Venezuela

Míriam Leitão: Risco Venezuela não tem ideologia

O risco Venezuela não é de esquerda nem de direita, é do autoritarismo que desrespeita as instituições. PT já desmereceu o STF. Filho de Bolsonaro fala em fechá-lo

A reação à declaração do deputado Eduardo Bolsonaro foi forte, pela grande probabilidade de eleição do seu pai, mas também porque o candidato sempre foi associado ao pouco apreço pelas instituições democráticas. O temor é de que a ida do seu grupo ao poder signifique o início de um processo de cerco à democracia, que na Venezuela do coronel Hugo Chávez começou pelo enfraquecimento do Judiciário. O risco Venezuela sempre esteve associado ao PT, e o partido fez por merecer, mas na verdade o perigo não é de direita nem de esquerda. É do autoritarismo.

A ameaça sobre a democracia atualmente não é a de um assalto. É a de ver seus pilares minados por atos de um governante populista e autoritário como foi Chávez. O ataque se dá por aproximações sucessivas e não mais como vimos nos anos 1960 no Brasil. Hugo Chávez tentou um golpe no estilo clássico, em fevereiro de 1992. Alegava ser contra a corrupção. Conseguiu o apoio de uma parte das Forças Armadas, mas fracassou. E esse Chávez é que recebeu elogios de Jair Bolsonaro. O coronel foi preso, indultado, mas, em 1998, chegou ao Miraflores pelo voto, dizendo que faria uma revolução socialista. E foi esse Chávez que recebeu o apoio do PT.

Ao contrário do que acha o PT, não existe ditadura do bem. É o que o chavismo mostrou. Fui à Venezuela em 2003. Havia uma greve geral no país, comandada por empresários, contra o governo. Eu o entrevistei no Miraflores. Era uma presidência militar. Ele vivia cercado de militares de alta patente em seu gabinete e ministério. O ambiente no Palácio me lembrou o clima do Planalto na ditadura brasileira. Chávez brandia a Constituição que acabara de aprovar. E depois mudou várias vezes. Ele já havia alterado a composição do Conselho Nacional Eleitoral. Depois fez o mesmo com a Suprema Corte.

Perseguiu e fechou órgãos de imprensa. Sua escalada sobre a ordem constitucional se deu por mecanismos que pareciam democráticos: quando a economia melhorava, as benesses com o dinheiro do petróleo aumentavam, ele convocava um plebiscito. Os que perdia, não respeitava. Os que ganhava, aumentavam seus poderes e enfraqueciam um pouco mais a democracia venezuelana, até que nada restou dela. Mas o ex-presidente Lula chegou a dizer que havia “excesso” de democracia na Venezuela. O PT apoiou o regime venezuelano de diversas formas, fingindo não ver seu caráter cada vez mais autoritário. Jair Bolsonaro, que se identificara com aquele coronel impulsivo, passou a criticá-lo quando ele se definiu como socialista, mas nunca reprovou seus métodos antidemocráticos.

A inaceitável fala do deputado Eduardo Bolsonaro não surge do nada. Ela reflete o ambiente político no qual seu pai sempre esteve imerso, de defesa do regime militar. Era ele atrás do pai, repetindo em mímica, o nome do torturador homenageado durante o voto do impeachment. Essa é a sua formação. Quando ele diz “a gente até brinca lá...” Lá onde? Antes de dizer que “sem desmerecer” o cabo e o soldado, bastava mandar os dois para fechar o Supremo. No meio do caminho do cabo e do soldado tem a Constituição que completa 30 anos, que nos custou uma luta de décadas, mas o deputado Eduardo Bolsonaro sequer entende que é essa a força moral que impede dois militares sem patente de fechar o órgão máximo da magistratura. Por isso, o ministro Celso de Mello chamou-o de golpista — aqui sim a palavra faz sentido — e o ministro Dias Toffoli afirmou que atacar o Judiciário é atacar a democracia. Alias, petistas também falaram em reduzir poderes do STF.

