Alberto Aggio

Luiz Sérgio Henriques: Caminhante, não há caminho

Estes itinerários que Alberto Aggio sugere, com a competência habitual, levam ao coração de alguns dos mais importantes processos políticos contemporâneos, e não só do Brasil. É verdade que nas páginas iniciais somos lançados de chofre em nossas turbulentas ruas que, a partir de 2013, desmancharam a ilusão de uma idade de ouro que nos teria trazido, por inesperadas artes demiúrgicas, progresso econômico e distribuição de renda em ritmo quase linear – a pedra filosofal finalmente encontrada –, a prefigurar um domínio político que, na cabeça de seus dirigentes mais expressivos, não deveria se alterar significativamente por muitos anos à frente.

No entanto, seguindo o traçado aqui proposto reaprendemos mais uma vez que não há linearidade possível na política e na história. “Se hace camino al andar” – diz o poema famoso, e assim foi que as ruas brasileiras em 2013 e, depois, no biênio 2015 e 2016, desafiaram o quadro idílico e trouxeram desafios interpretativos que ainda agora nos atormentam. Intérpretes mais apressados não tardaram em formular hipóteses de regresso institucional e cultural, como se estivéssemos diante de uma ressurreição poderosa da “direita” após a experiência globalmente exitosa de quase quatro períodos presidenciais em linha com o “nacional-popular”, de resto presente em outros contextos latino-americanos ainda mais problemáticos do que o nosso – haja vista, para não deixar nenhuma dúvida, a tragédia venezuelana que se arrasta penosamente sob nossos olhos.

Mérito do livro, em cada uma das peças que compõem seu mosaico, é o de escapar dos dilemas mais simples e até simplórios que nos rodeiam e embaçam uma percepção mais nítida. Longe da pseudodialética que tudo reduz a uma alternância mecânica entre “direita” e “esquerda”, ele nos propõe desde o início hipóteses ousadas, como aquela que se baseia no caráter hipermoderno da turbulência de nossas ruas, em que se defrontariam, sem muitas mediações, radicais processos de individualização e demandas por uma esfera pública mais transparente e menos sujeita às relações incestuosas entre donos do poder político e econômico. Diante de massas de indivíduos ativadas pelas redes sociais, não há no livro nenhuma concepção de regresso inevitável ou de desforra de classes médias intrinsecamente moralistas contra o presumido avanço popular, mas, sim, atores e eventos em fluidez, abertos para diferentes resultados possíveis, o que uma cultura política de esquerda ainda marcada pelo espírito “heroico” e “revolucionário” – pelo menos verbalmente – tem dificuldade de metabolizar teoricamente e adotar como motivação para suas práticas.

Esta inquietação das ruas, ora provisoriamente serenada, conta uma parte significativa da história presente e só por meio dela se explica. No poema de Antonio Machado, o caminhante é insistentemente advertido de que o caminho “son tus huellas [...] y nada más”. Neste sentido, alguns dos itinerários tracejados seguem de perto nossas marcas recentes no chão – as marcas da esquerda brasileira, esta que, sintetizada no lulismo e no petismo, fixou as rotas no largo período entre 2003 e 2016, respectivamente o ano inicial do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e o da interrupção do segundo mandato de Dilma Rousseff. E, para nosso infortúnio, o inventário proposto por Alberto Aggio não tem nada de empolgante e menos ainda de tranquilizador: a experiência da esquerda no poder não terá contribuído para a renovação das instituições, oxigenando-as com a presença de uma nova elite dirigente, nem para a reativação da imaginação sociológica ou econômica, engessada que foi nos moldes estreitos do capitalismo de Estado.

De fato, ao longo daquelas rotas, nunca esteve em causa uma ruptura sistêmica – e, se por acaso tivesse estado, não é certo que seria desejável ou, ainda, teria o desfecho que o petismo idealmente pretendesse a ela imprimir. Revoluções “ativas” e irrupções jacobinas podem ser até fatos da vida, como afirma Luiz Werneck Vianna, mas perderam sua capacidade heurística ou, podemos acrescentar, sua função de instrumento para a instauração de qualquer tipo de socialismo teleologicamente definido. Nos modernos processos de mudança, o impulso de reconstrução é pelo menos tão importante quanto o da mera destruição abstratamente concebida e, para falar a verdade, só se muda aquilo que efetivamente se substitui, respeitados os requisitos postos pela concepção da política como hegemonia, como busca permanente e obsessiva de consenso, não como força ou constrição arbitrária.

Se isto faz sentido, era de esperar que o ator das reformas – a saber, o PT no poder e a densa rede de organizações na sociedade civil que há décadas lhe davam apoio – atualizasse na prática algo semelhante àquilo que há quase cem anos está presente no repertório gramsciano sob a rubrica de “revolução passiva”. Em sua primeira formulação, como se sabe, a revolução passiva ou revolução-conservação foi descrita como decapitação (política) do antagonista por parte das elites dominantes e assimilação, em lugar subordinado, das instâncias de renovação que ele postula, garantindo-se assim a neutralização da inovação histórica. Nas novas condições propiciadas pela democracia dos partidos e pelo voto universal, pode muito bem suceder que o ator das reformas (originalmente, o antagonista) assuma as rédeas do governo e se coloque como mola propulsora, mas não exclusiva nem essencial, de uma delicada construção de equilíbrios mais avançados na sociedade e no próprio Estado.

O poema que até agora nos guiou adverte o caminhante de que “al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar”. Uma esquerda moderna e reformista, uma vez no poder, sabe os passos que não pode repetir se é que pretende explorar, nem que seja tentativamente, as virtualidades positivas da revolução passiva, agora acionada em sentido transformador. A pura e simples decapitação (política) do adversário costuma ser um passo em falso rumo à atrofia da dialética democrática, ao dificultar, entre outras coisas, a necessária alternância no poder ditada por eleições livres e competitivas. A eventual posse dos palácios de governo não deve dar lugar a ruminações sofísticas sobre a diferença entre “ter o governo” e “ter o poder”, como se estar de posse deste último implicasse encenar outra vez o ritual da estadolatria e da limitação das capacidades de auto-organização da sociedade civil.

Não se pode esquecer em absoluto que os itinerários de Alberto Aggio, ainda que incertos e não suscetíveis de definição a priori, apontam todos “para uma esquerda democrática”. Por sua própria natureza, não podem passar de esboços que indicam sobretudo os roteiros que conduzem a becos sem saída e que, por isso, devem ser evitados. Ressalvadas as enormes diferenças de contexto, na história pregressa dos socialistas o autor destes itinerários encontrará pontos de afinidade – além de Gramsci, seu santo de cabeceira – com o inventor do sugestivo lema de que o fim não é nada, o movimento (democratizador) é que é tudo. Ou, para nos valermos mais uma vez de metáforas, estejamos certos nós, caminhantes, de que “no hay camino/ sino estelas en la mar”. Em geral, os poetas têm razão.

- Prefácio do livro  Itinerários para uma esquerda democrática, de Alberto Aggio.

Saiba mais em:
FAP e Verbena Editora lançam Itinerários para uma esquerda democrática, de Alberto Aggio
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2018/05/18/fap-e-verbena-editora-lancam-itinerarios-para-uma-esquerda-democratica-de-alberto-aggio/


Alberto Aggio: A polarização que não cede

Mas há um novo polo, que emergiu das manifestações de 2013 e do impeachment...

Em artigo nesta página (20/4), Fernando Gabeira tratou de um tema essencial aos candidatos às próximas eleições presidenciais: ganhar ou perder votos. Não aconselhou estratégias, mas advertiu ser preciso pensar na principal personagem desta eleição, a sociedade, traumatizada pela violência ou pela deriva de seus antigos líderes.

O tema objetivo dos candidatos configura-se como algo um pouco mais complexo para a sociedade. Importante seria pensar o que é ganhar ou perder para a sociedade. Uma vitória eleitoral não define tudo e tampouco uma derrota eleitoral se torna obrigatoriamente uma derrota histórica. A luta pela democracia e ela mesma não se resumem a números. Mais do que a conquista do voto – que tem toda a importância –, é preciso verificar, junto à sociedade e em nome dela, que tipo de vitória ou derrota os contendores estão dispostos a vivenciar.

A virtù de um candidato e de sua corrente política estaria na justa relação entre a conquista do voto e a perspectiva histórica que os anima. Trata-se de uma complexa construção histórica que demanda leitura competente da realidade, orientação ampla capaz de agregar diversos setores, além de tenacidade, paciência, prudência e vigor, até alcançar o objetivo final.

A título de exemplo, em determinadas circunstâncias, a vitória pode advir e superar uma derrota anterior, de caráter histórico. Nesse caso, é possível verificar a trajetória de atores políticos vitoriosos que conseguiram superar equívocos de orientação estratégica e, num contexto mais favorável, refizeram seus caminhos e compuseram alianças capazes de lhes dar condições de crescer, não importando os mecanismos adotados para enfim alcançarem seus objetivos. Essencialmente, essa foi a trajetória dos “companheiros de armas” do PT, que nas décadas de 1960 e 1970 optaram pela luta armada e depois, sem autocrítica pública, diga-se, conseguiram chegar ao poder na aurora do novo século. A vitória eleitoral desse grupo, como sabemos, não se configurou como uma vitória histórica e orgânica. O ex-ministro José Dirceu, condenado em diversos crimes de corrupção, assim como Dilma Rousseff, afastada da Presidência da República por um processo de impeachment legítimo e legal, são hoje expressões residuais que nem no PT recebem a guarida devida, para além da retórica de praxe.

