Day: julho 17, 2020

RPD || Lilia Lustosa: Cine Drive-in. O retorno?

A pandemia do coronavírus Covid-19 tem ressuscitado o cinema drive-in em várias regiões do Brasil e do mundo. Na Capital Federal, o único em funcionamento contínuo foi declarado patrimônio cultural e material do Distrito Federal em 2017

Em 2016, o site de viagens Tripadvisor anunciava o Cine Drive-in de Brasília como o último sobrevivente da categoria na América Latina, convertido assim em atração turística da capital brasileira. Seguiu sendo realidade até a inauguração do CineCar em Interlagos, São Paulo, no ano passado, que passa atualmente por verdadeira revolução desde a chegada da pandemia, quando o bom e velho Drive-in foi “ressuscitado” em quase todo o mundo. Mas será que essa modalidade de cinema, tão popular nos anos 50, 60 e 70 voltou mesmo para ficar ou estamos aqui diante de um paliativo para tempos pandêmicos? Será que depois que a vacina chegar os baby boomers estarão dispostos a trocar o conforto do sofá de casa ou de uma poltrona de Multiplex por um banco de carro com o único propósito de reviver a experiência de sua juventude? E as gerações X, Y e Z estarão prontas para embarcar nessa “nova” modalidade de cinema em que a imagem é vista através do para-brisa e o som, escutado pelas ondas do rádio?

Durante a pandemia, o sucesso do Drive-in já é fato. Desde que as cidades começaram a entrar em quarentena, essa modalidade de cinema tornou-se uma das poucas opções para os que desejavam assistir a um filme em tela grande e/ou de forma coletiva. Nos Estados Unidos, onde surgiu, mesmo durante a fase de isolamento, dos cerca de 300 Drive-ins ainda em funcionamento, 25 continuaram abertos, segundo a Drive-in Theatre Owners Association. E agora, com a retomada gradual das atividades em vários Estados, outros tantos se somaram à lista, como em vários países do mundo. No Brasil, os Drive-ins vêm ganhando cada vez mais espaço, a maioria em caráter provisório, implementados por empresas de organização de eventos, muitas vezes em parceria com os próprios exibidores, que veem nesta velha fórmula uma solução temporária para sua sobrevivência.

No Rio de Janeiro, o Jeunesse Arena e a Cidade das Artes criaram seus Drive-ins aproveitando os espaços de seus estacionamentos vazios. Em São Paulo, o Allianz Parque inaugurou o Arena Sessions, com uma super tela LED de alta definição; o Memorial da América Latina foi transformado em Drive-in por meio de uma parceria com o cinema Petra Belas Artes; e a rede Centerplex montou seu cinema no Centro de Tradições Nordestinas. Ainda na capital paulista, a Dream Factory anunciou a criação da rede Dream Parks, com atuação prevista em 8 Estados brasileiros por um período de 3 meses. E até mesmo Brasília, que já conta com seu Drive-in permanente desde 1973, viu parte do estacionamento do Aeroporto Juscelino Kubistchek ser transformado em palco para o Festival Drive-in, oferecendo de julho a agosto programação cultural que, além de filmes, inclui apresentação de orquestra sinfônica e shows stand-up.

Mas será que os grandes produtores e distribuidores de blockbusters estarão dispostos a lançar suas superproduções em cinemas desse tipo? Ou será que as telas a céu aberto continuarão sendo destinadas a filmes tipo B ou aos vintages, como nos últimos tempos? E qual será o destino dos dois únicos Drive-ins permanentes de nosso país? Continuarão a ser “atrações turísticas”? A tendência é que, depois de passada a pandemia, tudo volte a ser como antes e que os Drive-ins sigam sendo um programa exótico e pitoresco, atividade a ser realizada a cada tanto. O consolo para os proprietários desse tipo de estabelecimento é que este período está servindo, ao menos, para colocá-los de volta no mapa das opções de entretenimento, apresentando-o às novas gerações que, quiçá, se sintam interessadas e responsáveis por sua perpetuidade.

O Cine Drive-in de Brasília goza de uma situação privilegiada, tendo – pelo menos, por enquanto – sua existência assegurada. Depois de quase ter sido fechado em 2014, foi declarado patrimônio cultural e material do Distrito Federal em 2017, de acordo com a lei n° 6.055, proposta pela deputada distrital Luzia de Paula. O espaço, que conta com uma tela de 312m² (a maior do Brasil), ficou fechado por 40 dias no início da pandemia, mas retomou às atividades no fim de abril, com um público cada vez maior. Segundo a proprietária, Marta Fagundes, o público triplicou depois da reabertura, apesar das adaptações feitas para se adequar aos protocolos de segurança que a época exige: redução de 50% da capacidade (de 400 para 200 carros), distanciamento de 1,5m entre os veículos, compras dos ingressos apenas online, uso dos banheiros por uma pessoa a cada vez, uso obrigatório de máscara e fechamento da lanchonete.
Segundo Marta, que está à frente do empreendimento há mais de 40 anos e é uma apaixonada defensora dos Drive-ins, a vantagem desse tipo de cinema é a liberdade oferecida ao espectador. Pode levar lanche, falar ao celular, discutir o filme, levar cachorro… quase tudo é permitido, menos acender os faróis do carro, para não atrapalhar a qualidade da projeção.

Para quem nunca viveu a experiência e quer ter uma ideia de como funciona um Drive-in, uma excelente dica é o longa O Último Cine Drive-in (2015), de Iberê Carvalho. Um filme extremamente sensível que mostra uma relação complicada entre pai e filho, tendo como “tela de fundo” a história da decadência de um Drive-in em tempos de Multiplex. Ou seria o contrário? O protagonismo desse cinema é tão grande que mais correto seria dizer que o conflito familiar é que é a “tela de fundo” da história. O filme presta também linda homenagem aos amantes da sétima arte e aos demais guerreiros donos de Drive-ins ou de salas de cinema de rua, que sofrem com a invasão dos grandes conglomerados de exibidores. Com um cenário repleto de cartazes envelhecidos de filmes, projetores antigos (35mm) e um certo Marlonbrando (Breno Nina), filho do Seu Almeida (Othon Bastos), dono do Drive-in, o filme funciona ainda como um grito de alerta para o estado complicado pelo qual passa a sétima arte no nosso Brasil. A mãe de Marlonbrando, Fátima (Rita Assemy), agonizando no hospital público da capital, bem pode ser a metáfora perfeita para nossa arte tão necessitada de cuidados intensivos.

