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Vinicius Torres Freire: No eclipse do Brasil, Supremo, centrão, generais, pastores e ruralistas dominam a cena

O obscurantismo é, por enquanto, o movimento social mais forte

Nada de relevante vai acontecer na economia até que saibamos do ritmo da despiora. Pouco vamos saber da despiora até que se conheça o efeito do fim dos auxílios e socorros, mais de meio trilhão de reais, a partir de setembro e olhe lá.

Em si mesmas, uma despiora lentíssima ou uma recaída não provocam efeito político imediato, se algum. Por exemplo, Jair Bolsonaro se cansar de Paulo Guedes ou sua popularidade baixar aos 10%.

Não há oposição do establishment a Guedes. É improvável que militares ou pastores digam outra coisa no ouvido do seu capitão, os donos do dinheiro grosso muito menos, mesmo que o ministro dê mais foras. O Congresso está aí para entregar uma cesta básica de reformas e segurar as pontas de Guedes, a não ser em caso de revolta popular. No mais, a política segue nas sombras do eclipse do Brasil.

O fato político novo mais relevante na epidemia foi o auxílio emergencial. Evitou a derrocada final do prestígio de Bolsonaro, saques, tumultos, ruína ainda maior e lançou um debate que envolve da esquerda à extrema direita. Ideias socioeconômicas alternativas não têm apelo ou estão em quarentena. Se der certo, a renda básica será conveniente para Bolsonaro, tudo mais constante.

O fato político imediatamente mais relevante foi a ameaça de cadeia para o bolsonarismo, cortesia de processos no Supremo (fake news, comícios golpistas) e do pretérito mais do que presente dos Bolsonaros (Queiroz e milícias). A gente se cansou de usar o termo, mas isso é política judicializada. Não para por aí.

O Supremo está no centro de um embate paralelo, a reação à ameaça militar. Os generais da guarda de Bolsonaro e as próprias Forças Armadas afirmam que toleram os Poderes até certo ponto, o que é crime e assim deveria ser tratado, na Justiça e por um protesto social maciço. Mas nada.

O Supremo decidiu comer esse mingau frio e pelas beiradas, tocando os processos do bolsonarismo e lembrando ao Exército que seus generais capitaneiam a administração do morticínio da epidemia e da destruição da Amazônia.

Outro fato relevante veio também da fumaça da floresta, que provocou um estremecimento entre donos do dinheiro e Bolsonaro. A incompetência do governo e outras barbaridades até que engolem, na esperança de que o Congresso salve alguma reforma. Prejuízo e boicote mundial não dá para aceitar.

Panelaços, cartas, manifestos, frentes, tudo isso afundou na geleia lodosa que é a vida na pandemia, ainda mais em um país invertebrado politicamente. As frentes que existem são os evangélicos, os ruralistas e os reformistas.

Existe alguma política partidária além do parlamentarismo branco ora encardido de desgaste. Os políticos do centrão nem são baixo clero (somos todos baixo clero) nem meros mercadores de cargos. São candidatos a presidir a Câmara em 2021 e lideram comissões e projetos importantes. Não têm articulação com aquele país que se imaginava mais avançado, moderno ou inteligente em termos sociais e econômicos ou o que restou disso, se é que restou, se é que existia. Mas vivem lá no Brasil, por assim dizer.

Não é retórica. A política é caso de polícia e Justiça, generais nos tutelam e ameaçam. Na pandemia reafirmamos nossa presença habitual no alto dos rankings dos países mais mortíferos do mundo.

O obscurantismo é por enquanto o movimento social mais forte. Os democratas se autodestruíram. O que sobrou se limita a escrever cartas de protesto, notas de repúdio ou está quieto nas quebradas.


Vinicius Torres Freire: Cientistas inventam aparelhos e estudos contra a doença e a barbaridade que ocupa o poder

Cientistas inventam aparelhos e estudos contra a doença e a barbaridade que ocupa o poder

O Inspire, o ventilador pulmonar criado na Universidade de São Paulo, foi para o hospital: já vai ajudar a salvar 40 vidas no Incor, do Hospital das Clínicas da USP, em uma primeira fase. Foi uma iniciativa e um projeto original de engenheiros da Escola Politécnica, desenvolvido com auxílio da Faculdade de Medicina da universidade e da Marinha do Brasil, que vai fabricar os aparelhos em seu Centro Tecnológico em São Paulo. Deve custar um décimo do preço dos aparelhos comerciais.

Por esses dias, o Sirius mostrou as moléculas de uma proteína do novo coronavírus, um alvo possível para remédios contra a Covid-19.

O que é o Sirius? É o maior projeto da ciência brasileira, um acelerador de partículas (faz elétrons correrem quase à velocidade da luz dentro de um tubo de uma circunferência de mais de 500 metros de diâmetro, por exemplo). É uma espécie de imensa máquina de raios X, que permite enxergar até átomos de células em funcionamento (na verdade, o Sirius emprega vários tipos de radiação, além da “X”). Permite pesquisas muito avançadas em biologia, medicina, engenharia de materiais, química, eletrônica, agronomia, combustíveis, uma lista imensa e ainda a descobrir.

O Sirius é uma versão mais avançada, na ponta mundial, do equipamento que opera desde 1997 no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, que fica em Campinas (SP). Nesta semana, abriu inscrições para pesquisadores que queiram estudar o novo coronavírus.

E daí?

São motivos de esperança nesses dias tão sombrios. Há gente de iniciativa e inteligência a quem recorrer. Gente capaz de lidar com vacinas no Instituto Butantan ou na Fiocruz ou biólogos e médicos espalhados por tantos campi, que, aliás, não raro têm de pegar uma bicicleta para ir até um laboratório vizinho pedir emprestado um reagente em falta para terminar uma pesquisa.