Ao contrário desses personagens, então vitoriosos, que não produziram mais do que um “pensamento curto” sobre o País, houve aqueles que, derrotados por um golpe verdadeiro (1964), foram fecundos na leitura a respeito do esgotamento do regime militar, que adviria paradoxalmente do seu êxito, como escreveu Armênio Guedes, em 1971, e construíram a grande estratégia que orientou as oposições a derrotarem o autoritarismo em meados da década de 1980. Vitoriosos na sua estratégia política contra a ditadura, os comunistas do PCB foram derrotados ao serem tragados pelas mudanças do tempo histórico e pela inação de um grupo dirigente incapaz de acompanhá-las. Não é o caso aqui de apresentarmos, nem sequer sumariamente, as razões da derrota. Mesmo porque as razões da vitória, provisória e invertebrada, daqueles que alcançaram o poder em 2002 ainda estão mergulhadas em enigmas que aos poucos as instituições da democracia brasileira vão decifrando.

Em meio a vitórias efêmeras, derrotas amargas, frágeis avanços e oportunidades perdidas, o País vive uma democratização falhada que compõe o pano de fundo da crise atual. A “polarização patológica” entre PSDB e PT, nas palavras de Luiz Sérgio Henriques, acabou se transformando num método, em desserviço ao País. E isso precisamente num momento em que era possível que se desencadeasse entre nós uma acumulação histórica de cultura cívica jamais vivenciada. Reitera-se, por assim dizer, a cena observada por Luiz Werneck Vianna ao se referir à transição democrática da década de 1980 como “um processo em busca de um ator”. De fato, na resistência ao autoritarismo nos unimos, assim como no início da transição, que terminou com a fragmentação das forças democráticas para por fim, na democracia, nos enredarmos numa polarização nefasta, improdutiva e paralisante.

Talvez não seja correto dizer que, como país, estejamos condenados a perder sempre, mas é tenebroso anotar que os avanços democráticos alcançados até agora estão sob risco diante de uma polarização que não cede e se reconfigura em novos termos. É verdade que um dos polos, o PSDB, desapareceu enquanto tal, mas o que ainda martela o “nós contra eles” permanece e se radicaliza ao buscar convencer a sociedade de que só o seu retorno ao poder é capaz de dar uma alternativa ao País. E isso depois do desastre da recessão e do desemprego promovido por eles, além da prisão por corrupção dos seus principais líderes. É espantoso!

Recentemente, contudo, o cenário se remodelou com o surgimento de um novo polo que atravessa a sociedade civil e a opinião pública, impactando milhões de pessoas. É um polo bifronte, uma espécie de Janus disforme, fundado no republicanismo que emergiu no contexto das manifestações de 2013 e, em especial, das que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. Uma de suas vertentes é o rechaço à política e aos políticos em geral. A outra persegue o bem comum em luta antagônica à corrupção. A primeira derivou do antipetismo e se espraiou como antipolítica. A segunda expressa o sentimento difuso de milhões e não se desconecta das instituições democráticas. Por meio delas trava sua batalha ética, mas ainda guarda um desprezo pela política. Não se configura como uma expressão partidária e talvez não se deva mesmo esperar isso dela.

Há visivelmente uma cultura política autoritária transversal aos dois polos ou a parte deles, enquanto a cultura democrática, ainda frágil entre nós, busca permanecer viva na expectativa de candidatos e votos.


FAP Entrevista: Alberto Aggio

O Partido dos Trabalhadores fez muito mal para a esquerda brasileira, avalia Alberto Aggio. De acordo com ele, além de ter entrado em um mecanismo de corrupção jamais visto, o PT também não acompanhou as transformações ocorridas em todo o mundo 

Por Germano Martiniano

O entrevistado desta semana da série FAP Entrevista é Alberto Aggio, professor titular da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Historiador pela Universidade de São Paulo (USP), onde também realizou mestrado e doutorado, a trajetória acadêmica dele, em grande parte, voltou-se para o estudo e compreensão da história e questões socioeconômicas da América Latina, especialmente Brasil e Chile. Além dos títulos acadêmicos, que não se finalizaram no doutorado, mas também no pós doutorado no Chile e na Itália, Aggio também publicou diversos livros, nos quais explorou as questões latino-americanas e também o pensamento gramsciano. Esta entrevista faz parte de uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil,  com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.

A vida política de Alberto Aggio começou  no final da década de 1970, na Zona Leste de São Paulo, quando entrou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) ficando até seu final. Na fundação do Partido Popular Socialista (PPS), do qual que é filiado atualmente, Aggio se afastou do política por ter sido contra alguns caminhos tomados pelo partido. “Não me afastei porque fui contra a mudança, mas porque discordei dos caminhos pós-mudança”, disse o historiador. Aggio também participou da campanha presidencial de Roberto Freire em 1989 e da Revista Presença, liderada por Luiz Werneck Vianna, até seu final, em 1992.

Aggio possui forte vínculo com o pensamento de Gramsci e com o comunismo democrático. Para o historiador, a questão da democracia é de vital importância. “Sempre achei que o pós-comunismo do PPS deveria avançar para uma esquerda democrática mais ampliada, com liberais avançados e outras culturas políticas democráticas do país”, expôs. Atualmente, Aggio dedica-se ao lançamento de mais um livro, um conjunto de ensaios que tenta repensar precisamente a trajetória recente da esquerda, particularmente no Brasil e na América Latina.

Este “repensar” da esquerda  foi um dos temas tratados com Aggio na entrevista para FAP, da qual também é dirigente. Para o historiador, o PT fez muito mal à esquerda brasileira, não apenas a colocando num sistema de corrupção “jamais visto”, como também não a atualizando, rechaçando as mudanças que ocorreram no mundo. “É uma esquerda que vive ainda no século XIX ou XX”, enfatizou Alberto.  Além da necessidade de uma nova visão para esquerda brasileira, Aggio também discorreu de temas como a prisão de Lula, Lava Jato e justiça brasileira, eleições 2018 e o que esperar do novo presidente do Brasil.

Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista com Alberto Aggio:

FAP Entrevista -  O pré-candidato a presidente da República, Geraldo Alckmin tem sobre si uma acusação de um suposto caixa dois vindo da Odebrecht, nas suas campanhas de 2010 e 2014. O STJ, ao contrário do que pedia a Procuradoria Geral da República, remeteu o processo para a Justiça Eleitoral de São Paulo, alegando que os problemas do tucano se limitam à pratica de caixa dois. Como o senhor avalia essa decisão?

Alberto Aggio - É efetivamente um problema para o pré-candidato Geraldo Alckmin, independentemente de onde este processo dele vá parar. Como é uma questão eleitoral, não é tão absurdo que seja investigado e processado num tribunal afeito às questões eleitorais. A comparação com os esquemas de corrupção do esquema tipo PT me parece exagerada. Ou seja, há que se perguntar se a Odebrecht, que deu dinheiro para as campanhas de Alckmin, teve vantagens indevidas no seu governo e quais vantagens.

O juiz Sérgio Moro negou, essa semana, qualquer tipo de regalia ao ex-presidente Lula na prisão. O ex-ministro Antonio Palocci também teve o pedido de habeas corpus negado pelo STF. Qual sua visão sobre o discurso petista que acusa a Lava Jato de ser uma operação política?
Não há o menor sentido. Os petistas sempre viram a Lava Jato como um problema, uma vez que eles sabiam dos esquemas que sustentaram nos seus governos. Está claro que a Operação Lava Jato já prendeu pessoas que não são do PT. Estão lá o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha; o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e alguns outros. Antonio Palocci, em especial, foi propositadamente evasivo e difuso nos seus depoimentos até que começasse a falar coisa com coisa. Ainda tem muito a esclarecer. Quanto a Lula, creio que o tratamento está sendo o mais digno possível. Mas, preso é preso. Ele não está lá tirando férias.

Quem pode atrair os votos que iriam para Lula? Quem ganha com a prisão do ex-presidente?
Quem ganha com a prisão de Lula é o Brasil. É a República e a democracia brasileiras. Os supostos votos de Lula serão garimpados por todos os candidatos que irão competir. Há algumas hipóteses que, dizem, vem das pesquisas e que Bolsonaro vai amealhar boa parte deles. Difícil saber se é verdade. Pode ser. Creio que os candidatos da esquerda filopetista, como Boulos e Manuela, não conseguirão ampliar a transferência de votos. Serão candidatos residuais. Ciro Gomes é uma incógnita e traz grandes problemas de personalidade e de desempenho pessoal por conta do seu temperamento, de forma que o cenário permanece aberto.

Em artigo publicado na Folha de São Paulo, Bruno Boghossian avalia que a prisão de Lula dilui o debate sobre corrupção e amplia a rejeição à classe política nas eleições 2018. O senhor concorda com esta visão? O que deve pautar o debate dos presidenciáveis?
Creio que a corrupção é uma agenda da sociedade brasileira como um todo. Não creio que perde força com a prisão de Lula, muito ao contrário. Penso que a desmoralização da chamada classe política vai além do tema da corrupção. Há problemas de diversos níveis no sistema político que precisam ser sanados. Mas, como os futuros governantes, a serem eleitos em 2018, vão montar seus governos em relação a esse tema é fundamental. Em relação ao segundo tema, espero que o debate entre os candidatos a presidente seja pautado pelos problemas nacionais, que olhem para o futuro, a partir da crise presente, que vejam o país no seu conjunto e não fiquem debatendo parcialidades e questões pequenas, ainda que elas tenham sua importância. Acho que a revisão do papel do Estado na sua relação com a economia e os direitos sociais de todos é ponto central. Com isso quero dizer que, nessa eleição, espero que haja espaço sério para se discutir duas formas pelas quais o Estado brasileiro tem sido apropriado privadamente: o patrimonialismo e o corporativismo. Mas o tema da volta do crescimento também é essencial, assim como, da nossa integração competitiva, dos avanços da ciência e da tecnologia, da sustentabilidade, etc.