Com uma fotografia belíssima que explora o vasto horizonte da capital brasileira, retratada por uma paleta de cores em que predominam os tons amarronzados e alaranjados, o filme reflete a terra batida, a grama seca e o concreto que dão corpo e asas a essa cidade-uma-vez-sonho. O céu-mar e a luz forte e intensa, tão característicos da jovem senhora Brasília, tampouco são deixados de lado, ocupando boa parte do campo e dando ainda mais força e personalidade ao também jovem cinema brasiliense. Iberê Carvalho orgulha sua terra e faz jus aos versos do mestre Vladimir Carvalho, cineasta paraibano que adotou Brasília como sua cidade-musa, já tendo feito vários filmes sobre a história e a cultura de nossa capital: “Brasília, Claro Enigma, luz incandescente batendo na lente!”[1].

[1] Verso incrustado no jardim do Cinememória, museu do cinema localizado em Brasília, criado por Vladimir Carvalho.

* Lilia Lustosa é crítica de cinema.


RPD || José Vicente Pimentel: A reeleição contaminada

Pesquisas eleitorais detectam certo cansaço da opinião pública com Trump e dão ao democrata Joe Biden folgada vantagem na corrida presidencial. Pandemia e o assassínio de George Floyd por policiais em Minneapolis estão entre os fatores principais

Donald Trump elegeu-se presidente dos Estados Unidos sem nenhuma experiência em administração pública, algumas convicções e ego enorme. Entende que o papel do governo é providenciar estímulos fiscais e financeiros às empresas, com um mínimo de regulamentação ambiental, científica, educacional e social. Por isso, impôs-se a missão de destruir o legado de Barack Obama. Desse ponto em diante, o mercado se encarregaria de recolocar a América em primeiro lugar.

Vale notar que o mote “America first” já foi usado por políticos democratas e republicanos. Philip Roth, no livro-cult “Complô contra a América”, imagina como Charles Lindbergh teria conduzido o país ao fascismo, se tivesse vencido a eleição contra Franklin D. Roosevelt, em 1940. Na vida real, Lindbergh era, além de aviador, o porta-voz do America First Committee, grupo de pressão com caráter francamente protofascista.

Sem muitas ideias, mas com a autoconferida aura de negociador emérito, Trump interferiu fundo no Departamento de Estado. Reincorporou o personagem do programa “O Aprendiz”, que viveu na TV, e despediu funcionários até do terceiro escalão. Censurado por enfrentar negociações difíceis com a OTAN com reduzidíssima assessoria diplomática, deu de ombros: “o único que importa sou eu”.

Voluntarista, embora sem objetivos claros, investiu contra a ONU e o arcabouço multilateral criado em 1945, sem propor nada capaz de aperfeiçoá-lo ou substituí-lo. Radicalizou a diplomacia presidencial, permitindo que sua antipatia por Emmanuel Macron, Angela Merkel e Justin Trudeau interferisse nos negócios de Estado. Por outro lado, cortejou Kim Jong-um, não se sabe bem para que, pois o norte-coreano não desistiu do programa nuclear nem diminuiu as arestas com a Coréia do Sul.

A Rússia é um capítulo à parte. Trump nutre admiração explícita por Vladimir Putin e está sempre pronto a relevar as transgressões do russo, mesmo quando as denúncias são de que estaria concedendo incentivos pecuniários para que militantes talibãs assassinassem soldados americanos no Afeganistão. Sua atitude não contribui para diminuir a desconfiança de que dinheiro russo teria financiado os negócios imobiliários da família Trump em Dubai e no SoHo. Os rumores talvez desparecessem se Trump tornasse público seu imposto de renda, o que ele se recusa a fazer.

Com a China se dá o embate maior. Não está claro quem está ganhando o jogo. O que se verifica são os prejuízos que todos os países sofrem, em decorrência da guerra comercial. A incerteza nas relações entre Washington e Pequim deixa o mundo sem meios de planejar o futuro. Para agravar a incerteza, as revelações de John Bolton, ex-diretor de Segurança Nacional, em livro recém-publicado, segundo as quais o presidente seria, nas negociações com Xi Jinping, mais “suave” do que diz de público, são constrangedoras e geram mais dúvidas sobre os objetivos americanos.

A atual Casa Branca não abre as portas a intelectuais e cientistas, como já foi de praxe. Trump se declara cético quanto a vacinas. Diz que o aquecimento global é uma invenção dos chineses para brecar o crescimento das empresas americanas. Marginalizou cientistas e pesquisadores. O historiador Douglas Brinkley declarou em audiência na Câmara Federal que “Donald Trump é o presidente mais anticiência e antiecologia que jamais tivemos”.

Enquanto a economia apresentou bons resultados, Trump surfou na onda. Mesmo o processo de impeachment na Câmara não teve consequências mais danosas, pois a maioria republicana no Senado o blindou. Então, surgiu o Covid-19.

Desde então, Trump parece desnorteado. Primeiro, negou a gravidade da pandemia; depois, fez-se curandeiro e receitou tratamentos, que os médicos logo desaprovaram; previu que a doença iria magicamente embora e o coronavírus, três meses depois, continua ali, firme. Delegou o comando das ações aos governadores e o de Nova York, Andrew Cuomo, dá lições diárias de como um líder deve se comportar numa crise; conclamou os estados a flexibilizarem a quarentena e os que o seguiram têm agora que fechar outra vez. Trump não visita hospitais, não tem gestos de empatia para com os doentes. Parece mesmo convencido de que o vírus é chinês e foi criado para avacalhar-lhe a economia.

É quando advém o assassínio de George Floyd por policiais, em Minneapolis. O vídeo da barbárie repercute e motiva manifestações antirracistas em todo o território americano. Trump não condena os policiais e, sim, os manifestantes, que estariam a serviço de uma organização terrorista, o que não se comprova, porém reacende a polêmica sobre a insensibilidade, o racismo e até o protofascismo do presidente.

Recentes pesquisas detectam certo cansaço da opinião pública com Trump e dão ao candidato democrata Joe Biden folgada vantagem na corrida presidencial. Faltam 4 meses para as eleições, e o poder do presidente em exercício é imenso, sem dúvida. Mas, se Biden mantiver os democratas unidos, controlando os radicais, pode ganhar também o eleitorado do centro. Nesse caso, a vitória será consagradora. Ou seja, quem colocou todas as fichas na reeleição do republicano se prepare para uma provável desilusão.

*José Vicente Pimentel é embaixador.


RPD || Benito Salomão: PEC do Teto e Investimento Público

Sufocar os investimentos públicos e, portanto, a capacidade de crescimento da economia, é uma das falácias que ameaça a Emenda Constitucional 95, avalia o economista Benito Salomão em seu artigo

Em meio à proliferação dos casos confirmados de coronavírus ao longo do território nacional, o país tem de lidar com uma segunda pandemia, a de ideias erradas. Dentre as muitas propostas estapafúrdias que vêm a baila, surge a ideia oportunista e ideológica de revogar o Novo Regime Fiscal (NRF). Como toda falácia, ideias erradas portam maquiagem e alguns argumentos acerca dos efeitos da Emenda Constitucional 95 que, embora pareçam verdadeiros, não resistem a uma simples consulta aos dados.