Não se trata apenas de gente que inventou e desenvolveu, quase totalmente no Brasil, um laboratório como o Síncrotron, que custa centenas de milhões. Faz tempo e especialmente neste ano de calamidade, médicos e cientistas sociais de tantas áreas que estudam saúde deveriam ter sido chamados para pensar como melhorar o Sistema Único de Saúde, também um grande projeto brasileiro.

O pessoal que trabalha no SUS, alguns tarimbados de mais de 30 anos, outros profissionais de saúde e estudiosos deveriam ter sido chamados para uma comissão nacional de emergência para pensar a epidemia.

Pensar, por exemplo, como fazer com que equipes de saúde de família atendessem os contaminados, orientassem comunidades, rastreassem os outros possíveis contaminados ou mesmo distribuíssem um simples sabão, pois sabemos que até isso fez falta. Não se reuniu gente que pensasse a epidemiologia, a economia ou a sociologia da doença por aqui.

Soa ingênuo essas coisas neste momento de selvageria ainda mais exacerbada no Brasil. É um ambiente em que gente desvairada perversa ou psicologicamente perturbada de modo sinistro em geral ocupa cargos de governo; pessoas para quem as universidades estão lotadas de drogados devassos; que propagandeiam estupidez de modo sistemático, o que chamam de “guerra cultural”. Gente capaz de apregoar que pais têm de espancar crianças para educá-las e que defende a opressão das mulheres, de resto com base em leituras ignorantes e desumanas de textos religiosos.

A gente que habita o universo da razão, no entanto, precisa contar desse outro mundo além das trevas. Precisa falar do Inspire, do Sirius, do SUS, pregar as boas novas.


Vinicius Torres Freire: Cartas já não adiantam mais: elite quer um Bolsonaro sem bolsonarismo

Cartas, manifestos e movimentos de internet querem um Bolsonaro

A parte mais civilizada do establishment parece acreditar em um Jair Bolsonaro sem bolsonarismo ou resignada com o fato de que ora nada pode fazer a não ser evitar o pior (golpe e golpeamentos). A evidência mais recente desse movimento são as cartas ambientais, embora a tentativa de contenção de danos venha de março de 2019.

Empresários e banqueiros escreveram ao vice-presidente Hamilton Mourão um pedido de proteção da Amazônia e planos de reconstrução da economia orientados por princípios ambientais. Nesta terça-feira (14), ministros da Fazenda e presidentes de Banco Central dos governos da Nova República lançaram por meio de carta à sociedade um programa econômico-ambiental mais amplo, missiva que tem como destinatário oculto o governo da destruição.

Como talvez ainda se recorde, maio foi o mês de manifestos e frentes suprapartidárias, movimentos virtuais contra Bolsonaro, que animava comícios golpistas. Houve o “Estamos Juntos” (de “personalidades” socio-político-culturais etc.), o “Basta!” (gente do direito), o “Somos70%” (propaganda virtual), o “Somos Democracia” (torcidas de futebol nas ruas). Houve ainda manifestos suprapartidários de ex-ministros da Educação e das Relações Exteriores.

Junho viu definhar a flébil e invertebrada frente ampla de partidos, que murchou também devido à oposição de Lula da Silva, que não queria se juntar a arrependidos de Bolsonaro, lava-jatistas, gente que depôs Dilma Rousseff e defensores do programa de Paulo Guedes.

A prisão de Fabrício Queiroz (em 18 de junho) e a ameaça de cadeia para filhos, empresários e milicianos digitais de Bolsonaro contribuíram para dopar o golpismo e, por tabela, as frentes. Os generais assim passaram a ter mais argumentos a fim de conter o autoritarismo mais contraproducente de seu capitão.

As frentes e suas cartas de intenções não têm articulação política (com partidos ou movimentação social mais ampla), sem o que não vão muito longe. Juntas, parecem uma tentativa diferente de normalização de Bolsonaro, mais realista ou desesperada, de enquadrá-lo como governante “normal”, reacionário e incompetente, mas não muito ruinoso ou subversivo.

Desde março de 2019, o parlamentarismo branco de Rodrigo Maia procurara conter a destruição bolsonarista e salvar os dedos da reforma econômica. O Supremo agia de modo similar e colocou Bolsonaro em xeque com as ações contra “fake news” e comícios golpistas.

Mas o jogo mudara um pouco desde abril, quando os generais do Planalto procuraram o centrão a fim de minar o parlamentarismo branco. As dificuldades que a epidemia impôs à articulação no Congresso, além da perspectiva de fim do comando de Maia na Câmara, auxiliaram a manobra militar. Bolsonaro manteve algum prestígio popular com o auxílio emergencial, que alcança 40% da população adulta.

Bolsonaro perdeu o lava-jatismo; apoia-se mais em militares, evangélicos e no volúvel centrão. Continua no propósito de controlar a polícia, capturou a Procuradoria-Geral e oferece vagas no Supremo a juízes que lhe prestarem vassalagem e favores. A guerra cultural ainda comanda Itamaraty, Ambiente, Educação, Direitos Humanos. Há intervenção militar na Saúde, ora mero almoxarifado, bolsonarista por omissão.

Está de pé um pilar do bolsonarismo que não ousa dizer seu nome, a política de Guedes.

O impeachment não cozinha nem em banho-maria. O fogo depende do Supremo, do tom da eleição e do prestígio de Bolsonaro, que pode se manter nos 30% com os auxílios, a calmaria e alguma recuperação econômica. Isso pode durar meses. Nesse ínterim, as elites políticas, econômicas e judiciais oferecem um acordo de “normalização” a Bolsonaro.


Vinicius Torres Freire: Um banqueiro caminha na esteira do Brasil

País precisa de governança e trocar gasto ruim por saúde e investimento, diz executivo

A situação é meio desesperadora, mas o país vai ter uma folga de um ano para se organizar, diz o ex-presidente de um grande banco. A contragosto, fala por quarenta minutos enquanto caminha na esteira. Não quer dar entrevista porque não quer se meter na confusão em que está o país.