William Waack, num artigo dessa semana argumenta que a prisão de Lula e tudo o que ele significou de impacto na opinião pública não foi capaz de trazer um rumo para o país e que Lula já deveria ser página virada e deveríamos estar em outro nível de discussão, construindo um rumo para o Brasil. O senhor concorda?
Estou de pleno acordo. Precisamos ultrapassar o lulismo em todos os sentidos. Já foi o tempo em que se deveria pensar que a sociedade brasileira buscava seu herói ou seu mito. Essa é uma visão ultrapassada. Em especial a do mito: uma esquerda que pensa em sacralizar um mito para poder fazer as transformações na sociedade vive ainda no século XIX ou XX, está ultrapassada. Hoje precisamos de pensar a partir da democracia, dos sistemas democráticos, da pluralidade de atores, dos diversos valores da contemporaneidade que fazem com que a política possa ser cada vez mais democrática, como valores da reciprocidade, da proximidade, da co-responsabilidade.

Em que parte ou setor da esquerda o senhor se encaixaria? Pode-se falar de uma centro-esquerda ou esquerda democrática?
Uma autodefinição é sempre complicado. Creio que a postura mais avançada hoje, dentro da esquerda, é trabalhar para que haja uma nova comunidade política com perfil de centro-esquerda. O PT fez muito mal para a esquerda brasileira. Ele a enxovalhou metendo-a num sistema de corrupção jamais visto. E a sociedade reagiu: hoje é difícil sustentar uma identificação de esquerda, sem dar as devidas justificativas. Parece que não se pode mais falar em esquerda, em um setor da política que pensa em combinar democracia com avanços sociais, em propor uma nova visão de sociedade, consonante com esse tempo de grandes mudanças que vivemos. Acho que a esquerda tem um papel. Mas é preciso que ela enfrente seus bloqueios, suas ideias já ultrapassadas, e formule novas que venham da sua tradição de lutas democráticas.

O senhor lançará nas próximas semanas um novo livro. De que trata esta nova publicação?
Trata-se de um conjunto de ensaios que tenta repensar precisamente a trajetória recente da esquerda, particularmente no Brasil e na América Latina. São ensaios que discutem o Brasil das mobilizações de 2013 ao impeachment de Dilma; examina questões da politica democrática em diversas partes do mundo, explora os pensamentos do italiano Antonio Gramsci e sua relação com a democracia, e reflete sobre temas atuais que nos colocam questões serias e dramáticas para nós e as gerações futuras.

Como cidadão brasileiro, o que o senhor espera do novo presidente do Brasil?
Espero que ele se afirme na legitimidade do voto dos brasileiros, que faça jus a ele e que pratique, democraticamente, o lema que todos nós reconhecemos: o Brasil não pode ser governado por apenas uma força política. A pluralidade brasileira é expressiva e ela é que dá vigor ao país. O novo presidente deve ser o comandante de um novo Brasil. No seu mandato completaremos 200 anos. Devemos ultrapassar esse período cinza que estamos vivendo e voltarmos a ter orgulho do que já construímos e do que projetamos para o futuro.

 


Punto Continenti: Prisão de Lula? Inevitável, diz Alberto Aggio

Em entrevista ao jornalista Rainero Schembri, do portal de notícias Punto Continenti (http://puntocontinenti.it/), da Itália, o professor e historiador Alberto Aggio comenta a prisão do ex-presidente Lula, no último sábado (7). Lula foi condenado a 12 anos e um mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro.  Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Professor Alberto Aggio, o que se pode dizer da prisão de Lula?
Alberto Aggio - A prisão do Lula é o resultado normal de um país que quer ver preservada a justiça, que quer ver o Brasil como, de fato, um país republicano no qual a lei é igual para todos. É evidente que trata-se de um caso muito particular. Pela primeira vez na história um ex-presidente é julgado, condenado e preso por um crime comum. Lula não é um preso político. Essa é uma narrativa que não se sustenta. Ele negociou ativos de todos os brasileiros, quando era presidente, para benefício próprio. E, esse processo pelo que foi condenado é apenas um deles, há mais processos nesse sentido contra o ex-presidente.

Muitos dizem que a prisão de Lula tem como finalidade evitar que ele participe das próximas eleições presidenciais de outubro próximo, uma vez que Lula aparece na frente das pesquisas. O que o senhor pensa disso?
De fato, há essa coincidência. Lula aparece na frente nas pesquisas. Mas a questão é que os processos contra ele são de crime comum. Não seria possível a justiça brasileira não levar adiante as denúncias que foram feitas contra ele. E não são poucas é pior: são gravíssimas. Os processos não são de crime político e sim de crime comum, que não podem deixar de ser executados. São os chamado crimes de “colarinho branco”. Lula é hoje um ex-operário e ex-dirigente sindical milionário. Seu envolvimento com empreiteiras e outros setores do capital são comprovados é bastante nocivos ao país. Lula não será impedido de disputar as eleições por conta da prisão e sim da lei da ficha limpa, que nasceu de uma emenda popular e o próprio PT ajudou a aprovar no Parlamento. Ele diz que não pode ser candidato que for condenado em segunda instância pela justiça. Lula é o o PT sabem disso, mas politizam os processos para tentar recuperar o terreno político perdido depois do impeachment e das eleições municipais de 2016, quando perderam mais da metade das prefeituras que governavam.

Se a popularidade de Lula é tão grande é porque a população pensa que os seus governos foram positivos para ela, sobretudo no plano social. A sua prisão não poderia gerar muito sérios problemas?
A popularidade de Lula é indiscutível. No entanto, ele não é uma unanimidade. Deve ter um eleitorado que gira entre 20 e 30 por cento. É isso é uma força importante na medida em que o quadro político está inteiramente fragmentado, como nunca se viu antes. Lula é enfim um mito político. Conjuga a ideia do herói dos pobres, do Robim Wood, mas foi também muito amigo dos ricos. Nos últimos anos se tornou um lobbysta da Oldebrecht. Ontem, se comparou a Jesus Cristo dizendo aos populares “eu vivo em ti”, um sinal para a nova campanha do Lula Livre: “eu sou Lula”. Trata-se de uma visão de elites, típica do discurso que se convencionou chamar de populista.

O senhor não teme que Lula indo à prisão fique ainda mais forte, se transforme num mito, numa verdadeira lenda nacional e internacional?
Lula já é um mito. E com todo mito, se não quisermos aderir à ele, temos que saber ser críticos, pensar e sermos capazes de analisá-lo. Não creio que se fortaleça com a prisão. Ao contrário. O que se viu na sua prisão é que Lula está isolado politicamente no campo de uma esquerda já anacrônica, com discurso anacrônico, incapaz de abordar o mundo de hoje. Lula faz hoje um discurso bolivariano, com recordações saudosistas da época do sindicalismo, há quase 40 anos atrás, sem nenhuma projeção para o futuro de forma séria. E pior, sem reconhecer que seu segundo governo e os dois sucessivos de Dilma é que levaram o país a maior crise econômica da sua história, com desemprego recorde e crescimento da polarização política nuca visto no país. Creio que será bom para o Brasil que se ultrapasse o mito Lula é seu período, para que possamos nos reintegrar ao mundo, fazermos as reformas para isso, e olharmos para frente. Lula continuará com alguma força, mas hoje já é passado.


Alberto Aggio: Um novo partido democrático para o Brasil

O Brasil vive um momento dramático. Os brasileiros irão às urnas em outubro esperando que o país encontre saídas reais para a crise e um novo sentido de futuro. As últimas escolhas e a composição dos últimos governos deixaram sequelas profundas que comprometeram a credibilidade da política. Hoje, a crise ética é uma fratura aberta, a segurança pública um descalabro, acossada pelo crime organizado. Parcas melhoras na economia e no emprego não fizeram alterar esse cenário de desesperança.

Diante da confirmação da condenação de Lula pelo TRF4, que deve ceifar sua candidatura presidencial, o país tem diante de si o desafio de superar o lulismo. A corrupção sistemática que arrasou o país nos anos do lulismo abalou todo o edifício político que havia sido montado nesses anos de democratização. O cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade, da opinião pública, dos intelectuais, dos partidos políticos e de todos aqueles que possam se mobilizar pela reconstrução do país.

Lula e o PT nasceram no outono do autoritarismo como peças do “sindicalismo de resultados”, com roupagem e retórica de esquerda. No governo, analogicamente, o lulopetismo foi uma "esquerda de resultados", nefasta à sociedade brasileira, especialmente aos mais pobres pois os subalternizou, fixando-os em seus interesses individuais e impedindo qualquer perspectiva de elevação cultural e política que os convocasse a formular e compartilhar um projeto nacional e civilizatório. O lulopetismo foi tóxico à democracia e à esquerda. Como escreveu Demétrio Magnoli, em artigo recente, "a 'esquerda' lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza" como horizonte de satisfação hedonista das massas. A pragmática petista contou, das origens até agora, com a anuência da "esquerda maximalista" que soldava apoios ao “grande líder” quando julgava necessário e conveniente. Um papel jogado também pelos intelectuais das universidades públicas. Foi assim que o lulopetismo condenou o Brasil a não ver realizada a social-democracia ou o reformismo que poderiam instaurar um novo cenário histórico no país. Em nome do mito e servindo-se dele, o PT bloqueou a afirmação de uma esquerda democrática, defensora das reformas e aberta ao novo.

No Brasil de hoje, as ruas, que foram essenciais em 2013 e no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, esmoreceram, mas não se despreocuparam. Como se sabia, seria ilusão esperar delas uma saída clara para a crise em que o país mergulhou. Sem conseguir estancar a crise ética, o governo Temer não produziu a expectativa positiva que se esperava, mesmo com uma oposição fraca e prisioneira do lulismo. A política que havia revivescido acabou por não se consolidar. Resultado: o drama se instalou, com uma sociedade órfã sem poder confiar no governo ou na oposição.

