de social é carente no Brasil, a despeito de governos socialdemocratas e do próprio PT. Ainda há muito a faze. Mas também penso que há alguma consciência, não no momento, mas há. E o A de ambiental é o que estamos discutindo. É indispensável, essencial, é uma questão de sobrevivência do planeta, que se faça a transição. Ela está acontecendo de forma lenta e perigosa. O governo Trump deu, na verdade, duro golpe nesse projeto, ao se afastar do acordo de Paris. Mas agora, com o Biden, pode voltar aos trilhos. Vejo, de novo, o Brasil numa posição muito boa para ocupar esse espaço e de uma forma que projete para o mundo a consciência de que essa é uma questão planetária, e boa para nós também.

*Arminio Fraga
Sócio fundador da Gávea Investimentos e presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Membro do Group of Thirty e do Council on Foreign Relations. Foi presidente do Banco Central (1999-2003), presidente do conselho da B3, diretor do Soros Fund Management e trustee da Princeton University (EUA), onde obteve seu Ph.D.. Foi professor da PUC-Rio, da EPGE-FGV, da SIPA-Columbia (Nova York) e da Wharton School (Pensilvânia).

*Raul Jungmann
Ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.

*Caetano Araújo
Consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)


Arminio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha: O papel estratégico das prefeituras no futuro do SUS

Os espaços para avançar são enormes e atendem à mais importante prioridade da população

A pandemia de covid-19 revelou a urgente necessidade de uma revisão do papel do Estado e das políticas públicas, sobretudo na área da saúde. Dispor de cobertura universal e de sistemas de saúde robustos provou-se, mais do que um imperativo ético, um desafio prioritário e incontornável à luz dos riscos sanitários que o mundo enfrenta – os de agora e os que ainda estão por vir.

O Brasil construiu ao longo das últimas três décadas o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS produziu resultados extremamente importantes, mas muitos desafios persistem. No longo prazo parece-nos claro que o orçamento para a saúde pública terá de crescer significativamente.

No entanto, enquanto não se repensam as prioridades orçamentárias do País, é necessário concentrar esforços na busca de ganhos de equidade e qualidade que possam ser alcançados sem grandes custos adicionais. A atuação dos 5.570 municípios poderá ser decisiva para a melhora do sistema.

Listamos abaixo cinco linhas de ação fundamentais a implementar localmente, que resultam da Agenda Saúde desenvolvida pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e pelos Institutos Arapyaú e Impulso.

A primeira tarefa dos novos prefeitos deveria estar focada em reduzir fatores de risco para a saúde da população por meio de uma política integral de promoção de saúde. Os municípios devem assumir a responsabilidade de zelar pela qualidade do ar, da água, da habitação e da alimentação de seus cidadãos. Podem, por exemplo, incentivar a criação de espaços saudáveis, fomentar a prática de exercícios físicos e limitar o consumo de alimentos ultraprocessados e de açúcares nas escolas. Uma população mais saudável significa mais bem-estar e menor sobrecarga do sistema de saúde.

A segunda é melhorar a capacidade de monitoramento e vigilância sanitária e epidemiológica dos municípios. Tal providência deveria ocorrer de forma integrada com os serviços de atenção primária e com metas claras de redução da mortalidade e da morbidade por causas infecciosas. Prevenção, vigilância e assistência coordenadas deveriam ser capazes de evitar e resolver uma parte substancial dos problemas de saúde da população.

A terceira tarefa é expandir a cobertura da atenção básica e torná-la mais resolutiva. Nesse quesito, cabe dar às equipes do Estratégia Saúde da Família (ESF) mais autonomia e primazia na regulação do acesso aos serviços de média complexidade, de diagnóstico e de especialistas. Em especial, é necessário integrar melhor o atendimento na atenção primária a tais serviços. Expandir o acesso ao ESF a todos os cidadãos é possível e teria um retorno inestimável para o sistema. Deveria ser meta explícita de governo.