Que “folga” é essa? A taxa básica de juros deve ficar negativa por uns dois anos, pois a economia está deprimida e as taxas mundiais devem ajudar, também negativas, isso se o país não fizer besteira. O banqueiro refere-se ao fato de que a Selic, definida periodicamente pelo Banco Central, está menor do que a inflação e assim deve ficar pelo menos até fins 2021.

Que “besteira” o país faria? O governo gastar mais. Só isso, basta manter o “teto”? Não, esse é o mínimo, o fundamental (evitar o gasto), para que o país não comece a explodir no ano que vem. O detonador da explosão seria o sinal de que a dívida pública vai continuar a crescer sem limite, o que provocaria alta de juros, do dólar e desorganização geral das expectativas.

Para o banqueiro, algum aumento de imposto será inevitável, no mínimo para financiar algum programa de renda básica, pois “muita gente” vai ficar na pobreza e sem emprego por “muito tempo”. Mas o aumento de imposto financiaria então despesa extra, que está para bater no “teto” constitucional. Não é contraditório? O banqueiro diz então que se pode fazer uma concessão provisória em 2021, como no caso do estado de calamidade deste ano, desde que exista um programa profundo de ajuste fiscal.

No mais é “reforma, reforma, reforma”, rapidamente. Isto é, mudança nos impostos “inacreditáveis”, nas leis de falência e garantias e na regulação do investimento, além de redução “pesada” de gastos com servidores e redução e congelamento dos reajustes da previdência, também nos estados e municípios.

É preciso “trocar o gasto” para o governo investir mais, pois o setor privado sozinho não vai fazer muita obra necessária de infraestrutura, afirma, e porque “está ainda mais claro” que é preciso melhorar o sistema de saúde, evitar destruição ambiental e dinheiro para pesquisa científica e tecnológica. Haveria um “monte de gasto horrorosamente ineficiente” em saúde e educação, mas “talvez” ainda falte mesmo dinheiro.

Quem tocaria tal programa? “Esse é o problema”, diz o banqueiro, para quem o governo não tem capacidade executiva, política ou de coordenação de expectativas. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, “fazia um pouco esse papel, mas não podia tudo, não é presidente”, perdeu força e não pode ser reeleito.

“Melhor não ter impeachment, impeachment nunca é bom, confusão política desse nível é sinal de falta de maturidade e civilidade no país”, mas as “investigações” e a “popularidade” é que definiriam o destino de Jair Bolsonaro. Acha que não acontece nada neste ano, por causa da epidemia, das eleições e da “indefinição dos políticos” de como agir em relação a Bolsonaro.

Se houver processo de impeachment, 2021 estaria “perdido” e sabe-se lá o que pode vir daí. O que fazer, então? O banqueiro diz que não sabe, que não é político. Mas está óbvio, diz, que Bolsonaro precisa mudar “180 graus” e é preciso haver um acordo geral para montar uma “governança” para o país.

E os bancos na crise? Estão “sólidos” e “ajudam no que podem”. Mas bancos emprestam e empresários investem quando acham que o país vai crescer e que não vão ser “espoliados”, “é simples assim, o resto é fantasia".


Vinicius Torres Freire: Retomada econômica do Brasil pode ter forma de anzol e peixe podre na ponta

Maio foi melhor do que se esperava, mas epidemia longa e corte de gasto são risco

Os resultados de indústria e comércio de maio foram melhores do que o horror esperado. Abril teria sido o fundo do poço, diz o chavão. Não teremos uma recuperação em forma de “V” (como a linha de um gráfico com queda e subida rápidas e de mesmo tamanho). Quem sabe, porém, tenhamos uma retomada em forma de anzol, um “U” com a perna direita interrompida pela metade, sem saber se na ponta haverá um peixe ou um pedaço de pau podre.

O anzol já está desenhado nas projeções dos economistas do setor privado. Na média, estima-se que o PIB caia 6,5% neste ano e cresça 3,5% em 2021. Ou seja, não recupera nem metade da produção ou da renda perdidas neste ano de calamidade. Entre os otimistas, os economistas do Itaú calculam que a taxa de desemprego ainda seria de mais de 16% em 2021, bem mais que o dobro da média dos anos de 2012 a 2015. Para piorar, é improvável que a qualidade dos empregos novos seja melhor do que os bicos da pífia recuperação desde 2016.

Ainda estaríamos em um poço fundo. No fim de 2021, o PIB ainda seria uns 6% menor que em 2014 e a renda (PIB) per capita 11% menor. Voltaríamos à pobreza de 2019 apenas no final de 2022. Além do mais, a tese do anzol depende de premissas otimistas, otimismo nos termos de “o mercado”.

Pressupõe-se que o governo vai cortar cerca de meio trilhão das despesas extras deste ano, o grosso delas sendo a soma auxílios emergenciais, complementação de salários e ajuda a estados e municípios. A atividade econômica vai compensar, por si só, tamanho talho na capacidade de consumo?

Os economistas do Bradesco calculam que, em maio de 2020, a renda disponível (salários e benefícios sociais) era 16% MAIOR que em maio de 2019, graças aos auxílios. Nos meses anteriores à crise do vírus, essa diferença em relação ao ano passado era de 7% (tudo em termos nominais: sem descontar a inflação). Quanto vai durar o efeito dessa complementação?

É possível que exista consumo represado e capacidade de consumir estocada (poupança). Famílias remediadas e ricas deixaram de consumir por precaução ou impossibilidade (não gastam em restaurantes, viagens, serviços pessoais etc.). É evidente também que o consumo caiu mais do que os rendimentos.

Parte dessas precauções e impossibilidades não vai desaparecer tão cedo, dada a epidemia longa e mortífera do Brasil.