A primeira acusação falaciosa acerca da PEC do Teto é de sufocar os investimentos públicos e, portanto, a capacidade de crescimento da economia. Ambos os argumentos são falsos. Os limites para crescimento do gasto público do NRF entraram em vigor apenas em 2017; os investimentos públicos do Governo Federal vinham em queda desde meados de 2013. Além disso, grande parte dos investimentos públicos anteriores até então eram financiados via pedaladas fiscais, ou seja, o Tesouro utilizava temporariamente os bancos públicos para pagar obras do PAC e do Minha Casa Minha Vida. É falso que o limite imposto ao crescimento do gasto público tenha prejudicado as despesas com investimentos.

Na verdade, o grande fator inibidor do investimento no Brasil é o crescimento inercial do componente permanente do gasto público (Previdência e salários). Sobre isto, a supracitada PEC tem exercido papel interessante. Primeiro, porque, após a incorporação do NRF, se contava com a aprovação de uma reforma da Previdência que atenuasse a tendência de crescimento do gasto previdenciário. Tal reforma estava prevista para ocorrer em 2017. Em razão, porém, do conjunto de choques políticos que se sucederam, ela foi aprovada apenas em finais de 2019. Segundo, porque a PEC impõe uma dinâmica ao gasto com pessoal da União, distinta do verificado ao longo das últimas décadas. Sob os limites do NRF, a elite da burocracia passa a competir com as demais rubricas do orçamento, de forma que reajustes salariais devem necessariamente ser compensados por quedas em outras áreas, o que aumenta o custo político dos reajustes concedidos.

Para além do crescimento inercial de despesas permanentes, outros fatores limitam a capacidade de investimento do setor público no Brasil. O primeiro é a dificuldade em classificar investimento. A Lei 4.320/64 estabelece investimento apenas como dispêndios ligados ao capital físico, tais como obras, equipamentos e materiais permanentes. A legislação atual não contempla capital humano como um tipo de investimento. Como efeito sobre o crescimento econômico, uma obra que demore 4 anos para ser concluída, por exemplo, afeta o PIB ao longo desse período, pela contratação de trabalhadores e de insumos para executá-la. Um investimento em educação, por sua vez, que mitigue o analfabetismo e aumente as habilidades básicas e específicas da população, tem potencial de elevar o crescimento do PIB de forma perene, ainda que na contabilidade pública não seja apresentado como um investimento.

Por outro lado, em se tratando exclusivamente dos investimentos em capital físico, a Lei 8.666/93, que regulamenta a forma como são feitas as licitações e, portanto, contratados os serviços e obras públicas no Brasil, precisa de reformas. O processo de licitação tem de ser mais ágil, transparente e mais aberto à ampla concorrência, aí incluídas empresas estrangeiras. A forma como essas obras são fiscalizadas e pagas também deve ser ajustada. Novos processos carecem de reflexão por parte das instituições de controle, no tocante ao encurtamento dos prazos para certidões, medições e demais exigências, de forma a que os cronogramas das obras não sejam atrasados (e, por conseguinte, tenham os preços ajustados). Urge, ainda, ainda pensar-se um sistema de garantias de obras públicas, evitando-se, assim, que uma obra construída reclame tão cedo reparos, com oneração ao Tesouro.

São várias as razões porque o investimento público se tem comportado no curso desta década da maneira como conhecemos. Isto pouco tem a ver com o Novo Regime Fiscal, vigente há poucos anos. Solucionar isto envolve um conjunto de micro reformas a ser considerado após a pandemia. O que não se pode é, a pretexto de fomentar o crescimento e o desenvolvimento social via gasto público, revogar uma regra fiscal conquistada graças ao grande esforço legislativo que legou ao Brasil taxas de juros e inflação historicamente baixas, segundo os padrões nacionais. A PEC do Teto dos Gastos precisa ser preservada.

  • Doutorando em Economia UFU, Visiting Researcher at UBC.

RPD || Andrei Meireles: Queiroz e outros fantasmas do passado que assombram Bolsonaro

Decisão do presidente do STJ, que concedeu prisão domiciliar ao faz-tudo Queiroz, dá um alívio temporário ao presidente Jair Bolsonaro. A investigação é a mais avançada sobre o passado que atormenta o governo Bolsonaro desde a divulgação, antes até mesmo da sua posse

Como habitual nos últimos recessos do Judiciário, o clã Bolsonaro voltou a ganhar algum fôlego com decisão controvertida de um ministro plantonista que não é o juiz natural da causa. Dessa vez, a canetada na quinta-feira (9) foi do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, que acatou pedido da defesa e transferiu Fabrício de Queiroz do presídio em Bangu 8 para prisão domiciliar. Decisão extensiva a Márcia de Aguiar, mulher de Queiroz, que estava foragida, a pretexto de que, fora da cadeia, ela não poderia cuidar do marido, em casa.

O que dizem seus colegas no STJ é que o ministro João Noronha concedeu os benefícios ao casal Queiroz na expectativa de melhorar suas chances na disputa por uma das duas vagas a ser indicada pelo presidente Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal. Com certeza, ele ganhou pontos.

Fabrício Queiroz virou fantasma que assombra os Bolsonaros. Ele sempre foi uma espécie de faz tudo para a família presidencial, cuidava desde a arrecadação à segurança do clã. Montou e operou o esquema das rachadinhas – devolução de parte dos salários por funcionários remunerados com dinheiro público – nos gabinetes parlamentares dos Bolsonaros. O de maior escala foi no gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro em seus mandatos como deputado estadual, no Rio de Janeiro.

Essa é a investigação mais avançada sobre o passado que atormenta o governo Bolsonaro desde a divulgação, antes até mesmo da sua posse. Motivo principal das seguidas pinimbas do presidente da República com a Polícia Federal, que foi a matriz de todas as crises com o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.

Em julho do ano passado, em outro recesso do Judiciário, o ministro Dias Toffoli, presidente do STF, também com canetada polêmica, gerou pandemônio na Justiça ao suspender, a pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro, centenas e centenas de investigações, inquéritos e processos baseados nos relatórios do Coaf. Seis meses depois, a medida foi revogada em uma decisão quase unânime do Supremo, inclusive com o surpreendente voto favorável do próprio Toffoli. Assim, voltou a andar o inquérito das rachadinhas no Rio de Janeiro.

Serviu apenas para atrasar as investigações e trazer para a ribalta Frederick Wassef, um desses advogados que opera mais nos bastidores do que nos tribunais. A decisão do STF foi a senha para Wassef esconder Queiroz em sua casa em Atibaia, passar a monitorar os passos de sua família e tentar controlar outras pistas soltas no passado dos Bolsonaros.

