RPD || Marco Aurélio Nogueira: Serenidade, moderação, realismo

Bolsonaro torna ainda pior o grave momento que todos enfrentam por conta da pandemia do coronavírus - Covid-19, avalia Marco Aurélio Nogueira em seu artigo. Para ele, o presidente "não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais".
Foto: Carolina Antunes/PR
Foto: Carolina Antunes/PR

Bolsonaro torna ainda pior o grave momento que todos enfrentam por conta da pandemia do coronavírus – Covid-19, avalia Marco Aurélio Nogueira em seu artigo. Para ele, o presidente “não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais”

Discursos e narrativas à parte, é preciso ir ao centro da crise sanitária desencadeada pelo corona vírus. Dentre muitas coisas e tragédias humanas, ela expôs e agravou outras crises, que já vinham em curso. A econômica e a política, evidentemente, mas também a crise de ideias.

Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia. O governo não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais. Em vez disso, sobre os esforços do Ministério da Saúde e dos profissionais do sistema sanitário, o que há é disposição para o conflito, a arruaça, a briga de rua. Bombeiros movimentam-se o tempo todo, mas pouco fazem para conter a fúria e o ódio que se alojaram no Palácio do Planalto. A suspeita é que os que dizem querer diminuir danos não sabem bem o que desejam. Faltam-lhes coragem, clareza de propósitos, aquilo que os antigos chamavam de hombridade: honradez e determinação.

Está dada uma articulação maléfica, que se reproduz ainda que em condições menos favoráveis do que no ano passado. O presidente fala e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo. Não se pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder. Os olhos esbugalhados apontam para 2022 e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha. Azar da realidade.

Outra articulação, benéfica mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional.

O isolamento está sendo compreendido pela população e a grande maioria, segundo pesquisas recentes, concorda que ele é vital no momento. Mas os sinais contraditórios são muitos, a dubiedade do discurso governamental confunde, a cultura presidencialista do País faz com que as pessoas valorizem o mau exemplo dado pelo presidente e desconfiem das outras orientações. É uma luta surda, diária, um embate incessante entre diretrizes que buscam preservar vidas e diretrizes tresloucadas que alegam privilegiar o trabalho.

Basta que 20% dos brasileiros desobedeçam para que 50 milhões de pessoas passem a fazer a festa do Covid-19. Só em São Paulo seriam cerca de 8 milhões. Sabe-se bem que não há como manter todos confinados por longos períodos. Não é só porque a economia não pode parar. É porque as pessoas não conseguem ficar em casa passivamente, olhando a vida pelas janelas. Há inquietação e insegurança nelas. A população é um conjunto complexo. Está composta por gente que não se controla, gente que não tem para onde ir, gente que não tem onde ficar, gente que não tem imaginação, gente que gosta de agitar. Bolsonaristas fanáticos fazem parte dela. Estão nas ruas, em carreatas e abraçando o “mito”, como se não houvesse amanhã.

São pessoas desprovidas de inteligência cívica, que não se orientam pelo bom senso. Quantos seriam bolsonaristas, quantos são simplesmente tontos ou irresponsáveis, quantos são ingênuos, desinformados ou burros? Quantos irão se arrepender ou assumir a culpa pela contribuição dada à infecção generalizada e rápida da população, com o correspondente colapso do sistema de saúde?

São perguntas que apontam para o dilema que está atravessado na garganta da democracia brasileira: como sair da crise em que nos encontramos, não somente a sanitária, mas a política, aquela que tem a ver com a reorganização do Estado e do próprio sistema representativo? Aquela que tem a ver com a organização de um governo que governe, que articule os interesses da maioria da população, promova um crescimento econômico inteligente, não produtivista, distribua renda e combata as desigualdades abissais que dilaceram a sociedade, que “pacifique” a população?