Houve outras melhoras, decerto, como nas ditas “condições financeiras”. As taxas de juros básicas (no atacado de dinheiro) estão baixas ou contidas. O preço das commodities que sustentam nossas contas externas, o complexo agropecuário-extrativista e seus fornecedores subiu bem desde o tombo de março e estão em nível mais do que razoável, dada a catástrofe mundial.

O dólar está longe dos R$ 4,30 de fevereiro, a R$ 5,3, mas não explodiu além dos R$ 5,90; o risco Brasil (medido pelo CDS) não voltou ao nível historicamente baixo de fevereiro, mas melhorou. A dinheirama que o mundo rico colocou na praça e seus juros negativos persistentes devem ajudar a manter também baixas as taxas por aqui, tudo mais constante.

Resumo da ópera: 1) Não sabemos como a economia vai se comportar com o talho no gasto público, a epidemia duradoura e os problemas decorrentes; 2) As condições sociais ainda vão piorar, dados o desemprego e o corte de auxílios; 3) Na ponta do anzol pode aparecer a complacência na política econômica, “vida que segue”, como na quase estagnação de 2017-2019.


Vinicius Torres Freire: Mercado supõe que 2021 terá vida que segue e Bolsonaro quieto

Mercado supõe que gasto e política econômica voltem ao que eram no pré-pandemia

O país estará mais pobre e o governo estará mais endividado, mas depois da calamidade do vírus o plano de política econômica não deve mudar: não se admite nem é provável que mude. É o que parece implícito nas projeções de economistas do setor privado, do “mercado”, e explícito na conversa do governo. Não deixa de ser uma espécie de otimismo, um “vida que segue”, apesar do desastre.

Na média, as estimativas econômicas parecem pressupor que o gasto extra do governo federal neste ano (“Orçamento de guerra”) será quase eliminado no ano que vem: auxílios emergenciais e de salário, adiamentos de impostos, ajuda a estados e municípios, despesas com saúde. É um talho da ordem de R$ 450 bilhões. É algo equivalente à despesa anual com salários de servidores, benefícios para idosos e deficientes (BPC), Bolsa Família e investimento.

Está previsto que a economia crescerá uns 3,5% e implícito ainda que o teto de gastos será mantido e que a receita do governo federal praticamente volta ao nível de 2019. É o que se depreende das estimativas da praça para o déficit federal, dando-se de barato que “o mercado” não prevê aumento de impostos, bidu.

Para que se respeite o teto, não será possível nenhum programa de renda básica que eleve despesas. Se sair um “Renda Brasil”, esse novo pacote teria de ser pago com cortes de gastos em outras áreas, o que demanda alterações em leis ainda neste ano.

Manter o teto reduziria ainda mais o investimento público “em obras”; deixaria os gastos com saúde e educação no piso. A fim de compensar o aumento inevitável de certas despesas obrigatórias, seria preciso limitar outro gasto, provavelmente salário de servidores.

Parece pressuposto que o fim do auxílio emergencial e complementos de salário será compensado por aumento da soma dos rendimentos do trabalho (“massa”) a partir do terceiro trimestre. Imagina-se que estados e municípios conseguirão pagar salários e fornecedores em 2021.

Plausível? Um corte de quase meio trilhão de reais no gasto público seria compensado por aumento de despesa privada? Isto é, pelo gasto derivado do aumento do total de salários e do crédito, além daquele que sobreviria por causa do consumo represado, pois a poupança de parte das famílias aumentou (não perderam renda e gastaram menos).

A dívida pública teria crescido para um nível horrível, mas ficaria estável pelos próximos anos, dadas as previsões de crescimento, manutenção do teto e taxa básica de juros baixa —ficaria baixa porque o programa fiscal seria o mesmo e haveria “reformas”.

Na saída da recessão de 2014-16, o nível de emprego (pessoas ocupadas) levou três anos para ir do fundo do poço ao pico anterior. O emprego formal jamais se recuperou, assim como a receita do governo (como proporção do PIB, descontado o maná do leilão de petróleo de 2019). Setores que mais ajudaram na recuperação do emprego depois da recessão são ainda os mais afetados pela epidemia (serviços).

É muito incerto se auxílio emergencial ainda fará efeito na economia depois de acabar, em setembro (quando houve o caraminguá do FGTS, ajudou, mas passou rápido).

A baixa do investimento público vai arruinar ainda mais nossa infraestrutura (deve limitar algum investimento privado também). A longa e mortífera epidemia deve limitar a confiança de trabalhar e consumir.

Enfim, parece pressuposto que Jair Bolsonaro continuará quieto, que haverá acordão político-judicial para deixá-lo no cargo e que o povo aceitará mais pobreza em paz.


Vinicius Torres Freire: Batalha do novo auxílio emergencial vai mexer com Bolsonaro e economia

Programa afeta 40% dos adultos e equivale a um quarto dos salários mensais

A prorrogação do auxílio emergencial chama menos a atenção do que as imundícies do caso Queiroz-Bolsonaro, pelo menos entre os remediados na vida. Deve ser o grande conflito das próximas semanas, com efeitos sociais e econômicos importantes, qualquer que seja o desfecho do confronto, que de resto pode ser decisivo para a popularidade de Jair Bolsonaro.

Antes de mais nada, diga-se que 63,5 milhões de pessoas foram autorizadas a receber o benefício, cerca de 40% da população maior de 18 anos. O gasto estimado até agora é de R$ 154 bilhões. Na média, daria pouco mais de R$ 51 bilhões por mês, o que equivale a um quarto de todos os rendimentos mensais do trabalho do país, segundo o registro do IBGE (Pnad).

A última das três parcelas do auxílio será paga neste junho, diz a lei, embora fiquem restos atrasados a pagar. O governo não queria prorrogação, mas agora aceita até mais duas prestações de R$ 300. Os deputados pensam em até mais duas de R$ 600.
O movimento Renda Básica que Queremos! (RBQQ) quer mais seis parcelas de R$ 600, até o fim do ano.

