arminio fraga

Arminio Fraga: Navegando a crise e construindo o futuro

Caminho requer comprometimento e liderança por parte do governo

Tudo indica que ao final de 2020 o PIB terá tido duas quedas acumuladas de 7% ou mais em apenas sete anos. A renda per capita terá caído cerca de 14%. Trata-se do maior fiasco econômico de nossa história. Disparado. O que fazer para sobreviver à pandemia e voltar a crescer?

Desde a chegada do vírus venho defendendo uma linha geral de inspiração keynesiana e humanitária: aumentar o gasto público, com foco na assistência social e na saúde, expandir o crédito e reduzir a taxa de juros. O governo merece crítica por falhas de execução e pela falta de estratégia e planejamento, mas o gasto aumentou expressivamente e o BC vem fazendo a sua parte.

Essa resposta é necessária, mas tem custos. Há risco de exagero no gasto, em virtude da duração prolongada da crise e de uma guinada do governo em direção a um engajamento político fisiológico.
O Estado brasileiro está tomando emprestado para cobrir o buraco corrente e os juros devidos. A dívida voltou a crescer em bola de neve, a despeito da enorme queda da taxa de juros. Com o colapso da economia a relação dívida/PIB deve chegar a 100% no final do ano.

Cabe registrar que o crescimento recente do endividamento decorre da aplicação do receituário fiscal correto para se lidar com um problema temporário, no caso a pandemia: expansão fiscal forte no curto prazo, compensada por um ajuste previsível e diluído no tempo, para suavizar o impacto sobre a atividade econômica.

Mas, passada a crise, será, sim, necessário que se reduza o endividamento. Por quê? Para recompor um colchão de segurança que permita lidar com o que a ciência prevê que serão desastres naturais maiores e mais frequentes, como novas pandemias e mudanças climáticas, e também para evitar descontrole macroeconômico, uma doença crônica aqui por nossas bandas, sempre mais penosa para os mais pobres.

Os objetivos de curto e longo prazo dialogam e até competem entre si. Faz-se necessário gastar para amenizar a dor da crise, mas faz-se também necessário garantir a saúde financeira do Estado e abrir espaço no orçamento para se investir mais, sobretudo nas áreas de maior impacto social como saúde, educação, tecnologia e infraestrutura.

O gasto público vem subindo praticamente em linha reta há três décadas, chegando a cerca de 34% do PIB em 2019. No entanto, o investimento público caiu de um pico de 5,4% do PIB em 1969 para cerca de 2% em 2013, para menos de 1% neste ano. Não surpreende, portanto, que o investimento nacional tenha caído de 21% do PIB em 2013 para 15% a partir de 2018. Com essa taxa de investimento é impossível crescer mais rápido. É também impossível gerar as indispensáveis oportunidades e a mobilidade social tão ausentes.

E para onde vão os gastos? Oitenta por cento para previdência e funcionalismo, um ponto fora da curva quando se contrasta com a maioria dos países de renda média e alta. Não vejo qualquer razão para acreditar que o Brasil seja estruturalmente tão diferente dos demais.

Outra fonte importante de gastos (e desigualdades) são vultosos (e regressivos) subsídios como os implícitos nos regimes especiais do Imposto de Renda (os regimes Simples e de Lucro Presumido). Ademais, são baixas as alíquotas máximas dos impostos sobre as rendas do trabalho e do capital e sobre heranças.

Esses são os principais espaços que propiciariam uma radical correção de rumo. Acredito inclusive que não haja outro caminho. Listo a seguir um roteiro.

Será necessário buscar um ajuste maior na conta previdenciária, imagino que de mais dois pontos do PIB por ano. Alguns estados vêm tomando providências nessa área, um bom sinal.

Na área tributária, a eliminação de subsídios aliada a aumentos nas alíquotas mencionadas acima geraria pelo menos três pontos do PIB de receita e eliminaria um foco inaceitável de desigualdade.

No campo do funcionalismo, vejo espaço para uma reforma administrativa básica, mas altamente relevante, sobretudo por seu potencial de impacto na qualidade dos serviços prestados pelo Estado, uma clara demanda da sociedade. O primeiro e crucial passo seria avaliar todo funcionário público periódica e sistematicamente. Quem pode ser contra isso?

As avaliações deveriam ser a única base para promoções e aumentos salariais, assim como para eventuais demissões, respeitadas as defesas previstas no artigo 41 da Constituição. Esse primeiro passo poderia ocorrer através de lei complementar. Junto com uma modernização tecnológica seria fonte de grandes ganhos de produtividade do Estado e da economia em geral. O governo dá um péssimo sinal deixando o assunto para o futuro.

Essa reforma é visceralmente rejeitada por boa parcela do funcionalismo, que teme exageros e injustiças, e não se vê como privilegiada no contexto maior de um país onde mais do que a metade da população está na informalidade ou desempregada. Certamente não sou dos que demoniza o funcionalismo, muito pelo contrário. Do Banco Central ao SUS bem sei que o Estado brasileiro é repleto de pessoas competentes e vocacionadas. Mas, como se dizia no BC, há também muitos cuja ausência preenche uma lacuna.

Não há, portanto, justificativa para não se investir em uma área de recursos humanos para o setor público. Transparência e disciplina fariam muito bem ao sistema e prestariam contas à sociedade, que arca com os custos. E permitiriam enfrentar as corporações mais fortes, coibindo abusos e eliminando absurdos.

Essas reformas liberariam ao longo do tempo recursos da ordem de nove pontos do PIB por ano que permitiriam a recuperação da saúde fiscal do Estado e um aumento substancial de investimentos de alto impacto social e distributivo. O resultante ganho de confiança estimularia um significativo aumento no investimento privado e no consumo. O resultado seria um surto de crescimento sustentável e inclusivo.

Uma palavra final para não perder o hábito: o caminho requer comprometimento e liderança por parte do governo.Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Arminio Fraga: Respostas a uma tempestade perfeita

A sinalização de que existe solução viável para a crise ajuda a reverter o pessimismo

Há décadas tenho me dedicado ao estudo das crises econômicas. Nesse período convivi com o tema atuando aqui e no exterior como economista, professor e gestor de investimentos. Tive inclusive a ocasião de trabalhar duas vezes no Banco Central, ambas abundantes em crises.

A atual é a mais desafiadora que já vi. No nosso caso, trata-se de uma verdadeira tempestade perfeita. Isto porque temos que lidar ao mesmo tempo com três graves crises: sanitária, econômica e política.

As três vêm sendo objeto de intensa cobertura e debate. Por isso, vou apenas resumir o quadro, para a seguir focar no que fazer a respeito (em tese, pelo menos).

A pandemia vem exigindo relevante isolamento social, em parte por determinação oficial, em parte por medo da doença. Seus impactos já se mostram dramáticos e heterogêneos. Sofrem como sempre mais (e muito) os mais pobres, assim como as empresas que lidam diretamente com clientes, sobretudo as pequenas e médias.

O desemprego, que já vinha alto, vai aumentar muito. O crescimento, que já era anêmico, vai virar queda substancial no PIB. Esse quadro de doença e desemprego é motivo de ansiedade geral. Infelizmente, falta ainda uma estratégia clara e de âmbito nacional para se lidar com a pandemia.

Na economia, medidas vêm sendo tomadas na direção de amortecer a perda de renda de milhões de pessoas e a falta de crédito para as PMEs mais atingidas. Com o (necessário) aumento dos gastos ligados à crise e com a queda na arrecadação decorrente da recessão, as necessidades de financiamento do Estado vão crescer muito.

Os mercados terão que absorver muita dívida. Paira no ar o medo de que gastos temporários se tornem permanentes, hoje uma ameaça concreta, como uma bactéria oportunista.

Essa dupla incerteza sanitária e econômica é paralisante, e ameaça se transformar em uma perigosa espiral recessiva. A ficha precisa cair quanto a esse grave risco.

Como se não bastasse o massacre social e econômico que está encomendado, o quadro político vem se complicando com repetidos sinais de desprezo pela democracia e pela ciência emitidos pelo Executivo federal, acompanhados por desentendimentos entre os Poderes e relevantes trocas de comando nos altos escalões do governo federal.

Como consequência da tempestade perfeita, a Bolsa vem caindo e o dólar e os juros de longo prazo vêm subindo.

O que fazer então? Crises econômicas em geral se resolvem quando se vislumbra um caminho de saída viável, em direção a objetivos bem definidos e plausíveis. Esse caminho tem que ser construído. Nos piores momentos de uma crise, tudo parece impossível.

Mas a sinalização de que existe uma solução viável em geral ajuda a reverter as expectativas mais pessimistas. Na medida em que as expectativas comecem a ser confirmadas por ações concretas, a crise tende a amainar, e a economia a se recuperar. O que podemos plausivelmente esperar do nosso caso?

Na saúde, busca-se o fim da pandemia com o menor custo possível em termos de vidas e sofrimento. As experiências internacionais recomendam que um grau elevado de isolamento social seja mantido até que as curvas de contaminação e óbitos claramente se invertam. Estamos longe desse ponto.

