Igor Gielow: Forças Armadas em ações de segurança pública têm legado questionado por militares e civis

Após duas décadas, Bolsonaro reduz operações de GLOs, mas por vontade de implantar o excludente de ilicitude
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Símbolo da falta de projeto civil para as Forças Armadas, as GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem) completarão 20 anos em 2022 com um legado questionado igualmente por militares e civis.

Não por esse motivo, e sim por pressão dos fardados em busca de respaldo jurídico para operações internas determinadas pelo Planalto, o presidente Jair Bolsonaro reduziu bastante o uso do expediente desde que assumiu, em 2019.

Até aqui, são 3,5 GLOs anuais a média sob Bolsonaro. Os anos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) viram 5,9 ações, os de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010), 4,9/ano, os de Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), 5,6/ano e os de Michel Temer (MDB, 2016-2018), outras 5,6 anuais.

Para o presidente, o problema é a falta do infame “excludente de ilicitude”, um instrumento inspirado por exceção do Código Penal que buscaria isentar de culpa militares que se envolvessem em tiroteios com vítimas, por exemplo.

Na verdade, Bolsonaro tentou aplicar a ideia de forma ampla a forças policiais, mas foi barrado pelo Congresso. Propostas semelhantes estão paradas. “Eu pretendo usar a GLO, se tiver que usar, com excludente de ilicitude“, disse ele numa live no fim de 2020.

Não que isso o torne um legalista.

O presidente tem insistido em falas que poderá usar as Forças Armadas contra as medidas restritivas aplicadas por estados contra a disseminação do novo coronavírus. Oficiais-generais são contrários à ideia, até por não haver no artigo 142 da Constituição, que regula os militares, tal autorização de uso.

“O problema começa lá pela previsão da Constituição. Nosso principal negócio é a defesa da pátria, mas o nosso emprego tem sido fundamental para cumprir outras missões e a necessidade da nação brasileira”, resumiu o ex-comandante do Exército Edson Leal Pujol em uma outra live, em novembro passado.

As GLOs nasceram da necessidade de dar uma aparência de cidade pacífica ao Rio em 1992, quando Fernando Collor de Mello sediou a conferência ambiental Rio-92. Mas ao longo dos anos a aplicação foi diversificada, sempre sob queixa dos militares.

Muito antes da ascensão e queda do ministro Paulo Guedes (Economia) com o proverbial “Posto Ipiranga”, esse era o apelido no Planalto para as Forças Armadas. Sob FHC, chegou a haver 11 ações num só ano, 2000.

Os motivos se multiplicaram. Grandes eventos seguiram como prioridade, somando 27,3% do total das ações, seguido por controle de motins de PMs (18,2%) e crises de segurança estaduais (16,1%). Um grande contingente de 22,4% das GLOs cai na rubrica “outros”, que vai de garantir eleições a ações ambientais.

A única GLO em vigor, Operação Verde Brasil 2, foi encerrada na sexta (30), após um ano implementada. Os dados de desmatamento na Amazônia mostram que o esforço foi, no máximo, isso —um esforço.

Ainda assim, ela poderá ganhar uma nova edição. A GLO empregou 2.450 militares. Sua antecessora, a Verde Brasil 1, durou de agosto a outubro de 2019, no auge da crise internacional de imagem devido aos incêndios amazônicos.

Novamente, acabou sendo vista como cosmética. E custou R$ 124,5 milhões aos cofres públicos —menos de um terço do que a GLO dos Jogos Militares Mundiais, de 2011, de todo modo.

O uso banalizado de um recurso excepcional traz desmoralização, já que o emprego recorrente não trouxe melhoras significativas no cenário da violência”, afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.

Para ele, há o risco sempre citado pelos próprios militares de contaminação de tropas na ponta, pelo contato com o tráfico e outras formas de criminalidade.

“Militar cumpre o que lhe é pedido. Mas isso tem consequências”, diz o diretor do Brazil Institute do King’s College de Londres, Vinicius Mariano de Carvalho, lembrando que a Constituição não prevê o uso ostensivo dos fardados em patrulhamento.

Langeani ressalta também o ponto levantado por Pujol: o militar é preparado para outra coisa. “As forças policiais têm efetivo mais estável, com mais tempo de serviço, treinamento e protocolos, que incluem o uso de técnicas de defesa pessoal, armas menos letais. E parte grande da interação dos policiais demanda comunicação, não armas”, diz.

“Nas Forças Armadas há menos espaço para esses conhecimentos. Não é acidente que tenhamos tantos casos de mortes desastradas e evitáveis, como na fiscalização de um veículo, na morte do músico Evaldo Rosa em 2019 [cujo carro foi atingido por 257 tiros numa barreira militar no Rio]”, afirma.

Por óbvio, há momentos de crise aguda em que apenas a força militar pode colocar ordem, mas eles são exceções. Langeani aponta motins simultâneos de várias polícias, por exemplo, como situações em que a GLO se justifica.

Como diz Carvalho, há a questão sobre qual tipo de Forças Armadas o país quer para si. No caso brasileiro, pela forte inserção dos fardados na história política desde a proclamação da República e pela inapetência civil em lidar com assuntos de defesa, a situação fica algo fluida.

Há um mantra nas Forças Armadas, Exército no seu centro, com a questão da ocupação do território como forma de manter a soberania nacional. Com efeito, nos rincões da Amazônia, muitas vezes o único Estado existente é o que usa farda.

Alguns números justificam a preocupação. Há no Brasil 22 km² para cada militar, ou 176 fardados para cada 100 mil habitantes. Na América do Sul, a Colômbia conta um membro de Força para cada 3,8 km² ou 592 a cada 100 mil moradores.

Mas o país vizinho vive cinco décadas de guerra civil em níveis diferentes, com problemas de segurança interna bastante diversos dos graves desafios brasileiros.

Houve momentos em que a aplicação das GLOs serviu às Forças Armadas, contudo.

Durante os 13 anos em que o Brasil liderou a Missão de Paz das Nações Unidas, um dos argumentos mais correntes era de que a experiência de polciamente na ilha caribenha poderia ser replicada em morros cariocas —inclusive alterações foram testadas em blindados.

Aqui e ali, ocorreram alguns espasmos no pós-redemocratização de interação dos poderes civil e militar. Do Ministério da Defesa nasceram a política e a estratégia para o setor do país, além dos inventários do Livro Branco.

Lá há preocupações de todo tipo desenhadas, algumas bastante objetivas. “A Marinha é uma Força bastante profissional”, diz Carvalho. Mas a realidade costuma se interpor cada vez que uma Polícia Militar resolve se amotinar.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/forcas-armadas-em-acoes-de-seguranca-publica-tem-legado-questionado-por-militares-e-civis.shtml

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