A expectativa se voltou para as dimensões externas à política, notadamente para a Operação Lava Jato, que cumpria exemplarmente o seu papel republicano e constitucional. Desorientada, a opinião pública passou a admitir saídas ilusórias e despropositadas.  Alguns continuaram a ver nas ruas, via democracia direta, a alternativa a esse estado de desorientação. Outros concluíram que decisivo seria “dar o poder” aos “homens de toga” como substitutos da má política. Embalados pela ânsia de poder, outros ainda viram nas eleições presidenciais de 2018 a salvação mediante apoio a algum outsider, uma sedução ao transformismo que não faria mais do que prolongar nossa agonia; por sorte parece que essa febre está cedendo. De toda forma, como sabemos, a saída está na política e é em torno dela que devemos nos reagrupar.

É nesse cenário que se deve valorizar a recente abertura do Partido Popular Socialista (PPS) aos chamados “movimentos cívicos” que brotam na sociedade com o objetivo de renovar ou refundar a política. Um partido político abrir-se ao diálogo com o que há de autonomamente organizado na sociedade é sempre saudável. Isso pode gerar novos ares novos e novas perspectivas, especialmente se o objetivo for renovar os nossos carcomidos costumes políticos e ultrapassar essa fase nefasta da vida política brasileira.

Sucedâneo do antigo PCB, para o PPS isso é fundamental. O PPS é um partido pequeno e, na conjuntura atual, necessita eleitoralmente dessa abertura. Esse talvez seja o sentido mais imediato dessa aproximação com os chamados "movimentos cívicos", como o Agora, o Renova Brasil e o Livres, além de outros. Na linguagem destes movimentos, a perspectiva eleitoral também é evidente e talvez até mais explícita. A atrasada legislação eleitoral brasileira não permite as chamadas listas cívicas de candidatos autônomos e, por isso, os movimentos precisam se credenciar nos partidos políticos para seus candidatos postularem um lugar na disputa. O PPS abriu essa porta a eles.

Entretanto, para o PPS talvez seja mais do que isso ou talvez possa ser mais do que isso. Intencionalmente ou não, o fato é que essa abertura (e mesmo as circunstâncias em que ela se realiza) pode colocar um desafio novo ao PPS. Em casos assim, de uma abertura à sociedade, à novas culturas política, como não poderia deixar de ser, abre-se a discussão em torno do destino dessa organização política.

Pode-se dizer que entre o fim do PCB e o advento do PPS, até os dias que correm, o PPS configurou-se essencialmente como um partido pós-comunista, com aderentes que vieram de diversas culturas políticas ou até mesmo de nenhuma, mas com um núcleo dirigente político caudatário da história e da cultura política do pecebismo. O PPS é antes de tudo um partido pós-pecebista, que busca valorizar o que entende como positivo na trajetória do “velho partidão”, especialmente sua postura democrática, adotada depois de 1958 e realçada no combate à ditadura militar que se impôs no Brasil entre 1964 e 1985. O pecebismo é aqui tratado como uma cultura específica do movimento comunista internacional que deu origem e guiou os passos da trajetória do comunismo no Brasil. Como em outros países, a versão nacional do movimento comunista estabeleceu uma característica especial a cada um dos partidos. No caso brasileiro, o pecebismo foi uma espécie de ato de “civilização do comunismo” por meio de sua adesão à política democrática. Daí a ambiguidade sempre marcante do PCB, especialmente depois da Declaração de Março de 1958 que acabou por dar ao partido (talvez da mesma forma que ocorreu com o Partido Comunista Italiano, guardadas as devidas proporções) uma espécie de “dupla alma”: mantida a adesão ao comunismo internacional, buscou organizar sua linha política que procurava ler cuidadosamente a situação nacional, integrando-se às lutas democráticas do seu povo.

Como pós-comunista, o PPS trouxe para dentro de si as características marcantes do pecebismo e, talvez por isso, tardou muito a encontrar uma nova identidade. Demorou muito em admitir que o seu ideário anterior, o comunismo, havia fracassado e não apenas havia sido derrotado (em certo sentido, a ideia de derrota ainda prevalece, uma vez que ainda se fala a partir da trajetória vivida, ou seja, do momento comunista ainda incrustrado no PPS). Tardou muito também a se perceber como partido reformista, sem ambiguidades, no sentido de que as reformas devem compor uma perspectiva de futuro e de destino e não uma etapa de um processo revolucionário ou transformador, como pensavam antigamente os comunistas. A fase pós-comunista do PPS se fixou como uma inercia mental que o dificultou a ir além, malgrado alguns esforços momentâneos e isolados.

Assim, para além do eleitoral, para o PPS, a abertura aos “movimentos cívicos” talvez possa se constituir num momento particularmente precioso, histórico, que se volte para a perspectiva de se pensar na criação de um novo sujeito político. É ilusória a fórmula de um "partido-movimento", na medida que isso deve fazer parte de qualquer processo de renovação ou refundação dos partidos atuais, especialmente à esquerda do espectro político-ideológico. Assim como é taxativa e fora da realidade a assertiva de que os partidos "têm prazo de validade determinado". Há partidos que morrem, que se desqualificam, que se renovam, que se refundam e que nascem. O PCB e o PCI morreram, o PTB e o MDB se desqualificaram, o PD italiano e o Partido Liberal canadense, imersos nas incertezas da democracia e do seu jogo eleitoral, se renovam e se refundam, o Podemos, na Espanha, e o En Marche, na França, são novas criações que derivam das lutas efetivamente populares nos seus países por renovação da política, e assim por diante. A lista seria grande e aqui menciono apenas alguns exemplos. Mas o certo é que a questão não é simplesmente a mudança de nome dos partidos, em especial quando o critério for apenas eleitoral, sem vínculos políticos e simbólicos com o que se passa na sociedade (falar em Movimento23, como às vezes se cogita, é algo que, ao nosso ver, não se deve acolher em razão de sua exclusiva dimensão eleitoral, sem vínculos simbólicos nem com o passado nem com o presente)

Fala-se eufemisticamente de uma nova "formatação" ou "formação política". Mas, realisticamente, se deveria falar num novo partido político, com novo nome, novo programa, novos métodos, novas aberturas, nova identidade. Instituir uma nova formação partidária com os mesmos vícios do antigo comunismo (justiça seja feita: não apenas dele), como a eternização das direções e o controle férreo da sucessão dos quadros dirigentes, não terá nenhuma valia.

Se essa abertura do PPS aos chamados “movimentos cívicos” avançar, para além do eleitoral, será uma perda de oportunidade histórica não superar a fase pós-comunista do partido e, com ela, decretar o fim das suas estruturas e costumes inerciais e o nascimento de um novo sujeito histórico, não mais pós-comunista e muito menos comunista. Ao nosso ver, não se deve perder aqui a orientação que está identificada na marca da esquerda democrática”, embora do ponto de vista programático poderá haver uma maior abertura a elementos do que se pode chamar de "esquerda liberal" ou mesmo um "centro-esquerda liberal-democrático", como vem ocorrendo na França, na Inglaterra e no Chile. O presente está aberto e o que fizermos agora dirá quais serão os nossos caminhos para o futuro.

Os termos deverão ser claros: um novo partido, uma força cosmopolita e reformista que possa, além de governar o país, ser capaz propor uma visão geral e uma ideia do futuro diante de um mundo que muda de maneira vertiginosa e profunda. Que seja capaz de responder às necessidades e também aos desejos de todos aqueles que querem trilhar esse caminho carregando consigo suas legítimas preocupações, anseios e ambições.

Devemos partir claramente de uma verdade insofismável: o cenário global é complexo assim como a revolução tecnológica em curso constitui-se numa grande oportunidade. Contudo, a sociedade em seu conjunto e o Estado brasileiro, em especial, deve estar equipado para enfrentar os problemas que também derivam dessa grande transformação. Esse novo partido democrático deve propor medidas de fortalecimento da nossa economia para que o país volte a crescer, com qualidade e sustentabilidade, e a ser visto como um player importante no mundo, libertando suas energias e seu enorme potencial. O Brasil tem todas as credenciais para proporcionar aos seus cidadãos os meios para uma vida digna e as oportunidades para a realização de suas ambições, como indivíduos e como uma comunidade que busca reafirmar suas identidades no momento em que irá completar 200 anos de existência como país independente.

É, certamente, uma batalha dramática e exigente frente a todos os desafios que temos pela frente, cujo inimigo maior são as promessas, imprudentes e perigosas, que comprometem os horizontes fiscais da República além de escamotearem, com políticas econômicas dignas de desenhos autárquicos do passado, os equívocos trágicos que a história, mesmo a mais recente, nos têm ensinado.

Vivemos um momento de resgate da política e de refundação. Não há razão para se partir do zero, mas também não há razão para imaginarmos que o novo cairá do céu ou derivará de qualquer retórica mercadológica ou marqueteira. Também não há razão para acreditar que os brasileiros de bem não construíram, mesmo que contraditoriamente, um país cheio de vitalidade e que, transformado, deverá ser um excelente lugar para se viver. É preciso extrair do esforço democrático de luta dos brasileiros, tal como se fez na luta contra o autoritarismo, os fundamentos de um amplo programa de reformas que deverá, sem as falsas promessas e ilusões fáceis da demagogia e da antipolítica, transformar o país. É hora de nos atualizarmos ao mundo e vivermos com sinceridade os desafios do futuro. Não surgirá efetivamente nada de novo e positivo nessa quadra se nossos propósitos não forem largos e claros visando uma atualização verdadeira e realista. Trata-se, desta forma, de uma oportunidade histórica que não pode ser vivida como “oportunismo” ou mais um “transformismo”.