Mas não basta ampliar, é necessário melhorar a qualidade. Por exemplo, experimentar novas configurações das equipes. O atendimento à saúde ainda tende a ser muito centrado no médico, dando pouca autonomia aos outros profissionais de saúde. Aumentar a participação da enfermagem na produção ambulatorial seria um primeiro passo importante nessa direção.

Outro espaço promissor seria remodelar os sistemas de pagamento e a relação com os prestadores privados de serviços. Sistemas que remuneram com base nos resultados de saúde – e não por procedimento – conseguem diminuir custos e aumentar a qualidade e a eficiência. Evidências científicas indicam que a porta de entrada do sistema, quando bem administrada e com recursos suficientes, pode resolver 80% dos problemas de saúde da população. Dessa forma se aliviariam as demandas por serviços hospitalares, principalmente o atendimento de urgência e emergência, que em muitas cidades do País já estavam à beira do colapso antes mesmo da pandemia.

A quarta tarefa: pautar as decisões da prefeitura de acordo com dados e indicadores de saúde da população e fazer um monitoramento sistemático dessas métricas. Assim seria possível alavancar o que estiver certo e corrigir rumos quando necessário.

Por fim, porém não menos importante, os municípios devem trabalhar e alocar os seus recursos de maneira coordenada com os seus vizinhos e com o governo estadual. Para isso existem as regiões de saúde – agrupamentos de municípios que constituem uma entidade intermediária do sistema, entre os municípios e o governo do Estado –, hoje pouco exploradas. É inadmissível existir em cada um dos milhares de municípios brasileiros um hospital de referência ou serviços de mais alta complexidade e que demandam escala. A alocação de recursos deve ser planejada e mais bem coordenada. A existência do SUS deveria permitir avanços mais rápidos nessa direção, como já demonstram alguns Estados.

Com essas propostas pretendemos auxiliar os novos governos a melhorarem as políticas de saúde. Os espaços para avançar são enormes e atenderiam ao que é hoje a mais importante prioridade da população.

RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE DO CONSELHO DO INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS); DIRETOR EXECUTIVO DO IEPS; DIRETOR DE PESQUISA DO IEPS E PROFESSOR DA FGV-EAESP


Arminio Fraga: Desafios para 2021 e depois

No momento, sobra incerteza e falta confiança; deficiências são tantas que há amplo espaço para melhorias

2020 foi o ano da trágica Covid-19. Foi também um ano de grandes respostas: uma extraordinária conquista da ciência no campo das vacinas e uma expansão fiscal e monetária sem precedentes.

A despeito de uma queda do PIB global estimada em cerca de 5%, as bolsas e os preços das commodities se recuperaram do colapso de março, já tendo em muitos casos ultrapassado os níveis pré-Covid. Enxergam uma recuperação plena.

Enquanto isso... Por aqui, além da tragédia humana, o ano foi de trevas, de um ubíquo obscurantismo, que se manifestou e segue se manifestando em áreas cruciais, como saúde e meio ambiente. Vejo um país sem rumo, ou pior.

Não é possível ignorar a segunda onda de infecções e mortes. Atrasos e lacunas na vacinação agravarão o quadro. Faz falta uma campanha nacional de saúde, ao invés de uma anticampanha. A pressão sobre os delapidados cofres públicos aumentará. A onda de otimismo global nos dá algum fôlego e pode até se manter, mas o quadro aqui inspira cuidados.

Sim, a economia vem se recuperando, mas em bases não sustentáveis. Parece-me crucial não perder de vista os caminhos para que o Brasil saia da recessão e se desenvolva plenamente. Nossos maiores desafios econômicos podem ser organizados em três grandes áreas: macroeconomia, produtividade e desigualdade.

Começo pelo macro. Há claros sinais de que a fragilidade fiscal que levou a dívida pública a saltar de 50% para 92% do PIB em seis anos não será superada tão cedo, se é que será. As propostas de ajuste fiscal e reformas estruturais de curto e longo prazo estão paradas por falta de apoio político do próprio governo. Falo da PEC emergencial e das reformas do Estado e tributária. O investimento público caiu de um pico de 5% do PIB para perto de 1%. Os gastos em todas as esferas de governo com Previdência e funcionalismo seguem muito elevados, um obstáculo às três agendas.