Para minimizar o dano, urge reforçar as equipes médicas e seus equipamentos, assim como massificar o uso de máscaras, de testes e de rastreamento de casos. Apesar de contarmos com a ampla rede do SUS, do ponto de vista das ferramentas necessárias estamos bem atrasados.

Muito provavelmente a pandemia só será debelada quando vacina e/ou cura chegarem. Esse horizonte longo complica deveras o encaminhamento das soluções.

Portanto, parece certo que o elevado estresse social também durará bastante tempo e exigirá a continuidade das políticas assistenciais, provavelmente adentrando 2021. Digno de menção aqui o extraordinário esforço da sociedade através do terceiro setor.

As demandas sobre o Estado já são enormes e tendem a crescer. Nesse contexto, ideias exóticas como moratórias de pagamentos e empréstimos compulsórios vêm sendo cogitadas. Ora, as cadeias de pagamento em uma economia moderna são extensas e complexas. Há que se tomar cuidado aqui. Propostas mal desenhadas podem acrescentar uma crise financeira às já existentes nas áreas sanitária e econômica.

O enfrentamento de um desafio destas dimensões requer necessariamente que o Executivo federal assuma seu papel institucional de liderança e coordenação, algo que não vem ocorrendo. Não basta o importante esforço de governadores e prefeitos.

Urge um bom diálogo com o Congresso, para adequar as pautas às urgências do momento. É necessário também definir prioridades para os gastos correntes, limitando-os às necessidades temporárias da crise.

E, por fim, o Executivo precisa deixar claro que, uma vez superada a crise sanitária, a busca do equilíbrio fiscal estrutural será retomada. Estes são desafios enormes para qualquer governo, que dirá para um em crise política.

*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


O Globo: Se não houver isolamento, economia pode sofrer segundo baque, diz Arminio Fraga

Ex-presidente do Banco Central diz que é falso o debate entre salvar vidas e a economia

Luciana Rodrigues e Cássia Almeida, O Globo

RIO - O economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, alerta que é falsa a dicotomia entre salvar vidas e a economia. Suspender a quarentena imposta na maior parte do país não levaria os brasileiros a saírem gastando, nem os empregos seriam preservados em sua plenitude. “Dá a impressão de que há um custo econômico, e há. Mas dá também a impressão de que há uma alternativa sem custo, que seria fazer o (isolamento) vertical. Mas isso não é verdade”, afirma Arminio em entrevista, por videoconferência, de sua casa no Rio. E diz que, para socorrer a economia, é preciso agir rapidamente, o que não está acontecendo.

Os economistas defendem um socorro à economia. No caso da pandemia, os médicos dizem que, quanto antes a quarentena, mais eficaz ela é. É possível fazer um paralelo com a economia? O socorro não está demorando?
- São duas situações diferentes, mas há, sim, um paralelo. No caso do isolamento, a ideia é se antecipar à propagação do vírus. Em outros países, como Cingapura, que é rica e pequena, foi possível também testar muito, com rastreamento de contatos, um processo quase individual. Mas isso não seria possível aqui. Então, o isolamento é a única opção, e quem agiu com presteza teve resultados melhores. No lado da economia, a ação ganha contornos de urgência, em função do colapso súbito da receita de várias empresas, pequenas, médias e grandes. Dependendo do setor, o colapso chega a 100%. Nada disso existe em situações normais. Numa recessão, a receita cai aos poucos e chega, no pior momento, a uma queda média de 10%. Por consequência, espera-se uma onda enorme de desemprego. Por isso, é importante agir rapidamente. O que não está acontecendo.

Muitos dizem que a quarentena vai “matar a economia”. Não adotar a quarentena pode ser um risco maior à economia?
- Considero que sim. É preciso olhar no detalhe. Suspender a quarentena não significa que as pessoas vão sair gastando e os empregos vão ser preservados na sua plenitude. No caso do Brasil, pegaria um número muito grande de pessoas muito fragilizadas. Da população brasileira, 38% são idosos, portadores de doenças crônicas ou ambos. Seria uma loucura. Quem faz essa proposta (de não adotar a quarentena) sugere o seguinte modelo chamado de vertical: fecha tudo por duas semanas, identifica-se quem está carregando o vírus e isola essas pessoas. Segrega e isola os mais velhos. Aqui no Brasil, isso é totalmente impossível. E os que ficarão expostos são muito numerosos e vulneráveis. Nossa rede de hospitais, como aliás em boa parte do mundo, não estava preparada para uma emergência desse tamanho, seria uma catástrofe social. Isso foi ventilado no Reino Unido, e eles rapidamente desistiram. A ideia de que há uma relação de troca entre saúde e economia, na minha avaliação e de meus colegas do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), é que não é bem assim. As pessoas já estão muito assustadas e não vão sair consumindo mesmo que se decrete o fim do isolamento de repente.

A adoção do isolamento vertical no Brasil prejudicaria a população mais vulnerável?
Sim. Teremos de gastar algum tempo em quarentena. Seria reduzida aos poucos, com cuidados. Haverá, portanto, um custo econômico. Alguns passam a impressão de que há uma alternativa sem custo, que seria fazer o (isolamento) vertical. Mas isso não é verdade, como já mencionei. Estamos lidando com uma situação com grande potencial de instabilidade. Cabe uma resposta firme de política social e econômica. Nós temos os recursos. Os EUA vão gastar 5% do PIB. Aqui poderíamos gastar um pouco menos, 3%, 4% do PIB, deixando claro que são gastos temporários, mas ajudariam bastante A situação já não estava tão boa, o desemprego já vinha alto, a economia vinha crescendo pouco

O senhor vem de uma família de médicos. Como vê a discussão entre salvar vidas ou salvar a economia?
- Eu não vejo esse trade-off (relação de troca) sendo tão marcante. É evidente que a opção é salvar vidas. Mas eu não creio que a economia se beneficiaria tanto (de uma suspensão da quarentena, que faria mais vítimas). E, num segundo momento, a economia poderia levar a um segundo baque. Estamos fazendo uma administração para ganhar tempo, minimizando as perdas humanas, é uma questão humanitária, reduzindo ao máximo possível o pico da demanda por UTI hospitalar e torcendo para que chegue logo o momento da vacina ou de alguma cura. Nesse meio tempo, é crucial que o governo apresente uma estratégia clara, que deveria englobar quatro grandes ações de resposta à crise: apoio à rede hospitalar, manutenção do abastecimento e da logística, ajuda à população mais pobre e socorro às empresas. Na questão da logística, é importante levar até as pessoas alimentos que, no Brasil, são produzidos em enorme abundância. Não podemos correr o risco de as pessoas passarem fome. Essa talvez seja a parte menos complicada, existe uma logística que funciona muito bem até nas favelas.

Como apoiar os mais pobres?
- A referência já está dada, e é o que Marcelo Medeiros (especialista em desigualdade de renda e professor visitante na Princeton University) divulgou. É preciso usar o Cadastro Único, zerar a fila do Bolsa Família e depois ampliar o programa. É uma ferramenta que existe e precisa ser acionada rapidamente. O ideal neste momento não é buscar a perfeição, é soltar os recursos o quanto antes. Este é um uso nobre dos recursos, talvez o mais nobre, em paralelo aos recursos para o SUS. A outra frente de ação é o crédito para as empresas.

As empresas devem ser socorridas?
- É uma solução de emergência. (Os economistas) Vinícius Carrasco, Alexandre Scheinkman e eu elaboramos uma proposta de linha de crédito bancada pelo setor público, diferente do que se vê na prática bancária, porque, ainda bem, banco não gosta de emprestar dinheiro para perder. O sistema financeiro tem de seguir saudável. Neste ponto, entra o governo. A ideia é garantir linhas que darão algum prejuízo. Isso não é uma hipótese. É impossível, nessa situação, desenhar linhas que salvem empresas e empregos duramente atingidos e deem resultado positivo. Mas haverá um resultado positivo indireto, de salvar empregos e negócios que funcionam bem, e é uma questão também humanitária.

Qual é o fôlego para manter esse socorro à economia?
- Tenho algumas estimativas preliminares, acho que daria para manter até o fim do ano e, depois, se preciso, ter alguma adaptação. Os ciclos típicos dessas pandemias não são tão longos. Na medida em que apareçam vacinas e tratamentos, dá para ganhar a guerra. A expectativa é que a vacina surja em 12 a 18 meses, talvez menos. Quanto à cura, ninguém sabe. Então, uma estratégia radical (de abandono do isolamento) que, falando com muita transparência, vai matar muita gente, para mim não faz o menor sentido. Vamos dar um jeito de aguentar e ganhar tempo, o governo terá de ser solidário, as pessoas também.

Para socorrer a economia, é preciso articulação política...
- Este talvez seja o maior problema. Há uma certa cacofonia de ideias, até certo ponto natural, mas que passou do ponto. Em algum momento alguém tem de tomar uma decisão e dizer: “é por aqui, e vamos executar”. Normalmente, numa situação de crise, existe um padrão de gestão que define claramente responsabilidades, desenha uma estratégia, planeja e executa as ações, monitora os eventos e se comunica com a nação. Isso precisa ocorrer urgentemente.