Não surgirá nada de novo nessa quadra se nossos propósitos não visarem a uma atualização verdadeira e realista. As ideias-chave para tanto são a valorização do trabalho, da ética e da República, estímulo à inovação e ao crescimento econômico, visão social consonante com o mundo em transformação, democracia e novo reformismo. Tudo depende de cada um e de todos nós. De um pequeno partido e de movimentos renovadores da política formados por pessoas que devem, como o conjunto da população, estarem no centro das nossas preocupações e dos nossos horizontes.

 


Alberto Aggio: O drama é maior do que 2018

Cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade na reconstrução do País

O Brasil vive um momento dramático. Os brasileiros vão às urnas em outubro esperando que o País encontre saídas reais para a crise e um novo sentido de futuro. As últimas escolhas e a composição dos últimos governos deixaram sequelas profundas que comprometeram a credibilidade da política. Hoje a crise ética é uma fratura aberta; a segurança pública, um descalabro, acossada pelo crime organizado. Parcas melhoras na economia e no emprego não alteraram esse cenário de desesperança.

Diante da confirmação da condenação de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), que deve ceifar sua candidatura presidencial, o País tem diante de si o desafio de superar o lulismo. A corrupção sistemática que arrasou o País nos anos do lulismo abalou todo o edifício político que havia sido montado nos anos de democratização. O cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade, da opinião pública, dos intelectuais, dos partidos políticos e de todos os que se possam mobilizar pela reconstrução do País.

Lula e o PT nasceram no outono do autoritarismo como peças do “sindicalismo de resultados”, com roupagem e retórica de esquerda. No governo, o lulopetismo foi uma “esquerda de resultados”, nefasta para a sociedade brasileira, em especial para os mais pobres pois os subalternizou, fixando-os em seus interesses individuais e impedindo qualquer perspectiva de elevação cultural e política que os convocasse a formular e compartilhar um projeto nacional e civilizatório. O lulopetismo foi tóxico para a democracia e a esquerda. Como escreveu Demétrio Magnoli em artigo recente, “a ‘esquerda’ lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza” como horizonte de satisfação hedonista das massas. A pragmática petista contou, das origens até agora, com a anuência da “esquerda maximalista” que soldava apoios ao “grande líder” quando julgava necessário e conveniente. Papel desempenhado também pelos intelectuais das universidades públicas. Foi assim que o lulopetismo condenou o Brasil a não ver realizada a social-democracia ou o reformismo que poderiam instaurar um novo cenário histórico no País. Em nome do mito e servindo-se dele, o PT bloqueou a afirmação de uma esquerda democrática, defensora das reformas e aberta ao novo.

No Brasil de hoje, as ruas, que foram essenciais em 2013 e no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, esmoreceram, mas não se despreocuparam. Como se sabia, seria ilusão esperar delas uma saída clara para a crise em que o País mergulhou. Sem conseguir estancar a crise ética, o governo Temer não produziu a expectativa positiva que se esperava, mesmo com uma oposição fraca e prisioneira do lulismo. A política, que havia revivescido, acabou por não se consolidar. Resultado: o drama se instalou, com uma sociedade órfã sem poder confiar no governo ou na oposição.

A expectativa voltou-se para as dimensões externas à política, notadamente para a Operação Lava Jato, que cumpria exemplarmente seu papel republicano e constitucional. Desorientada, a opinião pública passou a admitir saídas ilusórias e despropositadas. Alguns continuaram a ver nas ruas, via democracia direta, a alternativa a esse estado de desorientação. Outros concluíram que decisivo seria “dar o poder” aos “homens de toga”, como substitutos da má política. Embalados pela ânsia de poder, outros ainda viram nas eleições presidenciais de 2018 a salvação mediante apoio a algum outsider, uma sedução pelo transformismo que não faria mais que prolongar nossa agonia; por sorte, parece que essa febre está cedendo.

Mesmo nesse cenário parece haver alguma oxigenação no protagonismo dos chamados “movimentos cívicos” que clamam por renovação da política. Indiscutivelmente positivos, seu exclusivismo e seu finalismo eleitoral merecem, contudo, preocupação, bem como requerem uma checagem do seu real tamanho e sua incidência. Se é preciso evitar o “populismo” como alternativa, também é justo preocupar-se com o que os italianos chamam de qualunquismo, isto é, uma política sem organicidade, que se esgota na identidade do homem comum e das coisas simples, pois sabemos que a política é complexa e exige muito mais do que isso.

Fará bem ao País uma coalizão de forças que se expresse em ideias claras, equipando a sociedade e o Estado para enfrentarem os problemas que derivam da grande transformação advinda da revolução tecnológica em curso. O Brasil tem todas as credenciais para proporcionar a seus cidadãos uma vida digna no momento em que vai completar 200 anos de existência como país independente.

É, certamente, uma batalha dramática e exigente, considerando todos os desafios que temos pela frente, cujo inimigo maior são as promessas, imprudentes e perigosas, que comprometem os horizontes fiscais da República, além de escamotearem, com políticas econômicas dignas de desenhos autárquicos do passado, os equívocos trágicos que a História, mesmo a mais recente, nos tem ensinado.

Não há razão para desejar partir do zero e tampouco há razão para descrer dos brasileiros de bem que construíram, mesmo contraditoriamente, um País cheio de vitalidade e que, transformado, será um excelente lugar para viver. É preciso extrair do esforço democrático de luta dos brasileiros um amplo programa de reformas que deverá, sem as falsas promessas e ilusões da demagogia e da antipolítica, pôr o País para andar. Não surgirá nada de novo nesta quadra se nossos propósitos não visarem uma atualização verdadeira e realista. As ideias-chave para tanto são a valorização do trabalho, da ética e da República, estímulo à inovação e ao crescimento econômico, visão social consonante com o mundo em transformação, democracia e novo reformismo. Com as pessoas no centro das nossas preocupações e dos nossos horizontes.

 


Alberto Aggio: De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo

O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalismo autoritário histórico

No ano passado relembraram-se os cem anos da revolução bolchevique, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizantes do seu ideário.

Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonista do capitalismo que se transformou num fenômeno global, influenciando vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.

Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contraponto, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultaneamente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressista e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experimento com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertadora e sistema concentracionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidade anticapitalista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados policiais”.

Entre os historiadores, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégias. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiadores e aos demais intérpretes, e não uma discussão ideológica e justificativa. O que torna evidente a virada na perspectiva de muitos pesquisadores é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiografia, retirando centralidade da discussão sobre poder revolucionário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.

O resultado não é em nada surpreendente. Diversos investigadores têm demonstrado que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolchevique e o poder soviético não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentação. O julgamento é assim categórico e definitivo.

Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalismo se afirmou durante séculos e o comunismo necessitaria ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.

Entretanto, essa história não está inteiramente arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivência do “comunismo capitalista” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalismo como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.

Essa alternativa estava inteiramente descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonarem, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialmente, o que era reconhecido como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrática italiana, vinda à luz com sua colaboração ativa. Acabou prevalecendo o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.

A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelecer como uma força política reformista voltada para a modernização do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressistas, assumiu várias denominações: Partito Democratico di Sinistra (PDS), Democratici di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratico (PD), nos últimos dez anos.

O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalista e autoritário do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.

Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo social-democrático e sua vertente democrático-reformista. A preponderância de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilidades de ser governo.

Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilidade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.

 

 

 


Alberto Aggio: O comunismo histórico em perspectiva global

A propósito da efeméride dos 100 anos da Revolução Russa de outubro de 1917, livros foram publicados e reeditados, artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo e, no entanto, a discussão sobre o tema ainda continuará aberta por algum tempo. Seria um excesso imaginar que qualquer revisão daquele processo teria capacidade de (re)estabelecer a verdade dos fatos. Mas uma coisa é certa: nenhuma revisão consegue ter impacto nas orientações políticas hodiernas da esquerda mundial, como antes acontecia. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove a divisão ou a reorientação que antes promovia entre os simpatizantes das suas principais ideias.

Há alguns anos atrás a editora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, convidou especialistas, principalmente historiadores, e decidiu organizar uma publicação sobre a história do comunismo, tomando como referência principal o que foi estabelecido como comunismo histórico, depois de 1917. Os três volumes estão indicados em https://www.cambridge.org/core/series/cambridge-history-of-communism/0399F87881C31D61C89C961E62A2DDEC para serem eventualmente adquiridos e lidos. Dentre os especialistas convidados estão Lucien Bianco, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, Stephen A. Smith, da Universidade de Oxford e Silvio Pons, da Roma Tor Vergata, que já publicou entre nós “A Revolução Global - história do comunismo internacional (http://www.contrapontoeditora.com.br/produto.php?id=3036 ). Esta coleção de três volumes da Cambridge constituiu a base do seminário “Ripensare la storia del comunismo”, realizado em Roma, entre 26 e 27 de outubro, na Biblioteca do Senado italiano, cuja organização esteve a cargo da Fondazione Gramsci de Roma e dos grupos parlamentares do Partido Democrático (PD) da Câmara e do Senado.

Os historiadores presentes não tiveram dúvida em qualificar como fracassadas as duas revoluções que implantaram o comunismo na Rússia e na China, levando-se em conta os objetivos que nortearam suas ações ao longo do tempo, desde o momento da conquista do poder. Não há mais nenhuma perspectiva interpretativa que busque erros específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e diante de desafios e dilemas que constituem parte do processo histórico. É a história in acto que importa a estes historiadores e não uma discussão ideológica e justificativa.