Nas economias avançadas, os governos vêm se endividando a taxas de juros negativas em termos reais, inclusive para empréstimos de prazo mais longo. Mantidas essas taxas, o que parece provável por um tempo, será possível carregar uma dívida maior do que no passado, desde que se possa rolar o valor devido.

No entanto, o endividamento não deve ser regra. Pode e deve ocorrer em momentos difíceis, para diluir no tempo os custos sociais e humanitários. Mas mesmo quem tem mais espaço para se endividar não deve exagerar na dose, pois as condições de mercado podem piorar, até mesmo em função de falta recorrente de disciplina fiscal. Endividamento de longo prazo pode inclusive financiar investimento, desde que dentro de um planejamento orçamentário plurianual, confiável e sustentável.

No Brasil, as taxas de juros caíram bastante, sobretudo as de curto prazo, mas seguem elevadas para prazos mais longos, um alerta relevante. Não há orçamento, que dirá plurianual, confiável ou sustentável. Mesmo emitindo dívida em moeda local, o governo pode enfrentar dificuldades sérias, como foi o caso em 2002 e neste ano. Numa economia aberta como a nossa (e fechar não é uma opção), a fuga para uma moeda mais confiável é sempre um risco, especialmente com o juro aqui a 2%. Pensem bem: sem perspectiva de responsabilidade fiscal, quem é que vai querer ficar com o mico?

Ainda no macro, preocupa muito o desemprego. A taxa atual de 14% exclui um grande número de pessoas que pararam de procurar emprego. Quando o massivo auxílio emergencial secar e a busca de emprego voltar ao normal, o desemprego deve subir bastante e a desigualdade aumentar, para além do que era antes da crise. O cobertor está bem curto.

Uma segunda área carente de respostas é a baixa e estagnada produtividade do país como um todo, o pilar fundamental do crescimento. Há 40 anos o Brasil não consegue encurtar a distância que separa o nosso padrão de vida daquele dos países mais avançados. Estamos carentes em um sem-número de dimensões. Falta eliminar obstáculos e distorções para que se possa investir mais e melhor. Falta qualidade e estabilidade às regras do jogo econômico. Falta mais integração com o mundo. Falta um Estado mais eficiente. Falta simplificar o sistema tributário. Falta muito.

Finalmente, e não menos importante, temos que encarar o desafio de reduzir as nossas imensas desigualdades. Além do necessário reforço e aperfeiçoamento da rede de proteção social ora em discussão, urge um esforço intenso e sustentado de criação de oportunidades e aumento da mobilidade social para uma maioria que hoje não tem a menor chance. Tal esforço representa o melhor investimento à nossa disposição. Falta melhorar (e muito) a educação, a saúde e outros serviços públicos. Além de justo, reforçaria o projeto de crescimento.

A agenda é extensa. As três grandes frentes econômicas são complementares, para o bem e para o mal. No momento, sobra incerteza e falta confiança. Aqui me permito um pingo de otimismo. As deficiências são tantas que há um amplo espaço para melhorias. Um (outro) governo com visão e capacidade de execução poderia acelerar bastante o crescimento. Na saída de uma recessão como a atual, eu ficaria muito surpreso se não superasse 4% ao ano por um bom tempo.


Arminio Fraga: Fim do teto. Não se, mas como

Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990

A emenda constitucional nº 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos, que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990.

Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.

Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%. Não faz muito sentido.

Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso. Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e economicamente insustentável.

Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de 7,5%.

Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.

Ou seja, o prêmio de risco segue elevado, espelhando juros reais acima de 4% e ainda algum medo de inflação. E isso num período em que as taxas de juros equivalentes para as economias avançadas caíram em cerca de 1,5 p.p..

Conclusão: o futuro macroeconômico do país ainda está longe de ser confiável. Quem vai investir em um país com indicadores tão incertos? O que fazer então com o teto?