Armínio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha: Prefeituras podem virar o jogo na crise coronavírus

Para evitar um caos hospitalar, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio

Na última sexta-feira (20/03), o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta declarou que o período de pico de infecções por covid-19 no Brasil será nos meses de abril, maio e junho. O ministro já admite que ao final de abril nosso sistema de saúde entrará em colapso. Esse cenário se apresenta como ainda mais severo que o vivido pelos italianos. Para evitar um caos hospitalar dessa magnitude, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio e organizar o fluxo de atendimento do sistema de saúde.

O impacto da covid-19 em nossos hospitais será tremendo. O Brasil já não tem capacidade hospitalar suficiente para atender o quadro sanitário existente. Persistem em nosso território os desertos sanitários: são ao todo cento e vinte três regiões sanitárias sem nenhum leito em UTI. O aumento de demanda por leitos ocasionado pelo coronavírus agrava essa situação e exigirá um aumento significativo da produção hospitalar. O Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) estima que cada um por cento de população infectada corresponderá a um bilhão de reais de gastos em hospitalizações adicionais em unidades de tratamento intensivo. Com a declaração do estado de calamidade, o Tesouro está livre para fazer este investimento, sem dúvida de alto retorno social e humanitário.

Existem outras e rápidas medidas que podem contribuir para limitar os danos da pandemia. No topo da lista está o distanciamento social. Evidências demonstram que tal medida é capaz de achatar a curva de contágio da epidemia, o que minimizaria o número de casos graves desatendidos.

No entanto, é ilusório acreditar que o terço mais pobre do Brasil, composto de pessoas que ganham menos de meio salário mínimo, deixará de circular nas cidades só com decretos impositivos, toques de recolher e outras medidas de vigilância. É necessário garantir um mínimo de assistência para compensar a extraordinária perda de renda causada pelo distanciamento social. E é necessário fazer isso já. O governo federal tem as condições de injetar recursos na economia ainda nesta semana, diretamente a mais de setenta milhões de brasileiros. O Brasil dispõe de uma base de dados organizada com informações que identificam esses indivíduos – o Cadastro Único, que lista beneficiários de todos os programas sociais focados nas famílias de baixa renda. Ao abarcar os indivíduos listados no Cadastro Único, sem necessidade de triagem adicional, o governo federal poderá evitar importantes custos e demoras de implementação.

Essas medidas de apoio socioeconômico contribuirão imediatamente ao controle do contágio. Mas elas não são suficientes: é fundamental que sejam complementadas com esforços na triagem e organização do atendimento hospitalar. Nesse sentido o SUS é fundamental, com sua rede de Atenção Básica resolutiva, cuja responsabilidade compete aos municípios. No momento, existe grande disparidade na capacidade de resposta por parte das prefeituras.

É fundamental que elas comecem a trabalhar de maneira coordenada, cumprindo um mínimo de repertório de ações. O IEPS preparou um check list de enfrentamento à covid-19 direcionado aos municípios, prevendo ações de rápida implementação em quatro dimensões essenciais. O protocolo indica como as prefeituras podem orientar suas ações a partir dos dados e evidências existentes; adaptar a organização dos serviços de saúde; fortalecer a prevenção através da comunicação com a população; e, por fim, reformular estratégias de gestão instaurando uma cadeia de comando e controle eficiente durante o período de crise. Não há tempo a perder: se quisermos evitar o total colapso do sistema hospitalar do país dentro de um mês, é necessário que governo federal e as prefeituras implementem essas ações esta semana.

*São respectivamente presidente do Conselho, diretor-executivo e diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.


Míriam Leitão: Aumento de gastos e defesa de valores

Armínio Fraga recomenda aumento de despesas porque há uma calamidade. Governo baixou pacote com pouco dinheiro novo

Armínio Fraga acha que o país vai entrar em recessão, que o governo deve aumentar o gasto público porque as leis que fixam limites de gastos preveem espaço para quando há uma calamidade. “E para isso acho que não deveria haver limites.” No Banco Central, algumas formas de estimular a oferta de crédito foram anunciadas e o Ministério da Economia soltou um pacote que foi quantificado como de R$ 147 bilhões, mas na verdade pouco desse valor é dinheiro novo. No intenso dia de ontem, houve de tudo, inclusive o presidente Jair Bolsonaro voltando a escalar nos ataques ao Legislativo, numa entrevista de manhã.

O pacote de Paulo Guedes é insuficiente e ele sabe disso. Tanto que avisou que voltará a anunciar novas medidas. No conjunto de ontem, há as decisões de antecipação de pagamentos que o governo teria que fazer aos aposentados e pensionistas, ou a trabalhadores de baixa renda. O 13º será pago todo até maio, e o abono, até junho. Em outro lado das medidas, o governo permite que o FGTS seja recolhido com atraso e adia também a parcela federal do Simples Nacional. Isso não é dinheiro novo.

Para o economista Armínio Fraga, o país pode e deve aumentar as despesas públicas para evitar o pior na área da saúde e na economia. Armínio sempre fez parte do grupo de economistas que defende o controle fiscal. Mas agora a situação é diferente, na visão dele. O país vai entrar em recessão e é preciso foco no principal que é a política de saúde para tentar reduzir a propagação do coronavírus.

— Está previsto na lei, em todas as leis, de responsabilidade fiscal, do teto de gastos, todas preveem espaços para gastos em situações de calamidade. Esta é sem dúvida uma calamidade. Penso que todo gasto temporário que tem a ver com medicina, com reduzir o impacto social da crise, o impacto nas empresas, muitas terão que fechar temporariamente, deve ser feito. Cabe uma resposta muito enérgica, específica para esse caso. E para isso acho que não deveria ter limite — disse Armínio.

Essa noção de que a crise tem uma dimensão sem precedentes chegou nos principais países do mundo. O presidente Donald Trump, que sempre desdenhou a ciência, estava ontem, compenetrado, dizendo que todo mundo “tem um papel crítico a exercer” neste momento para “parar o avanço da transmissão da doença”. Só o Brasil tem um presidente nesse grau delirante de irresponsabilidade que Bolsonaro demonstrou nos últimos dois dias. Num dia, passeata com ataques a outros poderes, no dia seguinte, entrevista em que ataca os presidentes do Congresso.

O mundo está vivendo uma crise de duas cabeças. De um lado, a da saúde, de outra, a economia, que está parando. Armínio lembrou que o mundo está diante de uma crise raríssima. “Calamidade não acontece a toda hora.” Por isso acha que é preciso ser tratado de forma rápida, técnica e firme. “E custa dinheiro, não tem jeito.”

Perguntei a ele se 2020 pode ser considerado um ano perdido na economia. Ele disse que “está com cara”. Por isso, neste ano talvez perdido, é que ele recomenda mais gasto público:

— Um remédio tradicional, vamos dizer keynesiano, para a recessão é reduzir juros, aumentar despesa. Parte dessa receita se aplica agora, mas há uma urgência absoluta. É preciso atacar na veia. O investimento de longo prazo é bom, mas não é o assunto do dia.

O governo anunciou ontem que mudará a meta fiscal, que é de R$ 124 bilhões de déficit para ampliar as despesas, o que é considerado por todos os especialistas como inevitável. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes ameaçou fazer um contingenciamento de R$ 16 bilhões caso não fosse aprovada a privatização da Eletrobras até sexta.

O Brasil tem um problema extra no meio de toda essa crise. As ameaças à democracia. E isso tem diretamente a ver com a economia. Mesmo antes desta crise, Armínio disse que os ruídos provocados pelo governo têm afastado investidores. Não basta, segundo ele, ter uma agenda liberal em meio ao “obscurantismo” e à “falta de cuidado com temas relevantes como o meio ambiente”:

— Acho impossível o Brasil se desenvolver plenamente sem contar com uma democracia plena, vibrante, aberta, plural. E isso hoje está sob ameaça. Não dá para medir as palavras. Esse é um período de resistência. As instituições estão resistindo e os sinais recomendam não relaxar.


Arminio Fraga: Congresso vem se superando no front das reformas, mas agora cabe ao Executivo liderar

É preciso definir prioridades para aproveitar a janela que antecede as eleições

A pauta econômica do Congresso está repleta de projetos importantes, na maioria dos casos polêmicos e complexos. Será necessário definir prioridades para aproveitar a janela que antecede as eleições municipais e suas campanhas. Este artigo oferece um resumo seletivo e comentado das principais propostas em discussão, organizadas em quatro blocos.

O primeiro tem foco setorial. No topo da lista está a revisão do marco legal do saneamento. Trata-se de uma antiga urgência, posto que quase a metade dos brasileiros não tem acesso a uma rede de esgoto e, dos que têm, apenas 45% têm seu esgoto tratado. Essa lei já foi aprovada na Câmara, num formato considerado adequado por especialistas. Deve andar. Tem que andar.