O traço fundamental do seminário - distinto da publicação de Cambridge, uma vez que nem todos os temas e autores estiveram presentes - foi o de tratar o comunismo como um fenômeno global, que influenciou varios países do mundo e milhões de pessoas durante o século XX. De fato, a crença no poder dos comunistas que se impuseram na Rússia tornou o seu movimento uma força global. Claro que esse tratamento teve um desenvolvimento específico, onde se tratou do papel do internacionalismo e do transnacionalismo na história do comunismo russo, bem como da experiência do comunismo na Europa depois da Segunda Grande Guerra, o que importa sobremaneira para uma reflexão do fenômeno em relação à trajetória e aos desafios da esquerda europeia.

Mas, a questão fundamental, no que tange a essa visão geral, é a de se comparar o comunismo russo com o chinês. O problema não é apenas quando se instala ou quando termina o comunismo, pois o fim do comunismo na antiga URSS já é fato conhecido e na China é algo suposto em razão do processo no qual o PCC, atuando em regime ditatorial, instaura o capitalismo como modo de produção material. O problema é efetivamente o destino do “comunismo capitalista” chinês como um player mundial e que papel ele poderá jogar no mundo globalizado.

Realidades não europeias também foram contempladas, como aquelas que envolvem a dinâmica de transformações do Vietnã, similar à chinesa, os limites da estratégia nacionalista dos comunistas da África do Sul e Argélia, e, mais importante, as mudanças que se operaram nos países que compunham uma espécie de commonwealth comunista, como Lituânia, Estônia, Ucrânia, etc.

Mas, o que torna mais evidente a mudança de perspectiva investigativa é o fato de se incluir na análise do comunismo histórico o que os historiadores vêm chamando de “história do cotidiano”. Isso retira, definitivamente, a discussão da temática do poder revolucionário e do seu destino e a coloca na história dos homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo histórico. A historiadora Juliane Fürst, da Universidade de Bristol, Inglaterra, assumiu precisamente essa tarefa ao organizar uma pesquisa voltada para o “comunismo como experiência vivida”. Quem assistiu e se recorda do filme “Adeus, Lenin” se lembrará muito bem das questões cotidianas que envolviam a vida das pessoas na antiga Alemanha Oriental, mal qualificada como “democrática”. O ponto limite deste aspecto da história do comunismo se volta para a reflexão da sua incapacidade como inspirador de uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. No fundo, a revolução e o poder bolchevique não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria apenas e “hegemonia civil”) que pudesse lhe dar sustentação.

O fracasso do comunismo histórico deve ser visto na perspectiva que ele se assumiu, ou seja, como um movimento de caráter global. Não há como sustentar que sua perspectiva possa ainda fazer sentido aos homens e mulheres do século XXI. Ele não foi derrotado por forças superiores em termos materiais ou culturais. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Estamos, hoje, em uma nova fase da humanidade na qual o comunismo não é mais do que história.

 


Alberto Aggio: A grande transformação

O que está em curso afeta por inteiro a humanidade. É um processo imparável

São raros os momentos na História em que as sensações parecem coincidir com a realidade. Talvez estejamos vivenciando precisamente um desses momentos. A sensação de que a realidade é movediça não é autoengano. Além da velocidade, o que nos impacta é a instantaneidade. A impressão é de que vivemos uma sequência de flashes que sintetiza um mundo que muda a cada respiro. A realidade técnica faculta-nos a possibilidade, antes restrita, de capturar e compor, de alguma maneira, o fruir desta “vida instantânea”.

As percepções em flashes não são convidativas a sensações de certeza ou de estabilidade com as quais nos sentimos com algum controle sobre o presente e, por vezes, imaginamos constituírem garantias para nossas esperanças quanto a um futuro benfazejo que seguimos desejando. Racionalmente, não rejeitamos a realidade cambiante e até nos dispomos a aprender a viver nela, mas procuramos precaver-nos dos riscos de alçar voo sem radares precisos de última geração.

Pode-se suspeitar que haja positividade e negatividade na atual vaga de transformações, mas não há quem duvide que a humanidade passa por mudanças profundas no seu modo de vida. O estabelecimento e a afirmação da chamada sociedade digital alteraram a dinâmica do tempo, afetando o mundo da produção, da circulação, da comunicação, enfim, o mundo da vida por inteiro. Não estamos mais no início desse processo: estamos em pleno curso há algum tempo e parece não haver lugar no planeta que não esteja sendo impactado. Assim, nossa realidade hoje é de transformação global e epocal, registrada nos circuitos produtivos mundiais, na comunicação online e no comportamento hodierno das pessoas que circulam pelas cidades com seus smartphones.

Quando os olhos da camponesa da periferia de Londres acompanharam, no início do século 19, o pequeno trem se afastando do seu campo de visão carregado com cestas de verdura, leite e ovos para, em poucos minutos, chegar ao centro da cidade e abastecer residências e hotéis, ela estava registrando em sua memória tão só um flash da grande transformação que impactava a sociedade europeia. A “locomotiva da história” serviu de metáfora a inúmeros pensadores ao elaborarem as imagens de uma época que alterava o tempo da vida numa sequência vertiginosa. Quase um século depois, o brilhante livro de Karl Polanyi A Grande Transformação produziu, analiticamente, a interpretação sobre aquilo que os contemporâneos haviam assimilado em sensações que se conectavam com seus órgãos vitais, mas pareciam estar fora de controle ou mesmo fora da sua compreensão.

Aquela mudança profunda não tinha uma explicação monocausal. Suas raízes e energia estavam disseminadas no conjunto da sociedade. Seu impacto, em maior ou menor grau, atingia todos. Era uma clara vitória do mercado, que implicava a imposição de uma sociedade à sua imagem e semelhança. Mas há que recordar que um dos méritos de Polanyi foi o de demonstrar que a vitória do mercado não esteve desprovida da ação dos Estados, ou seja, da política. E esta não foi a única contradição a marcar aquela época nova.

O Manifesto Comunista, de 1848, de Marx e Engels é representação antagônica ao contexto em que se generalizavam a circulação e a lógica produtiva da indústria por toda a Europa e pelo mundo. Entretanto, as mudanças no plano político, com a reorganização da sociedade em função dessa grande transformação, só vieram a ocorrer no final do século 19. Lembremos que os partidos políticos são construções do movimento operário quando a moderna sociedade industrial já estava quase que inteiramente assentada na Europa.

Hoje a indústria 4.0, nascida da digitalização, os big data, os robôs autômatos, as interações horizontais e verticais, bem como a produção remota, etc., aumentam de forma inaudita a produtividade e a eficiência, otimizando a produção. É uma grande transformação, um salto à frente para emancipação da humanidade, mas não é uma revolução com as marcas de ruptura que definiram sua representação conceitual. Há possibilidades abertas, expectativas, mas também desconcerto; e, sobretudo, riscos. Observar os impactos negativos e chamar a atenção para a necessidade de se pensar em transições, conforme as dimensões sociais impactadas, ou insistir no fato de que o novo também precisa ser regulado não constituem atitudes reacionárias per si. É preciso superar a inércia de pensar que a História se move pelos “fatos”, sem a intervenção dos “atores” (lideranças políticas, sociais e culturais), e que ela obedece a uma sequência obrigatória, predeterminada pelo avanço da técnica.

O antropólogo Mauro Magatti, em seminário recente realizado em São Paulo (Desafios políticos de um mundo em intensa transformação, FAP/ITV), chamou a atenção para um desses riscos ao comentar que, “com a digitalização, a lógica taylorista poderá ser aplicada não mais só às fábricas, mas também às cidades, aos hospitais, às estações, às escolas, às universidades. Isso significa que um novo panóptico, infinitamente mais poderoso do que o imaginado por J. Bentham, está hoje ao alcance da mão. Não uma jobless society, mas uma total job society”, ou seja, “uma sociedade organizada em torno de um novo tipo de trabalho (e de vida) sem lugar e sem tempo, na qual a relação entre trabalho e remuneração deverá ser completamente renegociada”.

O que está em curso afeta por inteiro a humanidade. A grande oportunidade almejada pelos utopistas modernos de superar o trabalho mecânico e estafante torna-se uma realidade a cada dia. Trata-se de um processo imparável. Mas essa oportunidade histórica não pode continuar alimentando um drama social sem saída e sem fim. É de supor que a política, desconectada de passadismos, poderá ter serventia se recolocar o homem no centro desses dilemas, em diálogo produtivo com o mundo da técnica.

 


Alberto Aggio: Chile, da revolução à democracia

Uma coluna de fumaça espessa e escura levantou-se na área central de Santiago do Chile na manhã de uma terça-feira, 11 de setembro de 1973. Era um estranho acontecimento. Não parecia um incêndio qualquer, mas algo mais grave e ameaçador, especialmente porque minutos antes foi possível ouvir o ruído dos caças da Força Aérea do Chile em voos rasantes sobre o centro da cidade, onde fica o Palácio La Moneda. O que ocorria não era fortuito.

O governo do socialista Salvador Allende chegava ao fim com seu suicídio no interior do palácio, que estava sendo bombardeado. O golpe militar e o regime autoritário que se instaurou em seguida alterariam profundamente a história contemporânea do Chile. Foi derrubado não apenas o governo da Unidade Popular (UP), que Allende encabeçava, mas suprimida a democracia em todos os aspectos da sociedade chilena.

O presidente deposto, que assumira o mandato em novembro de 1970, queria construir o socialismo por meio de mecanismos democráticos. Através de decretos do Executivo, Allende realizava estatizações e, em alguns momentos, procurou também fazer alianças no Parlamento com a Democracia Cristã (DC), um partido considerado de centro. Para ele e parte importante da esquerda de então, socialismo significava poder popular e estatização. Mas havia vertentes da esquerda que se opunham às vias institucionais. Fortemente influenciados pela Revolução Cubana, amplos setores da UP e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) procuraram acirrar as contradições. Queriam acelerar as mudanças, pressionando o governo. As bases sociais mobilizadas por esses setores buscavam resolver a chamada “questão do poder” para implantar mais rapidamente o socialismo.

