Day: abril 17, 2020

Hamilton Garcia: A covid-19, os interesses e a política

Faz um mês estamos imersos em intensa discussão sobre a COVID-19, sob a ótica dos infectologistas e epidemiologistas, o que foi importantíssimo para aprendermos como lidar com a moléstia e sua propagação – não obstante as inevitáveis tolices, como a da ineficácia das máscaras para a proteção individual e coletiva. Aprendida a lição, cuja divulgação não pode cessar, é chegada a hora de abrirmos o leque da discussão sobre a pandemia, sobretudo em relação a seus efeitos de médio e longo-prazos.

Tornada pública em dezembro de 2019 pelas autoridades chinesas – depois de três semanas de abafamento por meio de prisões e censura[i] –, a epidemia está provocando, além de muitas mortes, um colapso nas economias, em escala mundial, cujos desdobramentos políticos ainda são incertos. O consenso é que sérias consequências sociais advirão do esforço de contenção da doença, embora se esteja longe de qualquer convergência programática de como lidar com o problema.

A crença ingênua de que a emergência faria cessar a disputa entre indivíduos e povos pela supremacia não resiste à simples observação da vida cotidiana. Ao contrário, o medo e as incertezas se constituem em ingredientes ainda mais picantes em meio aos dilemas e desafios políticos e econômicos que o mundo e o Brasil já vinham enfrentando, onde as fraturas entre sociedade e Estado apresentam cenários potencialmente explosivos de solução.

No caso brasileiro, o Governo Bolsonaro saiu em desvantagem ao menosprezar os sinais vindos do exterior e tentar minimizar os riscos e custos locais da epidemia – mesmo sendo observador privilegiado do erro dos governos europeus, enredados em querelas ideológicas sobre a globalização –, deixando seu Ministério sem rumo e o terreno aberto aos opositores acantonados nos Governos estaduais e no Congresso.

Já em fevereiro, a evolução da COVID-19 no Irã e na Itália chamavam atenção pelo crescimento rápido dos casos e mortes, e, embora o intercâmbio turístico entre Brasil e Itália fosse intenso, o Governo, por meio do Ministério da Saúde, se limitou a alterar a definição de casos suspeitos, incluindo pacientes provenientes destes países – no mesmo dia, o primeiro caso, importado da Itália, foi identificado em São Paulo[ii] –, deixando abertos portos e aeroportos sem qualquer alerta ou triagem sanitária, possibilitando a penetração livre do vírus no país.

A medida capital para frear o início da doença, em todos os países depois da China – e tempo, nesses casos, é vida, como se viu no bem sucedido caso alemão[iii] –, seria o confinamento temporário dos viajantes e/ou o fechamentos das fronteiras, o que, àquela altura, parecia inconcebível pelo perfil do público afetado (turistas e negociantes) e pelas políticas abusivas das empresas aéreas e hoteleiras, resistentes ao cancelamento/adiamento das viagens. A resistência também vinha dos devotos da globalização, que tachavam a medida de xenófoba e inócua, como fez o comentarista Demétrio Magnoli, na GloboNews, às vésperas do fechamento das fronteiras europeias, críticando os líderes da extrema-direita europeia nos seguintes termos: “o vírus não tem nação”.

As névoas ideológicas não cessariam, desde então, de prejudicar a discussão sobre o combate à pandemia e Bolsonaro não deixaria de se contrapor à torrente dominante (politicamente correta) com sua própria crença (politicamente incorreta), embora ambas, como dizia Marx&Engels[iv] há 174 anos, "de modo algum combatem o mundo real lutando contra a 'fraseologia' do mundo".

Os erros estratégicos do Governo e o desprezo do Presidente pela “gripezinha”, todavia, são apenas parte da explicação do problema. Em boa medida, ele e outros líderes mundiais se viram diante de poderosos interesses econômicos e de classe que os constrangeram no enfrentamento do problema ainda em fevereiro, quando os boletins epidemiológicos[v] já registravam sinais do poder de disseminação do vírus pelo mundo. China excetuada, dos 37 casos confirmados, no dia 04/02, em 11 países, sem óbitos, pulava-se para 216 casos confirmados, no dia 12/02, em 24 países, com um óbito, saltando-se para 1.200 casos confirmados, no dia 21/02, em 26 países, com oito óbitos.

Os interesses em questão giravam em torno das cadeias econômicas globalizadas, em particular o turismo que representa 10,4% do PIB mundial (US$8,8 trilhões) e emprega 319 milhões de pessoas, tendo os EUA a UE como principais destinos. No Brasil, embora menores, os números são igualmente significativos: 8,1% do PIB (US$152,5 bilhões) e 6,9 milhões de empregados[vi]. Tais interesses, contrários às medidas restritivas ao fluxo de viajantes, tiveram no Prefeito de Milão (Giuseppe Sala), do Partido Democrático, seu momento emblemático com sua malfadada campanha “Milão não para”, que chafurdou o Norte da Itália no caos hospitalar, para seus padrões.

O problema econômico seria uma explicação suficiente para o titubeio da maioria dos governos pelo mundo, mas deve-se acrescentar outra, não menos importante, de cunho ideológico e mesmo afetivo, que fez governos progressistas europeus, em guerra com a extrema-direita, verem o vírus como um estorvo às suas causas liberais, ao mesmo tempo que as classes altas faziam vista grossa às ameaças ao seu estilo de vida, baseado no consumo de luxo, da qual faz parte o turismo internacional. Neste quesito, a China se saiu bem melhor, não titubeando em fechar suas fronteiras assim que deixou de ser exportadora e se tornou importadora de casos.

Embaraçados por esses e outros constrangimentos, e com a proliferação da doença em meados de março, restou aos governantes correr atrás do prejuízo, inclusive no Brasil, impondo a quarentena horizontal como medida de emergência para por freio à avalanche prenunciada, sem planejamento ou medidas preparatórias para o fechamento de escolas, universidades, comércios, etc., tudo feito de supetão numa sexta-feira treze.