Com sua disciplina militar, e medo real de represálias, Fabrício Queiroz parece não ter perfil para delação premiada. Os investigadores sabem disso. A expectativa deles era conseguir a colaboração da mulher dele, Márcia de Aguiar, ou de sua filha mais velha, Nathalia Queiroz. Márcia escapou de uma prisão preventiva se escondendo durante semanas. A canetada do ministro João Noronha, que também a colocou em prisão domiciliar com o inacreditável argumento de que, assim, ela poderia "cuidar do marido", pelo menos adia qualquer tentativa dos investigadores, de obterem sua confissão.

As provas já de posse do Ministério Público são suficientes para denúncia consistente contra Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz, e todos os demais envolvidos no escândalo da rachadinha. Portanto, a colaboração de Queiroz nesse caso não é decisiva. Ele pode ser problema bem maior para a família Bolsonaro do que nesse esquema de corrupção, que, infelizmente, é generalizado nos parlamentos, em todo o país. Queiroz é o elo exposto de uma ligação ainda não esclarecida com as criminosas milícias policiais no Rio de Janeiro. Essa é uma sombra que também assusta os aliados, principalmente os militares.

A preocupação no entorno dos Bolsonaros, após a decisão do ministro Noronha, é o advogado Frederick Wassef. Ele se sente credor da família e recusa todos os conselhos para submergir. Vaidoso, adora holofotes. Em suas seguidas entrevistas, vem apresentando teses delirantes sobre a morte do capitão miliciano Adriano Nóbrega e as ameaças a Fabrício Queiroz "por forças ocultas". O que mais incomoda o governo é sua dificuldade em dar uma versão crível sobre a sua atuação, em seu papel de "anjo" para os Bolsonaros. Ele não consegue explicar, por exemplo, quem lhe autorizou a comandar a operação clandestina para esconder Queiroz em suas casas em São Paulo.

Outra sombra do passado que acua Bolsonaro é o avanço em diversas frentes sobre o exército de robôs que ajudou a elegê-lo e faz guerra permanente contra todos os seus adversários. Nos inquéritos e na CPI sobre fake news em Brasília, e nas medidas profiláticas tomadas pelas redes sociais Facebook e Instagram, a tropa montada pelo filho Carlos Bolsonaro, o 02, está sob intenso tiroteio.

Todos esses imbróglios, somados à demissão de Sérgio Moro, que entrou no governo como avalista do combate à corrupção e saiu atirando em Jair Bolsonaro, estão causando rombo no apoio popular ao presidente. Nos números absolutos nas pesquisas de opinião pública, a queda nem foi tão expressiva. Mas, se lidas com atenção, elas mostram que o tombo só não foi maior porque os desiludidos com Bolsonaro foram em parte momentaneamente substituídos por um contingente de pessoas satisfeitas com o pagamento do auxílio emergencial durante a pandemia. Só que é uma ajuda transitória.

*Andrei Meireles é jornalista.


Capital Político: Jungmann fala sobre militares, controle da PF e defende semiparlamentarismo

Em entrevista ao Capital Político, o ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, defendeu a autonomia da Polícia Federal, mas com uma reforma no sistema de controles interno e externo da instituição. Ele defende a indicação de um diretor-geral pelo presidente da República, sabatinado pelo Congresso Nacional e com mandato fixo, entre outras mudanças.

Também ex-ministro da Defesa, ele considera que a numerosa presença militar no atual governo tem duas faces. A positiva é o preparo consistente dos quadros profissionais das Forças Armadas, que empresta qualidade à gestão. A negativa é o risco de contaminação política com as presenças de quadros ainda na ativa.

Jungmann acha que o sistema presidencialista brasileiro, conhecido como de coalizão, esgotou-se, tornou-se de colisão, e é preciso começar o debate de alternativas, como o parlamentarismo ou um semipresidencialismo. A sucessão de 2022 estará condicionada à conta dos efeitos da pandemia: “Vamos ver no colo de quem cai essa conta”, disse, depois de considerar que é forte a chance de ser cobrada ao presidente da República.

O ex-ministro acha que o ressurgimento de uma força política mais ao centro pode demorar ainda, pois sofreu mais os efeitos do desgaste político trazido pelo advento das redes sociais e do questionamento da representatividade tradicional.

Considera que a política externa é o grande déficit do atual governo e que o caso Queiroz e os inquéritos sobre as Fake News podem trazer desgaste ainda maior ao presidente Bolsonaro. O ex-ministro disse que o gabinete do ódio, enfim, restou comprovado.

Vê com preocupação a ruptura da União com os Estados no plano da segurança pública, agravada pela extinção do ministério que comandou no governo Temer, e a consequente descontinuidade dos pilares de uma política de integração que deixou concluída e patrocinada para seu sucessor.

Veja no vídeo abaixo a íntegra da entrevista:


Eliane Cantanhêde: Meia volta, volver

Bolsonaro não desdiz o que disse, mas começa a desfazer o que fez em educação, saúde…

Depois do desmanche de saúde, educação, meio ambiente, cultura e política externa, o presidente Jair Bolsonaro não desdiz o que disse, mas começa a desfazer o que fez e “desnomear” quem nomeou. Não é fácil. Saem os agentes do desmanche, mas o comandante, as convicções e as crenças ficam. E continuam sem nenhuma conexão com a ciência e a realidade, ainda envoltos por fantasmas e ideologia.

Na Educação, Abraham Weintraub já foi tarde e o presidente se viu diante de uma enxurrada de nomes para o MEC, mas nenhum animador. Que educador com experiência, belo currículo real e respeito na comunidade acadêmica aceita pular num governo que vive às turras com tudo e todos e detesta o MEC, considerado um antro com mais de 90% de esquerdistas e comunistas? Então, foi por exclusão. Se não tem tu, vai de tu mesmo: um pastor conservador.

Pastor e professor, Milton Ribeiro já assumiu ontem cercado de desconfianças. Crianças têm de aprender “com dor”? Assassino de mulher “confunde paixão com amor”? A “balbúrdia” nas universidades, como definiu Weintraub, leva ao “sexo sem limite”? Conclusão: sobram ideias extravagantes, faltam experiência e concepção de política educacional. A esperança é ele cumprir as promessas de “diálogo” e “Estado laico”, além de caprichar na equipe.

A mesma dificuldade de nomes ocorre nas demais áreas vítimas de desmanche. Que médico com nome e biografia a zelar assume a Saúde para fazer tudo o que seu mestre (doutor, epidemiologista, cientista…) Jair Bolsonaro mandar? Que epidemiologista, cientista ou homem público sério admite guerrear contra o isolamento e as máscaras e a favor da cloroquina? Só se for do Centrão ou da Bancada da Bala. A da Bíblia já foi contemplada no MEC.