As diferenças de estratégias e condutas no interior da esquerda afetavam o ambiente político, que cada vez mais se polarizava com a radicalização de ações da direita em oposição ao governo Allende. A falta de consenso dentro da esquerda fez com que a “via chilena ao socialismo” permanecesse apenas como um slogan, o que bloqueou a sua real transformação numa “via democrática ao socialismo”, inédita na história. Era notório que o governo buscava realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado, mas por meio dela pretendia implantar um socialismo equivalente ao que existia na União Soviética, na China ou em Cuba. A espiral crescente das contradições condenou a liderança de Allende como “disfuncional”, uma vez que o presidente nunca advogou a ruptura institucional, mas também não parecia ter completo controle do processo político. O resultado foi uma polarização catastrófica e o advento do golpe que colocou por terra o governo Allende.

Desfecho
Esse desfecho obviamente não estava estabelecido de antemão, mas acabou por comprovar que aquela proposta de revolução era impossível, ao menos no Chile da época. Salvador Allende e a UP concebiam a revolução e o socialismo a partir da cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana e mundial, com raízes marxistas, bolcheviques, maoístas e, mais tarde, guevaristas e castristas. Tais linhagens têm como referência a revolução como tomada de poder de Estado pela via armada, por insurreição ou guerrilhas. Essa cultura política revelou-se incapaz de enfrentar o ineditismo do processo, demonstrando que não estava amadurecido na esquerda chilena o significado e as implicações da adoção de uma via democrática ao socialismo. Por isso, o governo Allende não pode ser interpretado como o exemplo histórico da impossibilidade desta transição ao socialismo. A chamada “experiência chilena” apenas anunciou esta possibilidade, mas fracassou inapelavelmente.

Personificado no general Augusto Pinochet (1915-2006), a partir de 1973, o novo regime assumiu uma perspectiva fundacional — com a intenção de fundar um novo regime, e não de restaurar a democracia — e impôs ao país uma nova ordem econômica, social e política. Para isto, contou com um aparato repressivo que perseguiu, torturou e assassinou quem era considerado opositor. Em seus primeiros momentos, a ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP. Paradoxalmente, foi a partir de sua negação que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se agora de uma contrarrevolução: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não prazos. Em analogia ao “socialismo real” (da URSS e do Leste europeu), o que se estabeleceu no Chile foi uma espécie de “liberalismo real”: um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores.

O regime autoritário, que se estenderia até 1990, não foi um “parêntese” na história do Chile. Nesse período, a privatização de empresas, serviços de saúde e previdência, além da abertura comercial, do estímulo às exportações e da supressão do controle de preços redefiniram as estruturas da sociedade. O regime Pinochet transformou-se no show case dos neoliberais de todo o mundo. Até então, o neoliberalismo não havia sido implementado integralmente em nenhum país. O Chile foi, portanto, anterior à Inglaterra de Margareth Thatcher e aos Estados Unidos de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais individualista, consumista e despolitizada, ou seja, anulando traços distintivos da cultura política anterior. O reconhecimento dessa mudança profunda iria cobrar o seu preço no momento de superação do autoritarismo.

As tentativas de derrubar a ditadura por via armada fracassaram. As ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (las protestas) que eclodiram entre 1983 e 1986, pensadas como possível embrião de uma insurreição de massas, revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura.

Vitória do "No"
A surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No, que dizia “não” ao governo Pinochet, em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. O resultado do plebiscito foi de 56% dos votos válidos pelo “Não” contra 44% pelo “Sim”. Os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano seguinte. Mas Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição de 1980 acordadas entre os principais atores políticos legalizados. Nesse ponto, a submissão da transição democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou o que ficou conhecido como enclaves autoritarios: normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista que se propusesse a desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional da ditadura.

A derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988 converteu-se, portanto, numa vitória política estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas reformas superficiais na Constituição de 1980. A transição, contudo, seguiria em marcha. No início da década de 1990, os espaços políticos se democratizam e a disputa se concentra em dois polos: a Concertación, agregando os partidos de centro-esquerda — como o Partido Socialista e a DC — e a Alianza por Chile, articulando as forças de direita e neoliberais — como a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI).

Em relação às outras transições para a democracia no continente latino-americano, o Chile viveu dois aspectos peculiares: não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior e conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes à mesma coalizão política que havia derrotado a ditadura. A partir de 1990, governaram o Chile Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Os governos da Concertación conduziram com êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia chilena nesses anos, até a crise econômica mundial que abriu o século XXI, foi notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas públicas dos governos da Concertación tenham se revelado insuficientes.

A manutenção de boa parte dos enclaves autoritários, pelo menos até 2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático está consolidado, mas a presença de Pinochet no imaginário político chileno deixa a sensação de que a transição permanece inconclusa. A imagem que fica do Chile pós-Pinochet é a de uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito condicionada aos ditames do regime anterior, que só conseguiu produzir “governos de negociação” e, com eles, um “reformismo fraco”. Em 2010, o fim da sequência de governos da Concertación, com a eleição de Sebastián Piñera, da Alianza, representou uma preocupante involução.

Os 20 anos da Concertación não passaram em vão, mas deixaram muitos déficits nos planos político e social. Em meio a novos movimentos sociais de estudantes e indígenas e a um conjunto de insatisfações resultantes do excesso de privatizações realizadas durante a ditadura e do avanço de empresas capitalistas em terras indígenas, os chilenos vêm demonstrando nos últimos anos que procuram alternativas que possam resultar em reformas efetivas para uma vida melhor. Mas sabem também que essa é uma história aberta e bastante distinta daquilo que eles viveram 40 anos atrás.

 


Debate na ABI:” Gramsci não pode tirar o País dessa crise”

Neste ano em que se completa 80 anos da morte do pensador italiano Antonio Gramsci, a Fundação Astrojildo Pereira e a Associação Brasileira de Imprensa realizaram a mesa redonda ‘Um pouco de Gramsci nessa crise não faz mal a ninguém’. O debate recebeu dezenas de pessoas no auditório Belizário de Souza, nesta terça-feira, dia 21 de agosto.

A mesa redonda foi aberta pelo presidente da ABI, Domingos Meirelles, e teve como mediador o Conselheiro da entidade e colunista político Luís Carlos Azêdo. O debate contou com a presença do tradutor e ensaísta Luíz Sérgio Henriques, do representante da Fundação Astrogildo Pereira Alberto Aggio e de Andrea Lanzi, do Partido Democrático Italiano.

O objetivo do encontro foi discutir a importância do legado intelectual de Antonio Gramsci, 80 anos depois da sua morte, e a contribuição de sua obra como instrumento de percepção e análise da atual crise brasileira. Ao contrário do pensamento marxista tradicional, que se dedicava ao estudo das relações entre política e economia, ele chamava a atenção para o papel da cultura e dos intelectuais nos processos históricos de transformação social.

Domingos Meirelles destacou as diferentes leituras da obra do pensador italiano e a lucidez com que se debruçou sobre as questões de sua época e observou na mesa debatedora os vários ‘Gramscis’ que apareceram nas diversas leituras que cada teórico fez sobre sua obra.”As temáticas levantadas pelo autor são muito atuais para entender o mundo pós-moderno. O encontro foi muito frutífero já que foi possível ouvir as diversas interpretações do pensamento de Gramsci sob diversas perspectivas”.

O diretor da Fundação Astrogildo Pereira, Alberto Aggio, lembrou que nesse momento em que se recorda os 80 anos de seu falecimento, é importante se pensar a recepção do pensador no Brasil. O ensaísta ressaltou que Gramsci é de leitura difícil já que escrevia em códigos e desde os anos 60 ele é discutido no país.

Para Aggio, toda a dificuldade de entendimento da teoria gramisciana é válida já que seu pensamento é extremamente desafiador. “Existem muitas interpretações a respeito do pensamento gramsciano, mas seguramente as mais aceitas e difundidas dão conta de que nele há uma perspectiva democrática importante e perspectivas culturais novíssimas que o marxismo do século XIX não comportava. Mais do que isso, Gramsci também foi um crítico aos caminhos que tomava a URSS e suas reflexões buscam uma saída em relação a esses descaminhos que, mais tarde, ficaram mais evidentes. Por tudo isso, vale a pena refletir sobre o pensamento do filósofo italiano. Ao discutirmos sobre drogas, temos de estudar a experiência de outros países, como, por exemplo, o Uruguai ou Portugal. Ao discutirmos sobre violência, teremos de considerar o que acontece em sociedades, como a americana, que permitem a difusão abusiva de armas. Nesta nossa longa viagem no interior da sociedade civil, marxistas de inspiração gramsciana poderão dizer alguma coisa em proveito da convivência democrática e civilizada entre pessoas de múltiplas e variadas inspirações”.

Luiz Sérgio Henriques fez uma reflexão sobre Gramsci como um teórico que convida toda a sociedade a um diálogo. Mas lembrou que o pensador, por si só, não vai salvar a sociedade e nem o Brasil, como nenhuma teoria ou religião. Mas que é um importante instrumento para refletir sobre a atual crise da esquerda no país. Trazendo Gramsci para o contexto político brasileiro, ele garantiu que o Partido dos Trabalhadores nunca se embasou na teoria gramisciana. “Ao chegar ao poder, a esquerda do PT construiu relações de poder equívocas, e deixou de lado o que a sociedade pensava. Ele não considerou as questões e necessidades da população. Mas o que mais se deve nos interessar mais nesse autor é a Democracia como uma utopia”.

Andrea Lanzi, do Partido Democrático Italiano, acentuou que apesar de considerar que Gramsci jamais pensaria a sociedade com a Revolução Industrial, os ideias de liberdade e igualdade, da Revolução Francesa e o pensamento Gramisciano ainda são referência para um movimento que queira reduzir as injustiças sociais.