O RBQQ é uma coalizão de 163 movimentos sociais que fez pressão para o Congresso aprovar mais do que o auxílio de R$ 200 proposto por Paulo Guedes, em março. Grosso modo, é gente de esquerda independente.

Três meses de auxílio emergencial equivalem a uns 2,2% do PIB. Cinco meses, como parece querer o comando da Câmara, a 3,7% do PIB. O plano do RBQQ, a 6,6%. Seriam R$ 463 bilhões, 50% a mais do que o gasto de um ano com o pagamento dos servidores federais. Ou a um terço de TODA a receita líquida do governo federal em 2019.

Dar cabo do auxílio abriria um buraco imenso no consumo, pois na mais otimista das hipóteses os cortes de emprego e salário apenas vão deixar de piorar. A propósito, mais de 10 milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram de aceitar reduções de salário ou suspensão de contratos. É quase um terço dos 32 milhões de celetistas.

O choque social seria óbvio. O político também: com o auxílio, Bolsonaro ganhou algum prestígio entre os mais pobres. O Bolsa Família pagava em média R$ 191 mensais por família, antes do vírus. O auxílio elevou o benefício a R$ 600 por mês ou a R$ 1.200, para mulheres que cuidam sozinhas dos filhos.

O déficit do governo federal será de uns 10,5% do PIB neste ano. Dito de outro modo, o governo vai gastar 67% a mais do que sua receita, isso sem considerar a conta de juros. Se a Câmara aprovar a extensão do auxílio a seu modo, o déficit vai a quase 13% do PIB. Caso passasse o projeto do Renda Básica que Queremos!, a 15% do PIB.

Não é possível agora dar um talho no auxílio, que nem mesmo é emergencial, pois a miséria extra já era grande antes do vírus. A metade mais pobre do país perde renda desde a recessão. Mas aumento de dívida pública não sai de graça, seja lá como se lide com o problema.

Como se lida? Com uma combinação de: 1) mais imposto ou corte de gasto; 2) crescimento econômico acelerado (que reduz o peso relativo da dívida); 3) repressão das taxas de juros da dívida; 4) inflação (a pior).

Afora complicações econômicas, todas as soluções implicam conflito social e político forte, exceto no caso do crescimento acelerado, saída que não é trivial, parece óbvio faz 40 anos.

Apelar a apenas uma dessas soluções tende a dar em besteira social, econômica e política, crise, revolta ou repressão. A gente vai ter de inventar um jeito novo de fazer a coisa.


Vinicius Torres Freire: Plano do governo para economia pós-Covid é o mesmo, mas com fome

Decisão do BC sobre juros e Guedes sugerem arrochão e volta a regime pré-pandemia

O ministro Paulo Guedes (Economia) praticamente disse que está encerrado o programa de socorro à economia, ora em hibernação necrosante no inverno pandêmico. Agora, vai tratar de “reformas”. O Banco Central não deu sinal de que pretende se arriscar em um plano inconvencional de política monetária (de juros), como transparece no comunicado da redução da meta para taxa básica de juros (Selic) de 3% para 2,25%, nesta quarta-feira.

Em resumo, a política econômica será a mesma, a não ser em caso de desastre adicional, como insinua o BC, o que parece não estar nem na cogitação de Guedes.

A ideia básica é aprovar a emenda que permite o talho das despesas com servidores federais, tocar as concessões de infraestrutura para empresas privadas e vender a Eletrobras e os Correios, grosso modo, além de programar um Orçamento que ponha de novo as despesas no limite do teto.

O Banco Central afirmou que pode até haver nova redução da Selic, “residual”, mas há incerteza “acima da usual sobre o ritmo de recuperação da economia” na segunda metade do ano.

Além de esperar para ver o tamanho do desastre, da duração da epidemia e da retranca do consumidor, a direção do BC quer saber qual o efeito do crédito e dos auxílios emergenciais. Quer saber, como de costume, se o gasto além do teto vai ser limitado a este 2020 e se haverá “reformas”.

No entanto, mesmo as expectativas de inflação para 2021 (ora em 3,2%) estão abaixo da meta do BC (3,75%, em um intervalo admissível de de 2,25% a 5,25%), no cenário em que a Selic sobe do nível atual para dos atuais 2,25% para 3% no terço final do ano que vem e o dólar flutua pouco em torno de R$ 5. Sim, 2021, porque na prática taxa de juros básica já não teria como bulir com crescimento ou inflação neste 2020. Em tese, a Selic pode cair mais.

Mais importante do que saber da hipótese de um corte adicional de quarto de porcentagem foi o BC ter indicado que não está no horizonte uma política de juro zero. Se a Selic não vai a zero ou perto disso, não há possibilidade, na teoria padrão, de que o BC possa bulir com taxas de juros de prazo mais longo (o que poderia fazer comprando títulos do Tesouro, para o que tem agora autorização do Congresso).

De fato, é controversa a viabilidade de tal política em um país tão desarranjado quanto o Brasil. Em termos bem práticos e imediatos, note-se que as taxas de juros de prazo mais longo (cinco anos em diante) estão acima do nível em que estavam no início de março. É sinal de que há menos gente disposta a financiar o governo, que aliás está evitando pagar o preço (juro) alto. Tem coberto as contas com dinheiro do colchão e se financia no curtíssimo prazo.

Tal situação não pode perdurar por muito tempo. Ou se parte para políticas inconvencionais e/ou terá de haver um talho brutal na despesa ou vamos para o vinagre. Pressupõe-se também aqui que algum crescimento volta em 2021, bastante para recuperar ao menos metade do que vai se perder neste ano em queda do PIB, o que é apenas chute.

O que dá para saber é que, lá por setembro, não haverá auxílios emergenciais nem emprego, que a epidemia só terá terminado em caso de desastre (infecção quase geral e grande morticínio) e que não se sabe se haverá acordão entre governo e Congresso (e, pois, “reformas”), condicionado ainda ao que vai sair das investigações do Supremo sobre o bolsonarismo.

Os economistas do governo vão pagar para ver.


Vinicius Torres Freire: Ruim para os EUA, pior para o Brasil

Economia americana teve algum alívio em maio, mas depende de gás do governo

Maio foi um mês de despiora ligeira para a economia dos Estados Unidos. Houve mais festinha nas Bolsas marombadas e nova conversa sobre a projeção mais otimista de alguns adivinhadores profissionais, minoria para quem a recessão será em forma de “V”, queda e retomada rápidas.

O aumento das vendas do varejo americano em maio mais do que compensou as perdas de abril, embora o faturamento ainda esteja uns 8% abaixo do nível pré-epidemia. Cerca de 2,5 milhões de pessoas voltaram a trabalhar, mas falta empregar outros 20 milhões que foram para a rua na epidemia. Houve crescimento da indústria, embora bem abaixo do esperado.

Parte do salto das vendas foi consumo represado, de quem manteve o emprego e ficou com dinheiro na conta, poupança forçada devido ao confinamento. Parte foi graça dos trilhões de socorro do governo, que pagou uma renda básica instantânea e aumentou para valer o valor do seguro-desemprego —tudo somado, além da renda emergencial, o pacote é quase 50% maior do que o PIB brasileiro. Esse auxílio para trabalhadores e famílias acaba em julho.

O presidente do banco central, o Fed, Jerome Powell, disse ao Senado que a coisa ruim vai longe. A OCDE estima que o PIB americano caia 7,3% neste ano e chuta que, no ainda mais nebuloso 2021, cresça 4,1%, o que não recupera o prejuízo. Para o Banco Mundial, o PIB cai 6,1% em 2020 e sobe 4% no ano que vem.

Maio foi um refresco parcial em setores localizados. Haverá desemprego prolongado, redução de salários, redução no investimento, confiança baixa ainda por causa do risco de contágio, empresas falidas ou endividadas, destruição de capital, setores danificados por muito tempo (turismo, restaurantes, entretenimento etc.), ineficiências provocadas pela reabertura sujeita às condições do vírus e pilhas de outros problemas para fazer rodar a atividade econômica real. E há o problema das rendas de emergência e outros socorros. Como se dizia, os democratas querem dobrar a conta, para mais de US$ 4 trilhões (um quinto do PIB dos EUA).

Em escala e qualidade muito diferentes, o Brasil terá os mesmos problemas. Mas o governo federal americano não paga nada para se financiar (taxa real de juros zero ou menos do que isso); em parte, na prática, é bancado pelo seu Banco Central.

Esqueça-se, para facilitar, que a economia brasileira é uma carroça de roda quebrada perto da americana. A epidemia, por aqui, ainda irá mais longe do que nos EUA; os auxílios emergenciais e outros socorros, não. Em tese não haverá investimento público para dar impulso a uma retomada. Aqui, maio ainda foi mês de afundamento, embora o número de pessoas ocupadas tenha parado de cair.

As taxas de juros de prazo mais longo estão altas. O governo se financia no curtíssimo prazo ou paga contas com dinheiro que tem no colchão de emergência, a fim de evitar por ora o custo de se financiar no mercado.

Na receita da política econômica, a despesa com a epidemia terá de cair, o que vai arrastar a atividade econômica. O peso relativo da dívida pública continuará a aumentar (por falta de crescimento do PIB e de receita de impostos), o que já era um problema notório faz anos, antes desta calamidade.

A fim de evitar ruína sem fim, terá de haver uma mistura de crescimento rápido, juros (Selic) quase tão baixos quanto os de agora e alguma alta de impostos e/ou corte de gastos. “Reformas”, por si sós, não tiram a economia do chão, reconhece até a OCDE.

Nós não temos uma receita para essa mistura.


Vinicius Torres Freire: Três horror e uma saída pós-pandemia

Acemoglu pinta panoramas de opressão estatal e privada, mas aponta saída progressista

O mundo pode continuar no caminho da degradação até o ponto de surgir algo ainda pior do que desigualdade, descrença na democracia e nacionalismo populista. Pode sucumbir à tentação de adotar um despotismo eficaz como o da China. Talvez se renda à opressão privada das empresas gigantes de tecnologia.

Daron Acemoglu pinta esses cenários para um mundo depois da pandemia. Saída: retomar os avanços da social-democracia, prejudicada pela maré conservadora que subiu nos anos 1980.

Economista, historiador e professor do MIT, Acemoglu ficou mais conhecido pelo livro “Por que as Nações Fracassam”, que escreveu com James Robinson. Cedo ou tarde, deve ganhar um Nobel por algum dos seus trabalhos teóricos, um monte impressionante. Na idiotice do debate brasileiro, seria chamado de “ortodoxo”. Publicou no site Project Syndicate um artigo sobre o Estado no pós-Covid.

A pandemia é o que chama de “momento crítico”, um dos raros abalos que tiram a história dos países de certo movimento inercial. As consequências desses choques são incertas, mas pequenas diferenças nas decisões ou oportunidades de como enfrentá-los levam a desenvolvimentos muito diferentes e dificilmente reversíveis no longo prazo. O abalo atual é o enorme aumento do papel do governo (mais gasto, mais intervenções, mais vigilância) e/ou a necessidade de governança maior e mais competente.

No cenário “business as usual trágico”, não há mudança institucional. A desigualdade social e econômica se torna endêmica, assim como o desprezo por especialistas e ciência. A polarização e a descrença nas instituições democráticas se agravam.

Assim, governos mais poderosos e maiores, mas incapazes de lidar com a crise socioeconômica, provocam mais revolta ou mais indiferença pela vida pública. A tragédia é a desintegração da política democrática, como já se vê.

No cenário “China de Leve”, insegurança e incerteza podem levar as pessoas a querer um Leviatã. Pelo menos a pandemia indica que um governo forte é necessário para lidar com emergências.