A sucessão na Saúde ganhou urgência não pela dupla crise (pandemia e condução da pandemia), mas porque o ministro do STF Gilmar Mendes botou o dedo na ferida: a associação do Exército com os erros gritantes de Bolsonaro. Se tivesse falado em “fracasso” ou “tragédia”, não “genocídio”, quem discordaria? Assim, o general Eduardo Pazuello, que tinha decidido ficar na ativa e voltar para a tropa em setembro, vai ter de se antecipar. O Alto Comando do Exército, em 26 de junho, não promoveu ninguém para sua vaga de general. Ela está aberta, esperando a volta dele. E a Saúde está fechada, dependendo da saída.

No Meio Ambiente, a pressão de fundos internacionais, bancos, empresas e agronegócio nacionais, ex-ministros da Economia e ex-presidentes do BC produz consequências: o governo começa a entender que o ambiente não é inimigo, mas aliado essencial do desenvolvimento. Detalhe: quanto mais Bolsonaro se recolhe, pela trégua política e a covid-19, mais o vice Hamilton Mourão se expõe.

E Ricardo Salles? Pairando sobre os escombros da política ambiental, pisoteada por ideologia, preconceito e a famosa “boiada” da reunião de 22 de abril. A queda de Salles é mais dia, menos dia, e o problema é… o sucessor. Não é fácil encontrar um ambientalista capaz de virar sombra de Mourão e conviver com o desprezo de Bolsonaro para o setor. Quem dedicou a vida à preservação da Amazônia e das comunidades indígenas topa assumir a política de destruição assumida pelo presidente? E com o Ibama e o ICMBio na lona, o Inpe sob ataque? Aliás, Salles encheu a pasta de militares, Mourão usa militares na Amazônia.

Na Cultura, após sucessivos vexames, incluindo um secretário nazistoide, Bolsonaro meteu um amigo dos filhos, o ator Mário Frias, e trancou a porta. Ninguém mais vê, ouve ou fala de cultura. Um “problema” a menos. E no Itamaraty? A crise tem data, a da eleição nos EUA. Com vitória de Trump, Ernesto Araújo tem chance pequena. Com derrota, chance zero.


Bruno Boghossian: Nova CPMF é símbolo do vazio de ideias da equipe econômica

Guedes e auxiliares já levantaram nove vezes o plano de um imposto sobre transações

A equipe econômica adotou o tumulto como método de trabalho. No vazio de ideias para impulsionar a atividade no país, o time de Paulo Guedes se habituou a lançar planos exóticos, que não saem do papel, ou ideias tão impopulares que só podem ter sido elaboradas por quem quer atrapalhar o governo.

O fantasma de um tributo nos moldes da antiga CPMF é um exemplo dessa autossabotagem. Nesta semana, Guedes voltou a citar a proposta de cobrança sobre transações. O ministro reconheceu que o imposto “é feio”, mas tentou emplacar a ideia para aliviar a carga cobrada de empresários sobre folhas de pagamento.

O roteiro se repete desde 2018. Em setembro, o economista disse num encontro privado que planejava cobrar um tributo sobre pagamentos. A agitação tomou a campanha de Jair Bolsonaro. O candidato quis bater na imprensa, mas deu uma paulada indireta na proposta do assessor.

“Ignorem essas notícias mal-intencionadas dizendo que pretendermos recriar a CPMF. Não procede. Querem criar pânico, pois estão em pânico com nossa chance de vitória”, escreveu Bolsonaro.

Desde então, Guedes e seus auxiliares levantaram a ideia do tributo outras oito vezes. O plano derrubou um secretário da Receita no primeiro ano do governo e foi se metamorfoseando. O ministro tentou mudar o nome do imposto, reduziu a alíquota e falou até em usar o dinheiro arrecadado para bancar a versão repaginada do Bolsa Família.

Guedes ainda precisa convencer o chefe. Em campanha, Bolsonaro afirmava que o plano de uma nova CPMF era “mentiroso e irresponsável”. Depois, disse estar disposto a conversar sobre o assunto. Para contornar as resistências, o governo quer que seus novos aliados do centrão abracem essa ideia.

O imposto sobre transações é o ramo podre de uma reforma tributária prometida e nunca apresentada pela equipe econômica. Em setembro, o ministro anunciou que entregaria o texto “na semana que vem”. Já se passaram quase 300 dias.


Reinaldo Azevedo: Governo militar não funciona, com ou sem eleição

Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às tropas

A representação à PGR de Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, contra o ministro Gilmar Mendes, do STF, apelando à Lei de Segurança Nacional e ao Código Penal Militar, tem o odor inequívoco de república bananeira. É o general que sobrevoou a Praça dos Três Poderes num helicóptero de combate quando, em solo, fascistoides pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo.

Os militares decidiram sair dos quartéis para colonizar o governo. A janela se abriu com a eleição de Jair Bolsonaro à esteira da razia provocada pelos desmandos da Lava Jato. O resultado é um desastre de proporções amazônicas. A institucionalidade trincada nos conduziu à terra dos mortos --desmatada e queimada. Já fiz neste espaço, no dia 10 de maio, uma exortação: voltem para os quartéis, soldados! Agora outro convite: chega de autoengano, colegas analistas!

Muitos de nós cometeram o erro de imaginar que os militares graúdos da reserva e da ativa estão com Bolsonaro para conter sua criatividade destruidora. Os fatos desmentem a esperança, que, nesse governo, deve sempre ficar de fora.

Luiz Eduardo Ramos, o general (!) da coordenação política que só agora pede passagem para a reserva, afirmou em entrevista que especular sobre golpe é "ultrajante". Mas fez uma advertência: convém não "esticar a corda". E o que seria esticá-la? Respondeu: "Um julgamento casuístico".

Em nota, presidente, vice e ministro da Defesa alertaram: "As FFAA do Brasil não cumprem ordens absurdas" e "não aceitam (…) a tomada de poder (…) por conta de julgamentos políticos". Nos dois casos, os fardados se colocam como juízes dos juízes. Isso é ultrajante.

Acabou a tutela! A democracia não é uma concessão que militares fazem a civis. A força armada existe para nos proteger, não para nos ameaçar.

Mendes teve a serena ousadia de chamar pelo nome, ainda que num exercício hiperbólico, aquilo a que se assiste no país, segundo o que define o Estatuto de Roma, que orienta os julgamentos do Tribunal Penal Internacional: genocídio.

E o Exército "se associa", verbo empregado pelo ministro, à tragédia porque à frente da Saúde está um general da ativa --Eduardo Pazuello-- cuja incompetência se conta em cadáveres: quase 80 mil.

Para os muitos exigentes em matéria de genocídio: o morticínio em massa tem cor e classe majoritárias: preta e pobre.

E lá veio a voz surda da ameaça em notas e cochichos, a exemplo do malfadado tuíte de 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, ameaçou o STF caso concedesse o habeas corpus a Lula, o que, por 6 a 5, não aconteceu, contrariando a Constituição. Os militares ganharam balda. Conseguiram, por exemplo, um dos planos de aposentadoria mais generosos do mundo mesmo nesta terra devastada, do genocídio cordial sem hipérbole.

