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Vinicius Torres Freire: Bolsonaro frita Guedes na primeira vez em que tenta governar

Presidente joga para a plateia e quer que ministro faça mágica no gasto social

Jair Bolsonaro tem de tomar sua primeira decisão relevante de governo: o dinheiro que seria destinado ao Bolsa Família Verde Amarelo. O que acontece então nessa situação inédita?

Bolsonaro frita o ministro Paulo Guedes (Economia) em público.

Em um palanque, disse que não vai tirar dinheiro de pobres para dar a paupérrimos. É fato que o Ministério da Economia havia vazado esse plano de renda básica sem ter o “tá ok” do presidente. Tais coisas acontecem porque o governo não tem rumo, programa e Bolsonaro lida com os ministros como se fossem estranhos: não governa, libera o desgoverno (Educação, Ambiente, Itamaraty) ou o não-governo (Saúde).

O pito de Bolsonaro virou rebu. Ministros vazaram intrigas contra Guedes para jornalistas e povos dos mercados. Azedou o clima entre credores do governo e negociadores de dinheiro em geral, que ignoraram pedidos de “patriotismo” de Bolsonaro. Juros e dólar subiram.

O ambiente na finança melhorou um tico quando Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara e do parlamentarismo branco, reafirmou que não vai passar no Congresso qualquer tentativa de burlar o teto de gastos e que é preciso rever vinculações de despesas, sem dizer quais.

Maia também disse que a Economia vazou planos que não estavam autorizados por Bolsonaro. Ou seja, nesta rodada da refrega entre o governo e o ministro, bateu em Guedes. O deputado reassumiu a regência do programa econômico reformista, pois.

De que vinculações falava Maia? Do piso da saúde e da educação? É a última grande despesa carimbada. Os outros gastos obrigatórios relevantes são aqueles vinculados ao salário mínimo, como o piso da Previdência e de benefícios assistenciais, e salários de servidores.

Maia, assim como Guedes, está dizendo que o dinheiro para o Renda Brasil terá de vir do corte de outras despesas. Bolsonaro quer que Guedes faça mágica ou joga para a plateia (“não me deixam governar”).

Mantido o teto, não há dinheiro para os planos sociais que podem sustentar a popularidade presidencial a não ser que se compre uma briga social feia.

No entanto, mesmo o corte brabo de salários de servidores previsto na PEC Emergencial renderia uns R$ 15 bilhões em 2021 e R$ 37 bilhões em 2022. Isto é, o dinheiro demoraria a chegar e iria todo para o Renda Brasil. Assim, o investimento em obras cairia para perto de zero.

Guedes quer financiar o Renda Brasil com cortes do abono salarial, do Farmácia Popular e do seguro desemprego sazonal de pescadores, o que daria no máximo uns R$ 24 bilhões. Um Renda Brasil que pague R$ 270 mensais a 20 milhões de famílias custaria quase R$ 65 bilhões por ano (o Bolsa Família custa R$ 33 bilhões anuais). Bolsonaro quer um programa maior.

O que sobra para talhar?

Benefícios de Prestação Continuada (BPC), que pagam mais de R$ 60 bilhões por ano a idosos e pessoas com deficiência muito pobres. Ou uma redução de despesas com o seguro desemprego, que antes da calamidade estavam orçadas em R$ 35 bilhões em 2020. Esses cortes não passam no Congresso.

Logo, Bolsonaro está em uma sinuca de bico, como diz o povo. Começou a tratar Guedes como tratava Sergio Moro nos meses antes da degola: desautorizações e pitos do tipo “quem manda sou eu”. O Posto Ipiranga foi reduzido a loja de conveniência.

Muita gente acha que já tem uma faixa de “passa-se o ponto” na lojinha. Que fosse. Nada disso resolve o problema político-eleitoral de Bolsonaro. Para resolver, ou derruba o teto sem mais, à matroca, o que vai dar em besteira econômica, ou compra briga social.


Vinicius Torres Freire:Bolsonaro tem de comprar briga social ou derrubar o teto para bancar plano verde-amarelo

Falta dinheiro para plano verde-amarelo; ideia é mexer em servidores e vinculações

Jair Bolsonaro quer mais do que dobrar a despesa com o Bolsa Família, associar o programa a um plano de emprego e rebatizá-lo de “Renda Brasil” ou de “Alguma Coisa Verde Amarela”. Não há dinheiro.

Assim, o governo faz um psicodrama fiscal em público: “Bolsonaro quer”; “heroica equipe econômica se debate” para encontrar o tutu. Não vai achar a não ser que:

1) derrube o teto de gastos;

2) corte salários de servidores: vai ser a próxima ofensiva, que tem apoio de Rodrigo Maia e ganha ares de campanha;

3) acabe com vinculações e indexação de despesas previstas na Constituição (como o piso para saúde e educação ou o reajuste do salário mínimo pela inflação);

Dado o teto de gastos, apenas é possível aumentar a despesa com o Bolsa Família Amarelo arrumando dinheiro em outra parte do Orçamento (zerando o gasto em obras ou dando cabo de programas sociais como o abono salarial).

Mesmo assim, fica-se longe do Renda Brasil de Bolsonaro: R$ 300 mensais para 20 milhões de famílias daria um aumento de despesa de quase R$ 40 bilhões. Por ora, derrubando o abono e algo mais, haveria pouco mais de metade desse dinheiro.