Há quem acredite que um caminho seria abandonar o teto e seguir gastando e acumulando dívida (presume-se que por mais algum tempo). Alguns cogitam prorrogar o orçamento de guerra. Outros entendem que, no limite, seria possível reduzir a taxa de juros de curto prazo a zero (se a inflação permitir) e encurtar ainda mais o perfil de vencimento da dívida (na prática, "emitir moeda").

Acreditam também que haveria espaço para abrir novas frentes de investimento público e privado de boa qualidade. Essa opção conta com o atraente apelo de dispensar a definição de prioridades, bem como parece não impor custos.

Seria bom, mas não para de pé. Falta combinar com os russos. Não há confiança na capacidade de o governo executar bons investimentos. Tampouco há confiança interna e externa para financiar tal caminho. E não sem razão. Nas atuais condições, nem se fala. Seria mais crise na certa. Já vimos esse filme. O Brasil não é uma economia avançada. Os reais problemas seguiriam intocados.

Restam então duas alternativas: defender a ferro e fogo o teto ou buscar uma saída mais equilibrada. Não creio que a defesa pura e simples do teto seja uma solução viável por muito mais tempo, pelas razões que expus acima. Melhor planejar o quanto antes uma saída organizada e crível. A operação é muito delicada. Flexibilizar o teto sem uma nova âncora traria consequências dramáticas.

O quadro geral é bastante complexo. O país apresenta déficits primários há sete anos. O Ministério da Economia sinaliza compromisso com o teto. O presidente da República, pensando na reeleição, aposta suas fichas políticas no Renda Brasil e se opõe a cortes em outros benefícios e aumentos de impostos.
A PEC Emergencial, que ganharia algum tempo para o teto, não parece contar com o apoio do Executivo, pela mesma razão. Claramente a conta não fecha. O que fazer?

Tenho defendido uma estratégia de ajuste estrutural que começou com as reformas do BNDES e da Previdência (3 p.p. do PIB) e que ao longo de dez anos liberaria recursos crescentes, que poderiam chegar a mais 8 p.p. do PIB no décimo ano.

Perdoem-me a repetição, mas não vejo saída para o Brasil que não passe por alguma redução simultânea do nível e das distorções de uma parcela relevante do gasto público.

A economia viria da eliminação de subsídios e brechas tributárias regressivas, de ajustes na folha de pagamentos do setor público e de mais ajustes na Previdência. Boa parte dos recursos ficaria livre para gastos e investimentos em áreas de alto retorno social como saúde, assistência social, pesquisa básica, educação e infraestrutura, sempre que possível alavancados por capital privado. Ficaria livre também para reduzir a carga tributária.

Seria fundamental que a economia com o funcionalismo fosse obtida por meio de uma reforma de recursos humanos do Estado, que promovesse um salto na qualidade nos serviços públicos, seu principal objetivo e importante alavanca para o desenvolvimento.

O lobby do funcionalismo se opõe, mas se espera que o entendimento de que há muito privilégio e desperdício a eliminar acabará prevalecendo. O Brasil é um ponto fora da curva global no que tange ao peso do funcionalismo no gasto público. É prerrogativa do Executivo federal encaminhar ao Congresso uma proposta, mas aqui também a reeleição parece atrapalhar.

Parte do resultado da estratégia acima se destinaria à obtenção de um superávit primário capaz de viabilizar uma queda gradual do endividamento público, hoje elevado pelas barbeiragens, emergências e recessões dos últimos sete anos. O ajuste do primário deveria ser gradual, atingindo cerca de 3 p.p. do PIB em três anos.

Notem que o espaço de manobra seria limitado. No curto prazo haveria um (pequeno) aumento real no gasto público e um aumento da carga tributária. Com o correr dos anos, na medida em que as reformas mostrassem resultado, seria possível aumentar os gastos em termos reais, mas reduzi-los como proporção do PIB. O mesmo vale para a carga. Seria uma decisão política.