Mendes, na verdade, defendeu a honra do Exército, que não é propriedade dessa geração do oficialato. Como instituição permanente e regular, pertence ao povo. É preciso, se for o caso, preservá-lo do erro de alguns generais que confundem sua pantomima pessoal com a história da Força.

Não haverá golpe, não é mesmo, senhores? A tragédia da Covid-19 e a crise ambiental, que tem a Amazônia como epicentro, são, antes de tudo, desastres da gestão militar. Tornam o país pária no mundo. Golpe em nome do quê? Condecorem Mendes, que não acusou o Exército de praticar genocídio. Ele cobrou que a Força não se associe ao desastre.

Só para lembrar: Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos e da máquina de guerra mais poderosa da Terra, teve a humildade de se desculpar com o povo americano por ter sido flagrado numa foto ao lado de Donald Trump, em situação política incômoda.

Quem pode se impor militarmente ao mundo se desculpa com seu povo por um ato errado. Quem é ignorado por este mesmo mundo se impõe militarmente a seu próprio povo.

Descolonizem o governo, senhores! Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às respectivas tropas. Como se nota, governo militar não funciona. Com ou sem eleição.


Míriam Leitão: Difícil caminho fiscal do Brasil

O ajuste fiscal será feito por um governo que saiba dialogar e construir consenso. A vida é diferente das metáforas de Paulo Guedes

O Brasil tem que aproveitar a janela de oportunidade dada pelos juros baixos, o único item de despesa que diminuiu. Todas aumentaram, inclusive a previdência, que terá uma alta do déficit de mais de 1% do PIB neste primeiro ano da reforma. A janela pode ficar aberta por alguns anos, mas esse tempo pode se encurtar e ser apenas de alguns meses se o país cometer erros. Aproveitá-la é usar o tempo para conduzir um diálogo político e construir consensos. Isso é muito difícil com um governo espinhoso como este.

O Brasil entrou num período de déficit primário em 2014 e não tem chance de sair dele durante todo este mandato. A dívida terminará este ano em 98%, e o déficit primário, em 12% do PIB, um rombo gigante de R$ 800 bilhões. A ideia dentro do próprio governo é que, se não recuperar parte da arrecadação que vai perder, o país só verá a volta do superávit primário no fim do próximo governo, do presidente que ainda não foi eleito, e isso mesmo cumprindo o teto de gastos.

Na imagem que o ministro Paulo Guedes criou, ele é um conquistador de torres. Costuma repetir a história de que ele “derrubou a primeira torre, dos juros altos, e depois derrubou a segunda torre, da previdência”. A vida real é diferente das metáforas de Paulo Guedes.

Os juros foram derrubados no governo Temer. De 14,25% para 6,5%. Isso tornou a dívida bem mais barata. Essa queda continuou com Bolsonaro e agora despencou por causa da crise. Mas se o governo não mostrar capacidade de enfrentar os problemas fiscais brasileiros os juros subirão.

Quanto à segunda torre. Apesar da reforma, o gasto previdenciário subirá este ano como proporção do PIB. No RGPS, a despesa deve pular de 8,6% para 9,6% do PIB. No RPPS, deve ir de quase 5%, quando se junta o federal com estados e municípios, para 5,5%. Isso porque a despesa não caiu e o PIB encolheu. E é essa relação entre gasto e PIB que entra na conta. Tem mais um problema: a base de tributação caiu, porque empresas fecharam, empregos estão sendo perdidos.

O governo diz que a reforma administrativa não foi feita porque veio a pandemia. Não foi assim também. A reforma foi preparada, mas o presidente não quis enviá-la, apesar de muita insistência do ministro da Economia. A reforma tributária está sendo formulada desde o começo do governo mas ainda não foi para o Congresso, onde tramitam apenas duas formas de reorganizar o pagamento dos impostos sobre o consumo. O impasse tem a ver com a insistência do ministro, que gostaria de recriar um imposto sobre transações, sobre pagamentos, alguma coisa qualquer que funcione como a CPMF.

O que os especialistas em contas públicas dizem é que qualquer que seja o caminho do ajuste ele exige necessariamente muito diálogo entre executivo e legislativo, entre governo e sociedade. Tem que ir para o debate político disposto a ouvir, a trabalhar para construir o diagnóstico. Tem que ter calma e dialogar muito nos próximos meses. E este governo não sabe dialogar. O ministro da Economia não dá uma entrevista sem espalhar espetadas. E vai deixando mágoas.

Não é verdade a versão de que a reforma da Previdência foi aprovada porque este governo foi melhor do que os anteriores. O fato é que o debate foi amadurecendo, principalmente no período Temer. E o Congresso se esforçou apesar de o presidente Bolsonaro só ter se mobilizado para defender os grupos de interesse que sempre representou como deputado: policiais e militares.

O país vai reequilibrar as contas por onde? Vai criar imposto? Se for isso, terá que ficar claro. Vai reduzir os subsídios? Durante a campanha, Paulo Guedes falava que acabaria com os gastos tributários que são mais de R$ 300 bilhões. Essa agenda não andou. Na conta de redução de subsídios, de novo, o governo Temer, quando criou a TLP, deu um passo relevante.

Durante a campanha eleitoral, cada vez que um economista de qualquer campanha falava em reduzir as isenções e vantagens tributárias, eu pedia exemplos. Ninguém respondia assertivamente. Isso porque o maior gasto tributário é o Simples, outro enorme é o da Zona Franca de Manaus.

Existem também as isenções no Imposto de Renda Pessoa Física. Mexer em qualquer ponto desse exige um governo que saiba construir consensos. Este governo não sabe, muito menos depois de ter se comportado tão mal durante a pandemia.


Vinicius Torres Freire: Guedes passeia no Congresso com CPMF fantasiada e tenta virar o jogo tributário

Guedes insiste no imposto; jogo no Congresso mudou e pode haver novidades tributárias

Uma CPMF não passa no Congresso, estamos cansados de ouvir. Mas deputados dizem que querem conhecer esse imposto sobre pagamentos digitais ou comércio eletrônico de Paulo Guedes. Dizem também que está mais complicado passar uma reforma tributária ampla, como quer Rodrigo Maia, sem negociações maiores com o governo, porque o “jogo político mudou um pouco”.

Jair Bolsonaro conta agora com um bloco de uns 180 deputados, gente do centrão e agregados. É um juntado sem grandes convicções de qualquer espécie, mas que deve cumprir em parte o acordo no qual levou cargos no governo.

Guedes tem cantado deputados do centrão, mais exatamente do PP e do PL, com promessas de trocar a aprovação do seu imposto digital por redução de tributos sobre folha de pagamento ou por um programa mais gordo de renda básica.

Essa promessa de engordar a renda básica com receita e despesa novas não faz sentido a não ser que: 1) se estoure o teto de gastos; 2) se reduza a despesa com servidores; 3) se reduza o investimento em obras a quase zero.