Nessa mesma categoria está a lei de resoluções bancárias, que versa sobre regras para lidar com crises financeiras. O Banco Central está sem as ferramentas necessárias para administrar uma crise pois a lei que existe (nº 6.024/74) está ultrapassada e obsoleta. Um projeto que preenche essa importante lacuna foi apresentado na virada do ano. O momento é ideal para examinar a questão, pois não há sinal de crise à vista. No entanto, pela mesma razão, provavelmente vai ficar para a próxima (crise).

Incluo nesse bloco também o projeto de lei complementar para modernizar e formalizar a governança do Banco Central (por meio de mandatos independentes para seus dirigentes) e seus objetivos (sendo inflação baixa o principal). Sua aprovação final neste semestre parece provável e ofereceria uma defesa mais robusta da estabilidade, uma conquista valorizada pela população.

O segundo bloco engloba medidas voltadas para reforçar o regime fiscal, que ainda não se recuperou plenamente do colapso ocorrido a partir de 2014. Duas reformas sinalizaram uma primeira resposta à crise: a introdução em 2016 do teto para o gasto público e a reforma da Previdência, aprovada no ano passado. As taxas de juros caíram bastante desde então, sobretudo as de curto prazo (influenciadas também pela brutal recessão).

A despeito dessas medidas, o governo segue gerando déficits primários, uma situação não sustentável, e o teto está ameaçado. Vai ser preciso encarar os obstáculos a cortes do orçamento, muito concentrado em gastos com Previdência e folha de pagamentos.

Para tanto, está em pauta a PEC Emergencial, que propõe que gatilhos automáticos sejam automaticamente disparados caso a regra de ouro seja desrespeitada ou a despesa corrente atinja 95% da receita corrente (exemplo: permissão de redução em 25% e por dois anos da jornada e da remuneração de servidores). A aprovação dessa importante PEC parece difícil. Está também em pauta uma PEC suplementar, que estende aos estados os efeitos da reforma da Previdência. Medida com objetivo similar foi aprovada pelas Assembleias do Rio Grande do Sul e de Goiás. Trata-se de um sinal auspicioso, que quiçá será seguido por outros estados.

O terceiro bloco trata do sistema tributário. Aqui estão em discussão dois grandes temas. Em primeiro lugar, uma reforma da tributação indireta que consolidaria o ICMS, PIS- Cofins, IPI e ISS em um único imposto sobre bens e serviços, livre de cumulatividades e subsídios espúrios. Essa simplificação racionalizaria e baratearia a atividade produtiva no Brasil, permitindo que as demandas dos consumidores fossem melhor atendidas e ao menor custo. Seu impacto seria imenso.

Essa reforma já conta com propostas bem desenhadas, mas terá que enfrentar resistências relevantes por parte dos estados que temem perder receita e dos setores que serão prejudicados. Destaca-se aqui o setor de serviços, de longe o maior da economia, e de longe o menos tributado. Há também dúvidas de natureza tática e de desenho. Faz falta um posicionamento por parte do governo federal, que precisa decidir se encara a reforma completa ou começa pela parte federal.

Ainda nesse terceiro bloco, em segundo lugar, discute-se há algum tempo a necessidade de uma ampla reformulação das regras do Imposto de Renda. A renda no Brasil é relativamente pouco tributada, inclusive em função da existência de regimes especiais como o Simples e o Lucro Presumido, que deveriam ser revisitados sob ótica distributiva. Desnecessário salientar que haverá forte oposição a mudanças nessa área, que mal começa a entrar no radar.

Por fim, mas não menos importante, uma reforma administrativa. O governo vem preparando há tempo uma ampla reforma que, ao que consta, alteraria a Constituição no que tange à área de recursos humanos do setor público. A ideia seria sobretudo viabilizar uma gestão mais eficaz do funcionalismo, de forma a aumentar a produtividade do Estado. Ao longo do tampo, haveria também economia fiscal.

Espera-se para depois do Carnaval uma proposta do Executivo. O presidente da República vem repetindo que a reforma deveria valer apenas para futuras contratações. Ora, se o caminho for esse, ficará bem prejudicada a urgente revolução de gestão, que precisa acontecer o quanto antes.

Há bastante espaço para, sem mudar a Constituição, fazer mudanças administrativas fundamentais. Simples leis podem melhorar e ampliar os vínculos temporários com o poder público, diminuir o número de carreiras, implantar o planejamento unificado da força de trabalho e, especialmente, impor a avaliação unificada de desempenho de todos os servidores.

Quanto ao tema polêmico da estabilidade, o artigo 41 da Constituição já foi mudado em 1998 para permitir que servidores estáveis percam o cargo "mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa". Ou seja, uma mudança radical da área de RH do Estado é possível sem alteração na Constituição e com a pressa que exige o quadro precário da gestão pública em nosso país.

Digno de nota aqui mais uma vez o Rio Grande do Sul, que recentemente reformou as carreiras do seu funcionalismo, um notável feito político.

A essa altura, deve estar claro a quem aguentou ler até aqui que não vai dar para fazer tudo ao mesmo tempo. O Congresso vem se superando no front das reformas. Agora cabe ao Executivo liderar. Um caminho razoável seria aprovar as leis do saneamento e do Banco Central e definir um caminho factível para as reformas tributária e administrativa.

*Arminio Fraga, Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Valor: 'É preciso abrir espaço fiscal para ter mais recursos para o setor da saúde', diz Arminio Fraga

Para Arminio, todos os esforços terão que ser feitos, tanto em relação aos recursos financeiros quanto no campo da eficiência e da precisão cirúrgica dos gastos

Por Leila de Souza Lima, Valor Econômico

SÃO PAULO - Mesmo com a urgência em se fazer ajustes na saúde pública, com melhora na gestão, adoção de novas tecnologias e redução de despesas, é necessário abrir espaço fiscal para direcionar recursos à área devido aos desafios socioeconômicos do país, avalia o ex-presidente do Banco Central (BC) Arminio Fraga. Neto, filho e sobrinho de professores da área médica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o economista encontrou nessa ascendência parte da razão para fundar em meados do ano passado o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). Como descreve, a organização surge com o fim de debater e formular políticas para o setor, além, caso necessário, de se posicionar reativamente a propostas e medidas geradas no âmbito do sistema. “Sempre de forma independente, apartidária e analítica”, frisa ele.

Arminio e seus colaboradores - um time de estudiosos e especialistas no assunto - sabem que não é fácil avançar nessa cruzada, num cenário em que patrocinadores estão cada vez mais escassos. Esse é o motivo de ser difícil encontrar no Brasil entidades dedicadas ao tema, que requer estudos caros, prescindindo de ajuda do governo ou da iniciativa privada. “O dinheiro vai vir de fora do setor”, diz o cientista político Miguel Lago, diretor-executivo do Ieps. “E não aceitamos nem do poder público. Isso torna o desafio maior, mas nos dá total independência”.

Esse princípio é primordial diante do que o Ieps - por ora bancado totalmente por Arminio - defende como essencial para manter de pé um sistema que atende aos três quartos da população sem planos de saúde. Em resumo, definir “de forma consciente” prioridades de gastos na área, o que provoca reação dos defensores mais ferrenhos do SUS como sistema universal que é, e a concretização de reformas que vão desagradar a alguns segmentos da sociedade, como mexer no Imposto de Renda, um terreno para subsídios tributários altamente regressivos no Brasil, conforme pontua Arminio, sócio da Gávea Investimentos.

Ele afirma, no entanto, que todos os esforços terão que ser feitos, tanto em relação aos recursos financeiros quanto no campo da eficiência e da precisão cirúrgica dos gastos. “E não ficar na ilusão de que tudo é possível instantaneamente, dando no que deu ao longo de décadas”, analisa. A questão de obter recursos exige a decisão estratégica de abrir espaço orçamentário, um aspecto relacionado à própria democracia brasileira, ressalta o economista.

Dessa forma, segundo Arminio, é importante discutir gestão com postura “desarmada”, um recado que se dirige às várias pontas desse debate - setores público, acadêmico e privado, que se desdobra em planos, seguros, fornecedores e prestadores dos serviços médicos. Apesar de reconhecer o SUS como um bom modelo, ele vê lugar para melhorar a eficiência e reorganização federativa do sistema a fim de “fazer mais com menos”, a exemplo do que o governo propala como possibilidade.

Arminio pondera, contudo, que essa ideia não pode ser usada como argumento fazendário para fechar as comportas orçamentárias. “Então vejo um setor que vive certo impasse; tem essa tensão entre a falta de dinheiro, os desafios de gestão e as necessidades fiscais. A saúde pública corretamente reclama por mais investimento num terreno em que há disputa por recursos entre as áreas. E o país também está numa situação complicada e há a necessidade de organizar a situação financeira. Não podemos viver crises econômicas de dez em dez anos, um claro obstáculo ao desenvolvimento”, observa ele, para quem o caminho até o equilíbrio entre esses dois mundos - fiscal e social - é longo e difícil.

O ex-presidente do BC conta que, paralelamente aos estudos em torno de alternativas para a saúde, tem se debruçado sobre os grandes números num trabalho combinado sobre desigualdade no país. Essa imersão confirmou a ele o excesso de rigidez do Orçamento federal. E essa é uma das queixas de pesquisadores que já fizeram contas para projetar os impactos da austeridade imposta pelo teto de gastos vigente desde 2017, como o freio na redução da mortalidade infantil, segundo mostrou estudo liderado por Harvard e divulgado pelo Valor ano passado.