A história de financiar o Renda Brasil com o fim das deduções com instrução e saúde do Imposto de Renda é ficção (a não ser que se invente gambiarra). Haveria mais receita com esse aumento de imposto, de resto justo, mas o gasto desse dinheiro estaria limitado pelo teto.

Até o final deste mês, o governo tem de mandar para o Congresso o Orçamento de 2021. Em tese, teria de mandar tão logo quanto também as emendas constitucionais que permitiriam reduzir salários de servidores, desvincular despesas e derrubar o abono salarial. Ou então inventar um arranjo qualquer para fazer com que tais dinheiros, quando livres, pudessem ser gastos em outra coisa.

Mais que isso, Paulo Guedes quer vincular a nova renda básica à redução de impostos sobre a folha salarial, para o que conta com uma espécie de CPMF. Note-se o tamanho do salseiro.

O governo vai fazer tudo isso, de uma vez só? Tanta emenda constitucional que mexe com tanta gente, com o funcionalismo e que aumenta imposto?

Além do mais, vazou para os jornais um rumor de que o ministro da Economia quereria também complementar a renda de quem estivesse no Renda Brasil e tivesse emprego “verde-amarelo”, de modo a fazer com que o rendimento final do beneficiário chegasse a pelo menos um salário mínimo. Muito bem, mas não há dinheiro, repita-se, dado o teto etc.

Guedes quer bancar seus programas sem mexer no teto de despesas, fazendo com que o gasto seja mais eficiente e também mais justo em termos sociais, diz. Tudo bem. Em termos econômicos, apenas mudar a despesa de uma rubrica para outra não vai resolver o provável problema de cortar os gastos deste ano de calamidade: uma redução de meio trilhão de reais terá qual efeito na atividade econômica de 2021?

O governo passou uma tinta e consertou a fiação do programa Minha Casa Minha Vida, reinaugurado com o nome de Casa Verde Amarela, mas que terá pouco mais dinheiro e, no fundo, não mexe com o problema urbanístico-social do programa petista. Vai ter juros menores, talvez inclua mais gente e vai renegociar os atrasados (mas, na pobreza ainda mais acentuada de agora, é difícil ver como o calote não voltará a crescer). Não dá para aumentar o Casa do Picapau Amarelo porque, entre outros problemas, não há dinheiro.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro soma vitórias e se revigora no caos que criou

Tolhido pelo que resta de razão no país, presidente se revigora no caos que cria

Jair Bolsonaro lembra um daqueles monstros ou vilões de filmes juvenis de ação, que se fortalecem quanto mais tiros levam, que se revigoram no caos e na destruição e assim se reerguem das ruínas. Parece a mão do morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento.

Seus adversários e inimigos têm ficado pelo caminho: os panelaços, os manifestos dos letrados, a “frente ampla”, as torcidas de futebol nas ruas, os pedintes de impeachment, os cientistas, os ambientalistas, Luiz Mandeta, Sergio Moro, os indignados com o morticínio.

Quem impõe limites a Bolsonaro e impede seus atos maiores de desgoverno acaba por ajudá-lo. Em meados de junho, no pico da sua impopularidade e da onda de comícios golpistas, prenderam o gerente da boca de rachadinha da família, Fabrício Queiroz. Acabou por ser uma vitória acidental.

O caladão que lhe foi em parte imposto pelo que resta de República, os dinheiros dos auxílios emergenciais e a reabertura avacalhada da economia recuperaram Bolsonaro. Além da complacência de Justiça e polícia, apareceram mais boas notícias.

O emprego formal está no nível mais baixo desde que se tem registro, desde 2013, mas voltou a subir em julho. A massa (soma) de salários também. Quanto mais aumentar, menos notável e dramático será o fim do auxílio emergencial, lá pelo fim do ano. Nesta segunda-feira, todos os shoppings do país estarão reabertos.

A semana que passou começara com o que parecia uma derrota no Senado. Mas a Câmara ratificou a decisão do presidente de vetar qualquer reajuste de servidores até o final de 2021. Deu-lhe 316 votos, quase o bastante para aprovar um remendo da Constituição. Ou seja, “o sistema” quer governar para Bolsonaro, tocar esse programa reformista do establishment. O presidente atrapalha, mas se beneficia.

O governo era contra auxílios emergenciais em geral (dizia que a economia decolaria contra o vento contrário cheio de vírus do mundo). Bolsonaro queria liberar reajustes para certos servidores, em particular policiais. Jamais defendeu ou entendeu controle de gastos; na miúda, tenta burlá-lo.

O país se acostumou aos mil mortos por dia. Até pela natureza bárbara das epidemias duradouras, o número de doentes e mortes deve diminuir a partir de setembro. A doença comprida terá prejudicado a retomada mais precoce da economia, mas isso é uma abstração para o povo na rua. Daqui em diante, a carnificina será cada vez menos notada, embora atroz. O Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana.

O juro baixo do mundo rico nos ajuda. Na média, o comércio volta ao azul, apesar da destruição imensa em vários setores. O real desvalorizado faz o progresso de regiões exportadoras. Até o gasto menor em viagens internacionais ajuda a movimentar partes da economia.

Sim, estamos na pior recessão da história, a convalescença terá sequelas e ninguém sabe dizer como reagirá a economia a um ajuste fiscal abrupto em 2021. Mas centenas de bilhões de reais e auxílios, cortesia de sociedade, atenuaram e atenuarão dores e horrores. Ponto, porém, para Bolsonaro.

O presidente já foi descrito como um parasita político pelo filósofo Marcos Nobre, nas páginas desta Folha. Quer destruir o “sistema”, a “velha política” e a “esquerda”, todos que discordam dele, a quem atribui as desgraças do país. Mas se vale do “sistema” que resiste e funciona, apesar do seu desgoverno.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro posa de responsável fiscal e fatura politicamente a crise do veto

Presidente aproveitou bobagem do Senado para fazer gol político, mas gosta de um gasto

Os senadores deram uma oportunidade para Jair Bolsonaro fazer um show de responsabilidade fiscal. O presidente fez pose no noticiário e no delírio das mídias sociais. Faturou politicamente uma bobagem demagógica do Senado. Só que não se trata disso, de responsabilidade.

O Senado havia derrubado veto de Bolsonaro a um parágrafo da lei de socorro a estados e municípios. A lei proíbe reajustes de salários e outros aumentos de despesas com servidores de todo o país até o fim de 2021. O parágrafo vetado abria exceção para profissionais de saúde, de assistência social, de limpeza, de policiais etc. envolvidos no combate à pandemia.

Nesta quinta-feira (20), a Câmara validou o veto, em um dia agitado como se estivessem reconstruindo os muros da Bastilha fiscal. Sim, o reajuste não faz mesmo sentido. Sim, há cheiro de queimado na praça financeira. Desde a segunda semana de agosto, as taxas de juros de prazo mais longo voltaram a dar saltos (em julho, haviam voltado a níveis pré-pandemia). Mas quem fez a chacrinha “fura-teto” foi o próprio governo, que de resto não tem projeto organizado para nada, das contas às “reformas”.

Bolsonaro não liga muito para o tamanho da despesa a não ser que: 1) veja uma possibilidade de fazer show midiático; 2) apareça um rolo com consequências notáveis para a sua reeleição.

O presidente quer o monopólio da concessão de benefícios e favores. Diminuiu o alcance da reforma da Previdência, deu reajustes para policiais, para as Forças Armadas e bilhões para uma estatal da Marinha fazer navios. Sabota o quanto pode a reforma administrativa e avacalha emendas constitucionais de redução de despesa com servidores que seu próprio ministro da Economia manda para o Congresso.

O próprio Bolsonaro apoiava a exceção que acabou enfim por vetar, por insistência de Paulo Guedes. Ele mesmo cruza a bola que cabeceia para fazer o gol da confusão permanente que é seu desgoverno.

O governo, de resto, fez um show com o tamanho dessa crise do veto. O Senado de fato colocou mais água no moinho das tentativas de elevar gastos, manobras avacalhadas para dar um jeito no teto de despesas sob o pretexto de estimular a economia e atenuar problemas sociais. Nada disso vai prestar, posto dessa maneira. Mas o governo superfaturou essa crise.

Segundo o governo e seus economistas, a derrubada do veto reduziria em dois terços a economia prevista com a proibição de reajustes, coisa de quase R$ 90 bilhões. Esse número não parece fazer sentido algum.

A derrubada do veto não implicaria reajustes, para começar. Para continuar, a despesa com “remuneração de empregados” nos estados e municípios foi de uns R$ 662 bilhões em 2019 (o governo federal está fora da conta porque se supõe que não concederia reajustes, certo?). Seria preciso dar baitas reajustes a todos os funcionários do país inteiro para essa conta parecer razoável.

E daí? Daí que a discussão é uma mixórdia de baixo nível, condizente, portanto, com esse governo. Nas mídias sociais, era possível ler o povo bolsonariano dizendo que os senadores haviam se dado reajustes, por exemplo.

O arranca-rabo desnecessário e de fancaria ajuda a complicar a vida de Guedes no Congresso, em particular no Senado, a quem acusou de cometer “um crime”, o que deixou a turma possessa por lá. A gente podia ouvir senador dizendo “quero ver o seu Guedes vir aqui com cara de pau falando de concórdia e pedindo suas reformas”.

Bolsonaro deve ter ficado feliz como pinto no lixo, na confusão, no caos que o revigora.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro assopra Guedes, mas luta política pelo gasto continua

Governo e Congresso fazem cerimônia de culto ao teto de gastos, mas problema continua

Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre juntaram-se para um breve culto do teto de gastos e para dar uns tapinhas nas costas do ministro da Economia, Paulo Guedes, estressado por debandadas várias. Sabe-se lá o que vai sair de prático das reuniões e do pronunciamento da noite de quarta-feira. No que vale prestar atenção:

1) Se a conversa fosse para valer, não haveria dinheiro para um Renda Brasil, o Bolsa Família gordo que Bolsonaro quer chamar de seu na eleição de 2022;

2) Maia disse que na reunião do Alvorada houve um compromisso de regulamentar os gatilhos do teto. Parece um tédio infinito, mas é coisa grande –mais sobre isso adiante;

3) Alcolumbre disse que a retomada (pós-pandemia) tem de ter “responsabilidade fiscal e social”.

Além de Bolsonaro, Maia (presidente da Câmara), Alcolumbre (presidente do Senado) e Guedes, na reunião estavam também os ministros “fura teto” (no dizer de Guedes), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), além de líderes do governo no Congresso e do centrão.

“Regulamentar os gatilhos do teto” significa colocar na Constituição e em leis que a despesa federal vai ser cortada dessa e daquela maneira, obrigatoriamente, quando o gasto chegar ao limite constitucional. No final do ano passado, o governo enviou ao Congresso uma PEC para regulamentar esse talho, que vigoraria imediatamente, dada a situação das contas públicas.

O que aconteceria? Salários e jornada de servidores federais seriam cortados em até 25%; seriam proibidos reajustes, promoções, concursos etc. Seria proibido criar despesa obrigatória, o que inclui reajuste de salário mínimo e aposentadorias acima da inflação. Um programa de Renda Básica teria de ser inventado antes disso, portanto.

Quanto ao programa de Renda Básica, ora não há dinheiro, dados os limites do teto. Suponha-se que o Bolsa Família passe a atender 19 milhões de famílias (hoje são 14,3 milhões) com um benefício médio de R$ 232 (atualmente de R$ 190), como previa o governo também no final de 2019. A fim de bancar apenas essa despesa, seria necessário dar fim ao abono salarial de um salário mínimo por ano para quem ganha até dois mínimos e do seguro-defeso (seguro desemprego sazonal para pescadores). Já seria um problema enorme. Alguns dinheiros poderiam vir do fim de alguns subsídios tributários, poucos, ou do talho final da despesa em obras, inviável.

Mas lá no Alvorada estava Alcolumbre a falar de “responsabilidade social”. Estava o centrão, do qual depende o pescoço de Bolsonaro. O que vai sair disso, politicamente?

Depende da eleição do comando de Câmara e Senado; da popularidade de Bolsonaro; do que vai ser a economia depois de setembro, por aí.

Por ora, o culto do teto deve dar uma acalmada “no mercado”. Mas há empresários “fura teto” na construção civil e entre seus fornecedores, que querem obras, em especial de casas populares, para o que não há dinheiro, dado o teto de gastos. Além do mais, no Congresso alguém vai pelo menos pensar em uma gambiarra para acomodar todos esses interesses: de Bolsonaro, da finança, dos “fura teto”, da renda básica etc.

Em resumo, o jogo continua. Houve uma parada para o massagista passar uma aguinha em Paulo Guedes, que deu um grito de Neymar caído no gramado, e para o juiz olhar no VAR se houve impedimento no ataque ao teto. A primeira grande jogada acontece até o fim do mês, quando o governo manda ao Congresso o projeto de Orçamento de 2021.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e Guedes querem tirar bilhões dos ricos da classe média

Reforma tributária do governo reduz FGTS, aumenta IR e custos de serviços para o 10% mais rico

A reforma tributária Bolsonaro-Guedes quer tirar R$ 32 bilhões por ano dos trabalhadores com carteira assinada, porque pretende diminuir a contribuição patronal para o FGTS. Quer acabar com as deduções com despesas médicas e educação no Imposto de Renda ou limitá-las —se acabasse com tudo, seriam outros R$ 20 bilhões anuais.

O imposto que substituiria o PIS/Cofins, a CBS, deve aumentar a carga tributária, em particular pesando mais sobre serviços consumidos pelos mais ricos, que se chamam de classe média (que pagam escolas e outros cursos, profissionais de saúde, terapeutas em geral, advogados, arquitetos etc.). Uma nova CPMF vai encarecer tudo para todo mundo e vai reduzir ainda mais o rendimento das aplicações financeiras. Lucros e dividendos seriam mais tributados, pegando de jeito profissionais liberais.

Em resumo, o 10% mais rico do país, que tanto votou em Jair Bolsonaro, não parece ciente de que está para levar uma tunga do seu eleito. Esse 10% mais rico se chama de “classe média”, pois mede seu padrão de consumo com a escala de países como Estados Unidos e aqueles da Europa ocidental. A maioria de fato não é “rica”, nesse critério, mas está no topo da pirâmide da pobreza brasileira.

O governo quer reduzir a contribuição patronal para o FGTS de 8% para 6% —seria um corte de R$ 32 bilhões na arrecadação anual do fundo (segundo dados de 2019).

Em 2019, a Receita Federal estimou que os 12,9 milhões de declarantes do IR pelo modelo completo deixaram de pagar R$ 4,6 bilhões de imposto por causa da dedução com instrução e outros R$ 15,5 bilhões com a dedução de despesas de saúde. Nas contas dos economistas Fábio Goto e Manoel Pires, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (que o governo quer no lugar do PIS/Cofins) aumentaria a carga tributária (publicaram essa análise no Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia, Ibre, da FGV).

Essas contas são meras primeiras aproximações. Não é assim que se calcula efeito de imposto. A redução do custo do FGTS pode de fato ajudar a criar algum emprego, diminuindo a perda de receita total do fundo (mas não o pagamento para cada trabalhador). Acabar com as deduções de saúde e educação pode ser um tiro pela culatra (os contribuintes podem recuperar as perdas declarando pelo modelo simplificado), para dar outro exemplo. Mas vai ter tunga, caso o plano Bolsonaro-Guedes vá adiante.

Em alguns casos, não se trata de má ideia, a depender do destino desses dinheiros. O problema é que a reforma tributária do governo vai sendo chutada, vazada, rumorejada ou apresentada à matroca. Desde o ano passado, é um monte de balões de ensaios, de “vamos ver se cola”, de tentativas reiteradas de dar um jeitinho de passar uma CPMF. Etc.

Isso não presta.

Bolsonaro está para chegar à metade do seu mandato (está em 40%) e seu governo não tem um plano organizado de reforma tributária (sim, eu sei, é uma crítica retórica, não existe governo em quase parte alguma).

Não é possível entender uma reforma de impostos sem conhecer suas partes, como se deixa de arrecadar, como se passar a recolher imposto etc. O óbvio. Não é possível fazer contas ou saber quem paga a conta. Nada. É uma mixórdia, parece conversa de quem faz rolo (como Bolsonaro dizia de seu amigão Fabrício Queiroz), de quem gosta de conto do vigário, de negócio da China.


Vinicius Torres Freire: Dólar cai pelas tabelas e pode levar o juro brasileiro junto

Economia brasileira está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro

Dólar a R$ 5 já foi motivo de meme. Agora, além do Banco Central e dos povos dos mercados, pouca gente fala no assunto, talvez porque faltem reais até para os remediados, porque os importados sumiram dos supermercados de bairro rico, dada a carestia, e porque não se pode viajar para fora.

De março a junho, a despesa dos brasileiros com viagens internacionais foi de US$ 1,25 bilhão. No mesmo período do ano passado, de US$ 5,8 bilhões. No tempo em que "empregada doméstica ia para Disneylândia, uma festa danada", segundo Paulo Guedes, o gasto era de US$ 8 bilhões (em 2013 e 2014).

Mas o assunto aqui não é a mentalidade doméstica do ministro da Economia e sim o dólar, que cai pelas tabelas.

Depois do pico do pânico financeiro de março, a moeda americana perdeu valor, baixando ao menor nível desde 2018 em relação ao dinheiro de seus parceiros comerciais. Está longe ainda, uns 20%, do fundo do poço de 2011-12, mas se tornou assunto da finança, até porque as taxas de juros americanas de prazo mais longo também foram ao chão.

Seria um indício ou expectativa de que a recuperação da economia dos Estados Unidos pode ir para o vinagre. A epidemia está descontrolada também por lá e talvez não sejam renovados pacotes de socorro, em particular para os desempregados, o que se tornou um problema por causa dos senadores do Partido Republicano de Donald Trump.

De resto, há o temor de que o Nero Laranja queira melar o resultado da eleição presidencial de novembro.

A economia americana afundou menos do que a dos países da zona do euro nesta primeira metade do ano. Caiu 1,3% no primeiro trimestre (em relação ao anterior) e outros 9,5% no segundo. Na eurozona, as baixas foram respectivamente de 3,6% e de 12,1%. No Brasil, mero lembrete, foi de 1,5% no primeiro trimestre e, estima-se, deve ter sido de 11% no segundo. A China já zerou as perdas no ano, melhor que todo mundo.

Há, no entanto, mais elogios e esperanças para a Europa, que conteve a epidemia, vê seu euro se valorizar e está com um desemprego menor que o americano. Na zona do euro, a taxa de desemprego passou de 7,5% em 2019 para 7,8% na medida mais recente; nos EUA, de 3,7% para 11%.

A União Europeia acaba também de dar sinal de coesão e vontade de superar a crise de modo algo mais civilizado, com um pacote inédito de endividamento coletivo (como se fosse um país) equivalente a R$ 4,6 trilhões, para ajudar os mais avariados do bloco.

E daí?

No que interessa de mais imediato, o Banco Central do Brasil dizia que um dos problemas de baixar ainda mais a taxa básica de juros (Selic) era o risco de desvalorização extra do real, o que teria efeitos contraproducentes (seria um desestímulo econômico).

Hum. Parece que esse risco pelo menos diminuiu. Como a inflação prevista para 2021 está abaixo da meta, a economia está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro, conviria não dar chance para o azar (economia deprimida com inflação baixa).

Em segundo lugar, a lerdeza americana deve levar o Fed a manter seus juros básicos a quase zero por tempo a perder de vista e recorrer a medidas mais heterodoxas para reduzir juros de prazos mais longos. É outra ajudazinha para mantermos os nossos juros aqui também miudinhos.

Não é bom, claro, que a economia americana azede. Mas temos de levar em conta o fato da baixa do dólar e das taxas de juros por lá. A propósito, nesta semana tem decisão de juros do Banco Central daqui."


Vinicius Torres Freire: Ganha força a ideia de gastar dinheiro da calamidade do vírus em obras públicas

Mais gente quer furar o teto de gastos

Há gente no Congresso querendo mesmo abrir uma claraboia no teto de gastos. Isto é, quer permitir que o governo federal gaste além do limite constitucional, pelo menos neste ano ou em 2021.

A despesa extra seria destinada a investimentos e autorizada por um remendo no Orçamento de Guerra, o gasto excepcional autorizado no período de calamidade, declarado por causa da epidemia e que deveria durar até o final deste 2020.

O objetivo da providência talvez imprevidente seria o de fazer esta economia arriada pegar no tranco, por meio de obras novas ou da reativação de canteiros parados, o que aumentaria as encomendas às empresas e criaria empregos.

Seria razoável rediscutir o teto de despesas federais, que desde 2016 não podem aumentar em termos reais (ou seja, apenas podem ser corrigidas pela inflação, anualmente).

Os termos dessa rendição, no entanto, são muito, muitíssimo, complicados. Não é algo que se possa fazer à matroca ou por meio de gambiarras. Do jeito que a coisa vai, há um grande risco de esculhambação, com efeitos impremeditados e contraproducentes graves.

Por ora, parece difícil que tal projeto prospere, mas a ideia está no ar como um aerossol de coronavírus, faz uma duas ou três semanas. Havia sido lançada de modo atabalhoado, confuso e mal explicado em abril deste ano, o tal “Plano Pró-Brasil”, abatido por Paulo Guedes no ato do seu lançamento.

Agora, é motivo de conversa de gente de vários partidos, em particular no centrão, e de ministros de Jair Bolsonaro.

Qual o problema de dar uma furadinha no teto de gastos, usando recursos do Orçamento de Guerra?

Um deputado argumenta que, dado o déficit previsto de mais de R$ 800 bilhões neste ano, gastar uns R$ 30 bilhões ou R$ 50 bilhões não faria diferença no rombo, seria um cisco em um olho vazado.

Pode ser. A depender do tamanho da gambiarra, os credores do governo podem achar que se trata do começo de uma grande amizade, da primeira porteira derrubada de um “liberou geral”.

E daí? Daí as taxas de juros de prazo mais longo sobem, o real se desvaloriza e o tiro sai pela culatra.

Segundo problema, mas não menos importante, não há projetos, planos e meios de controle para gastar direito tais dinheiros. Muitas obras não andam porque são tecnicamente mal projetadas. Desperdícios, roubanças e falta de critério e prioridade são frequentes. É possível que enfiem jabutis nos gastos de investimento (gastos correntes, como despesas com salários e outros contrabandos).

Seria conveniente que houvesse alguma agência de controle de investimentos.

É razoável dizer que a retomada econômica será lenta sem um tranco de investimento público (o PIB se arrasta desde o fim da recessão), entre outros problemas de uma estagnação longa, como a destruição ou a obsolescência de capital, físico e humano.

No entanto, dados o tamanho da dívida, do déficit, da composição do gasto público e sua má qualidade, é bem razoável também dizer que a mera abertura da porteira para gasto extra, ainda que investimento, não é capaz de reativar a economia.

Nosso buraco é fundo e a discussão de como sair deste desastre é enrolada. É razoável pensar em mais investimento público.

Uma discussão séria do problema, porém, envolve grandes remanejamentos de despesa, aumento de carga tributária, um plano realista de contenção da dívida pública (um teto esperto). Tudo isso depende de um novo acordo nacional, um debate difícil e profundo, orientado por um governo construtivo. Nada disso existe.


Vinicius Torres Freire: Começa a eleição da governança do país

Disputa pelo comando da Câmara move partidos e deve redefinir 'parlamentarismo branco'

O que existe de governança do Brasil é uma resultante do desgoverno de Jair Bolsonaro, de um anteparo na Câmara e de surtidas do Supremo contra desbordamentos do bolsonarismo. Diga-se “governança” por conveniência e brevidade, para dar um nome ao que resulta do salseiro. Não é governo, que inexiste, nem equilíbrio de Poderes. É uma bruxa inacreditável, mas que existe.

Esse esquema de governança improvisada, por informe, gelatinoso e variável que seja, deve mudar a partir do começo do ano que vem com a eleição dos novos (ou não) presidentes da Câmara, em especial, e do Senado. Vai definir se a Câmara continua como um anteparo das exorbitâncias do governo e dar uma medida mais precisa do apoio que Bolsonaro tem no Congresso (se é que quer mesmo algo assim, tão normal).

Essa eleição começou. Ou, melhor, começa o rearranjo de blocos partidários que vão apoiar este ou aquele candidato. O DEM do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o MDB fizeram questão de se separar do bloco formal de partidos que incluía a geleia do centrão. Com eles, o PSDB deve compor uma troica, embora outras adesões sejam possíveis. Os três partidos juntam 74 dos 513 deputados.

Parece pouco, mas não é lá bem assim. O grupo de parlamentares tidos como mais à esquerda não tem o que fazer a não ser aderir a quem não seja bolsonarista ou ficar fora do jogo (uma estupidez sem sentido prático, político ou interesseiro, pois teriam ainda menos poder de ocupar qualquer posição de relevância na Câmara). Juntam uns 140 deputados, por aí. A troica e a “esquerda” somam, pois, mais de 210 parlamentares.

É o grupo que poderia levar adiante uma versão do “parlamentarismo branco” que colocou alguma ordem na política politiqueira de Brasília, negociou, relatou e aprovou projetos relevantes e rejeitou desmandos piores do Planalto. Foi o que restou de governança sensata do país, goste-se ou não de seus projetos e programas.

O que sobrou do blocão antes integrado por DEM e MDB é mais ou menos o que se chama de centrão, 158 parlamentares. Esse bloco ainda pode rachar, tendo em vista a eleição da Câmara (fevereiro de 2021), e deve contar com agregados do PSL (parte bolsonarista, parte não, parte talvez) e seus 41 deputados, e do Republicanos, 33 deputados, que vem a ser o partido da Igreja Universal. Esses partidos têm uns três candidatos a princípio viáveis.

Decerto essas continhas são demasiadamente certinhas no mundo ainda mais gelatinoso de uma Câmara em que inexiste uma coalizão de governo e no qual mais de 70% dos deputados se dividem ideologicamente entre conservadorismo, extremo conservadorismo e extrema direita. São continhas ainda mais precárias em um Congresso de fragmentação partidária recorde e de legendas que começam a pensar em fusões e aquisições tendo em vista a ameaça da cláusula de barreira, em 2022.

Mas é dessas danças do acasalamento infiel é que deve sair a cara do comando improvisado do país. Na disputa da Câmara vai ficar mais claro o tamanho do bloco da boquinha bolsonarista, instável, mas relevante para saber das possibilidades ora remotas de impeachment e dos riscos de serem aprovados projetos “passa a boiada” pelo país. A disputa está muito no começo. O governo mal passou a jogar o jogo da coalizão, do qual tenta participar desde abril. Na verdade, nem se sabe se vai ser esse o jogo, o de uma normalização política, business as usual. Mas as cartas estão indo para a mesa.


Vinicius Torres Freire: Governo se incomoda com o teto de gasto

Ministros tentam inventar gambiarras para gastar além do limite constitucional

Andam pelos ares ideias de aumentar a despesa do governo federal além do limite constitucional. Quem sugere ou insinua tal coisa não diz que quer derrubar o teto; talvez, por ignorância ou incompetência, não sabe muito bem que queira fazê-lo. Mas na prática considera tal limite um empecilho. São os adversários assintomáticos do teto. Estão com o vírus da despesa extra na cabeça, mas não sabem e o transmitem por aí. Trata-se aqui do mundo de Brasília, dos três Poderes.

Paulo Guedes tentou enfiar na despesa do Fundeb uma parte do gasto com o seu programa ainda imaginário de renda mínima, o Renda Brasil. O Fundeb é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, um juntado de dinheiro estadual e municipal com um extra do governo federal que paga despesas da educação básica, na maior parte salários. O gasto com o Fundeb não entra nas contas do teto.

Mesmo que o governo federal aumente impostos, quase não poderia gastar a receita extra com esse Renda Brasil, porque a despesa federal está para bater no teto. Para fazê-lo, por exemplo teria de cortar a quase zero o investimento ou acertar com o Congresso a regulamentação constitucional do corte de salários do funcionalismo, que foi para a gaveta.

Mas há ministros, generais do Planalto e outros, que querem não apenas manter o investimento, mas aumenta-lo, abrindo uma brecha no teto, talvez até com uma prorrogação ajeitada do estado de calamidade. Por falar em general, o ministro da Defesa quer aumentar os gastos em (bidu) defesa.

Rodrigo Maia, presidente da Câmara, diz que seria possível mexer no teto apenas depois de conter despesas, o que significa bulir com servidores federais. Pelas normais atuais, Maia deixa o comando da Câmara em janeiro. Quem deve ganhar a eleição deve ser alguém do centrão puro sangue, uma gente pragmática

A pressão por algum tipo de renda mínima será grande quando terminar o auxílio emergencial, depois de setembro, por aí. O programa é quase unanimidade nacional, da esquerda à extrema-direita, é um esteio importante da popularidade de Jair Bolsonaro e também do consumo em uma economia arruinada. Esse consenso pode favorecer jeitinhos de lidar com o teto.

É provável que existam outros arranjos adequados de limitação de gastos público além desse esquema criado no governo de Michel Temer. Arranjo ou acordo novo é uma coisa, gambiarra é outra, nem por isso infrequente, ao contrário. As regras fiscais brasileiras vão sendo carcomidas pelas bordas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a regra de ouro. Um dia, esfarrapam-se, de tão rotas.

A fim de tapar o buraco, costura-se então um aumento de impostos. Aumentar imposto pode ser também útil, mas costuma ser feito à matroca, vide a zorra tributária nacional.

Como ficaria o programa liberal do governo? A pergunta é obviamente sarcástica e a resposta em parte é “tanto faz”. Bolsonaro chutou seus aliados lavajatistas. Ele e seus generais inimigos da “velha política” estão na cama com o centrão e refazem a fama de presidentes e presidiários desses partidos.
Generais do governo arrumam ou tentam arrumar boquinhas para filhos e parentes.

Bolsonaro está onde sempre esteve, no baixíssimo clero, fazendo chacrinha reacionária ressentida, ignaro de problemas de governo, arrumando boquinhas para a família, enrolada na Justiça desde que o capitão foi posto para fora do Exército. Tanto faz déficit, dívida, economia. Se é para se arrumar, se a finança não der chilique, que venha abaixo o teto.


Vinicius Torres Freire: Bode na sala ou salame fatiado, reforma tributária de Guedes cria confusão

Reforma tributária fatiada do governo causa o tumulto previsto e pode emperrar mudança

Como era previsível, a primeira fatia do salame tributário oferecida pelo governo federal não caiu bem. Paulo Guedes propôs trocar o PIS/Cofins por uma Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Se fosse alteração isolada, causaria a confusão habitual de rediscussões de impostos, de quem paga mais ou menos, motivo que emperra a mudança desse imposto desde 2014.

O plano Guedes causa mais tumulto porque, se a ideia é fazer reforma “ampla”, não dá para discutir PIS/Cofins sem tratar do peso de outros impostos sobre as empresas.

Há quem diga que a CBS com alíquota alta é um bode na sala, a ser trocado por uma CPMF. O bode de Guedes, no entanto, já mastiga o sofá e faz sujeira sobre o tapete.

Antes de prosseguir, convém lembrar que:

  1. quem recolhe o imposto não é quem o paga. Quanto mais um bem ou serviço for de difícil substituição, mais fácil repassar o aumento de tributação para o consumidor (pense-se no caso de comida, água, luz). Se existe substituto ou a opção de não consumir, é possível que a empresa tenha de engolir parte do aumento do custo ou, caso o repasse, perca mais faturamento;
  2. não é possível calcular aumento de carga tributária com base apenas na alíquota do imposto. Mudanças em tributos mudam comportamentos. Podem tornar empresas inviáveis, permitir o surgimento de outros negócios e incentivam as firmas a criar um modo de se livrarem do tributo. Um projeto tributário não faz sentido sem simular essas transformações.

O PIS/Cofins é um imposto grande, cerca de 18% da receita federal bruta de 2019. Apenas Imposto de Renda, com 28,4%, e contribuições previdenciárias em geral, 27%, têm peso maior. O ruinoso ICMS, estadual, porém, arrecada quase o dobro do PIS/Cofins.

Parece razoável acreditar que a CBS vai aumentar os impostos de construção civil, escolas, saúde ou teles. Pode ser tolerável, a depender do que vai ser feito de outros impostos e do ganho geral da (suposta) simplificação e uniformização tributária. Como não temos ideia do quadro mais geral, fica difícil discutir alíquotas e a conveniência de redistribuição da carga. Esse é um resumo do problema que é a reforma Guedes-Bolsonaro, que além do mais suscita outras ideias de jerico.

Gente do centrão e da oposição de esquerda quer que os bancos paguem mais CBS. Pode ser que a alíquota deva ser calibrada, mas partir do princípio de que bancos têm de pagar mais é má ideia. As consequências mais prováveis desse aumento devem ser o encarecimento dos empréstimos e a diminuição do acesso ao crédito. Se a questão é a iniquidade, trata-se de tributar os rendimentos dos acionistas dos bancos e dos detentores de capital em geral, os mais ricos em particular.

Sim, um objetivo de uma reforma inteligente é uniformizar o quanto possível o peso dos impostos sobre empresas e finança, de modo a evitar distorções ineficientes. A decisão de investir aqui ou ali devem ser pautadas por rentabilidade, não por privilégios fiscais. Um imposto especialmente baixo pode manter vivos negócios de outro modo inviáveis, o que é um uso ineficiente de recursos. Tudo isso é muito elementar.

Mas não estamos discutindo nada disso: alíquotas efetivas e seus efeitos econômicos, justiça e eficiência tributárias, o quadro geral dos impostos. É grande risco de a reforma tributária entrar no pântano caótico que é o padrão de governo Jair Bolsonaro. Tudo porque Guedes tem a ideia fixa da CPMF e mexer com estados e cidades.


Vinicius Torres Freire: Quem paga a conta da reforma tributária?

Falta um projeto básico crível e estimativas de quem perde, ganha e da carga tributária

Quem vai pagar a conta da reforma tributária? Não temos nem estimativa, pois não há um projeto coerente e crível, se por mais não fosse porque o governo federal diz que vai enviar suas propostas de modo “fatiado”, ao que parece até o final do ano. Se a reforma andar, será uma mistura de projetos de mudança “ampla” que circulam um na Câmara, outro no Senado, que podem incorporar ou não ideias do Ministério da Economia.

Um objetivo maior de Paulo Guedes é reduzir o quanto puder dos impostos sobre a folha de pagamentos, como se sabe, perda de receita que seria financiada por um imposto qualquer sobre transações ou “pagamentos digitais”, não se sabe bem do que se trata.

Essa CPMF fantasiada, ideia fixa de Guedes, seria a última fatia do salame tributário do governo a ir ao Congresso, até para não atrapalhar a discussão do restante das mudanças, pois esse imposto pega mal.

Hum.

Não é possível fazer uma conta do tamanho da carga tributária, de como os tributos vão pesar sobre cada tipo de empresa ou sobre pessoas físicas e das distorções econômicas decorrentes, sem saber dessa CPMF, com a qual o governo quer arrecadar pelo menos o equivalente a 1% do PIB.

Claro que a conta de uma reforma “ampla” depende de saber do destino de vários outros impostos. O problema específico dessa CPMF ou similar é que a ideia embaralha ainda mais o jogo político e econômico complicadíssimo de qualquer reforma tributária e, logo de cara, prorroga tal confusão até o final do ano ou quando for que o governo mande seu plano.

Logo, ao menos por enquanto, há a possibilidade de que as ideias de Guedes sejam ignoradas ou que causem tumulto no Congresso. Por exemplo, o setor de serviços teme pagar mais impostos com a reforma tributária (vai pagar, se houver qualquer reforma razoável). A fim de evitar essa conta, propõe uma CPMF ou similar de peso muito maior que o sugerido informalmente pelo governo. A indústria é contra.

Há possíveis rolos ainda maiores, como mexer no ICMS e no ISS, de estados e municípios, respectivamente, uma simplificação tributária que, politicamente, demanda que a União pague uma compensação a governos subnacionais. Guedes não quer bulir com isso. No entanto, o ICMS é o imposto mais pernicioso do país.

A julgar pela sua atuação política, Guedes parece mais preocupado em fazer uma reforma trabalhista terminal, uma desregulamentação “ampla” das leis do trabalho e a desoneração geral, se possível (não é), dos impostos sobre a folha. Em cada discussão importante, Guedes embute o tema da desoneração da folha e da reforma trabalhista. Para dar outro exemplo, o plano desse Renda Brasil é acoplado a uma mudança na lei do trabalho.

Pouca gente discorda do plano de simplificar a cobrança e o pagamento de impostos no país. Há muito mais divergência sobre a uniformização do peso dos tributos sobre cada setor empresarial, o que diminuiria distorções no funcionamento do mercado, mas deve aumentar a conta de algumas empresas e diminuir a de outras.

Dá-se de barato que a reforma tributária não vai elevar ou reduzir a carga tributária. Disso não sabemos agora e pelo jeito não vamos saber tão cedo, dada a balbúrdia na definição de um projeto básico. Sem estimativas claras de perdas ou ganhos e sem uma projeção de como fica a carga, será difícil avaliar seus benefícios e será mais fácil para lobbies setoriais defenderem sua posição, seus privilégios, que é um dos motivos da baderna tributária brasileira.