O governo pretende acabar com benefícios como o abono salarial, por exemplo, a fim de destinar mais dinheiro para o que chama de Renda Brasil. Para tanto, não precisa de mais imposto. Derrubar o teto de gastos está fora de cogitação.

Foi para a gaveta a emenda constitucional de redução “emergencial” de despesa com servidores e benefícios atrelados ao salário mínimo. A reforma administrativa foi adiada sine die e não deve bulir com funcionários já contratados, ordenou Bolsonaro.

Reduzir o investimento a quase zero é possível e compatível com o projeto de destruição do país, mas um terço dessa despesa é determinada por emendas parlamentares e outro tanto também atende a interesses políticos locais. Logo, desse mato não deve sair nem um cachorro magro.

Bolsonaro vetou a lei que prorrogava até o final de 2021 a redução de impostos sobre a folha de alguns setores, o que irritou a Câmara. Guedes pede a parlamentares que não derrubem o veto porque “vem aí” uma desoneração maior da folha, que seria compensada pelo imposto digital, caso Bolsonaro não vete a ideia assim que sair de seu catre.

Este jornalista ouviu 14 parlamentares dados a assuntos econômicos. Ninguém soube dizer o que seria o tal imposto digital. Aceitam ouvir a nova proposta de Guedes desde que não seja CPMF disfarçada.

Maia quer tocar a ampla reforma de unificação de tributos desde já. Mas tem problemas novos: 1) o Senado quer tratar do assunto apenas a partir de agosto e pode não engolir uma reforma da Câmara; 2) setembro é mês de convenções partidárias e início da campanha eleitoral; 3) há muito mais deputados no time do Planalto. Ainda não estreou, mas pode jogar na retranca de interesses de Bolsonaro.

Ou seja, o tempo para a reforma é curto e a resistência política pode ser maior.

A disputa entre empresas a respeito de quem paga a conta da mudança tributária pode ser mais renhida. O setor de serviços tenderia a pagar mais impostos na reforma “ampla”; arrebentou-se muito na crise do vírus. No Congresso, há conversas sobre impostos novos, sobre ricos, lucros, empresas “Big Tech”. Há mais ruído e grande interesse em criar uma renda básica mais ampla que o Bolsa Família.

A pelada está mais cadenciada, embora possa haver um revertério caso voltem as botinadas golpistas ou apareçam cartões vermelhos nas investigações judiciais. Mas o jogo mudou, nestes 33 minutos do primeiro tempo do governo Bolsonaro.


Bernardo Mello Franco: Ao assumir o MEC, pastor esqueceu o principal

O Brasil terá o quarto ministro da Educação em um ano e meio. O pastor Milton Ribeiro tomou posse ontem, em cerimônia fechada no Planalto. Ele comandará uma pasta estratégica, que o bolsonarismo tenta reduzir a um aparato de guerra cultural.

O capitão já submeteu o MEC à inépcia de Ricardo Vélez e aos delírios de Abraham Weintraub. Os dois estavam mais preocupados em caçar comunistas do que em cuidar dos estudantes. No fim de junho, anunciou-se a nomeação de Carlos Decotelli. O professor caiu antes da posse, embrulhado em diplomas imaginários.

Com esses antecessores, Ribeiro não precisaria fazer muito para se destacar. Mesmo assim, sua primeira impressão foi desanimadora. Em vídeos que circularam nos últimos dias, o novo ministro revela ideias retrógradas e preconceituosas.

Falando a fiéis de sua igreja, ele disse não acreditar em “métodos suaves” na educação. As crianças precisariam “sentir dor” para aprender. Em outra gravação, Ribeiro reclamou da pílula e disse que as universidades ensinam a “prática sem limites do sexo”. Passei quatro anos numa federal e não tive a chance de acompanhar essas aulas.

Na posse, o pastor se esforçou para desdizer o que disse. “Jamais falei em violência física na educação escolar e nunca defenderei tal prática”, discursou. Mais adiante, ele afirmou ter compromisso com a laicidade do Estado. Não se trata de uma escolha: é um princípio básico da democracia, assegurado pela Constituição.

Do que interessa, Ribeiro falou pouco. Ele acenou com diálogo, prometeu restaurar a autoridade do professor e se disse “entristecido” com o desempenho do Brasil em exames internacionais. Ainda teve tempo de contar que sua sogra dirigiu uma escola, mas não mencionou a pandemia do coronavírus.

Desde março, milhões de estudantes brasileiros estão em casa. Coordenar a volta às aulas deveria ser o principal desafio da pasta. “Até aqui, o MEC esteve completamente ausente desse debate”, lamenta a professora Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV. Ontem o novo ministro simplesmente ignorou o assunto.


Fernando Abrucio: A encruzilhada ideológica de Bolsonaro

O presidente quer ser um “mito” para seus seguidores ou continuar a governar o país? Depois da pandemia, será cada vez mais difícil assumir os dois papéis

As batalhas políticas do primeiro semestre deixaram marcas no governo Bolsonaro. Para que ele sobreviva e possa continuar com prestígio até o fim do mandato, mantendo alguma esperança de reeleição, precisará escolher com quem governar e de que modo. Caberá à Presidência escolher um caminho de governabilidade que reduza os efeitos danosos das contradições existentes entre seus apoiadores. Em poucas palavras, trata-se de uma encruzilhada entre dois conservadorismos, um de cunho revolucionário e outro, de viés tradicional. Juntar os dois por muito tempo será uma tarefa quase impossível.

A expressão conservadorismo revolucionário parece uma contradição em termos. Afinal, quando ser quer conservar, não se pretende fazer mudanças amplas e bruscas. Porém, o novo populismo de extrema-direita, presente em vários países e no bolsonarismo-raiz, tem como projeto enfraquecer ou destruir todas as instituições políticas de caráter liberal-democrático. Seus motes são a antipolítica, a luta contra o establishment globalista e a redução ao máximo da pluralidade ideológica, em especial com o aniquilamento da esquerda - os comunistas, classificação na qual cabe até George Soros.

Todas essas ideias visam à concentração do poder num líder carismático capaz de liderar uma revolução cultural baseada em valores mais conservadores (família patriarcal, religião e nacionalismo) que se somam ao culto à violência e a um individualismo darwinista, isto é, uma liberdade para os que mais fortes vençam. Esse é o ideário produzido pelos inspiradores intelectuais do bolsonarismo. É possível levar adiante esse conservadorismo revolucionário destruindo mais ou menos a democracia. De todo modo, a forma revolucionária de agir dos bolsonaristas-raiz exige que se cause turbulências contínuas no sistema político e nas principais instituições sociais, como a escola e os meios de comunicação de massa.