A perspectiva política precisa olhar para além do futuro imediato, por mais que tenha também de operar com os olhos nas circunstâncias do presente, na crise sanitária e nas eleições municipais. 2022 passa por 2020 e será definido pelo que vier a ser feito depois da pandemia. Há uma tarefa imediata: articular os democratas para que seja possível fazer frente ao bolsonarismo. O realismo político precisa ser cultivado com dedicação.

O bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial. Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é “antipetista”, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de “olavismo”, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática. Não é religioso, pois lhes faltam a humildade, a compaixão, a solidariedade. Sua natureza é o fanatismo, a disposição de fazer tudo aquilo que o mestre mandar. Para esse estado de espírito, a realidade não é algo que se deve compreender, mas mero componente da paisagem desenhada por ideologias e convicções.

Diferentemente das anteriores, a pandemia atual eclode em uma estrutura mundial tão interconectada e tão “móvel”, com pessoas e mercadorias atravessando sem cessar os continentes, com variações climáticas intensas, que permitem a todo e qualquer patógeno se espalhar com extrema facilidade. Ao menos no médio prazo, não haverá como impedir que outras epidemias se disseminem sequencialmente, mais avassaladoras ou menos.

A resposta para isso é conhecida por todas as pessoas sensatas: aposta na ciência, melhoria radical dos sistemas de saúde, produção autóctone de equipamentos hospitalares, educação, cooperação, articulação internacional, políticas econômicas inteligentes, ambientalismo ativo.

Caminhar em sentido contrário, propalando curas milagrosas e poções mágicas, banalizando o vírus e politizando o combate a ele é simplesmente ir contra a vida.

A pandemia modificou o cenário político, externo e interno. No Brasil, a polarização mudou de eixo. A questão passou a ser isolamento ou não, saúde ou economia. O presidente percebeu que a água chegou ao pescoço e se debate freneticamente, pratica uma barbaridade por segundo, compra uma briga por dia. Não governa, nem mostra interesse em fazer isso. Sua meta é convencer a população de que o inimigo por trás do vírus são seus adversários políticos, o PT, a esquerda e o “comunismo” à frente.

O petismo, por sua vez, encurralado e sem força propositiva, procura aproveitar a posição em que está sendo colocado, pois ela embala seus sonhos de revanche e retorno glorioso. Porém, como escreveu a jornalista Rosangela Bittar (Estadão, 15/04/2020, p. A8), “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas. Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem”.

O estado de espírito bolsonarista não será enfrentado com bravatas personalistas ou lideranças carismáticas, mais populistas ou menos. Exigirá uma perseverança pedagógica, um processo de educação cívica que somente poderá ser posto em marcha se houver articulação democrática consistente. Tendo em vista a atual correlação de forças, a estrutura existencial da época e a situação social – desnivelada em termos de renda e inclusão, fragmentada ideologicamente, muito polarizada em termos políticos –, essa articulação não poderá ser “revolucionária”, quer dizer, seu ponto de inflexão não terá como se firmar a partir da esquerda. Seu campo de atuação será democrático e republicano, seu reformismo precisará ser seletivo, focado, liberal-social, não poderá ser concebida como a abertura de um ciclo de reformas estruturais profundas, “populares”. A moderação será sua condição de existência. A busca de renovação se condensará no surgimento de novas lideranças políticas e de composições políticas que estejam além dos partidos existentes. O que está estabelecido não poderá ser simplesmente reproduzido. Sob pena de se ter mais do mesmo.

De resto, é plantar no deserto, achar que a “sociedade” irá se voltar contra os políticos em nome da democracia. Se alguma revolta desse tipo ocorrer, seu Norte não será democrático, como nos revela a marcha do bolsonarismo. Se quisermos democracia, o caminho há de ser outro e terá de ser construído pelas elites políticas, pela intelectualidade, pelos partidos, pelas organizações da sociedade civil. Politicamente, com persuasão, realismo, educação cívica, serenidade e cooperação.

 

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