O problema pôde ser minorado, até aqui, por nossa condição de economia periférica, relativamente fechada, onde a população se distribui em vasto território por meio de precária rede de transporte, e cujas diferenças de classe produzem distanciamento social permanente sem a necessidade de decretos governamentais, para não falarmos na limitação da renda e das condições climáticas – a epidemia, aqui, teve início no verão –, fatores inicialmente inibidores do ritmo da proliferação viral, embora também potencializadores do tempo de sua duração.

O saldo final dos fatores, entre outros aqui não abordados (demográficos, comportamentais, políticos, etc.), aponta para um impacto da doença, até aqui, inferior aos padrões internacionais, em termos de mortes e hospitalizados.

Todavia, os mesmos fatores também indicam a probabilidade de um hiato entre as curvas, fazendo com que não só tenhamos curvas epidemiológicas mais socialmente segmentadas (classes altas, médias e baixas), como intervalos maiores entre elas, alongando a tensão temporal da crise e abrindo espaço para o esgotamento financeiro e psicológico dos setores mais vulneráveis, que entraram na quarentena em março quando só os mais ricos estavam sendo afetados, o que já impactou o isolamento/distanciamento social no momento em que ele é mais importante para os pobres.

Caso tal hipótese esteja correta, a quarentena precoce das classes populares, nas periferias urbanas e no interior, deverá entrar no rol dos erros estratégicos dos epidemiologistas, tanto pela ausência de modelos que levem em conta nossas especificidades, como pela subestimação de medidas cruciais como as barreiras sanitárias intermunicipais – que vêm se constituindo em freio importante à interiorização do vírus, onde foi implementada – e o próprio impacto da informação sobre os menos escolarizados.

Infelizmente, a vida é assim: aprendemos aos trancos e barrancos, muitas vezes a um custo acima do razoável se apenas a razão contasse – razão que, infelizmente, também foi infectada pelo vírus do sectarismo partidário. Mas, se pelo menos, ao final, tivermos aprendido a enfrentar a atual crise levando em conta nossos problemas concretos em meio às inevitáveis narrativas ideológicas e inexoráveis rinhas político-corporativas –, ouvindo nossas inteligências autênticas, em diálogo com o mundo, então talvez tenhamos forjado a chave para o enfrentamento de toda nossa imensa gama de problemas que, no passado, nos esmeramos por esconder debaixo do tapete.

Notas

[i] Vide Crusoé, in. <https://crusoe.com.br/edicoes/101/a-verdade-abafada/>.

[ii] Portal PEBMED, In. <https://pebmed.com.br/coronavirus-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-nova-pandemia/>.

[iii] “A Alemanha reconheceu seu surto muito cedo. Duas ou três semanas antes do que alguns países vizinhos”, disse o virologista Christian Drosten; vide El Pais de 21/0320, Baixa letalidade do coronavírus na Alemanha: três hipóteses sobre o fenômeno; in. <https://brasil.elpais.com/brasil/2020/03/20/ciencia/1584729408_422864.html>, em 13/04/20.

[iv] A Ideologia Alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes L.Feuerbach, B.Bauer e M.Stirner e do Socialismo Alemão nos seus diferentes profetas; Ed. Centauro/SP-2006, p.14.

[v] Do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública para o Novo Coronavírus, vide Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Boletins 1-3, in. <https://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos>, em 13/04/20.

[vi] Vide Folha de Londrina, in. <https://www.folhadelondrina.com.br/economia/turismo-movimenta-roda-da-economia-no-brasil-e-no-mundo-1028761.html>


Transformação digital: quais impactos do atraso no Brasil? Dora Kaufman responde

Em artigo produzido para a revista Política Democrática Online, analista aponta barreiras sobre o emprego

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

No Brasil, o atraso no processo de transformação digital tem impactos perceptíveis sobre o emprego, de acordo com a doutora em redes digitais pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo) Dora Kaufman. Em artigo que produziu para a 17ª edição da revista Política Democrática Online, ela diz que “o debate entre se a automação vai substituir os trabalhadores humanos ou vai ampliar sua capacidade aparentemente está superado”.

» Acesse aqui a 17ª edição da revista Política Democrática Online

A revista é produzida a editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza todos os conteúdos da publicação, gratuitamente, em seu site. De acordo com a pesquisadora, na indústria, as tecnologias de automação digital têm ainda baixa penetração, prevalecendo a digitalização de processos internos e automação básica. Além disso, segundo ela, no varejo, particularmente o setor bancário, o foco da adoção da inteligência artificial são os processos internos (redução custo/aumento de eficiência) e a experiência do cliente (assistentes virtuais/chatbots).

Já no agronegócio, segundo aponta o artigo publicado na revista Política Democrática Online, talvez o setor no país mais avançado nesse processo, observa-se a aplicação de tecnologias de inteligência artificial nas várias etapas de produção com consequente redução da oferta de trabalho. No setor público, por sua vez, o governo tecnológico é uma medida em que avança a digitalização, diminui o número de vagas de trabalho: o alistamento militar on-line, por exemplo, representa atualmente 47% do total - 1,7 milhão de candidatos/ano -, já tendo reduzido de 2.307 para 829 os servidores diretamente envolvidos.

Dora afirma que a combinação de avanços nas tecnologias de inteligência artificial e robótica, por um lado, acelera a produtividade com economia de custos e aumento da eficiência e, por outro, tem fortes impactos sociais, particularmente no mercado de trabalho. “Nas próximas décadas, as tecnologias inteligentes estarão presentes em sistemas globais de produção com modelos de negócios integrados e conectados, caracterizados por precisão nos parâmetros de eficiência, personalização de processos e produtos”, afirma

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Carlos Melo: Mandetta permitiu que a corda arrebentasse nas bandas do Planalto

A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos, os desastres na saúde e na economia.

O desastre principia com a negação da realidade. Como Donald Trump, Jair Bolsonaro é presidente que afronta os fatos porque, para ele, é sempre possível dar o dito por não dito; alegar malentendido e acusar os outros. A prática é manjada, mas rebaixar a pandemia à “gripezinha” foi seu o paroxismo. O vírus se impôs e transformou a pandemia em “crise humanitária”.

Indispondo-se com o mundo e com seu ministro da Saúde, o presidente perdeu elos com nações, com o Congresso, com os governadores e com o Supremo Tribunal Federal. Ficou institucionalmente só, agarrado a radicais e a um paradoxo: sendo contra a quarentena, somente seu sucesso – com poucas mortes – é que reanimaria a tese da “gripezinha”, para que possa dizer “eu disse”.

A queda de braço com Luiz Henrique Mandetta ficará para a história. Sem admitir que salvar vidas e empregos não é incompatível, tentou se impor ao ministro – o que já é estranho – com certo cálculo: como a Economia de Paulo Guedes já patinava, a Saúde e os governadores seriam bodes expiatórios do fracasso econômico.

Até onde pôde, equilibrou-se na ambiguidade e, assim, num dia condescendia, no outro desdizia. “Isso cansa.” Mas, o presidente não percebia lidar com profissionais. O DEM, partido do ministro, é hoje o que mais se assemelha ao antigo PSD – de Juscelino, Valadares, Tancredo e outras raposas –, sabe andar no fio da navalha. Articulado com os seus, o ministro permitiu que o presidente esticasse a corda para que arrebentasse nas bandas do Planalto.

O cálculo se inverteu: se a quarentena obtiver sucesso, será obra do abnegado Mandetta. Já o fracasso será creditado à irascibilidade de Bolsonaro, algoz do ministro. Mas, ao final, não haverá ganho: suspeita-se que muitos morrerão e o desastre econômico será inevitável. A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos.

*Cientista político e professor do Insper


Eduardo Rocha: O pós-coronavírus - Por uma Conferência Mundial pela Produção e Emprego

A violência meteórica da pandemia global do coronavírus em todo o sistema de reprodução social do gênero humano fez surgir em diversos segmentos de vários países inúmeras iniciativas práticas como respostas emergenciais ao esforço gigantesco em salvar vidas, proteger as populações e manter a produção e serviços essenciais à população. Esses esforços estão em curso.

Velhas e novas contradições coexistem e provocam transformações no modo cotidiano de vida; na saúde pública; na ciência; nas relações capital-trabalho; no mercado financeiro; no mundo da produção e serviços; nas relações Estado-sociedade-mercado; na renda e tributação; na gestão das finanças públicas; no comércio mundial; na globalização; nas instituições multilaterais; no direito; nas ideologias etc. etc.

O infarto econômico mundial causado pelo novo coronavírus e COVID-19 demanda mais do que as atuais terapias intensivas. Demanda uma nova arquitetura socioeconômica global voltada para o futuro da humanidade de modo a livrá-la da força gravitacional abismal da recessão mundial tenebrosa, da profunda insegurança, da pavorosa incerteza e de um futuro sinistro e sombrio.

Pode ajudar na construção dessa nova arquitetura socioeconômica global a realização, sob a responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), de uma Conferência Mundial pela Produção e pelo Emprego (CMPE) visando harmonizar os fluxos monetários e financeiros internacionais de modo a canalizar a poupança pública e privada em investimentos reais com as globais necessidades sociais, produtivas, de emprego e desenvolvimento global dos povos.

Seria como uma “Conferência de Bretton Woods da Produção e do Emprego” focada na criação de políticas e ações multilaterais para fazer valer a reativação econômica - da produção, do emprego, do pleno funcionamento da rede de proteção social e pavimentar minimamente as vias macroeconômico-globais para impulsionar o desenvolvimento em vastas regiões do planeta.

Além dos chefes de Estado, desta Conferência deveriam participar as demais organizações multilaterais – Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização Mundial da Saúde (OMS), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e representantes do empresariado, dos trabalhadores e do mundo acadêmico.

O coronavírus abriu uma nova página da história e desafia o gênero humano a escrevê-la e apontar para onde ir. A estupidez e o egoísmo o levarão à barbárie; a inteligência e a solidariedade, à civilização. Qual a sua escolha?

*Eduardo Rocha é economista

 


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro acha que Maia ligou 'bomba relógio' e Congresso prepara troco

Bolsonaro iniciou uma rodada de conversas com dirigentes do Centrão; as negociações do Planalto com o Congresso, a partir de agora, serão feitas com deputados e senadores

Vera Rosa, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O mais duro ataque público do presidente Jair Bolsonaro a Rodrigo Maia (DEM-RJ), na noite de quinta-feira, 16, pode custar caro ao governo. O novo capítulo do duelo entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, após a demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem como pano de fundo o programa de socorro a Estados e municípios, no valor de R$ 89,6 bilhões. A briga, no entanto, vai muito além dessa cifra.

Convencido de que Maia quer não apenas derrubá-lo como fazer uma manobra para ser reeleito ao comando da Câmara, em 2021, Bolsonaro iniciou, nas últimas semanas, uma rodada de conversas com dirigentes do Centrão. No novo modelo de articulação política planejado pelo presidente, as negociações do Planalto com o Congresso, a partir de agora, serão feitas com deputados e senadores.

Antes carimbados como “velha política”, líderes de legendas como PP, PR e PSD foram chamados para encontros reservados com Bolsonaro. Isolado, o presidente pediu ajuda a todos eles para a votação de projetos que possam amenizar a crise social e econômica provocada pela pandemia do coronavírus.

Na avaliação de Bolsonaro há uma “bomba-relógio” fiscal em curso, armada por Maia, com o objetivo de ferir de morte sua gestão. “Parece que a intenção é me tirar do governo. Quero crer que eu esteja equivocado”, disse o presidente, na noite desta quinta-feira, em entrevista à CNN Brasil. “Qual o objetivo do senhor Rodrigo Maia? Ele quer atacar o governo federal, enfiar a faca. (...) Está conduzindo o País para o caos”, emendou.

Dois dias antes, Maia já havia reclamado dos “coices” dados pelo governo. Desta vez, porém, mudou o linguajar e falou em pedras. “Ele joga pedras e o Parlamento vai jogar flores”, afirmou o deputado.

Apesar do discurso, o troco pode vir a cavalo. O governo teme, por exemplo, que a Medida Provisória instituindo o contrato verde e amarelo perca a validade. A MP flexibiliza o pagamento de direitos trabalhistas e contribuições sociais para facilitar a contratação de jovens e funcionários com mais de 55 anos. Foi aprovada pela Câmara, mas, se não for votada até segunda-feira, 20, caduca. Ao que tudo indica, há mais uma derrota no horizonte para o Planalto.

Bolsonaro está especialmente irritado com Maia porque, em videoconferências com banqueiros e investidores, o deputado tem alfinetado sua administração. O presidente da Câmara chegou a dizer, num desses encontros virtuais que, se não fosse a crise do coronavírus, o Congresso já teria rompido com Bolsonaro.

A demissão de Mandetta azedou de vez um relacionamento que já era ruim. A exemplo de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (AP), Mandetta é filiado ao DEM, partido que também integra o Centrão.

Na prática, Bolsonaro aproveitou o bate-boca desta quinta para desviar o foco negativo da dispensa de Mandetta, o ministro que era mais popular do que o chefe. Ao anunciar a saída, o presidente foi, novamente, alvo de panelaços em várias capitais do País.

O confronto entre Bolsonaro e Maia, no entanto, vem de longe. Tanto que o presidente da Câmara nem fala mais com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sob a alegação de que não quer se aborrecer. A queda de braço ganhou contornos mais nítidos após a disputa pelo controle do Orçamento e chegou ao ápice recentemente, com a aprovação do programa de socorro a Estados e municípios.

O valor de R$ 89,6 bilhões que passou pelo crivo da Câmara é outro revés para o governo, que tenta mudar a proposta na votação no Senado, oferecendo uma transferência direta com valor fixo de R$ 40 bilhões. Guedes argumenta que “não se pode dar um cheque em branco a governadores de Estados mais ricos”, pois não é possível saber quanto tempo vai durar a pandemia.

Bolsonaro também usa essa justificativa para não ampliar os repasses a Estados que adotam medidas de isolamento social para enfrentar o coronavírus.

A avaliação ali é a de que, ao compensar por seis meses a perda na arrecadação de dois impostos (ICMS e ISS), o governo federal acabará bancando o prolongamento da quarentena em Estados administrados por adversários, como João Doria (São Paulo) e Wilson Witzel (Rio). Os dois são pré-candidatos à cadeira de Bolsonaro, em 2022.

“O que o povo tem a ver com a briga do presidente com o governador João Doria?”, provocou Maia, que é próximo do tucano. “Vamos deixar as brigas para o futuro”.

Maia tem dito que não fará qualquer movimento para conquistar novo mandato à frente da Câmara. Antes da pandemia, porém, Alcolumbre já havia consultado até mesmo juristas sobre o assunto.

A Constituição proíbe que presidentes da Câmara e do Senado sejam reconduzidos ao posto na mesma legislatura. Para alterar esse quadro, o Congresso precisaria aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e, ainda, alterar o regimento das duas Casas.

Diante da crise do coronavírus, no entanto, o Congresso pode adotar uma fórmula que permita a reeleição de Maia e Alcolumbre, para desespero dos bolsonaristas. Cresce, ainda, a possibilidade de adiamento das eleições municipais de outubro para dezembro.

Nas redes sociais, seguidores de Bolsonaro já comemoram com antecedência a saída de Maia e Alcolumbre de seus postos. No afã de ver a dupla pelas costas, eles erraram até mesmo a data do término da gestão no Congresso. Marcaram dezembro, quando, na realidade, é fim de janeiro. De 2021.


Eliane Cantanhêde: A grande cartada

Com quebra do isolamento, Bolsonaro joga o destino dele e de milhões. O futuro dirá

O presidente Jair Bolsonaro jogou sua maior cartada na última quinta-feira, 16, ao demitir Luiz Henrique Mandetta, o ministro mais popular do seu governo, e substituí-lo por Nelson Teich, que vai começar tudo de novo com a função de dar um cavalo de pau na política do isolamento social – ou, como disse Bolsonaro, “redirecionar a posição do governo e dos 22 ministros”.

O recado teve endereço certo: os ministros, particularmente os superministros Paulo Guedes e Sérgio Moro, que apoiam, ou apoiavam, a posição de Mandetta, do Ministério da Saúde, da OMS e de todos os países desenvolvidos do mundo pró-isolamento social como a melhor forma de conter a contaminação e, consequentemente, as mortes pela covid-19.

Ainda no carro, a caminho do Ministério da Saúde para se despedir, Mandetta me disse num rápido telefonema que a derradeira conversa com Bolsonaro foi “cordial, gentil”. “Eu não posso entregar o que ele me pede”, conformava-se. “Vem aí uma dinâmica social totalmente nova, que muda tudo”, explicou, desejando sorte ao “Nelson, como é mesmo o nome dele?”. “Que Deus nos ajude a todos”, concluiu.

Para amenizar o cavalo de pau, ou o “redirecionamento”, como anunciou o presidente, ou a “nova dinâmica social”, como chama Mandetta, o dr. Nelson Teich tratou de deixar claro que a flexibilização do isolamento virá, mas não será “brusca nem radical”.

Isso pode ser bom, se significar cautela, dentro da técnica e da ciência e com base sólida de dados, como prometeu. Mas pode ser ruim, se ele esperar para agir só depois de “um diagnóstico da doença”, de um trabalho de inteligência e de uma massificação de testes (como? de onde?) que, em resumo, pode corresponder a começar do zero. No meio da pandemia? Com o número de mortos batendo em 2 mil pessoas? Emergência é emergência.

Mandetta se vai, aliás, com alta aprovação popular, mas a pandemia fica e, o pior, o presidente Jair Bolsonaro e suas manias também ficam. O novo ministro conseguiu arrancar o compromisso do presidente de parar com provocações, de causar aglomerações, tocar pessoas nas ruas sem máscara, pular de absurdos em absurdos públicos? Provavelmente sim, o que vai confirmar que, mais do que uma questão “técnica e científica” em torno da quebra do isolamento, a birra de Bolsonaro era pessoal, contra Mandetta, e política, por ciúme da sombra que o ministro lhe fazia.

Mandetta sai da Saúde e entra nas bolsas de apostas políticas, mexendo sobretudo com o tabuleiro do DEM, seu partido e dos presidentes da Câmara e do Senado e do mais novo adversário do presidente, Ronaldo Caiado (GO). Mas o que interessa nesse momento não é política, é saúde, vida, combate ao coronavírus e o equilíbrio de tudo isso com economia, empresas e empregos. Um equilíbrio delicadíssimo, agora nas mãos de Nelson Teich. Mas com Bolsonaro mandando.

A quebra do isolamento é certa, mas é preciso saber como, quando, em que bases. E como Teich, muito respeitado no ambiente médico, vai tratar a questão, que exige não só liderança na equipe da Saúde, que não terá dificuldade em conquistar, mas também negociação com governadores, o Congresso e, eventualmente, o Supremo – que estão em pé de guerra com Bolsonaro. Teich tem de ter estratégia e também se familiarizar com a máquina e a política.

Outro grande embate entre Bolsonaro e Mandetta era em torno da cloroquina como a varinha de condão. Alguém notou que o presidente nunca mais falou nisso? E que a cloroquina foi a grande ausente dos discursos no derradeiro dia de Mandetta na Saúde? Pode ser, pode não ser, mas parece que Bolsonaro perdeu essa. Quanto à quebra do isolamento, ao qual o destino de Bolsonaro e de milhões está atrelado, o futuro dirá.


Antonio Carlos do Nascimento: Shakespeare, Einstein, SUS, covid-19 e o futuro

Planeta precisou da expectativa dizimatória para pôr o que importa em seu devido lugar

Nós nos reinventamos diante das catástrofes e não o fazemos pelo bom senso. Fosse isso, as evidências escandalosas de um planeta que esquenta e se intoxica nos abririam os olhos e partiríamos em missão para defendê-lo. A iminência da morte provoca o pânico e Shakespeare retrata o quadro ao reduzir o inescrupuloso Ricardo III a “meu reino por um cavalo” numa de suas cultuadas peças.

Quando eu era menino ouvi uma amiga de minha mãe dizer que chegaria o dia em que teríamos o dinheiro, mas não encontraríamos o que comprar. Pouco tempo depois li a dedução de Einstein para os desdobramentos bélicos futuros: “Como vai ser a terceira guerra mundial eu não sei, mas a quarta será com paus e pedras”. Tais impressões futuras, apocalípticas, enquanto sejam apenas possibilidades, nunca se desgarraram daquilo que imagino possível e talvez provável para a humanidade.

Aqui e ali suicidas derrubam arranha-céus, estouram bombas em seus corpos, mergulham carros com explosivos em meio a multidões e lá se vão muitas vidas, às vezes milhares. O mundo decidiu globalizar, especialmente utilizando mão de obra barata, notadamente asiática, e a qualquer barulho por lá faltam componentes de toda sorte por aqui. Por outro lado, imensidões de terras são utilizadas para o cultivo de algum produto agrícola e não é raro após alguma safra o produtor não conseguir arrecadar para pagar o financiamento bancário, a depender de quanto a sua commodity variou no globalizado “mercado”.

Em Splendor in the Grass (título brasileiro, Clamor do Sexo), filme com Natalie Wood e Warren Beatty, vê-se a América na queda da bolsa de 1929 inutilizando milhões de papéis que passavam a não valer mais nada e alguns de seus proprietários mergulhavam em voos derradeiros dos altos prédios em Wall Street. Bud (Warren Beatty), filho de um daqueles barões da bolsa de valores, finda a película cultivando terreno numa área rural, no que havia restado do império familiar.

A lógica da sobrevivência passa por nutrição orgânica e antes da guarida do alojamento precisamos ainda não ser retirados do ciclo por predadores, contexto bem demonstrado pelos moradores de rua. Mas o planeta em que uma metade de sua população não dispõe de vaso sanitário, enquanto a outra projeta a desnecessariedade dela mesma na substituição por aplicativos, precisou dessa expectativa dizimatória para momentaneamente colocar as importâncias em seus devidos lugares.

Então agora alimentação é prioridade, no papel de predador um invisível vírus para o qual nos defendemos com higiene e neste momento não prescindimos de alojamentos que nos separem do entorno. Induzidos ou não, ainda que apenas provisoriamente, estamos acordados com o tráfico, milícias, facções... com uma só palavra de ordem: sobreviver - com protocolos que são mais ou menos obedecidos de acordo com as facetas e a força com que o virtual caos se apresenta.

Nós nem sabemos se a covid-19 conseguirá em mesmo espaço de tempo ter números maiores que os feminicídios, ou daqueles que morrem no trânsito pela ação de motoristas embriagados, nos semáforos por terem sidos lentos em entregar bolsas e carteiras, ou nas alcovas por overdoses. Mas estamos cientes de que podemos morrer indistintamente, independentemente de raça, religião ou classe social, e incrivelmente isso nos une, porém não pelo bom senso.

A depender da dimensão do desastre, e infelizmente não do quanto fomos capazes de impedi-lo, talvez restemos pouco modificados. Isso é ruim, por outro lado fazem bem algumas brasileiras certezas.

A valorização da imprensa profissional e séria, que ao menos por enquanto foi desobrigada por nós de dizer aquilo que queremos e a aceitamos com a função que sua maior parte nunca deixou de exercer: nos informar.

O SUS, nosso Sistema Único de Saúde, tratado tantas vezes com desdém e descaso, mostra seu gigantismo na capacidade de cuidar. E provavelmente a exposição proveniente de tantas ações realizadas por essa instituição produzirão o entendimento popular de seus mecanismos. O órgão atua em todas as faixas de cuidados e não se omite nas observações preventivas que passam ao largo dos ouvidos de nossa gente. É provável que um revigorado perfil gestor do SUS e uma nova métrica de envolvimento do usuário com as linhas de cuidado oferecidas fortaleçam esse que é um dos maiores e mais justos programas de saúde pública do mundo.

Guardaremos as palmas que se derramaram tantas vezes das sacadas dos prédios às 20 horas em homenagem aos profissionais de saúde e outros importantes grupos. Esqueceremos o barulho de colheres encontrando fundos de panelas para criar trilha sonora inapropriada de um longa-metragem que ficará para a história como exemplo de uma das lutas humanas em seu instinto de preservação, e não de um vírus com ideologia política.

DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (SBEM)


Pedro Doria: Bolsonaro não está nem aí para a privacidade

A preocupação de Bolsonaro com a privacidade tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular 

Tem ruído na linha no debate sobre a privacidade digital. O ruído não nasce de incompreensão, nasce de desinformação proposital. E foi posto ali não por acidente, mas para boicotar a quarentena. O presidente da República, Jair Bolsonaro, mandou que o Ministério da Ciência e Tecnologia interrompesse uma ação em conjunto com as operadoras de telefonia celular para monitorar o fluxo de pessoas pelo País. O custo de não ter estas informações será pago em vidas. Impressiona que tenha ocorrido na mesma semana em que Apple e Google, rivais de morte, tenham anunciado um ousado produto feito em conjunto justamente para dar mais informação que permita controle da pandemia.

O acordo do ministério com as operadoras era simples. Elas passariam dados sobre localização geográfica dos aparelhos celulares. Não é complexo: todo mundo anda com um smartphone no bolso, mesmo que simples. Este aparelho sabe onde está e constantemente passa a informação para as operadoras. É esta possibilidade que permite a apps como Waze e Google Maps que informem sobre o trânsito – afinal, sabem quanto tempo está demorando para andar um quilômetro em qualquer rua.

O argumento de Bolsonaro é igualmente simples. Diz que é preciso ter certeza de que a iniciativa não viola a privacidade de cidadãos. A preocupação tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular. Mas não é acidental. Faz duas semanas que o gabinete do ódio tem metralhado o governador paulista João Doria por uso do mesmo recurso para acompanhar como anda o isolamento social no Estado.

Ameaça à privacidade existiria se os donos de cada celular fossem identificados. Porque, aí, o Estado estaria literalmente acompanhando por onde cada cidadão anda. É o que a China faz. Aliás, não só ditaduras. Israel também tem feito isto. Mas, no Brasil, não há ninguém fazendo nada do tipo. Não há um único indivíduo sendo espionado por governo nenhum. (Quer dizer: a não ser que a Abin o esteja fazendo. Só que aí não tem a ver com esta iniciativa.)

Esta pandemia é muito complexa e seu combate depende de informação. Por exemplo, sobre qual o nível de respeito à quarentena. Saber que há muita gente circulando permite a governadores e prefeitos que se preparem para o impacto na rede hospitalar em 15 dias. Informação que vem de testes massivos também ajuda – é para se ter uma compreensão massiva do nível de infecção na sociedade. Informação sobre para quem as pessoas contaminadas podem ter passado o vírus, idem. Para que o combate possa ser mais ágil e quem é suspeito de ter a doença possa se resguardar antes de passar para outros.

A parceria de Apple e Google quer atacar este último elemento. As duas incluirão em iPhones e Androids um recurso que permitirá criar apps para informar que você esteve faz pouco tempo em contato com alguém positivo. As duas empresas terem entrado no jogo é a garantia de que um recurso assim poderá existir com o máximo de resguardo possível à privacidade de todos. É o melhor de dois mundos: quem está doente não é identificado, quem esteve perto é informado de que há risco.

Uma democracia liberal se constrói na eterna tensão entre os direitos do indivíduo e os da sociedade. Ambos importam e os conflitos que surgem deste atrito ocorrem toda hora. Defender privacidade, no tempo digital, é fundamental. Salvar a maior quantidade de vidas possível não é incompatível. Dá para fazer. Fingir que não dá é que é grave. É irresponsável. E gente vai morrer por causa disso.


Fernando Gabeira: Adeus à normalidade

Seria o vírus o novo agente transformador? Os grandes lances do futuro são imprevisíveis

Os filósofos sempre interpretaram o mundo. Agora que ele está revirado e quase todos recolhidos na quarentena, a tendência é uma grande produção de cenários sobre o mundo de amanhã, o pós-coronavírus.

Alguns queimaram a largada considerando a pandemia um exagero da imprensa, uma fantasia tirânica. Temiam, à esquerda, uma sucessão de ditaduras e, no outro polo, temiam o desgaste de seus populistas no poder.

Uma ditadura oportunista acabou se instalando apenas na Hungria. Noutros países segue o debate democrático sobre controle da pandemia, liberdades individuais e privacidade.

Em muitos casos, a sensação que tenho é de que as previsões nada mais são do que nossas expectativas projetadas no futuro. Talvez essa sensação pessoal venha das inúmeras vezes na história em que li a frase: o capitalismo está em crise terminal e no seu lugar virá um regime social mais fraterno e humano. Como disse o intelectual sul-coreano Byung Chul Han, o vírus não é revolucionário. As mudanças certamente vão depender das pessoas.

De fato, as esperanças de transformação se apoiavam na classe operária, houve quem as deslocasse para o lúmpen proletariado. O vírus seria o novo agente transformador?

De fato, a crise em que o capitalismo se move no momento é a mais grave de sua história, muito mais ampla e profunda que a de 1929. No entanto, alguns de seus movimentos clássicos se repetem: transformar-se e aprofundar-se com a crise.

A passagem para a economia virtual foi precipitada. As grandes empresas telefônicas, provedoras de internet, estão em alta. A Amazon contratou centenas de novos empregados. O comércio eletrônico ampliou-se, possivelmente liquidando milhares de lojas físicas que já estavam em decadência. Os patrões descobriram o home office e suas vantagens econômicas, pois sem grande perda de produtividade economizam na montagem de pesadas estruturas. É preciso ver humildemente o que vai sair daí, reconhecer também que não prevíamos a extensão da catástrofe.

O papel do Estado se acentua com a clara necessidade de sistemas de saúde universais e frentes de trabalho estimuladas pelos recursos públicos. Mas daí a afirmar que todo o processo de liberalização da economia foi um erro, é difícil. Como enfrentaríamos a pandemia sem o nível de comunicações que existe hoje, sem os milhões de smartphones espalhados pelo País? As velhas telefônicas estatais entrariam em colapso.

Da mesma forma existe uma onda real de solidariedade que nos enche de orgulho. Mas o discurso de que as pessoas serão transformadas e ficarão mais humanas e fraternais por causa do vírus lembra um pouco aquela figura do “novo homem” das utopias passadas.

O homem tal como descreveu Shakespeare e sempre existiu, com sua coragem, suas fraquezas e misérias, continua de pé. Como explicar, ao lado de tantas bondades, que exista gente roubando testes de coronavírus, insultando profissionais de saúde porque entram com suas roupas de trabalho no transporte público? E a quantidade de aplicativos falsos para lesar os que necessitam da ajuda de R$ 600 do governo?

Tudo isso não é para negar as transformações que virão. Apenas para abordá-las de forma mais modesta, como já faziam alguns intelectuais com a realidade imediatamente anterior ao vírus.

Edgard Morin, que já esteve no Basil nos anos 60, fazendo conferências, é um caso de evolução com humildade diante da complexa realidade. Na Inglaterra, Ziauddin Sardar desenvolve os estudos de pós-normalidade, uma época em que, segundo ele, muito pouca coisa faz sentido, pois as velhas ortodoxias morreram e as novas ainda não nasceram. Se os tempos anteriores ao vírus nos pareciam normais e já eram, para muitos teóricos, pós-normais, o que diríamos agora, depois da passagem do corona?

Verdade que alguns políticos previram. Barack Obama fez um discurso sobre o perigo de uma gripe do tipo espanhola de 1918 e disse que era preciso montar uma estrutura global para fazer frente a ela. Mas disse isso num país onde a ciência, o saber acadêmico, a própria imprensa já entravam em declínio sob o impacto do populismo de direita.

Os laços horizontais de solidariedade diante de políticos que se apagam na crise, o intercâmbio planetário de cientistas em busca de saídas para a crise, a entrega cotidiana dos profissionais de saúde, tudo isso é legado benéfico para os tempos que virão. Mas o gatilho de novas crises não será completamente desarmado.

Antes da chegada do vírus já vivíamos uma sucessão de eventos extremos potencializados pelo aquecimento global, negado enfaticamente pelos mesmos que negam hoje a dimensão da tragédia. Antes de entrarmos neste século perigoso, em que um vírus pode ser um acidente de laboratório, pouco adiantava lembrar que estacionamos no século 19 com nosso déficit em saneamento básico. Quem sabe agora, com dinheiro público e força de trabalho, não damos pelo menos esse modesto passo?

Os grandes lances do futuro são imprevisíveis. Mas não há desculpa para protelar os passos óbvios do presente. Em nome não somente das pessoas, mas do próprio sistema de saúde, que hoje tanto agradecemos.


Ruth de Aquino: Bolsonaro não é louco

Bolsonaro contra o planeta: um caso clínico? 

Vamos chamar a coisa pelo nome. O presidente eleito por milhões de brasileiros não é louco. Psicóticos e neuróticos podem ser classificados assim. Eles sofrem e enxergam o sofrimento do outro. Eles não têm método. Bolsonaro é diferente. Pelos estudos da psiquiatria inglesa no século XIX, Bolsonaro se encaixaria em outra categoria: a dos psicopatas.

Conversei com o psicanalista Joel Birman para entender essas fronteiras entre transtornos mentais. “A psicopatia não é uma loucura no sentido clássico, mas uma insanidade moral, um desvio de caráter de quem não tem como se retificar porque não sente culpa ou remorso”. Os psicopatas são “autocentrados, agem com frieza e método”. “Não têm empatia em relação ao outro, o que lhes interessa é o que lhes convém”. A palavra psicopatia vem do grego psyché, alma, e pathos, enfermidade.

A pandemia só tornou esses traços de Bolsonaro mais gritantes. Desde os primeiros grandes gestos do presidente, ficou claro, disse Birman, que seus atos “são marcados por crueldade e violência”. Proposição de liberar fuzis para civis. Proposição de acabar com os radares nas estradas. Proposição de não multar a falta de cadeirinha para crianças. Proposição de acabar com os exames toxicológicos para motoristas de caminhão e ônibus. Proposição de legalizar o garimpo predatório nas florestas e terras indígenas. Tudo isso é um atentado à vida.

Eu poderia lembrar o que muitos teimam em esquecer. Que Bolsonaro já era assim antes de ser eleito. Quem defende torturador e condena as vítimas, publicamente, no Congresso, não é uma pessoa que preza a vida. Não surpreende, portanto, que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, denuncie, sem meias palavras, a “política genocida” de Bolsonaro. O presidente trocou seu ministro da Saúde, era sua prerrogativa, mas será barrado pelo STF se insistir em condenar o isolamento social e ameaçar a saúde pública.

Ao criar uma realidade paralela, Bolsonaro desfruta sua liberdade de ir e vir sem se importar com as consequências de seu exemplo. Ele refuta a ciência, ignora as normas sanitárias nacionais e internacionais, receita remédios polêmicos sem autoridade para isso, ironiza quem se isola, chamando a mim e a você de “moleques”. Coloca em maior risco os pobres. O presidente é uma temeridade ambulante. Troca um ministro da Saúde competente e popular em plena batalha.

Ao se recusar a divulgar o resultado de seu exame, Bolsonaro despreza a população, se acovarda e age diferente dos homens públicos que honram seus cargos. Pode até ser que esteja imune após uma versão branda da Covid-19 e por isso se sinta apto a saracotear pelas ruas e padarias, mexendo em dinheiro e comida, enxugando o nariz e apertando as mãos do povo aglomerado. Bolsonaro não é burro nem louco. É perverso, ao estimular um comportamento de altíssimo risco.

A OMS classifica a psicopatia como um transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais. A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, autora do livro Mentes perigosas, diz que a “psicopatia não é uma doença, é uma maneira de ser”. O psicopata, segundo ela, sempre vai buscar poder, status e diversão. Enxerga o outro apenas como um objeto útil para conseguir seus objetivos.

Mandetta tinha deixado de ser útil. Por brilhar demais, por ter trânsito com o Congresso e por não se curvar a suas teses temerárias. Um ministro como esse, generoso e articulado, enlouquece um presidente transtornado. A ciência é a luz. O resto é escuridão.


