Pedro Doria: Bolsonaro não está nem aí para a privacidade

A preocupação de Bolsonaro com a privacidade tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular.
Foto: Isac Nóbrega/PR
Foto: Isac Nóbrega/PR

A preocupação de Bolsonaro com a privacidade tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular 

Tem ruído na linha no debate sobre a privacidade digital. O ruído não nasce de incompreensão, nasce de desinformação proposital. E foi posto ali não por acidente, mas para boicotar a quarentena. O presidente da República, Jair Bolsonaro, mandou que o Ministério da Ciência e Tecnologia interrompesse uma ação em conjunto com as operadoras de telefonia celular para monitorar o fluxo de pessoas pelo País. O custo de não ter estas informações será pago em vidas. Impressiona que tenha ocorrido na mesma semana em que Apple e Google, rivais de morte, tenham anunciado um ousado produto feito em conjunto justamente para dar mais informação que permita controle da pandemia.

O acordo do ministério com as operadoras era simples. Elas passariam dados sobre localização geográfica dos aparelhos celulares. Não é complexo: todo mundo anda com um smartphone no bolso, mesmo que simples. Este aparelho sabe onde está e constantemente passa a informação para as operadoras. É esta possibilidade que permite a apps como Waze e Google Maps que informem sobre o trânsito – afinal, sabem quanto tempo está demorando para andar um quilômetro em qualquer rua.

O argumento de Bolsonaro é igualmente simples. Diz que é preciso ter certeza de que a iniciativa não viola a privacidade de cidadãos. A preocupação tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular. Mas não é acidental. Faz duas semanas que o gabinete do ódio tem metralhado o governador paulista João Doria por uso do mesmo recurso para acompanhar como anda o isolamento social no Estado.

Ameaça à privacidade existiria se os donos de cada celular fossem identificados. Porque, aí, o Estado estaria literalmente acompanhando por onde cada cidadão anda. É o que a China faz. Aliás, não só ditaduras. Israel também tem feito isto. Mas, no Brasil, não há ninguém fazendo nada do tipo. Não há um único indivíduo sendo espionado por governo nenhum. (Quer dizer: a não ser que a Abin o esteja fazendo. Só que aí não tem a ver com esta iniciativa.)

Esta pandemia é muito complexa e seu combate depende de informação. Por exemplo, sobre qual o nível de respeito à quarentena. Saber que há muita gente circulando permite a governadores e prefeitos que se preparem para o impacto na rede hospitalar em 15 dias. Informação que vem de testes massivos também ajuda – é para se ter uma compreensão massiva do nível de infecção na sociedade. Informação sobre para quem as pessoas contaminadas podem ter passado o vírus, idem. Para que o combate possa ser mais ágil e quem é suspeito de ter a doença possa se resguardar antes de passar para outros.

A parceria de Apple e Google quer atacar este último elemento. As duas incluirão em iPhones e Androids um recurso que permitirá criar apps para informar que você esteve faz pouco tempo em contato com alguém positivo. As duas empresas terem entrado no jogo é a garantia de que um recurso assim poderá existir com o máximo de resguardo possível à privacidade de todos. É o melhor de dois mundos: quem está doente não é identificado, quem esteve perto é informado de que há risco.

Uma democracia liberal se constrói na eterna tensão entre os direitos do indivíduo e os da sociedade. Ambos importam e os conflitos que surgem deste atrito ocorrem toda hora. Defender privacidade, no tempo digital, é fundamental. Salvar a maior quantidade de vidas possível não é incompatível. Dá para fazer. Fingir que não dá é que é grave. É irresponsável. E gente vai morrer por causa disso.

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