Os últimos seis meses foram repletos de acontecimentos políticos e sociais que colocaram a maior parte da população e as principais instituições contra Bolsonaro, limitando seus arroubos autoritários. O resultado dessa derrota bolsonarista colocou em jogo até a sobrevivência do presidente no cargo, além da forte pressão judicial contra seus filhos e apoiadores. Para manter seu mandato e continuar sendo peça-chave no tabuleiro político, Bolsonaro teve que se ancorar mais num outro grupo conservador, que é tradicional no Brasil há muito tempo.

Uma parte desse conservadorismo já estava próxima do bolsonarismo: os evangélicos, que tendem a ganhar mais prestígio daqui para diante. Mas havia uma outra parcela que estava fora do circulo mais íntimo do poder: o chamado Centrão, composto por políticos de vários partidos de direita e centro-direita. Trata-se de um bloco que varia de tamanho dependendo dos recursos que são distribuídos e do contexto político. O que os une é a combinação de fisiologismo com o realismo. Os parlamentares desse centrismo invertebrado apoiaram FHC e Lula, de modo que, embora professem valores geralmente conservadores, optam pelo apoio a quem lhes dá vantagens eleitorais. Dito de outro modo, não basta que Bolsonaro comungue das mesmas ideias morais. Será necessário entregar poder aos novos aliados e bem-estar a seus eleitores.

A convivência entre os dois conservadorismos ficará cada vez mais difícil dentro do governo Bolsonaro. É óbvio que o presidente vai tentar agradar aos dois lados, mas essa estratégia tem limites porque o grupo revolucionário é ideológico por excelência e terá dificuldades de aceitar o pragmatismo político dos conservadores tradicionais, e vice-versa. A batalha se tornará ainda mais forte porque houve um enfraquecimento do bolsonarismo-raiz e ele dificilmente responderá aos desafios do período pós-Covid-19.

Entre os fatores que enfraqueceram os conservadores revolucionários, quatro se destacam. O primeiro foi a derrota do discurso negacionista e anti-humanista frente à pandemia. A maioria da população ficou do lado da ciência, o sistema de Justiça amarrou as mãos de Bolsonaro no comando da política de Saúde e o número de mortes, que ainda se multiplicará nos próximos meses, deixará marcas em parcela importante da sociedade.

Derivado desse primeiro fator, um segundo elemento tende dificultar o uso da bússola do conservadorismo revolucionário: os eleitores, os políticos do Congresso, a comunidade internacional e mesmo os agentes do mercado local vão cobrar cada vez mais resultados das políticas públicas. Dois exemplos ilustram bem essa situação. No caso da política ambiental, o fracasso de suas ações vai ter terríveis consequências econômicas. Deixariam de vir investimentos internacionais para o país. A área de infraestrutura, que precisará da alavanca de capital estrangeiro, ficará a ver navios. E há ainda o grande risco do negacionismo ambiental impactar as exportações do país, especialmente do agronegócio.

O governo Bolsonaro terá que obter credibilidade internacional e mostrar resultados nas políticas de proteção ao meio ambiente. Para isso, terá de fortalecer decisões técnicas e se livrar dos conservadores revolucionários - que se mostraram, ademais, incompetentes. Vale frisar que além de melhorar os indicadores do país, será preciso reconquistar a confiança, algo que exigirá a criação de canais de diálogo com, pelo menos, uma parcela dos ambientalistas. Sem isso, o mundo não acreditará no Brasil. Uma mudança como essa exige pragmatismo e rechaço a ideologias.

A Educação é outro setor no qual o conservadorismo revolucionário só produziu destruição até agora, com efeitos na piora da qualidade e equidade do ensino que provavelmente apenas serão percebidos no médio prazo (talvez depois desse mandato), mas com efeitos políticos já de curto prazo. A lista de descontentes no atual momento é extensa. Famílias cujos filhos voltarão a escolas públicas em condições precárias; jovens que estão fazendo ou saindo do ensino médio e que ficaram descontentes com todo o processo de escolha das novas datas do Enem; integrantes das universidades públicas, que hoje combinam eleitores de classe média (professores e alunos) com uma parcela crescente advinda das cotas sociais e raciais, e das instituições privadas, onde os alunos estão abandonando cada vez mais os estudos por falta de recursos; e, finalmente, prefeitos, governadores e políticos locais de vários partidos, pois eles serão mais cobrados pela sociedade e não têm tido o apoio federal necessário.

Daqui pra frente, as falhas em políticas públicas vão ficar mais evidentes. Com um ano e meio de governo, o bolsonarismo, tomado principalmente pelo conservadorismo revolucionário, não foi capaz de melhorar ou produzir alternativas ao modelo vigente, de modo que chegará a hora e a vez dos cidadãos cobrarem mais pelos serviços públicos e pelos resultados das políticas. O Centrão sabe disso e, por isso, logo, logo, além de cargos, demandará mais pragmatismo ao presidente para continuar no seu barco.

Um terceiro fator que colocará o bolosonarismo-raiz em frágil situação serão as pressões internacionais. Elas tendem a aumentar porque o Brasil se tornou um pária para parte da comunidade internacional, por conta de seus fracassos nas áreas de saúde, meio ambiente e direitos humanos, bem como em razão de sua postura contrária às ações multilaterais. O impacto internacional sobre o conservadorismo revolucionário virá, ainda, do enfraquecimento recente da extrema-direita em vários lugares do mundo. E se Trump perder a eleição presidencial, Bolsonaro terá de dizer que nem conhece seus amigos radicais.

Mas a maior derrota do extremistas que deram base ao bolsonarismo está no campo das instituições democráticas. O projeto mais autoritário advindo daí ganhou limites fortes, embora não se possa negar que Bolsonaro ainda tentará controlar instituições importantes, como no caso do Ministério Público Federal. Só que os conflitos institucionais vão permanecer, sobretudo porque há muitos esqueletos no armário da família Bolsonaro. Desse modo, não será mais possível permanecer no poder e, principalmente, governar, sem ser pragmático em relação às principais instituições políticas.

Nesta encruzilhada ideológica, a sobrevivência do bolsonarismo parece depender de sua migração mais explicita para o conservadorismo tradicional. O discurso em relação aos valores pode ser mantido, embora deva ser expresso de uma forma mais amena, mas será necessário negociar mais e evitar o extremismo nas políticas públicas. O Centrão quer o voto do povão, e não revoluções culturais.

Abandonar o conservadorismo revolucionário não é tão simples, todavia. Essa mudança traz basicamente dois custos: a possível perda de apoiadores mais fiéis e, especialmente, o fato de que o discurso antipolítica se tornará cada vez mais “fake” junto ao eleitorado em geral. Fica a pergunta: Bolsonaro quer ser um mito para seus seguidores ou continuar governando o Brasil? Depois da pandemia, talvez seja cada vez mais difícil assumir os dois papéis, mas, conhecendo a personalidade do presidente (e de seus filhos), ainda não é possível dizer qual caminho ele irá adotar.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas