vinícius torres freire

Vinicius Torres Freire: Luta feia pelos restos do país

Brasil está na situação de optar entre a guerra por fundos públicos e o suicídio

Os servidores federais vão à luta para não pagar o aumento de contribuições previdenciárias previsto na reforma Bolsonaro-Guedes. É uma batalha da guerra civil por outros meios que está por vir caso o país decida de fato redistribuir de modo decente o gasto público. A Previdência é o aspecto maior desse drama, mas apenas um.

Parte do que se chama de reforma da Previdência é mesmo um projeto de reduzir o valor de salários, aposentadorias e pensões de servidores. O governo não tem mais como pagar essa conta do tamanho em que está. Menos ainda tem como bancar a Previdência dos trabalhadores do setor privado, o RGPS, problema ainda maior e mais explosivo.

Qual é o caso então com os servidores, além de salários fora da realidade? Em termos absolutos, o déficit do sistema de Previdência dos funcionários federais é menor que o do setor privado, embora proporcionalmente maior, em relação ao tamanho da sua despesa. E, sim, há privilégios.

Pelos mais recentes dados públicos disponíveis, a média do valor das aposentadorias do Executivo era 53% maior que a do teto do INSS. No Judiciário, 2,3 vezes o teto. No Ministério Público, 1,6 vez. No Legislativo, “os políticos”, 3,8 vezes.

“Ah, pau nos políticos!”. Suponha-se que o Congresso seja extinto e arrasado; que sua terra seja salgada, e sua gente, declarada infame até a décima geração; que deputados, senadores, funcionários e seus aposentados, viúvos e órfãos evaporem no espaço sideral. Tal economia lunática pagaria cerca de 1,6% da despesa da Previdência do “setor privado”.

Sim, qualquer dinheiro é relevante neste país em que gente cata o que comer no lixo. O que se pretende mostrar é que não está fácil de arrumar um culpado para ficar com a conta.

Em 2017, Michel Temer quis aumentar a contribuição previdenciária dos servidores de 11% para 14%. O socialista PSOL, acompanhado de sindicatos, reclamou no Supremo que alíquota progressiva de contribuição é inconstitucional. Imposto progressivo, argumentavam, tem de ser expressa e explicitamente previsto na Constituição e é confisco, de resto.

O ministro Ricardo Lewandowski, um líder da categoria, deu liminar cancelando a coisa, com apoio da Procuradoria-Geral da República.

Na reforma Bolsonaro-Guedes, de quanto será a contribuição extra dos servidores? Antes de mais nada: na metade mais pobre do país, o rendimento domiciliar por cabeça é de uns R$ 400. O benefício médio do Bolsa Família é de R$ 187,56 mensais.

Servidor que ganha até uns R$ 5.800 vai pagar uns trocados a menos. Para quem recebe uns R$ 10 mil, o desconto extra seria de R$ 180 mensais. Quem ganha em torno de R$ 20 mil, desconto adicional de R$ 770; salário de R$ 30 mil perde mais uns R$ 1.500. Para quem ganha o que deveria ser o teto de R$ 39 mil do funcionalismo, desconto extra de uns R$ 2.260.

Segundo o governo, esse aumento de imposto renderia R$ 13,8 bilhões, na soma dos próximos quatro anos. Nesta pindaíba, é dinheiro. Mas paga só 44% da despesa do Bolsa Família em um ano. Ou um quarto da conta de benefícios para idosos e deficientes muito pobres.

Apenas para sair do vermelho, o governo tem de cortar 9% de seu gasto (facada de R$ 125 bilhões).

Mesmo assim, não pagaria nada da despesa de juros, que se amontoa na dívida.

Para onde quer que se olhe, há contas estouradas e a feia necessidade. O país se explodiu. Como chegamos a isto vai ser tema de outras conversas.


Vinicius Torres Freire: Guerras, perdas e ganhos da reforma

Mudança é enorme, achata salários e benefícios e tem vários aspectos justos

O projeto de reforma da Previdência é mudança enorme. Vai levar uns dias para mastigar detalhes e digerir com muitas contas o seu impacto. Das propostas que acabam de sair do forno, parece importante reter o seguinte:

Primeiro. Parte do que parece uma reforma das aposentadorias dos servidores públicos pode ser entendida como um plano de redução de salários e do valor de aposentadorias que já são pagas.

A contribuição dos servidores ativos e inativos, de governo federal, estados e municípios vai aumentar bastante. Nos casos extremos, para quem ganha na casa dos R$ 30 mil, a contribuição efetiva vai aumentar em mais de 40%. Mesmo para o setor privado, a contribuição de quem ganha mais vai subir.

Segundo. Para os trabalhadores do Regime Geral (setor privado, celetistas), em geral a idade mínima pula logo para cerca de 61 anos (homens) e 55 anos (mulheres), com exceção daqueles trabalhadores que têm pelo menos 33 anos de contribuição (homens) e 28 anos (mulheres).

Terceiro. Depois da reforma, o valor das aposentadorias do Regime Geral seria definido por lei complementar. Enquanto a lei não vem, as normas (talvez) provisórias de cálculo vão impedir quase todo o mundo de receber o teto do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). É um achatamento implícito do valor de benefícios.

Quarto. A redução de despesas prevista pela reforma de Jair Bolsonaro é no máximo igual à estimada pela reforma de Michel Temer, na versão original, no que diz respeito ao RGPS.

A economia da reforma Bolsonaro está inflada pela economia devida ao fim do abono salarial para quem ganha mais de um salário mínimo. No caso Temer, a economia seria de uns R$ 802 bilhões em dez anos.

No caso Bolsonaro, sem levar em conta a limitação do abono, uns R$ 795 bilhões.

Quinto. De qualquer modo, lei complementar detalharia vários aspectos da reforma. Os valores de economia e benefícios podem mudar.

Sexto. Entre parlamentares e governadores, em especial do Nordeste e Norte, a reforma Bolsonaro está apanhando nos mesmos lugares em que reforma Temer foi golpeada: na redução dos benefícios para idosos miseráveis e do valor das pensões por morte.

Se o clima político não mudar muito, a reforma Bolsonaro vai ser lipoaspirada do mesmo jeito que a de Temer, levando um talho de mais de 20% na economia prevista.

Sétimo. O piso do benefício para idosos miseráveis, hoje um salário mínimo, passaria a ser de R$ 400.

A pensão por morte passa a ser de 50% do valor da aposentadoria de quem morreu, mais 10% por dependente. Essas novas normas redundam em economia de mais de duas centenas de bilhões na reforma. Vão levar chumbo grosso no Congresso Nacional.

Oitavo. A reforma é um avanço na equiparação das aposentadorias de servidores às dos demais trabalhadores. Mesmo servidores que entraram no serviço público antes de 2003, protegidos por outras reformas, vão perder. A idade mínima de aposentadoria dos professores do ensino básico (até o ensino médio) vai subir bem.

Nono. A reforma Bolsonaro federaliza as aposentadorias de policiais militares e bombeiros militares, que saem da competência dos estados e passam a ser assunto de competência da União, do governo federal.

Décimo. Lá no meio da reforma, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) perde 30% da receita anual que recebia do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador, bancado por contribuições do PIS/Pasep). São uns R$ 6 bilhões por ano.


Vinicius Torres Freire: Previdência mais dura e ainda vaga

Faltam definições cruciais para a vida das pessoas e para as contas públicas

Jair Bolsonaro definiu as idades mínimas de aposentadoria do projeto que vai enviar ao Congresso. E daí? Sabe-se ainda pouco.

Houve comoção entre o povos dos mercados. O pessoal ficou satisfeito de ver que o presidente não surtou na Previdência e que seu governo não criou mais um episódio BBB, com outro ministro no paredão ou vexames assim.

No mais, contar que a idade mínima de aposentadoria será de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres, depois de 12 anos de transição, diz pouco sobre o impacto humano e fiscal da reforma.

Tudo bem. No entanto, como há algum tempo para o governo calibrar a reforma, convém atentar para o que importa. Ou seja, o que afeta a vida cotidiana e para bodes, jabutis e rinocerontes que podem prejudicar a reforma em termos de economia e viabilidade política.

A transição será de até 12 anos. Mas em que ponto começa a transição? Isto é, depois da reforma, qual será a idade mínima provisória, implícita ou explícita?

Em outros projetos reformistas, seria de 55 anos para homens e de 53 para mulheres. O pessoal de Bolsonaro, porém, pensa em algo perto de 60 anos para homens e 56 para mulheres.

Deve haver outros arranjos para quem está perto de se aposentar, a fim de que se evite mudança abrupta.

Vai haver um pedágio, anos extras de trabalho, de 30% a 50% sobre o tempo que faltaria para a aposentadoria.

Para a transição em geral, deve continuar a exigência de pontos mínimos, similar à regra do sistema atual: soma de idade com tempo de contribuição. Além do mais, pode haver um desconto no valor das aposentadorias se a pontuação for baixa, tal como o fator previdenciário.

Além das regras de acesso (idade etc.), o que mais pesa na vida das pessoas e nas contas do governo? O valor dos benefícios, normas para pensões e as regras de acesso a benefícios assistenciais.

As pensões serão reduzidas pela metade, com 10% extras para cada dependente, como se pretendia?

Todos os benefícios ainda terão o valor de um salário mínimo? Benefícios assistenciais cairão abaixo do mínimo? O salário mínimo continuará a ter reajustes além da inflação? Em suma, vão desvincular os benefícios do valor do mínimo?

Vão mudar as regras de acesso à aposentadoria rural (na prática, um benefício assistencial) e ao BPC (para idosos e deficientes muito pobres)? O Congresso resiste a mudanças na Previdência rural.

O grosso da economia da reforma previdenciária vem desses benefícios discutidos até aqui.

Quase todo o mundo vai se sentir injustiçado pela reforma, com ou sem razão, embora as pesquisas indiquem que caiu a resistência à mexida na Previdência (pelo menos enquanto o povo não conhece os detalhes da coisa).

Se o governo forçar a barra, criando uma transição muito abrupta para aposentadorias, pensões ou benefícios para muito pobres, pode ter chiadeira além da conta entre o povo e, pois, no Congresso.

Caso não apare os privilégios dos regimes de aposentadorias de funcionários públicos, a reação será ainda mais azeda.

Enfim, de mais importante: quase nada se fala de preservar a arrecadação da Previdência, ameaçada por mudanças no mundo do trabalho.

Lembre-se que a reforma de Michel Temer levou um talho de mais de 20% no Congresso (em termos de redução de despesa do governo). A de Bolsonaro também será lipoaspirada.

Mas não adianta o governo exagerar na dose, causar tumulto e, assim, reações ainda mais defensivas no Congresso.


Vinicius Torres Freire: Lula e Bolsonaro no SUS

Gasto per capita em saúde pública cresceu 91% de 2003 a 2017, mas a crise chegou

Quando gente mais rica ou remediada fala do SUS (Sistema Único de Saúde)? Quando um presidente é internado em um grande hospital privado de São Paulo, por exemplo. Então vem a pergunta mesquinha: “Por que não foi para o SUS?”. Vale para Jair Bolsonaro ou Lula da Silva, a depender do ódio político do freguês.

Mas o SUS deve ser a prioridade do presidente na opinião de 40% dos eleitores, segundo pesquisas Datafolha de 2018 (e para 49% dos que ganham até dois salários mínimos). Cerca de 25% dos brasileiros têm acesso à saúde privada, aqueles com renda e empregos melhores. O SUS não é lá assunto para a elite da opinião pública. Precisamos falar sobre o SUS.

Qual o estado do financiamento da saúde pública? Houve desmonte sob Michel Temer? Progrediu, neste século?

A despesa dos governos federal, estaduais e municipais com saúde pública cresceu sem parar entre 2003 e 2014. Caiu então um tanto e se recuperou em 2017. O gasto por brasileiro, per capita, também cresceu nesses anos: 91%.

Essas contas foram baseadas em dados do estudo “Consolidação do Gasto com Ações e Serviços Públicos de Saúde”, dos pesquisadores Sergio Piola, Rodrigo de Sá e Benevides e Fabiola Vieira, do Ipea (Texto para Discussão 2.439, de dezembro de 2018).

O crescimento da despesa não foi pequeno, embora nada comparável ao dos gastos previdenciários federais, que foram de 9,2% do PIB para 11,2% do PIB entre 2007 e 2017. Nesses anos, o gasto federal em saúde passou de 1,6% do PIB para 1,7% do PIB —note a brutal disparidade entre Previdência e saúde.
Se o dinheiro foi suficiente ou se é gasto de modo eficaz, são outros quinhentos.

Para os autores do estudo do Ipea, a estagnação do gasto em saúde é problema sério. A população envelhece, se disseminam doenças crônicas, ainda há desigualdade regional no acesso a serviços e os preços da saúde sobem mais do que a média da inflação. Seria necessário mais dinheiro.

Isto posto, não houve “desmonte” na saúde sob Temer. Em 2017, a despesa federal per capita foi, de fato, 0,6% menor que em 2014 (ano final de Dilma 1). Mas a recessão talhou a receita de impostos e, de resto, o gasto per capita em 2017 ainda era 11,9% maior do que no final de Lula 2 (2010). Em estados e municípios, a despesa caiu mais.

Não é defesa de Temer. É um exemplo de exageros ou alucinações na discussão pública. A universalização da saúde pública (1988) e a vinculação mais efetiva de despesa (2000-2001) foram resultado de longo debate entre pesquisadores, servidores, militantes sociais e parlamentares. O gasto em saúde pública entre 2001 e 2016 foi vinculado à receita de impostos e, em parte, ao crescimento do PIB, grosso modo. No geral, é mais uma política de Estado do que de governo.

Ainda assim, governos podem redirecionar políticas de longo prazo ou avacalhar sua execução.

A despesa federal com saúde deixou de ser vinculada à receita de impostos. Desde 2018, há apenas um piso de gastos, que será reajustado pela inflação. Para elevar a despesa na saúde, será preciso tirar dinheiro de outra área, dado o teto geral de gastos criado sob Temer, em 2016.

O que vai fazer Bolsonaro a respeito do problema prioritário para a população, ainda mais em tempos de estados e municípios sem dinheiro, de mais gente sem saúde privada, afora problemas de longo prazo? Seus economistas querem acabar com o piso de gastos sociais. Dá certo?

A gente não está nem aí.


Vinicius Torres Freire: Gasto militar se segura na crise

Despesa geral do governo cresceu em relação aos anos Lula e Dilma; receita vai mal

Os militares ficaram com a maior fatia do que o governo federal gasta em máquinas, equipamentos e obras em 2018. É a primeira vez que isso acontece, pelo menos desde quando há estatísticas públicas comparáveis (2007). Levaram 21,6% do total das chamadas despesas de investimento em 2018.

O número tem interesse, mas não convém exagerar sua importância. As despesas em investimento se limitam agora a apenas 3,9% de tudo o que o governo gasta. Em dinheiro, isso dá uns R$ 54 bilhões de um total de gasto de R$ 1,37 trilhão em 2018 (não estão incluídas aqui as despesas com juros da dívida pública).

O gasto militar superou o dos ministérios dos Transportes (19,2% do total do investimento), da Saúde (12%), das Cidades (10,2%), da Educação (9,3%) e da Integração Nacional (6,4%). Tem havido cortes feios nas obras de estradas e nas Cidades, que cuida do Minha Casa, Minha Vida, programa que foi à míngua. Transportes e Cidades costumavam liderar o ranking.

Para onde foram os R$ 11,6 bilhões de investimento militar? Quase R$ 2,2 bilhões foram capital para a Emgepron, estatal que fabrica navios e equipamentos para a Marinha. Mais R$ 1,3 bilhão foi para os novos caças da Força Aérea. Quase R$ 1,3 bilhão para os submarinos da Marinha. Mais de R$ 600 milhões para os aviões cargueiros KC (aqueles novos, da Embraer) etc.

A despesa total de investimento até cresceu um pouquinho em 2018. Mas, repita-se, foi de apenas uns R$ 54 bilhões, ante o pico de R$ 100 bilhões, em 2014, no fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff. País e governo foram à breca, os gastos obrigatórios continuaram a crescer e, como de costume, o talho foi feito nos investimentos.

A despesa geral do governo, no entanto, não caiu. Em 2018, foi 2% maior que em 2017 (já corrigida pela inflação). Maior também que a de 2016 e a de 2014, último ano de Dilma 1. Foi um pouco menor que a de 2015, mas os dados deste ano estão perturbados pelo ajuste de contas das pedaladas dilmianas. Por cabeça, por brasileiro, a despesa do governo é quase 11% maior que no final de Lula 2 (2010) e apenas 1,5% menor que em 2014, quando as contas públicas explodiam.

Fechado o balanço de 2018, convém outra vez mostrar para onde vai o grosso do dinheiro. As despesas previdenciárias levam 56,7% do gasto total. Estão incluídos aqui os gastos do INSS (aposentadorias, pensões, auxílios de acidente etc.), além dos BPC (benefícios para deficientes incapazes de trabalhar e idosos muito pobres) e aposentadorias e pensões de servidores civis e militares.

Outros 13% vão para os gastos com servidores ativos e algumas outras despesas relacionadas à folha de pessoal. Previdências e salários levam, pois, 69,7% da despesa. Em 2010, levavam 63%.

Não, o gasto total não caiu em relação a 2010, final de Lula 2, ressalte-se. Aumentou bem, em valores reais (R$ 214 bilhões), ou em relação ao tamanho da economia brasileira, como proporção do PIB (passou de 18,2% para 19,7% do PIB). Desde janeiro de 2017 a despesa federal flutua em torno desses 19,7% do PIB.

Sim, a receita caiu. Chegou a mais de 20% do PIB na virada de Lula 2 para Dilma 1, insustentável. A receita está agora em 17,9% do PIB.

Se e quando voltar a subir, a arrecadação extra servirá para cobrir o déficit, que anda na casa R$ 120 bilhões. Depois disso, por muitos anos, o eventual dinheiro que sobrar será usado para conter a dívida monstruosa.

Esse é o cenário otimista.


Vinicius Torres Freire: Brasil na lama e em ruínas

Além do vômito letal da represa de lixo da Vale, obras públicas caem aos pedaços

Faz mais de cinco anos, a gente tem a impressão de que o Brasil está em ruína progressiva. O sabor político do sentimento depende do gosto ideológico do freguês. Quanto ao sentido literal da expressão “ruína”, há sinais e sintomas evidentes de que o país está caindo aos pedaços.

Por exemplo, qualquer pessoa sensata vai se perguntar como é possível que se repita em três anos um horror como esse das barragens de Minas Gerais, essa desgraça revoltante na represa de lixo da Vale. Mas a coisa já ia longe.

A gente está com a pulga atrás da orelha de uma cabeça com cabelos em pé, aqui em São Paulo. Há notícias em série sobre o mau estado das pontes e dos viadutos da capital do estado mais rico e mais cheio de universidades de ponta do país.

No final do ano passado, um viaduto da marginal do Pinheiros cedeu e foi interditado. Na semana que passou, foi a vez de um viaduto que liga a marginal do Tietê à Via Dutra.

Oito pontes e viadutos vão passar por vistoria de emergência, entre eles duas pontes sobre a marginal do Tietê.

As marginais são uma das duas grandes vias de circulação expressa e de saída da cidade. Se param, a cidade não consegue chegar nem na breca.

Problema local? Hum.

O investimento do setor público, a despesa em “obras”, afunda mais que viaduto paulistano. Na soma dos gastos dos governos federal, estaduais e municipais, o investimento médio de 2015 a 2017 baixou 36,6% em relação à média dos anos “bons” de 2004 a 2013.

Baixou em termos relativos, em proporção do PIB, um desastre (estas contas são baseadas nas séries de investimento calculadas pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea).

O investimento é insuficiente para manter e reparar a infraestrutura, segundo os especialistas (é menor que a depreciação). A baixa é brutal nos governos estaduais, o dobro da queda relativa do investimento feito pelo governo federal e pelos municípios.

Em português claro, isso quer dizer que não há dinheiro suficiente para manter, que dirá melhorar, estradas, pontes, viadutos, açudes, barragens etc. O país está apodrecendo fisicamente.

Para piorar, sem obras novas ou consertos, a economia demora a se recuperar. A construção civil foi o grande setor mais desgraçado da economia durante a recessão. Parou de piorar, mal e mal, apenas no ano passado.

Além da falta de dinheiro, escassearam vergonha na cara e competências. Convém lembrar que as maiores empreiteiras eram comandadas por gângsteres, máfias que compravam governos, leis etc. Sabe-se lá mais o que aprontaram.

Desconhece-se o motivo da nova desgraça mineira, mas sabemos de algumas coisas:

1) leis ambientais rigorosas não faltam; há baderna ou coisa pior na fiscalização;

2) muita gente e negócios estão no rastro possível do vômito letal dessas barragens que se esboroam;

3) não há meios de avisar essa gente que fica no caminho do mar de lama tóxica ou modo de tirá-las de lá a tempo. Quando acontece um desastre, por acidente ou incompetência criminosa (a ver), as pessoas morrem como vítimas de bala perdida nos tiroteios das metrópoles brasileiras. Isso é descaso.

Incúria, corrupções, burrices e ignorâncias brasileiras básicas e, ainda pior agora, a falta de dinheiro devem nos deixar mais alertas. Alguém ainda se lembra da desgraça, da tristeza infinita, do Museu Nacional? A queima da memória brasileira, a ponte que caiu ou a lama da mineração podem ser sintomas de coisa pior.


Vinicius Torres Freire: O Brasil e o resfriado americano

Em caso de crise maior nos EUA, Brasil não tem o que fazer a não ser mais do mesmo

Dólar caro e, por vezes, tumultos grandes na economia americana causam um ligeiro aumento do interesse brasileiro por assuntos internacionais. Ligeiro feito uma brisa e apenas entre certa e mui diminuta elite.

Como a taxa de câmbio anda relativamente estável, ainda é raro ouvir conversa sobre o risco e os possíveis efeitos de uma crise americana.

No entanto, seja como for nos Estados Unidos, a discussão no Brasil em tese não teria como mudar.

Dado o tamanho da nossa desgraça econômica, não temos como reagir ou fazer algo diferente do programa que será inevitável pela próxima meia dúzia de anos, faça chuva ou sol lá fora. Isto é, evitar a explosão da dívida pública e uma inflação descontrolada.

A dúvida é como administrar a divisão de custos do ajuste e lidar politicamente com as insatisfações, maiores caso o caldo da economia internacional entorne.

Não é lá muito difícil que o Brasil cresça 2,5% no ano que vem (neste ano, o crescimento não deve passar de 1,4%).

As condições são aquelas que todo mundo está enfadado de ouvir:

1. Reforma da Previdência, alguma outra contenção de despesa que cresça de modo vegetativo e uma arrumadinha em impostos;

2. Economia dos EUA desacelera sem colapso;

3. Donald Trump não intensifica sua guerra com a China e não provoca outras;

4. O crescimento chinês não baixa de seu novo patamar de 6%.

Crescer 2,5% é nada no Brasil. Ainda ficaríamos longe de recuperar o nível de produção e/ou renda perdida na recessão. Nesse ritmo, o desemprego cairia dos cerca de 12% de agora para 11% apenas em 2020 (sim, daqui a dois anos). Ainda assim, seria um alívio, depois de um par de anos de recessão seguidos de um biênio de quase estagnação, refresco em especial para a metade mais remediada da população.

Sem choques externos, com um programa ponderado e bem sequenciado de reformas, com maiorias no Congresso e sem conflitos sociopolíticos derivados de bizarrices ignaras e extremistas, o país pode crescer até mais.

Caso sobrevenha algum problema maior, será obviamente mais difícil chegar aos 2,5%.

Um tumulto no mercado financeiro americano ou um ataque comercial pesado de Trump contra a China pode dar um peteleco forte no dólar, derrubar preços de commodities e causar desânimos e receios vários nas empresas, além de dar uma piorada nas expectativas de inflação.

O que fazer, então? Não haveria o que fazer, a não ser mais do mesmo em um país meio quebrado: o tal ajuste para conter a explosão da dívida etc. Exceto na opinião de parte da esquerda, o país não tem instrumentos para compensar a nova paulada (aliás, se tivesse, poderia recorrer desde já a algum estímulo).

O governo não tem como gastar mais sem que os juros deem um salto.

No caso terrível de crise financeira mundial com disparada séria do dólar e subsequente risco de alta da inflação e de juros por aqui, haveria um estrago sinistro no tamanho da nossa dívida imensa. É bom nem pensar nisso.

Reformas impopulares podem ficar menos intragáveis com alguma recuperação do crescimento econômico. Mas não parece razoável acreditar que se aceite sem mais protestos um outro ano de recessão/estagnação. Seria um ambiente propício para ideias de vez destrambelhadas, políticas em particular.

Alternativas econômicas razoáveis só vamos ter no próximo mandato, se der tudo certo.

Em suma, em parte dependemos da sensatez de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e o gasto em saúde e educação

Equipe do presidente pode mudar piso de despesa social e reajuste de aposentadorias

Gente curtida no trabalho de aprovar reformas importantes diz que o Congresso não digere a tramitação de mais do que dois projetos grandes ao mesmo tempo.

Grandes como o quê? Por exemplo, uma reforma da Previdência e um pacote de segurança pública, para dar um exemplo baseado em intenções de Jair Bolsonaro.

A equipe econômica do presidente eleito parece ter ambições maiores, de mexer até em reajuste de aposentadoria e em gasto mínimo com saúde e educação.

No início de 2019, quer levar ao Congresso uma reforma da Previdência mais ou menos à moda daquela de Michel Temer, mas também a refundação previdenciária para o futuro (o regime de capitalização, de poupança individual para a aposentadoria).

Agora, estuda ainda um plano de desindexação das despesas com benefícios previdenciários, saúde e educação.

Trocando em miúdos: em situação excepcional ou de risco de estouro de limite de despesas, do “teto de gastos”, não haveria reajuste do benefício previdenciário nem pela inflação. Além do mais, poderia ser revogada ou suspensa a exigência de gastos mínimos com educação e saúde.

Tudo isso depende também de reforma constitucional, 308 votos na Câmara, duas votações em cada Casa do Legislativo, uma dificuldade imensa, como qualquer leitor de jornal está cansado de saber.

A Constituição determina a manutenção do valor real dos benefícios previdenciários (isto é, reajuste ao menos pela inflação). A emenda constitucional do “teto” acabou com a obrigação de gastar uma certa fatia da receita federal com saúde e educação, mas exige pelo menos o desembolso do equivalente à despesa de 2017 nessas áreas, corrigida pela inflação, mudança aprovada por Temer em 2016.

Não está claro se essas reformas novas entrariam em uma fila de projetos do Ministério da Economia. Poderia ser o caso de tocar a Previdência, em primeiro lugar, seguida talvez da desvinculação de gastos, continuando pela tentativa de reforma tributária e, depois, da mexida em carreiras e salários dos servidores, para tratar apenas dos rolos maiores. É apenas um exemplo.

O pessoal curtido em reformas, gente que trabalhou em equipes econômicas de mais de um governo, fica impressionado com a ambição. Esse seria um programa para anos, um mandato inteiro ou mais, diz um desses veteranos de batalhas parlamentares.

Um outro acredita que mesmo a tramitação da reforma previdenciária de Temer, já mastigada no Congresso, tomaria metade do ano. Uma reforma maior, começando do zero, como a planejada pelo pessoal de Bolsonaro, poderia levar mais de ano.

O fato de o presidente estar fresquinho, tendo sido recém-eleito por maioria folgada, não ajuda? Sim, desde que:

1) aproveite a força política para aprovar um assunto complicado por vez, de preferência começando com a reforma previdenciária que já tramita no Congresso;

2) crie logo uma coordenação política crível;

3) tome cuidado ao se envolver em um confronto sanguinolento pelas presidências da Câmara e do Senado, que pode criar desafetos demais para Bolsonaro.

Esse é apenas o filé das mudanças. Ainda haveria privatizações por fazer, um projeto de abertura comercial que terá oposição amarga de setores industriais, um superministério para organizar e a administração do dia a dia de uma economia em estado crítico.

É uma ambição rara de ver, para comentar a coisa em tom otimista.


Vinicius Torres Freire: Névoa forte um mês antes da posse

Economia pode emperrar com planos genéricos e ambiciosos demais de reformas

Faz três semanas, o país está entretido com a remontagem das peças do Lego Ministério do presidente eleito, Jair Bolsonaro. De seu plano de ação, sabe-se apenas de reformas ainda indistintas em uma névoa de ambições grandes. No entanto, afora a semana de festas, falta um mês para a posse.

Em parte, o jogo da transição interessa, pois se trata de definição de grupos de poder, de alianças sociais (ou da falta absoluta delas) ou de preliminares de reformas graves na administração e nas políticas públicas.

Em parte, se trata apenas de fetichismo, da tentativa de chegar ao corte prometido em campanha, a um número cabalístico e populista de ministérios, o que na imaginação popularesca passa como “corte na carne”.

Pode bem ser que o governo tenha planos secretos. Mas a gravidade anormal da situação econômica requer urgência em certas decisões.

O governo de transição de Bolsonaro pretendeu por um momento votar a reforma da Previdência de Michel Temer, que pouco antes chamara de “porcaria”. Dada a indiferença do Congresso, cogitou aprovar pedaços apenas do projeto temeriano lipoaspirado.

No caso de reforma alguma em 2018, diz que vai começar do zero, propor uma reforma dupla e gigante (a do sistema atual e a criação de um novo, de poupança individual), de elaboração complicada e aprovação mais ainda, que pode levar o 2019 inteiro no Congresso.

Esse prazo dilatado em si mesmo já seria um problema, mas o menor deles. Uma reforma mais ambiciosa, de caráter duplo, em um Congresso novo, com velhas lideranças dizimadas, conduzido por uma coordenação política inexperiente e ainda incompleta tende a gerar incerteza, que desidrata o crescimento econômico desde 2014, inclusive o de 2018.

Haverá mais poças visguentas de incerteza pelo caminho, a julgar pelas vastas ambições e pensamentos ainda imperfeitos do futuro überministro da Economia, Paulo Guedes.

Além de coordenar a organização de seu megaministério, Guedes diz que pretende implementar um plano amplo de mudança dos impostos federais.

Além disso e ao mesmo tempo, reduziria as proteções comerciais (impostos de importação e outras), que guarnecem empresas brasileiras.

Em si, assim genérica, a ideia é boa. Mas nada se sabe do ritmo de proposição e implementação dessa reforma comercial e tributária (dependente de leis novas). Mais sabido é o impacto que tal intenção de mudança pode ter sobre planos empresariais.

Impostos, proteções comerciais e de outra espécie definem parte da rentabilidade de um empreendimento. Quanto mais incertas e amplas as mudanças, mais empresas podem ficar com o investimento na retranca. Não é destino ou previsão de fracasso, de confusão inevitável. Mas confusão pode haver sem que se explicitem sequência, viabilidade e transparência dos custos e dos benefícios da mudança tributária.

Muito plano de pré-governo é mera ficção, que se desmancha em realidade assim que o ministro toma pé do que se passa em sua pasta ou conhece projetos de longo prazo propostos e tocados pelos técnicos estáveis. Outros projetos se desmancham no ar ou são revistos no confronto político com o Congresso ou com a sociedade. Mas certos planos fundamentais têm de ser claros e prioritários.

Ambição demasiada cria incerteza e amplia riscos, o que pode emperrar a economia, o que, por sua vez, azeda o ambiente para reformas: entra-se em um pântano, em um círculo vicioso.