 

 

 


Mesa redonda: Um pouco de Gramsci nessa crise não faz mal a ninguém

Evento busca explorar o pensamento gramsciano em paralelo com a crise política que assola o país atualmente

Germano Martiniano

Neste ano em que se completa 80 anos da morte de Gramsci, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) realizará, no próximo 21 de agosto, às 18h, no Rio de Janeiro, o Seminário: Um pouco de Gramsci nessa crise não faz mal a ninguém. O evento, que conta com especialistas das obras do filósofo italiano, Alberto Aggio, Luiz Sergio Henriques e Andrea Lanzi, busca explorar o pensamento gramsciano em um paralelo com a crise política pela qual o país passa atualmente.

“A mesa redonda foi proposta para lembrarmos os 80 anos da morte de Gramsci. Isso é importante especialmente para nós, que somos os maiores divulgadores das interpretações e debates sobre o pensamento de Gramsci no Brasil por meio da coleção de livros (Brasil & Itália)”, disse Aggio, historiador e professor titular da UNESP.

Contexto
As conjunturas políticas atuais no Brasil têm despertado o interesse no debate em grande parcela da população, assim como tem feito que opiniões extremas, tanto a direita, quanto à esquerda, se fortaleçam. As redes sociais, por sua vez, têm sido “porta-voz” dessas manifestações, como também têm sido o palco de grandes dissidências.

Dentro deste contexto, no qual se vê Bolsonaro, na extrema direita, ganhar mais simpatizantes e, paralelo a isso, parte da esquerda, como PT, PCdoB e PSOL apoiar Maduro na Venezuela, é que o debate sobre a obra de Gramsci se faz mais importante. “Existem muitas interpretações a respeito do pensamento gramsciano, mas seguramente as mais aceitas e difundidas dão conta de que nele há uma perspectiva democrática importante e perspectivas culturais novíssimas que o marxismo do século XIX não comportava. Mais do que isso, Gramsci também foi um crítico aos caminhos que tomava a URSS e suas reflexões buscam uma saída em relação a esses descaminhos que, mais tarde, ficaram mais evidentes. Por tudo isso, vale a pena refletir sobre o pensamento do filósofo italiano”, acentuou Aggio.

Para dar início às reflexões que vão ser tratadas durante o Seminário, a FAP realizou uma entrevista com Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta de Gramsci no Brasil, e que estará como um dos expositores no evento. Leia trechos a seguir:

FAP - A esquerda, atualmente, vive uma crise de identidade. Gramsci, que foi um vanguardista em sua época, já dava indícios em suas obras de que essa dicotomia clara entre capitalismo e socialismo, que ficou ainda mais evidente na Guerra Fria, acabaria?

Luiz Sérgio Henriques - Gramsci descobriu ou redescobriu o continente da política. Estabeleceu um conjunto notável de conceitos (hegemonia, revolução passiva, guerra de posição e de movimento, reforma intelectual e moral, a distinção entre o plano corporativo e o ético-político, etc.), que nem sempre estavam disponíveis no marxismo ou no que se entendia como marxismo. Foi atrás de outros autores e de outras tradições, inclusive liberais. Sabe-se que suas relações com Croce, um liberal clássico notavelmente importante em sua época, foram complexas, feitas de assimilação, recusa e reelaboração. Quantos marxistas agem assim, hoje, em face de Habermas ou Rawls, para dar dois exemplos bem conhecidos? Mesmo tendo se educado no universo socialista (PSI) e tendo se firmado depois como um político comunista, no âmbito da III Internacional, aquele conjunto de conceitos, aplicados à história de seu país, à evolução do socialismo soviético e ao desenvolvimento global do capitalismo, permitiu análises bastante originais que o colocam além do universo bolchevique e o destacam como um clássico da política do século XX. Percebeu, precocemente, o enrijecimento stalinista sob a forma da “estatolatria”: assim caracterizado, o comunismo soviético não teria condições de desafiar um capitalismo que se renovava com o fordismo e o americanismo. Mais cedo do que se pensa, a contraposição entre o mundo comunista e o mundo capitalista ocidental estava resolvida em favor deste último. A partir daí podemos inferir que contraposições frontais entre “campos” antagônicos não são produtivas, porque acabam, mais cedo ou mais tarde, induzindo fanatismos unilaterais e soluções de força.

Podemos ver no pensamento gramsciano uma saída para essa crise de identidade?
A política gramsciana, que recorre à hegemonia (isto é, à persuasão permanente entre sujeitos autônomos e ao deslocamento da relação de forças num contexto de liberdades), aponta numa outra direção. O momento da força fica inteiramente subordinado ao do consenso. Sublinhar isso pode nos ajudar a evitar até mesmo as catástrofes civilizatórias que, infelizmente, estão à espreita. Mas, evidentemente, tudo isto já é por nossa conta. Vemo-nos obrigados a ir muito além de Gramsci. Mesmo sendo muito menores do que ele, ao subirmos em seus ombros veremos coisas que ele não viu nem podia ver. Estamos condenados a “trair” Gramsci. Se o repetirmos, teremos o mesmo triste fim de todos os sectários.

Como interpretar a realidade brasileira, perante toda crise política que vivenciamos, sob a perspectiva gramsciana? Quais partidos políticos mais se aproximam dos seus ideais?
Não devemos adotar a posição de “apóstolos gramscianos” diante do Brasil. Nosso país tem uma densa história própria – uma história intelectual, inclusive. As categorias gramscianas ou quaisquer outras devem ser postas a serviço da compreensão desta realidade, senão não nos servem em absoluto. Vivemos um momento de crise nacional. Um momento, aliás, que se prolonga mais do que esperávamos. Por sua vez, Gramsci não foi um político particularmente bem sucedido, tanto que morreu prisioneiro. Mas, no cárcere, soube se valer da “paciência do conceito”. O fascismo não era um episódio, um parêntese na história do seu país. Vinha de longe, derivava de questões não resolvidas, entre elas a própria forma como se fizera a “unidade” italiana, subordinando o sul da península (que, grosseiramente, poderíamos aproximar do Nordeste brasileiro). Os males brasileiros decorrem igualmente de questões que tratamos mal ao longo do tempo. Nossos períodos de democracia foram curtos, logo interrompidos por surtos duradouros de autoritarismo. Ainda pensamos muitas vezes nos quadros mentais da “estatolatria”. Os sindicatos dependem do imposto sindical getulista, quando deveriam expressar, sobretudo, a vida associativa dos trabalhadores. Os partidos, mesmo os de esquerda, estão pouco presentes na vida social e se transformam facilmente em máquinas eleitorais ou em lugares de reprodução automática de mandatos. O nexo entre partidos, políticos e cultura é frágil, quando sabemos que, hoje, sem reflexão e estudo sério a política não consegue formular boas saídas para a sociedade. Mesmo a cultura, que deve se aproximar da vida das pessoas e dos problemas da política, não pode ser de modo algum ser instrumentalizada por esta última (a política). Devemos cultivar um “cosmopolitismo moderno”, abrindo nossos horizontes e arejando nossa agenda. Ao discutirmos sobre drogas, temos de estudar a experiência de outros países, como, por exemplo, o Uruguai ou Portugal. Muitas vezes, como no filme de Fernando Grostein Andrade e Cosmo Feilding-Mellen, teremos pacientemente de ir “quebrando tabus”. Ao discutirmos sobre violência, teremos de considerar o que acontece em sociedades, como a americana, que permitem a difusão abusiva de armas. Nesta nossa longa viagem no interior da sociedade civil, marxistas de inspiração gramsciana poderão dizer alguma coisa em proveito da convivência democrática e civilizada entre pessoas de múltiplas e variadas inspirações.

Existe uma relação entre a socialdemocracia e o pensamento de Gramsci? O modelo social democrata, dos moldes dos países nórdicos, poderia ser uma solução para o Brasil?
O Brasil tem uma particularidade, uma especificidade densa, como disse acima. Não caberia reproduzir aqui o modelo clássico das socialdemocracias, que também está posto em questão neste nosso admirável novo mundo da globalização. Aliás, temos de ter o mundo como horizonte. Nossa economia deve se integrar competitivamente no cenário global, não se fechar como uma autarquia. Hoje, os reacionários são nacionalistas e até provincianos. Da socialdemocracia clássica devemos reter a preocupação central e mesmo obsessiva com saúde e educação universal. Há variados meios de obter isso, combinando ação pública e iniciativa privada, regulação estatal e mercado. E estamos muito atrasados nessas áreas, infelizmente. É inteiramente lícito que forças economicamente mais ou menos liberais, mais ou menos estatistas, disputem o comando do estado, respeitadas as regras da democracia política. Mas todas estas forças, além de cuidar do funcionamento da máquina econômica, garantindo que funcione bem e se reproduzam de modo sustentável, deveriam - por assim dizer - ter o conhecido índice Gini como referência. Ao cabo de um determinado ciclo, conseguimos nos tornar menos desiguais? O consumo coletivo - nos transportes, na saúde, na educação - ganhou fôlego e se estendeu seus benefícios ao conjunto da população, especialmente aos mais desfavorecidos? Como dizia uma faixa nas jornadas de junho de 2013, povo desenvolvido não é aquele em que o mais pobre anda de carro (ou nem sequer anda, a depender do engarrafamento...), mas sim aquele em que muitos cidadãos, das mais variadas origens sociais, trafegam lado a lado no metrô e em outros bons transportes de massa, em ambientes urbanos saudáveis para todos. Esta é uma lição da social-democracia nos seus melhores anos, que certamente temos de consultar no espírito daquele cosmopolitismo de novo tipo, atento de modo inteligente às mais variadas experiências.

A mesa redonda terá transmissão ao vivo pelo canal no Facebook da FAP: https://www.facebook.com/facefap

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