A China seria um exemplo: sua infraestrutura política e técnica de controle social deu resposta mais rápida e eficaz à desgraça do vírus. Democracias seriam tidas como ineficientes e lerdas para lidar com crises tais e um mundo globalizado.

Aos poucos, o poder ampliado dos governos e a imitação de exemplos do despotismo opressivo mais eficaz dos chineses levariam os EUA a serem uma versão “bastarda” da China, sem as competências burocráticas tradicionais, um “Detran” atrapalhado por tuítes presidenciais.

No cenário “servidão digital”, as grandes empresas de tecnologia substituem cada vez mais o governo. Começam por testar e rastrear doentes; dão soluções à administração remota de fábricas e escritórios. Quanto mais indispensáveis, mais poderosas, dadas a subserviência e a inoperância dos governos.

O público deixaria de vez de se opor à coleta e à mercantilização de seus dados; à manipulação de seu comportamento. A economia da inteligência artificial seguiria na sua toada, que não é inevitável: produz desigualdade e obriga trabalhadores a viver da ninharia da renda básica.

A saída é pela social-democracia. Por que tal movimento não ocorreu até agora, se a tensão social e econômica fervilha ou explode, como nos protestos nos EUA? Acemoglu não diz. A crise é uma oportunidade de reorganizar a campanha por mais seguros sociais e regulação mais inteligente até para domar a iniciativa privada da inteligência artificial, de modo a criar mais empregos.

O governo, maior depois da epidemia, tem de ser controlado por novos meios de participação política democrática. Já aconteceu, depois da Grande Depressão e da Segunda Guerra. É preciso fazer política para que dê certo de novo.


Vinicius Torres Freire: Vírus matou mais emprego que recessão

Número de empregos perdidos desde a epidemia é maior que na crise de 2014-2016

A Grande Recessão brasileira levou mais ou menos dois anos para dizimar 2,5 milhões de empregos, que desapareceram entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016. A Grande Catástrofe da epidemia já destruiu mais de 3 milhões de empregos (na comparação com abril do ano passado).

Depois da Grande Recessão, o número de pessoas ocupadas em algum tipo de trabalho ainda continuou a cair até chegar ao fundo do poço em março de 2017. Levou mais dois anos, até 2019, para que tivéssemos um março dos tempos do pico do emprego.

Do saldo de empregos criados nesse tempo, dois de cada três eram de assalariados sem carteira assinada e “por conta própria” sem CNPJ, informal de todo, a julgar pelos dados da Pnad, a pesquisa do IBGE.

O emprego formal jamais voltou àqueles tempos pré-Grande Recessão. Pelos dados do registro de empregos formais do Ministério da Economia (Caged), ainda em dezembro do ano passado estavam desaparecidos 1,7 milhão de empregos com carteira assinada. Apenas neste ano, se foram mais 860 mil empregos com carteira assinada.

Quando a destruição vai parar? Não sabemos. Além do fato de que se trata de uma catástrofe, não sabemos quase nada desta crise. Não há com que comparar tamanho desastre. Hipóteses são formuladas apenas para que se possa ter uma ideia que possa ser corrigida assim que aparecem os primeiros e ainda muito preliminares retratos da devastação.

Além da desinformação inevitável, por ora, não há medidas novas do impacto da epidemia nem ideias novas para evitar ruína maior. O país está catatônico, apavorado, como quase o mundo inteiro, e ainda desgraçado pelo desgoverno e pela discussão agora aberta de golpe, impeachment ou alguma destruição institucional extra.

Nem é preciso mencionar, a sabotagem das medidas de isolamento, a falta de política federal de controle da doença e a descoordenação nacional já prolongaram a duração da pior fase da epidemia aqui no Brasil. Sem perspectiva de melhora, não há hipótese de retomada organizada. O país preferiu se atolar em um cemitério sem fim.

Economistas do Bradesco, por exemplo, trabalham com a hipótese tentativa de que o fundo do poço da renda do trabalho ocorreria em algum momento do terceiro trimestre (ressalte-se, entre os distantes julho e setembro). Supondo que se trate de um bom chute informado, a bola de neve da crise ainda vai engrossar.

O auxílio emergencial de R$ 600 terá algum efeito de mitigar o massacre. Pelas estimativas de despesa do governo, a soma desses auxílios equivaleria a cerca de um quarto da soma de todos os rendimentos do trabalho pagos por mês no país, pelo registro da Pnad. Equivale ao valor anual de quase dois Bolsa Família, mas pagos por mês.

Mas essa renda extra não vai salvar setores que vendem bens e serviços mais caros, menos ainda aqueles que estão fechados e que, na reabertura, sofrerão especialmente os dados da vida anormal sob epidemia: restaurantes, serviços pessoais, comércios, viagem, entretenimento.

Já há evidências anedóticas de lojas e restaurantes que, reabertos, não conseguem faturar para pagar os custos de manutenção da reabertura.

O medo da doença e o medo do futuro (para quem ainda tem o que gastar) colocam o consumidor na retranca. O crédito bancário entrou na retranca. O investimento entrou em colapso.

A epidemia será comprida por causa do isolamento à moda brasileira, entre selvagem e negligente. A crise econômica correrá em paralelo.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ignora debate econômico para tratar de cocô petrificado, taxímetro e três pinos

Guedes propõe vender BB, legalizar cassinos, 1 milhão de aprendizes militares e detona investimento público

Dois ministros discutiram de modo agressivo um plano de reconstrução econômica em parte baseado em obras públicas na reunião de 22 de abril, tornada pública agora pelo Supremo. Jair Bolsonaro nada disse do debate entre Paulo Guedes (Economia) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) acerca do futuro pós-epidemia.

Em matéria econômica, quase se limitou a adiar para 2023 (em uma eventual reeleição) a ideia de privatizar o Banco do Brasil, proposta por Guedes, e a dizer que a crise decorrente do fechamento do comércio era uma “trozoba” que empurrariam “para cima da gente”.

No mais, em assuntos correlatos, tratou de algumas de suas obsessões, como mudanças em taxímetros, em tacógrafos e no “chip na bomba de combustível” (“putaria!”) e na tomada de três pinos.

Mencionou ainda problemas regulatórios, por assim dizer, quando afirmou que “cocô petrificado de índio” (problemas de patrimônio histórico) travava uma obra do empresário Luciano Hang (dono da Havan). Ou quando elogiou medida que facilitou a vida de milhares de pessoas no Vale do Ribeira, região paulista em que passou infância e adolescência.

No debate da política da reconstrução, Marinho criticou “dogmas” (as posições de Guedes) e disse que o aumento da despesa federal com a epidemia seria grande, uns R$ 600 bilhões, a fim de evitar problemas sociais e quebra de empresas. Assim, seria adequado empregar de 5% a 10% desse valor em obras de infraestrutura e promoção do emprego durante uma recuperação que “vai ser muito lenta”.

No encontro, Guedes (Economia) e o ministro Marcelo Antônio (Turismo) defenderam a legalização dos cassinos, como incentivo ao turismo. A fim de convencer a ministra Damares Alves (Direitos Humanos), que se opõe ao jogo, Guedes disse: “O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem…, bebe, sai feliz da vida. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se f…, ô, Damares”.

Guedes disse ainda que o Brasil poderia se beneficiar de mais investimentos americanos caso assinasse o “General Purchase Agreement”. Talvez se referisse ao “General Procurement Agreement” (Acordo de Compras Governamentais), acordo patrocinado pela OMC, que pode abrir as concorrências públicas a maior participação de empresas estrangeiras.

O ministro da Economia pareceu dizer que tenta também organizar com o ministério da Defesa a contratação de “um milhão de aprendizes” pelos “quarteis brasileiros”. Os jovens receberiam cerca de R$ 200 por alguns meses, teriam aulas de “organização social e política do Brasil”, disciplina escolar dos tempos da ditadura, fariam exercícios físicos e talvez trabalhassem em obras públicas.

A reunião ministerial era destinada à apresentação do plano Pró-Brasil, que seria anunciado ao público naquela mesma quarta-feira, 22 de abril, pelo ministro Braga Netto (Casa Civil). Fazia dias, o plano era vazado e motivo de atritos entre Guedes e Rogério Marinho. Braga Netto não apresentou mais detalhes do plano do que na entrevista coletiva. A ideia foi atacada duramente por Guedes.

O ministro da Economia disse, para começar, que chamar a proposta de Plano Marshall revelava “despreparo enorme” (o plano foi um programa de auxílio à Europa patrocinado pelos EUA, após a Segunda Guerra mundial). De passagem disse que a “China deveria financiar um Plano Marshall para ajudar todo mundo que foi atingido”.

Enfatizou sua posição de que a retomada do crescimento deve ser conduzida por “investimentos privados, pelo turismo, pela abertura da economia, pelas reformas”.

Diz que o plano de obras públicas tinha a “digital” de Marinho e insinuou que era eleitoreiro, para este ano, quando o adequado seria pensar na reeleição de Bolsonaro, seguindo o plano de longo prazo de seu ministério. Diz que o “Pró Brasil” foi vazado para “a imprensa” de modo a passar a impressão de que seu ministério “estava fora”.

Marinho defende-se em seguida. Insinua que as acusações de Guedes são “teoria da conspiração”. Diz que “não existem verdades absolutas”, pois em um uma crise inédita seriam necessários “remédios extraordinários, de forma circunstancial”.

Governos liberais, diz, estariam “preparando programas de reconstrução”: “muda o papel do Estado”. Lembra o caso das grandes despesas públicas com “capital humano e infraestrutura” da Alemanha na reunificação, nos anos 1990, a fim de reduzir a desigualdade entre as partes Ocidental e Oriental do país.

Mais tarde, quase no final do encontro, Guedes volta ao ataque por este ponto. Diz que conhece o caso dessa e de outras reconstruções por ter lido oito livros sobre cada assunto; que leu Keynes três vezes no original antes de fazer seu doutorado nos EUA.

Guedes respondeu que não havia dogma. Que o governo seguia na “direção norte”, com “reformas estruturantes” e “de repente”, depois da epidemia, foi “para o sul”, fazendo programas de auxílio antes de alemães e de ingleses, “só atrás um pouquinho” dos EUA.

No mais, era o caso de manter as contas públicas arrumadas, com ajuda por exemplo da reforma da Previdência, da queda dos juros e da contenção do salário dos servidores. “Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito”.

As exportações iriam bem, mas é preciso ser cuidadoso com a China. “A China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar, porque, ‘procês’ terem uma ideia, para cada um dólar que o Brasil exporta ‘pros’ Estados Unidos, exporta três pra China”, disse o ministro.

O ministro Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) diz que os investimentos privados virão, mas as obras apenas começariam em 2023 e 2024. De imediato, seria necessário algum dinheiro extra para seu ministério, que teria capacidade operacional de investir no máximo R$ 14 bilhões por ano. Logo, com orçamento atual de R$ 8 bilhões, precisaria apenas de um complemento de até R$ 4 bilhões em obras que poderiam ter efeito imediato para “gerar emprego”. Ao encerrar sua participação, Freitas diz: “Tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram pra História. Um foi o Roosevelt, o outro foi o Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro”.

Roberto Campos, presidente do Banco Central, disse que resumiria sua intervenção a notar “três pontos importantes”: 1) O setor privado no mundo inteiro estaria com medo de “tomar risco”: “não vai ter como ter uma saída rápida sem que o governo não entre, de alguma forma, tomando risco”; 2) Análise de despesas extras do governo pelo critério de maior efeito na preservação de emprego e boas empresas; 3) Boa governança de projetos de infraestrutura, colocando “agentes internacionais que fazem governança mundial”.