Comunicação FAP
O linguista Marcos Bagno, professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB) e autor do influente livro Preconceito Linguístico, publicado há mais de 25 anos, continua a discutir o problema que dá nome à sua obra, considerada grande aliada da maneira de falar da maioria da população. Em entrevista à Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, Bagno explicou a natureza desse fenômeno, afirmando que o “preconceito linguístico é de fato um preconceito social, uma forma de discriminar pessoas ou grupos sociais utilizando a língua como pretexto”.
Na entrevista, Bagno reforça suas críticas ao preconceito linguístico, assunto importante para o debate especialmente nesta terça-feira (10/6), data em que é celebrado o Dia da Língua Portuguesa. Ele é autor de vários títulos especializados na área da linguística, tradutor com mais de 40 anos de carreira, com diversos livros infantis, alguns premiados. Sua obra inclui publicações influentes como Preconceito linguístico (1999), que vem ganhando leitores até hoje, com mais de 350 mil exemplares vendidos. Também publicou Gramática pedagógica do português brasileiro (2012) e Uma história da linguística (2023).
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Bagno enfaticamente posiciona o preconceito linguístico como mais uma ferramenta ativada para perpetuar a estrutura social brasileira: uma sociedade marcadamente desigual e injusta, caracterizada por uma hierarquização violenta onde as camadas dominantes oprimem e exploram a vasta maioria da população. Na entrevista, ele também diz que “as mídias sociais são um universo gigantesco, multifacetado, quase caótico em certa medida”.
A seguir, confira trechos da entrevista.
FAP: O senhor publicou, há mais de 25 anos, um livro em formato de bolso chamado Preconceito Linguístico, considerado grande aliado da maneira de falar da maioria da população. Por que esse problema estampado no nome do seu trabalho persiste até hoje e molda, sobretudo, o sistema de educação formal?
Marcos Bagno: O preconceito linguístico é de fato um preconceito social, uma forma de discriminar pessoas ou grupos sociais utilizando a língua como pretexto. É mais um dos instrumentos acionados para que a sociedade brasileira permaneça como é: profundamente desigual e injusta, marcada por uma hierarquização violenta, em que as camadas dominantes oprimem e exploram a grande maioria da população. No plano pedagógico, podemos dizer que a questão do preconceito linguístico tem sido ao menos abordada no ensino, graças ao trabalho de muitas e muitos linguistas há pelo menos três décadas. Hoje, a maioria das pessoas que exercem a profissão docente provêm de camadas sociais subalternas, têm histórico de discriminações em suas vidas (racismo, misoginia, homofobia etc.), de modo que o tema do preconceito linguístico não lhes é estranho. Também os livros didáticos têm contribuído para isso, porque, desde a década de 1990, as diretrizes oficiais de ensino de língua vêm alertando para que essa forma de discriminação seja reconhecida e combatida.
FAP: O conhecimento mecânico da gramática se transformou em um instrumento de discriminação e de exclusão social?
Marcos Bagno: Esse conhecimento não é mecânico e nunca é total. Não se trata propriamente de gramática neste caso, mas de uma norma-padrão elaborada segundo critérios pouco consistentes e até contraditórios, além de apegada a uma doutrina gramatical obsoleta, anacrônica. Mesmo não tendo pleno conhecimento dessa norma-padrão, muitas pessoas tentam usá-la como régua para avaliar a competência linguística de outras pessoas, especialmente das camadas sociais subalternas. Um dos critérios usados para isso é o rótulo de “erro”, atribuído às práticas de linguagem que supostamente se desviam desse padrão idealizado. No entanto, por causa do caráter anacrônico da norma-padrão, ninguém está livre de cometer “erros”, porque esse padrão bate de frente com a intuição linguística de todo mundo: ninguém se reconhece nesse padrão, ele parece definir regras para alguma língua estrangeira.
FAP: A língua é poder para libertar e oprimir?
Marcos Bagno: Tanto para a libertação quanto para a opressão, a língua – ou, mais especificamente, no caso do Brasil, as variedades linguísticas – é uma das bandeiras usadas para agrupar pessoas em torno de algum ideário político, cultural, religioso. É uma bandeira importante por falar diretamente à identidade étnica ou de classe dos grupos sociais que se reúnem debaixo dela. Em muitos países multilíngues, é a defesa de uma ou mais de uma língua que está em jogo. No caso brasileiro, a situação é mais complexa, porque se trata de uma mesma língua, o que torna difícil a luta pelo reconhecimento dos modos de falar das classes oprimidas.
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FAP: O senhor também diz que o maior e mais sério mito é afirmar que a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente, inclusive apontando críticas a declarações de Darcy Ribeiro, que, em um de seus estudos, afirmou que “os brasileiros são um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente”. A quem esse mito interessa?
Marcos Bagno: O mito do monolinguismo tenta encobrir o grande abismo social que separa uma minoria dominante do resto da população. Se falamos todos uma língua homogênea, isso demonstra que somos um só povo, pois essa língua nos une, nos torna “irmãos” e simboliza nosso destino comum. Para começar, o Brasil é um dos países com a maior diversidade linguística do mundo: temos pelo menos 240 línguas indígenas, várias línguas trazidas por imigrantes (europeus e japoneses, por exemplo). Além disso, o português brasileiro é múltiplo, multifacetado, com incontáveis variedades dispersas por um dos maiores países do mundo. É ilusório imaginar que, com uma população tão grande e num território tão vasto, uma língua pode se manter homogênea. A heterogeneidade é própria da natureza de qualquer língua, por menor que seja o número de seus falantes. No caso do Brasil, a hierarquização social violenta é responsável pelo grande número de analfabetos plenos e analfabetos funcionais, que formam a maioria da população. Essa fratura social provoca uma fratura na possibilidade de alguém se apoderar das normas de prestígio e, principalmente, da escrita.
FAP: O senhor acredita que as mídias sociais abriram mais espaço para o preconceito linguístico ou para a língua viva?
Marcos Bagno: As mídias sociais são um universo gigantesco, multifacetado, quase caótico em certa medida. Quanto à língua, há de tudo: manifestações em defesa da heterogeneidade linguística e também projetos de imposição da norma-padrão convencional. É uma arena em que se confrontam atores vinculados a construtos ideológicos os mais variados.
FAP: Qual foi o ataque mais grave que o senhor já sofreu por ser contra o preconceito linguístico?
Marcos Bagno: Logo que o livro foi publicado, em 1999, ninguém menos do que Olavo de Carvalho fez uma avaliação demolidora da obra. Mas isso não impediu que o livro se tornasse, ao longo desses 25 anos, uma leitura de referência não só nos cursos de Letras, mas também em outras áreas. Em geral, os ataques que sofro têm – como sempre – muito mais a ver com meu posicionamento político do que com questões propriamente linguísticas. A defesa de um padrão anacrônico é a defesa de um modelo de sociedade excludente.
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FAP: Esses ataques aumentaram em meio à polarização política?
Marcos Bagno: Sinceramente, acompanho pouco o que se passa no universo digital. Por vezes recebo algumas notícias enviadas por pessoas conhecidas, mas sinceramente não levo muito em conta esses ataques. O livro está aí há 25 anos, tem servido para suscitar o debate, que sempre foi meu objetivo desde que o publiquei.
FAP: Formas de manifestação cultural popular, como Rap e Funk, são grandes propagadores da identidade da língua brasileira, mas ainda enfrentam críticas por parte da sociedade. Qual a avaliação do senhor sobre isso?
Marcos Bagno: Essas manifestações não são apenas culturais, são essencialmente políticas, promovem a denúncia da desigualdade social e incitam à resistência diante da opressão. E fazem isso usando a linguagem própria das periferias, mais uma maneira de se contrapor à idealização de um modelo de língua que não promove nenhum tipo de inclusão social, muito pelo contrário.