Bernardo Mello Franco: Fagundes, o ministro ideal para Bolsonaro

Jair Bolsonaro ainda vestia farda quando a cartunista Laerte criou o Fagundes. O personagem retratava um tipo que o leitor conhece bem: o sabujo profissional, que não tem vergonha de lamber as botas do chefe.

O baixinho estreou nas tiras da série “Condomínio”, em 1986. Laerte o definiu como um “puxa-saco de mão cheia”. Estava sempre a postos para servir um cafezinho e elogiar a gravata do doutor.

No governo atual, a bajulação virou passaporte para o poder. Ernesto Araújo era um diplomata de baixa patente, que nunca havia chefiado missão no exterior. Após escrever que Donald Trump salvaria o Ocidente, foi promovido ao cargo de chanceler.

“Nenhum presidente valorizou mais o papel do Itamaraty do que o senhor”, derramou-se, em maio passado. No mesmo discurso, Araújo comparou Bolsonaro a Jesus Cristo. Emocionado com a própria vassalagem, verteu lágrimas diante do chefe.

Abraham Weintraub também desfila no cordão que cada vez aumenta mais. De tanto cortejar os filhos do presidente, foi alçado ao comando do MEC. Sua gestão é um desastre, mas ele segue em alta com o clã. “Para mim, é o melhor ministro da Educação de todos os tempos”, exaltou o deputado Eduardo Bolsonaro.

Nesta terça, Onyx Lorenzoni mostrou até onde um ministro pode se agachar. Em entrevista, ele exaltou a “coragem” e a “sensibilidade” do capitão na crise do coronavírus. Depois passou a chamá-lo de “comandante da nossa nação”. A subserviência produziu o efeito desejado. Em poucos minutos, a fala foi replicada nas redes sociais do Zero Três.

Bolsonaro é um presidente viciado em elogios. Em plena pandemia, demitiu um ministro da Saúde que se recusava a aplaudir o discurso da “gripezinha”. Ele foi trocado pelo oncologista Nelson Teich, que cobiçava a cadeira desde a campanha eleitoral.

O novo ministro chegou disposto a agradar. Na estreia, anunciou “alinhamento completo” com o chefe. Apesar da promessa, não está claro se ele aceitará negar a ciência e relaxar as medidas de distanciamento. Na dúvida, era mais seguro nomear o Fagundes original.


Merval Pereira: Qual a escolha?

O presidente Jair Bolsonaro parecia estar ouvindo o panelaço que se espalhou por diversas cidades do país quando anunciou a demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Tenso, com o olhar paralisado, Bolsonaro demonstrou saber o passo que estava dando, talvez maior que sua perna, ao mudar, em meio à pandemia da Covid-19, um ministro que tem 75% de aprovação popular, e apoio dos presidentes da Câmara e do Senado.

Trocado por ciúmes de sua popularidade, e por uma insistência sem base séria para que o distanciamento social seja flexibilizado o mais rápido possível.

Mais tarde, chegando ao Palácio da Alvorada depois de um dos dias mais intensos de seu mandato, Bolsonaro respondeu algumas perguntas ainda com o mesmo olhar arregalado que denotava o temor pela decisão que tomara.

Tossiu, como já tossira durante seu pronunciamento, o que pode ser consequência do nervosismo da ocasião, e respirou fundo como se quisesse extrair força de dentro de si para enfrentar o problema que ele mesmo criara.

Afinal de contas, a retórica do novo ministro Nelson Teich não mudou tanto em relação à de Mandetta, embora tenha dado ênfase à retomada gradual das atividades econômicas. Mas, na prática, não parece próximo esse dia, pois Teich ressalvou que antes de tomar novas medidas, é preciso fazer testes, muitos testes, e entender melhor como o novo coronavírus atua na sua transmissão.

Como não temos dinheiro suficiente para fazer testes na maioria da população, como fez a Coréia do Sul, e nem mesmo acesso a compras no exterior desses testes, que estão em falta no mercado, a situação propícia para a reabertura não acontecerá tão cedo.

O novo ministro tem MBA em Gestão de Saúde pela Coppe e mestrado em Economia na Universidade de York. Hoje, é sócio da Teich Health Care, uma consultoria de serviços médicos. Portanto, sabe como lidar com a gestão de saúde, mas sua experiência até agora é com a medicina privada, que difere muito do Sistema Único de Saúde (SUS), sustentáculo do esquema público que coordena hospitais federais e municipais.

Foi como técnico respeitado que é na área de saúde que ele falou com base científica, o que deu a garantia de que qualquer mudança que for feita o será com bases técnicas, e não políticas.

Mas, como convinha a um ministro recém-chegado, deixou encaminhada uma solução que esteja ‘totalmente alinhada” com o presidente Bolsonaro. Claro que não poderia assumir afirmando que seguiria à risca o que o ministro demitido fazia.

Mas, colocando a ciência como parâmetro, deu esperanças de que não se fará uma mudança brusca, se é que haverá mudança a curto prazo. A visão empresarial do novo ministro, porém, deve lhe custar críticas.

Ontem já corria pelas redes um vídeo em que ele fala sobre como fazer escolhas, dado que os recursos para a saúde são limitados. E dá um exemplo perigoso, que pode fazer sentido numa planilha de custos, mas não na vida real em um governo que tem que ter uma visão humanista. Justamente essa falta de empatia é que marca o comportamento do presidente Bolsonaro nessa fase da vida brasileira.

Dizia Nelson Teich nesse vídeo: “Você tem uma pessoa que é mais idosa, tem uma doença crônica avançada, e ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que em um adolescente que está com um problema. O adolescente tem toda a vida pela frente, e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha?”.

O raciocínio é semelhante ao de Bolsonaro, que já disse várias vezes, e repetiu ontem, que a morte é inevitável: “Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, disse Bolsonaro certa vez.

A retórica, no entanto, não tem importância neste momento, e sim a prática. Será preciso aguardar as ações do novo ministro da Saúde para saber o rumo que o combate à Covid-19 tomará nessa segunda fase. Também o comportamento de Bolsonaro. Qual será a reação do novo ministro se o presidente voltar a circular pelas ruas, sem máscara, limpando o nariz com as mãos, tossindo, e cumprimentando os populares que se aglomeram a seu redor ? Qual será a escolha de Nelson Teich?