“As despesas com funcionalismo e Previdência representam 80% do gasto público, somando-se as três esferas de governo. Aí sobra muito pouco para o resto. Claro que tem funcionalismo na saúde, na educação, muita gente. Mas é daí também que pode surgir uma racionalização para atender às prioridades da nação”, afirma ele, para quem a reforma do Estado, adiada no ano passado, precisa voltar à pauta o mais rapidamente possível por ser outra fonte de economia e redistribuição de verbas.

“A reforma da Previdência que foi aprovada também só resolve um terço da questão. Ela vai ter que ser reforçada, e um aspecto já está em discussão; os Estados que terão que ser incluídos. E mesmo que se inclua, ainda vai faltar.”

A questão colocada pelo economista é: de onde vai sair o dinheiro? “A carga tributária no Brasil já é bem alta, não é fácil aumentar imposto num país como o nosso. Mas existem subsídios e genuinamente absurdos do ponto de vista distributivo, que deveriam ser eliminados. Já tenho proposto esse caminho.”


Arminio Fraga: ‘Não é justo governar só para economia formal’

Ex-presidente do BC cobra investimentos em educação e capacitação do trabalhador para reduzir a desigualdade

Douglas Gavras, O Estado de S. Paulo

“O governo atual parece não ter esse tema (o combate à pobreza) como prioridade, eles parecem comprar uma ideia mais antiga de que tem de fazer crescer o bolo antes de distribuí-lo. Ou que o crescimento por si só vai resolver o problema.”

Para Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, a reversão do avanço da desigualdade de renda e da pobreza passa pela retomada do crescimento mais robusto da economia com investimentos, de longo prazo, em educação e formação do trabalhador. “Não é justo governar só para os que estão na economia formal”, afirma. Para ele, é preciso olhar para a informalidade.

A necessidade de reverter o avanço da desigualdade de renda e da pobreza nos últimos anos, a partir da recessão de 2014 a 2016, passa pela retomada do crescimento mais robusto da economia e, no longo prazo, pelos investimentos em educação e formação do trabalhador, afirma o economista Arminio Fraga.

Ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, ele diz que é preciso prestar atenção ao aumento do trabalho informal, geralmente de pior qualidade e de remuneração mais baixa, e garantir que ele não seja um outro vetor de aumento da desigualdade.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

O que pode ser feito para reverter o aumento da desigualdade?
O País está há décadas crescendo pouco e houve um descaso histórico com áreas importantíssimas, que têm ligação com qualidade de vida e desigualdade: educação e saneamento, por exemplo. A piora dos últimos anos tem a ver com a profunda recessão que ainda nos assola. Aqui, o Banco Central vem agindo dentro do seu mandato, reduzindo bastante os juros. Essa seria a resposta mais direta e mais natural, pois o Brasil não é um país que está em uma armadilha de liquidez. Além da política monetária, o BC vem perseguindo uma relevante agenda de redução dos juros para as pessoas e empresas, ainda altos na maioria dos casos. E algumas reformas feitas nos anos recentes, como a trabalhista, devem contribuir para um aumento do emprego.

O aumento da pobreza e da desigualdade já era esperado, dado o tamanho da crise?
A pobreza extrema caiu ao longo dos anos, a desigualdade também, mas ela vem caindo pouco desde 2006 – esse cenário só piorou nos últimos quatro anos. Ouço dos especialistas que tem mais a ver com o impacto assimétrico da recessão sobre os mais pobres. Parece claro que existem algumas dimensões que precisam ser repensadas ou reforçadas. Os investimentos em educação estão no topo da lista, mas são de longo prazo. Tenho batido bastante na tecla de que redução das desigualdades e crescimento têm de andar juntos. Existe uma imensa agenda de redução de desigualdades e aumento de mobilidade social que precisa ser posta em prática. E inclui a viabilização de investimentos em outras áreas sociais, como saúde, transporte urbano, saneamento, segurança.

Se a volta do crescimento é importante para a redução da desigualdade, o que tem atrapalhado?
A minha visão é que prevalece um grau elevado de incerteza política, jurídica e até mesmo institucional que afeta decisões de longo prazo. E, como o espaço maior para investimento no Brasil parece ser o da infraestrutura, isso dificulta o deslanchar de projetos em uma área que já é, por natureza, muito difícil.

Se os índices pioraram desde a recessão, a tendência é que eles voltem a melhorar, com o reaquecimento da economia?
Sim, por definição, seria bom. Mas mesmo que as coisas deem muito certo, serão décadas para recuperar o tempo que se perdeu e reduzir a distância que nos separa dos melhores padrões globais. E também é importante levar em conta as tensões sociais e políticas, que prejudicam a formulação de boas políticas. Não vejo o Bolsa Família como uma política de combate à recessão. Ninguém quer estar em recessão, mas isso, às vezes, permite respostas mais rápidas.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que falta ao governo levar a questão da pobreza para o centro das discussões.
Sim, concordo. Esse deveria ser um foco permanente de atenção. O que acontece é que diferentes governos têm diferentes prioridades. O governo atual parece não ter esse tema como prioridade, eles parecem comprar uma ideia mais antiga de que tem de fazer crescer o bolo antes de distribuí-lo. Ou que o crescimento por si só vai resolver o problema. E outros, como eu, pensam que há muito espaço para agir em paralelo e que um lado reforça o outro.

A falta de recursos públicos pode justificar a ação do governo?
É uma questão de estabelecer prioridades, pois a falta de recursos é real. Especialistas em políticas sociais dizem que existe um problema de gestão e que repensar a maneira de gastar os recursos teria um impacto de primeira ordem. É um ponto de vista que precisa ser considerado, sobretudo quando o Estado brasileiro está em situação fiscal tão precária, do lado das suas finanças.

A ideia que o governo Bolsonaro já considerou, de não reajustar o salário mínimo, poderia frear a redução da pobreza e da desigualdade?
Quem analisa no detalhe o papel do salário mínimo, reconhece que o aumento dele foi muito importante ao longo de mais de 20 anos. No entanto, como política social, existem também custos. Fica essa questão. Outro tema delicado, quase censurado, é a questão da informalidade, que merece mais discussão. Falta uma análise aberta e honesta dessa questão. Ter 50% das pessoas desempregadas ou empregadas na informalidade é um problema social e de produtividade gravíssimo. É inevitável analisar isso de uma maneira desapaixonada. Não é justo governar só para os que estão empregados na economia formal e pertencem a sindicatos, que são mais fortes e cuidam mais dos seus. Como ficam os outros? Isso é debatido na academia, mas não vejo esse tema chegando à política.


Arminio Fraga: Falta muito

Há no ar uma sensação difusa de injustiça social e frustração

Há muitos anos o Chile vem exibindo crescimento sustentável, democracia plena e alternância de poder. O Consenso de Washington no final das contas parecia ter dado certo. Sob muitos aspectos deu.

Mas, na sexta-feira (18), os protestos que se iniciaram em 6 de outubro se transformaram em uma onda de violência que tomou conta de Santiago. O presidente Sebastián Piñera declarou estado de emergência e acionou o Exército para controlar os manifestantes. No final, morreram 18 pessoas.

Assim como no Brasil, a desigualdade lá continua alta e há no ar uma sensação difusa de injustiça social e frustração.

O caso reforça a tese de que crescimento e equidade precisam caminhar juntos, sob pena de inviabilizar politicamente qualquer estratégia de desenvolvimento. Não podemos nos esquecer de 2013.

Passados 10 meses de governo Bolsonaro e mais de três anos de agenda econômica reformista, cabe um breve balanço do que vem sendo feito e do que falta fazer.

Em resposta ao colapso econômico que assola o país desde 2014, e a despeito de todos os problemas conhecidos, o governo Temer deixou realizações: inflação sob controle, aprovou o teto do gasto público (vejo problemas aqui, mas um sinal foi dado) e uma reforma trabalhista, reduziu em muito os enormes subsídios distribuídos pelo BNDES a empresas e pôs em movimento a agenda BC+ de redução do custo do crédito e inclusão financeira. Não foi pouco.

Esse esforço, aliado à trágica recessão, permitiu uma enorme queda na taxa de juros que o governo paga em sua dívida.

O roteiro econômico liberal seguiu vivo com a chegada do governo atual. De concreto foi finalmente aprovada uma reforma da Previdência e também uma lei de liberdade econômica. O BC segue firme com a agenda BC+ (agora BC#) e o governo sinaliza um amplo programa de desburocratização, privatizações e concessões. O acordo com a União Europeia e a abertura comercial unilateral estão em andamento também.

Por que então temos uma recuperação tão modesta após queda tão grande do PIB e tanta gente a empregar? Listo aqui alguns suspeitos.

Dados do Ministério da Economia mostram que houve algum ajuste no governo federal, mas longe do prometido, e mais longe ainda do necessário. Os estados ficaram fora da reforma da Previdência e encontram-se em sérias dificuldades, alguns até quebrados. Portando, a situação fiscal do Estado segue precária.

No front do Congresso, que segue dando uma colaboração fundamental, estão entrando em pauta as essenciais reformas tributária e administrativa. Fala-se também em uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para cortar despesas obrigatórias. São temas mais difíceis, pouco maduros na opinião pública, não há garantia de sucesso.

As taxas de juros na ponta do tomador seguem muito altas, apesar dos esforços do BC.

A economia mundial está desacelerando.

A fronteira de investimento mais natural é da infraestrutura, na qual as necessidades e carências são imensas. Ou seja, há demanda. Mas, nessa grande área, os processos são lentos e dependem de uma confiança a longo prazo que não existe. Ou seja, não há oferta.

O que mais falta?

Tenho escrito aqui sobre a necessidade de investir nas áreas sociais para promover o crescimento. Mas o espaço orçamentário encontra-se esgotado e engessado e, de qualquer forma, a agenda de redução das desigualdades não parece ser prioritária.

Na área de costumes, o governo vem retrocedendo em áreas cruciais como educação, meio ambiente, cultura e direitos humanos.

Temas sociais e de costumes afetam, sim, a economia, por meio de seu impacto sobre o debate público, o ambiente de negócios e a qualidade de vida em geral. No nosso caso, o impacto tem sido negativo, pois as posições do governo são fonte de incerteza, tensão e desconforto. E agora?

*Arminio Fraga, economista, é ex-presidente do Banco Central.


Arminio Fraga: Brasil verde

Como a emergência está próxima, é de nosso interesse agirmos logo, por conta própria

Em tempos de obscurantismo afloram sentimentos que vão da indignação à profunda solidariedade. São emoções que alimentam a resistência. O estresse ativa defesas que nos levam a sonhar, ora como fuga, ora como projeto. Neste espírito escrevo a coluna de hoje.

Imaginem um país onde as praias, lagoas e rios são limpos. Onde todos têm acesso a esgoto e água corrente. Onde o ar que se respira é puro. Onde os alimentos são saudáveis. Onde a natureza é preservada e apreciada. Que tal? Um país assim melhoraria nossa saúde, qualidade de vida e autoestima, atrairia muito mais turismo, de maior poder aquisitivo, e viabilizaria a abertura de mais e melhores mercados para exportações.

A Costa Rica e a Nova Zelândia são exemplos de que, em tese, se trata de um futuro a nosso alcance. Uma forma de mobilizar apoios e coordenar ações nessa direção seria a criação de um projeto intitulado Brasil Verde, que definisse como metas os sonhos listados acima. Para que elas fossem atingidas, a cada uma estariam associadas planos de ação.

Uma primeira meta deveria ser desmatamento negativo, ou seja, parar de desmatar e ao mesmo tempo recuperar áreas desmatadas e abandonadas. Esta é a proposta dos respeitados cientistas Thomas Lovejoy e Carlos Nobre e de especialistas como Tasso Azevedo e Beto Veríssimo. Eles avaliam que há risco relevante de a Amazônia atingir um ponto sem retorno (um “tipping point”): a partir de um certo grau de desmatamento, a floresta perde sua capacidade de regeneração. As consequências de tal evento seriam catastróficas para o clima do Brasil e do mundo. Desapareceriam os famosos rios voadores que irrigam a produção agrícola mais ao sul e haveria perda de biodiversidade, com seu imenso potencial inexplorado. A floresta precisa ficar de pé.

Vale lembrar aqui que estudos econômicos coordenados por Juliano Assunção da Climate Policy Initiative demonstram que a produção da agropecuária brasileira tem imenso espaço para crescer sem derrubar uma árvore mais sequer, apenas reaproveitando áreas degradadas ou subutilizadas. Logo não há qualquer vantagem para a sociedade como um todo em seguir desmatando.

Há quem imagine que em algum momento o resto do mundo nos pagará pela função de reserva ambiental do planeta. Melhor esperarmos sentados. Como a emergência já está próxima, é de nosso interesse agirmos logo, por conta própria. Se assim o fizermos, além de cuidar de nossa própria qualidade de vida, estaremos ocupando uma posição de liderança iluminada no contexto internacional, que nos traria preciosos respeito e poder de natureza “soft”.

Uma segunda meta seria a despoluição de nossas águas. Banho de mar sem língua de esgoto, pesca e lazer nos rios, menor incidência de toda sorte de doença recomendam uma blitz no front do saneamento, hoje uma vergonha, carente há décadas de uma resposta competente. Os ganhos em termos de saúde e bem-estar seriam enormes, muito maiores do que os custos.

No campo dos alimentos estaria a terceira meta. Aqui há grande espaço para queimarmos etapas. O mundo caminha cada vez mais para produtos saudáveis, não processados, que eliminem ou pelo menos minimizem os riscos de contato com agrotóxicos, antibióticos e hormônios. O Brasil pouco acordou para essa tendência, parecendo caminhar na direção oposta. Todo cuidado é pouco. Cabe uma guinada radical, o quanto antes, melhor.

Caberia falar também de poluição atmosférica, energia limpa, poluição sonora. Brasil Verde poderia virar uma marca de qualidade, que seria a nossa cara.

Esse sonho pode ser transformado em realidade. Mas quando? A tempo?

*Arminio Fraga é economista, é ex-presidente do Banco Central.


O Globo: ‘A ideia de tabelar preço é totalmente fracassada’, diz Arminio Fraga

Ex-presidente do BC acredita que país continua sendo vítima fácil para o populismo

Rio- Ao GLOBO, o economista e sócio da Gávea Investimentos disse que reajustes de combustíveis com periodicidade mais espaçada não seriam um problema — hoje, a Petrobras pratica reajustes até diários, e política foi estopim para greve de caminhoneiros. Leia abaixo os destaques da entrevista.

Como o sr. analisa essa crise?
A opção histórica pelo transporte rodoviário não foi a ideal. A concentração nesse tipo de transporte claramente foi excessiva. Faltou todo o lado ferroviário. Mais recentemente, houve o programa de subsidiar compra de caminhões e, como todo subsídio, tende a desequilibrar a economia. O quadro foi agravado pela recessão que o país viveu e, sob certa maneira, ainda vive. Então, teve uma tesoura com duas lâminas: o lado da oferta, que confirmou uma opção que até já se sabia que não era a ideal, por uma concentração maciça no transporte rodoviário, e depois uma série de equívocos de política econômica que levaram a essa depressão que o país vive hoje.

A resposta do governo foi adequada?
Num primeiro momento teve um impacto muito grande nas ações da Petrobras, colocando em risco o magnífico trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Pedro Parente e sua equipe (a entrevista foi dada antes da renúncia do presidente da Petrobras), o que considero uma grande pena. É um choque clássico de oferta e isso pegou um governo fragilizado. É uma combinação: problemas antigos, problemas novos e o impacto em alguns setores do aumento do preço do petróleo. Regionalmente foi bom, Norte do Estado do Rio, Espírito Santo, toda a cadeia do setor de petróleo se beneficia; outros setores, não. E aí os perdedores, que são em maior número, se mobilizaram.

Quais os efeitos?
Do lado econômico, está acontecendo num momento muito delicado. O governo vem trabalhando com o cobertor muito curto, o que agrava a situação. O governo optou por postergar o ajuste, tomando medidas de longo prazo, mas acabou que a mais importante não aconteceu: a reforma completa da Previdência. O teto de gastos ficou fragilizado, com a falta da reforma da Previdência. É um estado muito precário das finanças do país em geral, governo federal e vários entes da federação. E essa é uma das muitas questões que deveria fazer parte do debate presidencial. Vamos ver se isso acontece de forma clara que sinalize a eventual construção de um consenso. Minha visão não é otimista, mas alguma esperança eu ainda tenho.

Quais os reflexos para a economia subsidiar o diesel?
No mundo inteiro o que se faz é o oposto. Uma visão de sustentabilidade ambiental recomendaria fortemente não subsidiar. O que está acontecendo é um desequilíbrio num mercado que foi estimulado pelo próprio governo. A ideia de tabelar preço tem um histórico muito longo no nosso país e é uma ideia totalmente fracassada. Eu não acredito em controle de preços, tampouco em subsídios. Pode acontecer alguma forma de suavizar o aumento (dos combustíveis), que eu acho que é para onde parece caminhar. Seria um aperfeiçoamento razoável que poderia ter acontecido, inclusive, sem greve. Suavizar em tese não traz custo fiscal. Não vejo como isso pode ser feito através de impostos com grande impacto. Uma média móvel trimestral ajudaria.

Para que os reajustes não sejam diários?
Sim. Agora, subsídio a essa altura do jogo eu tenho sérias dúvidas. Na minha leitura, o país está quebrado, não tem como pensar em subsídio.

Os reajustes no diesel poderiam funcionar como o do gás de cozinha, trimestralmente?
Ajustes mais espaçados, algo assim. Sair do modelo de reajuste frequente não seria um problema maior.

Apesar de ter sido prejudicada, houve apoio da população à greve.
Há um mal-estar, uma descrença no futuro, na política, e todo mundo quer mais. É natural que assim seja, e o nosso sistema não está em condições de processar isso, desde o colapso fiscal de 2014, que foi agravado pelo colapso econômico que também teve origem por ali. É natural, mas não é desejável. A maior parte das pessoas quer expressar seu descontentamento de alguma maneira. É um sinal dos tempos e um sinal também que nós continuamos vítimas fáceis do populismo, para o imediatismo, para o atalho, para o gatilho, para política do “meu primeiro”. Eu espero que tudo isso se resolva de uma maneira mais racional.

Pode fortalecer o discurso populista?
É um terreno fértil para que ideias que parecem ousadas e superficialmente boas prosperem. A nossa história está lotada disso e a dos nossos vizinhos, também. Há inúmeros casos de populismo triunfando e depois se esborrachando.

Que sinal o governo dá ao cortar programas sociais para subsidiar o diesel?
Está faltando espaço para tudo que gostaríamos. Hoje temos um orçamento amarrado, que precisa de um ajuste. O grau do desequilíbrio é tal que, ou as coisas se ajustam ou vão piorar. Assim que houver um governo novo, tem de desvincular o orçamento todo e repensar tudo. E não há muito espaço. Uma parte do que é vinculado está dentro da previdência e folha de pagamento. É uma discussão bem difícil, mas que precisa ser feita depois de eleito um novo governo. Se a opção for para um caminho populista, aí tudo bem. Opção meio suicida, mas não vai ser a primeira vez que faremos isso.

Quais consequências?
Num momento em que o PIB per capita caiu 10%, isso é incrivelmente ruim, a economia está desorganizada, o investimento está parado, e o país precisa, para sair desse círculo vicioso, arrumar a casa, não só no lado macro, do lado micro também. Essa outra agenda de um modelo pesadamente intervencionista, fechado, sem foco em produtividade, na construção de estado mais eficiente e transparente, se for por aí, a receita é bem conhecida. A gente vê algumas sinalizações já nesse início de debate que, se arranhar um pouco a superfície, sugerem que esse risco não desapareceu.


Valor Econômico: 'Espero que voto de Huck migre para Alckmin', diz Arminio Fraga

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, defendeu, em entrevista ao Valor, uma ampla reforma tributária com a criação do Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) e mudanças no Imposto de Renda (IR) para tributar mais a renda dos serviços que, com a "pejotização", é muito pouco taxada.

Por Claudia Safatle, do Valor Econômico

Mesmo que a proposta de emenda constitucional da Previdência ainda seja aprovada por este governo, ele acredita que será preciso uma nova rodada de reformas nessa área e sugere que os economistas do atual governo, que mergulharam no assunto, deixem um amplo projeto pronto para a próxima gestão. O financiamento da seguridade social não deve ser feito primordialmente pela tributação da folha de salários. "Acho que se deveria descarregar a necessidade de arrecadação em outros impostos, sobre um IVA bem feito e também no Imposto de Renda, onde há espaço, dado que rico, no Brasil, não paga imposto", disse.

Segundo Arminio, há vários grupos de economistas discutindo o Brasil. O resultado desses debates deverá ser prático, com propostas concretas e as respectivas medidas legais colocadas no papel. Se tiver que ser projeto de lei ou medida provisória, eles já estarão prontos. Ele próprio está se dedicando à elaboração de propostas para uma ampla e profunda reforma do Estado, junto com a economista Ana Carla Abrão.

Reformas do Estado, tributária e da Previdência são algumas das medidas que poderão servir a um eventual governo reformista. Elas compreendem outras iniciativas importantes, como a desvinculação geral do Orçamento, mecanismos de avaliação dos programas, fim da estabilidade do funcionalismo. Esses grupos não estão necessariamente ligados a um candidato à Presidência da República. Com a desistência de Luciano Huck, Armínio espera que Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo, seja o herdeiro desses votos.

A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: O presidente Michel Temer disse que vão sobrar poucas reformas para serem feitas pelo próximo governo. Na sua avaliação, sobram poucas ou muitas?

Arminio Fraga: Falta muita coisa. Sem nenhum demérito da reforma trabalhista, do que foi feito no setor de petróleo, no setor elétrico, nas estatais, no BNDES, isso é um início. O teto que foi aprovado não funciona sozinho, tem que ter uma boa reforma da Previdência - ou duas, talvez - e muito mais. Tem o lado tributário, que é um prato cheio para reformas, tanto o lado indireto quanto do Imposto de Renda. Temos o país da 'pejotização', do fundo fechado, tudo o mais, que precisa ser repensado.

Valor: Teria que rever as deduções do IR também?

Arminio: Também. Toda a discussão sobre terceirização, que foi boa, deixou de lado o fato de que muito do que se vê tem motivação tributária, o que está errado. No lado fiscal, da gestão pública, há também um enorme caminho pela frente. Para isso é preciso uma reforma muito completa e profunda do Estado. E não é só uma questão fiscal - embora o 'só' seja entre aspas porque é uma questão enorme. É muito mais. É criar condições para se ter um Estado mais eficaz. Essa é uma agenda importantíssima. Com certeza, na infraestrutura tem muito a se fazer. Acho que a agenda [do governo] é boa, não estou reclamando, mas está longe de estar concluída. Muito longe.

Valor: Quando o senhor fala da reforma do Estado, está falando de um Estado menos empresário, mais voltado para as questões sociais?

Arminio: Com foco na segurança, saúde, educação e Previdência até um nível básico. Um Estado que consiga entregar nessas áreas. Nos últimos anos houve algum progresso, mas estamos muito longe de ter um sistema público de educação e de saúde como o que gostaríamos. As crianças estão na escola, mas as avaliações qualitativas são muito ruins. Temos saúde universal com um desenho bom, mas também cheio de problemas. E segurança nem se fala, é um assunto emergencial.

Valor: A intervenção federal no Rio, recém anunciada, é parte de uma ação emergencial?

Arminio: Sim, pois de fato é uma emergência. Mas depois será necessário algo permanente.

Valor: Voltando à questão fiscal, onde além do teto houve medidas importantes, como a devolução do 'funding' do BNDES. Mas isso não resolve o cumprimento do teto para o gasto público...

Arminio: Não, não resolve.

Valor: A reforma da Previdência, se ainda for aprovada, vai ser modesta, o que leva a crer que o próximo governo terá que continuar nesse tema, não?

Arminio: Tenho certeza. Os especialistas dizem que a primeira reforma resolvia 70% - um número aproximado - da questão; a que está aí hoje resolve metade. Então, tem que ter outra.

Valor: Dado o engessamento do Orçamento, não seria preciso fazer algo mais drástico como um orçamento base-zero?

Arminio: Tem que fazer orçamento base-zero, repensar a estabilidade, desvincular o Orçamento todo.

Valor: Para fazer essa revolução não teria que haver um governo...

Arminio: O governo tem que querer. E aí, se descobrir que falta ferramenta, tem que propor. Eu estou até envolvido em umas discussões para preparar projetos e propostas nessa área com um teor mais prático.

Valor: Como é isso?

Arminio: Há vários grupos discutindo o Brasil, sem necessariamente ter ligações diretas com eventuais candidaturas. Acho necessário ir além de preparar textos sobre duas dezenas de assuntos e avançar em alguns dos temas, principalmente sobre os que exijam mudanças em lei, e que se pense na execução das medidas. Se precisar de um projeto de lei, que tenha ele preparado.

Valor: Quais as medidas que esses grupos devem propor?

Arminio: As mais óbvias são a reforma tributária - a consolidação dos vários tributos indiretos e a criação de um IVA moderno. Há muita gente pensando nisso. Precisa ter um grupo de pessoas para deixar isso pronto. Outro tema é o da Previdência. Nesse, o próprio governo poderia preparar um projeto, nem que seja para ficar na prateleira, incluindo tudo. A proposta que está aí merece ser aprovada, é necessária. Mas é preciso ir além e fazer "a" reforma que traz pendurados outros assuntos, como a tributação da folha. Será que é necessário financiar a transição para um sistema mais atuarialmente equilibrado cobrando da folha [de salário das empresas]?

Valor: Qual a resposta?

Arminio: Acho que não. Pode ter alguma, mas deveria descarregar a necessidade de arrecadação em outros impostos, sobre um IVA bem feito e, também, no Imposto de Renda, onde há espaço dado que rico, no Brasil, não paga imposto. Aliás, é estranho que depois de tantos anos de governo do PT não se tenha avançado nesse tema [taxar os ricos]. Esse é um assunto adormecido.

Valor: Imposto sobre herança? Patrimônio?

Arminio: Sobre herança, pode ter também. Mas acho que o imposto sobre patrimônio não funciona. O único patrimônio onde se cobra imposto no mundo inteiro é o imobiliário. Sobre herança é razoável, as alíquotas no país vêm subindo. Pode-se tributar mais a renda sobre setor de serviços, que com a 'pejotização' é pouquíssimo tributada. Então, trata-se de deixar como projeto um grande redesenho da área previdenciária, mercado de trabalho e da tributária.

Valor: Qual a proposta para a reforma do Estado?

Arminio: É dar uma geral no Estado para que seja mais eficaz. Na área de recursos humanos, ter uma avaliação das pessoas, repensar o tema maior da estabilidade e, por outros ângulos, avaliar programas de governo, que é crucial para que se saiba o que está dando certo e o que não está dando certo. É preciso um processo de avaliação permanente. A Ana Carla Abraão [economista] está trabalhando nisso e vamos incluir outras pessoas, como advogados que entendam do tema. Desse eu estou mais próximo. Sem tudo isso e, particularmente, a parte do Estado, acho difícil o país chegar aonde pode chegar.

Valor: Quais os programas mal avaliados?

Arminio: O que existe hoje no mundo da educação, da saúde e da segurança não dá para dizer que está dando certo. Progressos ocorreram, o SUS é bem avaliado, mas precisa de ser aperfeiçoado e tem problemas enormes de gestão. Idem para educação; e segurança nem se fala. É coisa grande, estamos falando das coisas de maior peso na vida de uma nação. Em função disso, é preciso pensar na desvinculação do Orçamento, que é totalmente amarrado. As prioridades mudam com o tempo. É irônico que o que o [José] Serra [exministro da Saúde] - encarava, lá atrás, como piso no orçamento da Saúde hoje virou teto.

Valor: Num país que envelhece esse é um gasto que deveria aumentar, não?

Arminio: Exato. Essa é uma área onde, por razões demográficas e tecnológicas, se espera mais gastos com o tempo.

Valor: Na educação é o contrário?

Arminio: É o contrário, apesar de o Plano Nacional de Educação demandar mais cinco pontos percentuais do PIB que eu não sei de onde sairia a essa altura, com o país quebrado. O Orçamento não deveria ser um negócio engessado. Tinha que ser uma coisa viva. É uma ferramenta que vai se avaliando: está dando certo, vai em frente, faz mais; está dando errado, corrige.

Valor: Os bancos públicos estão em processo de reversão do agigantamento que tiveram na gestão do PT. O BNDES volta a ser um banco de R$ 90 bilhões em desembolsos; a Caixa está sob restrições. O sr. acha que eles deveriam voltar ao tamanho que tinham antes de 2008/2009?

Arminio: Não tem por que, na minha opinião, ter um setor financeiro público agigantado. Não tem razão. Muita gente que discorda e diz que 'os bancos públicos deveriam prestar um papel anticíclico'. Eu tenho muita dificuldade em ver isso.

Valor: Por quê?

Arminio: Aqui sempre tem política anticíclica quando as coisas vão mal, e quando vão bem ela é pró-cíclica. Ou seja, é pé na tábua sempre. Aí não é saudável. Além do mais o Banco Central tem muito espaço para fazer política anticíclica. Na hora da recessão os bancos ficam conservadores demais. Será que o Banco Central não poderia compensar isso reduzindo mais agressivamente os juros?

Valor: O custo do capital é alto no Brasil. Com a taxa de juros em um patamar mais normal, isso se resolve pelo mercado? Como fica?

Arminio: Do lado do juro básico, o Brasil viu, nas últimas décadas, uma boa queda. Mas os juros aqui seguem altos, 5% reais na ponta longa. No Chile, hoje, deve ser 1% real para 25 anos. No México é um pouco mais. Acho que a nossa situação ainda é um tanto precária, porque temos um ajuste fiscal relevante a fazer sob pena disso não durar. No momento, [os juros], tem mais a ver com a recessão e com a sensação de que a gestãotemerária que nós tivemos não está mais presente.

Valor: Mas os juros para o tomador final continuam elevados.

Arminio: Aí resta a questão do prêmio de risco de crédito. Esse é um desafio antigo, o Banco Central tem se dedicado bastante a isso ao longo dos anos. Eu acho que esse projeto tem princípio, meio e fim. Tem a ver com insegurança jurídica, com tributação... Tem todo um diagnóstico que fizemos lá atrás. O Banco Central de vez em quando refaz, isso também não é uma coisa gravada em pedra.

Valor: Falta concorrência? Há quatro ou cinco grandes bancos.

Arminio: Em algumas áreas isso parece mais claro do que em outras... que estão merecendo a atenção das autoridades, cartão de crédito, cheque especial. A qualidade das garantias - que parecia uma grande promessa, hoje está sendo questionada. A própria alienação fiduciária para financiamento de automóvel e de imóveis parecia funcionar melhor do que anda funcionando hoje.

Valor: O sr. escreveu artigo em defesa da privatização do Banco do Brasil e da Petrobras...

Arminio: É o que eu acho. Acho que o Estado não devia ter empresa, assim, como primeira aproximação. Isso não quer dizer que não se possa transformar algumas empresas em corporações com boa governança. Mas ter empresa na mão do Estado, com objetivos políticos, não transparentes, que não transitam pelo Orçamento, é um prato cheio para problemas.

Valor: Um convite à corrupção?

Arminio: Não só à corrupção como ao desperdício. Acho que a gente devia cair na real e desistir. Não funciona, esquece. Se o governo quiser subsidiar a pesquisa básica, que o faça; se quiser ter programas para os mais pobres, com certeza deve fazer. Mas põe no Orçamento e cobra a execução. A execução tem que ser profissional, transparente, bem incentivada, com concorrência. Desses todos, têm os que estão avançando. O BB vem avançando há anos; a Petrobras avançou muito nesse período recente; a Eletrobras . Mas tem uns casos incríveis, que já existem há muito tempo, que têm avançado pouco. O exemplo que me vem à cabeça é a Caixa e, no Rio, a Cedae.

Valor: Se falta equilíbrio fiscal, falta sustentação para a política monetária. Há o risco de aumento dos juros no horizonte?

Arminio: Não, no momento isso não está no horizonte. Mas não há política monetária de excelência sem uma política fiscal robusta.

Valor: Algum candidato sairá das eleições com legitimidade para fazer um ajuste dessa dimensão?

Arminio: Acho difícil. O governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) deu uma entrevista excepcional tocando nesse assunto. Tocou em todos os pontos, e isso inaugura um debate eleitoral com o pé direito. Eu espero que as pessoas não sejam bobas de achar que ele está pedindo um sacrifício desnecessário. No governo passado houve uma deterioração fiscal de cerca de seis pontos percentuais do PIB. Um quarto por perda de receita na recessão, o resto por aumento de gastos e desonerações. Essa correção de rumo é necessária para estancar o crescimento exponencial da dívida pública e para consolidar um patamar de taxa de juros bem mais baixo do que aquele que temos tido há décadas.

Valor: Isso seria ser feito em um ano?

Arminio: Se o governo tiver uma agenda bem estruturada e crível, e as ferramentas forem sendo desenvolvidas com as reformas do Estado, da Previdência - não seria necessário nem recomendável fazer o ajuste todo em um só ano. Poderia ser ao longo de três anos. Tem muita área onde dá pra mexer. O relatório recente do Banco Mundial tem uma lista bem-feita.

Valor: Fala-se muito que o Brasil se desindustrializou. É o caso de se reindustrializar?

Arminio: O mundo inteiro se desindustrializou. A China, que é o polo industrial do planeta, também está vivendo um movimento onde o setor de serviços já é maior do que a indústria. O que temos de negativo em relação à indústria no Brasil é que ela foi desenvolvida debaixo de um regime de proteção bastante radical, que no início era tido como sendo proteção à indústria nascente, que já dura décadas.

Valor: Tornou-se uma proteção danosa?

Arminio: E isso não ajudou, porque hoje as coisas estão muito integradas e as necessidades tecnológicas são crescentes. Se você não está integrado fica mais difícil. E mais: o Brasil vive essa situação esdrúxula onde a indústria é muito mais tributada do que o setor de serviços e a agricultura. Não há por que ser assim. Isso está errado. Para compensar o fato de se ter regras trabalhistas complicadas, uma tributação complicada e cheia de distorções, uma infraestrutura ruim, o custo do capital alto etc... o governo, na outra ponta, começou a dar muito subsídio. Aí fica uma economia toda engatilhada, exposta a grupos de interesse e acaba como um monstrengo que não é produtivo.

Valor: O sr. estava trabalhando na candidatura do Luciano Huck à Presidência. Com a desistência dele quem pode herdar seus eventuais eleitores?

Arminio: Olha, eu não estava trabalhando na candidatura, mas eu tive a oportunidade de conversar com ele muitas vezes no último ano. Nós moramos no Rio, acho que descobrimos interesses comuns, de tentar melhorar as coisas.

Valor: Ele desistiu ou adiou por quatro anos?

Arminio: Eu não tenho dúvida de que ele vai para vida pública em algum momento. Poderia ter ido agora, o que seria um movimento muito ousado; e poderia deixar para se preparar um pouco mais e ir mais adiante. Para uma pessoa com os talentos que ele tem, é uma ideia bastante boa também.

Valor: O sr. já sabia da decisão dele?

Arminio:Acho que nem ele sabia! Deve ter sido uma decisão impossível.

Valor: Quem o sr. acha que herda os votos que ele teria?

Arminio: Espero que o Geraldo Alckmin.