Como o único caminho que enxergo é gradual e a nossa credibilidade, baixa, me parece de todo essencial que se aprove o quanto antes uma versão da PEC Emergencial que ofereça ao governo as ferramentas necessárias para se desenhar e executar um orçamento plurianual crível.

Esse orçamento deveria indicar com clareza as metas mencionadas acima para o gasto público e o superávit primário. Só assim seria possível uma flexibilização segura do teto.

A bem-vinda discussão em curso sobre uma renda básica universal, que ampliaria e consolidaria os programas de assistência social existentes, teria que obrigatoriamente acontecer no bojo desse orçamento plurianual. Um igualmente desejável reforço do SUS teria que fazer parte do processo, disputando espaço com outras prioridades. A discussão de temas isolados é má prática econômica e política.

O tempo é curto e o espaço de manobra, ainda menor. Mas ainda temos a oportunidade de reduzir privilégios, buscar a saúde fiscal do Estado e perseguir um crescimento inclusivo. Isso requer metas claras e factíveis e um plano integrado como esboçado aqui. Requer também liderança política com visão de longo prazo.

*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Alex Ribeiro: Encurtamento da dívida deixa país vulnerável

Súbita mudança de humor dos mercados é risco para estratégia de emitir títulos públicos de curto prazo

Dois ex-presidentes do Banco Central alertaram, nos últimos dias, para os riscos da tendência de encurtamento do prazo da dívida pública, num ambiente de muita incerteza sobre a manutenção do teto de gastos, a principal âncora fiscal do país. O Tesouro Nacional pode até ganhar algum tempo emitindo títulos públicos de curto prazo, mais baratos. Mas ficará cada vez mais vulnerável a uma súbita mudança de humor dos mercados.

Arminio Fraga, da Gávea Investimentos, citou um número que sintetiza o perigo: pelo andar da carruagem, o Tesouro terá que captar no mercado o equivalente a 46% do Produto Interno Bruto (PIB) em 12 meses, para rolar os títulos que vencem no período, para pagar os juros da dívida e para bancar o altíssimo déficit primário do governo.

O fantasma é um eventual repeteco do que aconteceu em 2002, quando o próprio Arminio chefiava o BC. Os investidores se tornaram mais relutantes em financiar o governo, diante das dúvidas sobre o compromisso do então candidato Luis Inácio Lula da Silva com a austeridade fiscal. “O governo não conseguia vender papéis que venciam em 2003”, disse, referindo-se ao ano em que começaria o novo governo. A bomba só foi desarmada quando Lula se comprometeu a manter o ajuste das contas públicas.

O economista Affonso Celso Pastore explicou a dinâmica que tem empurrado o Tesouro para o encurtamento da dívida. Hoje, a taxa que o Tesouro paga para se financiar no curto prazo está entre 2% e 3% ao ano, enquanto que nas captações de dez anos paga algo como 7% ao ano. A diferença entre a taxa de curto prazo e a de longo prazo, de cerca de 4,5 pontos percentuais, representa justamente o risco fiscal.

A perspectiva é que a dívida bruta supere 100% do PIB e, até agora, o governo Bolsonaro não mostrou claramente como pretende manter o teto de gastos. Do ponto de vista do Tesouro, argumentou Pastore, faz sentido e é totalmente sensato captar no curto prazo, pagando juros menores. Com isso, reduz o custo implícito da dívida pública. Os juros que o Tesouro paga na dívida são um componente importante nos cálculos da dinâmica da dívida. A desvantagem é que o Tesouro fica com um perfil de dívida desfavorável, com vencimento em um prazo mais curto.

“Se isso for temporário, não tem muita importância”, afirmou ele, “Se isso se estender ao longo do tempo e você tiver um aumento de riscos, o Tesouro vai ter que seguir resgatando os títulos longos e colocando títulos curtos.” Para ele, o acúmulo desse risco é um alerta importante “para que o governo tenha juízo e retorne ao teto de gastos”. Os dados divulgados pelo Tesouro nos últimos dias mostram como o encurtamento da dívida pública vem ocorrendo de forma acelerada.

De dezembro para junho, o prazo médio da dívida baixou de 3,83 meses para 3,68 meses. Há pouco tempo atrás, o prazo médio da dívida era de 4,5 anos. Mas essa estatística deixa de fora a atuação do Banco Central por meio das operações compromissadas, que são operações de curtíssimo prazo que impactam a dívida bruta. No primeiro semestre, o déficit primário do governo central ficou em R$ 417,241 bilhões, em grande medida devido aos gastos extras e perda de arrecadação com a pandemia. Com forte volatilidade nos mercados, não foi possível ao Tesouro levantar dinheiro para financiar esses gastos. Desse déficit primário, apenas R$ 3,374 bilhões foram bancados com a emissão de dívida. A maior parte foi financiada por meio de operações compromissadas. Uma outra parte foi pela emissão de moeda, já que a população passou a demandar mais dinheiro em espécie na pandemia. No caso das compromissadas, não foi um financiamento direto do BC ao Tesouro. O Tesouro sacou dinheiro da conta única para pagar despesas e, em seguida, a autoridade monetária enxugou o excesso de dinheiro em circulação.

Do ponto de vista da dívida bruta, porém, faz pouca diferença. O débito aumentou e ficou com prazo mais curto. Os operações compromissadas de curtíssimo prazo subiram de 13% do PIB para 19% do PIB, enquanto que a dívida mobiliária subiu de 50,7% do PIB para 52,8% do PIB.

Na prática, o que aconteceu durante o primeiro semestre, num período de grande estresse, foi parecido com as operações de expansão quantitativa feitas por países desenvolvidos. O Banco Central ajudou a encurtar o prazo da dívida pública, tirando um pouco de pressão da curva de juros futuros. A diferença é que, no caso atual, o dinheiro para resgatar títulos do Tesouro veio da conta única. O Tesouro tem um bom fôlego para fazer essas operações, se necessário, já que a conta única tinha um saldo de R$ 997 bilhões em junho. Além disso, o Tesouro vai receber do BC um reforço dos lucros com operações com as reservas internacionais. Mas, se o quadro se prolongar e não houver recursos na conta única, em tese o Banco Central poderá comprar diretamente títulos em mercado, com os poderes que foram conferidos por uma emenda constitucional.

Um economista com longa experiência no Tesouro diz que uma dívida pública curta é sempre um problema, principalmente em um cenário de deterioração fiscal, dívida crescente e juros historicamente baixos. “Em 2002, o Tesouro teve que vender títulos pós-fixados de três meses com prêmios crescentes”, lembra. O Brasil tem alguns atenuantes importantes, como uma baixa participação de estrangeiros no financiamento da dívida e falta de opções de investimentos para investidores institucionais. Na época da hiperinflação, o governo conseguia rolar a dívida no overnight, mas pagava juros de 3% ao dia.

Agora, com os juros em 2,25% ao ano, o Tesouro já não tem a mesma facilidade de vender títulos pós-fixados.

O argumento de Arminio e Pastore é que o encurtamento do prazo da dívida pública pode ser uma estratégia para ganhar tempo enquanto são tomadas as medidas de ajuste fiscal. Mas esse tempo não pode ser desperdiçado. As medidas que podem sustentar o teto de gastos, como a PEC Emergencial e a reforma administrativa, parecem totalmente fora das prioridades do governo e do Congresso. Ao contrário, são muitas as forças para flexibilizar o teto de gastos.


Fernando Gabeira: Os caminhos na tempestade

As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se com a visão de mundo de Bolsonaro

O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.

No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.

Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB para sairmos dessa.

Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.

A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo, pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.

A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação. Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo de contratar um técnico de futebol no exterior.

A existência de um governo com essas características torna a tarefa de recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase impossível.

O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como consequência da revolução digital.

Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras circunstâncias?

A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga, isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.

A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro, pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?

A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.

Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário, uma ampla reforma da máquina administrativa.

Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o isolacionismo e a negação?

Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de Donald Trump.

Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais – embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais já estavam destruídos.

Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.

Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.

Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia.

As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.

A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar, dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão perfeita.