Quando estive na Venezuela, falei com os dois lados em conflito, visitando inclusive famílias divididas. Os que se opunham ao chavismo alertavam que havia o risco de o Brasil virar uma Venezuela. As instituições brasileiras foram fortes o suficiente e impediram o primeiro movimento, quando o ex-ministro José Dirceu quis instaurar um órgão de controle da mídia. O PT permanece com esse item na agenda. Por outro lado, os métodos de Bolsonaro de defender a relação direta com o eleitor são os mesmos do chavismo. O populismo, de esquerda e de direita, sempre desmerece as instituições. Por isso é que o pai Jair Bolsonaro acha que basta “advertir o garoto”. Na fala do deputado Eduardo Bolsonaro há uma ameaça gravíssima. Foi um alento a reação forte do STF.


El País: Migração venezuelana sobrecarrega os Governos da América Latina

Principais potências regionais buscam uma resposta coordenada ante o risco de colapso dos serviços públicos e crescimento da xenofobia

A crise social, econômica e política da Venezuela deixou de ser um problema exclusivo do país caribenho e se tornou um quebra-cabeça para toda a região. As principais potências latino-americanas pressionaram em vão nos últimos anos para obter uma saída para os rumos autoritários de Nicolás Maduro. O problema agora vai além. A migração de venezuelanos, uma enxurrada que supera os 2,3 milhões desde 2014, colocou em xeque os Governos da América Latina, que veem como a chegada maciça desses cidadãos aos seus países pode colapsar as infraestruturas locais e já começa a gerar surtos de xenofobia. Os principais países da região buscam uma resposta coordenada para a crise, que, dão como certo, deverá se agravar depois das últimas medidas econômicas de Nicolás Maduro.

“Há uma preocupação generalizada frente a um problema de dimensão humanitária em toda a sua extensão”, resume um alto funcionário de uma das principais potências do Grupo de Lima, o conjunto de países que decidiu se unir para obter uma saída política e negociada para a crise venezuelana perante o fracasso da intervenção da OEA (Organização de Estados Americanos). Até agora, cada país aplicou medidas individuais, mas a situação se tornou insustentável.

A Colômbia é o termômetro pelo qual todos os Governos se medem. Desde o começo da crise no país vizinho, já recebeu quase um milhão de venezuelanos. A maioria entrou por acessos terrestres oficiais, mas 45.000 usaram os caminhos irregulares que se escondem nos mais de 2.000 quilômetros de fronteira comum. Para dar resposta a essa crise humanitária, o Governo do ex-presidente Juan Manuel Santos concebeu um cartão migratório que permite a passagem desses cidadãos. Este primeiro cadastro serve para criar um censo migratório, ainda em desenvolvimento. Através desse sistema, os migrantes têm acesso de forma regular aos sistemas de saúde e educação e ao mercado de trabalho.
Os venezuelanos que seguem a rota para o sul da região – rumo a países como Equador, Peru e Chile – percorrem de ônibus os mais de 1.000 quilômetros que separam a fronteira com a Venezuela. Dada a magnitude do fluxo migratório, as autoridades colombianas estão conscientes de que não podem exigir o passaporte como requisito de entrada no país, como decidiram o Equador e o Peru para controlar a onda de recém-chegados. “Sabemos que seu Governo não os está expedindo, pedi-lo seria castigar o povo pelos erros de seus mandatários”, declarou Christian Krüger, diretor de Migração da Colômbia.

As beiradas do território colombiano são desprovidas de controle estatal, dominadas pelos grupos armados que se dedicam ao tráfico de drogas, combustível, madeira e mineração ilegal. As cidades fronteiriças convivem há décadas com sua crise particular, que não se baseia apenas na insegurança, mas também as priva dos serviços básicos de qualidade. A situação dessas comunidades se agravaria ainda mais se os venezuelanos que fogem do seu país ficassem ali confinados.

“As medidas adotadas até o momento pelas autoridades não fazem parte de uma política pública integral, cada Estado dentro da margem de sua soberania antecipou suas medidas de maneira independente”, opina María Teresa Palacios, diretora do Grupo de Pesquisas Independentes de Direitos Humanos da Universidade del Rosario, de Bogotá. “Pode-se qualificar como assistência humanitária”, acrescenta. “Há heterogeneidade e pouca consistência com o que já se fez”, acrescenta Dany Bahar, pesquisador da Brookings Institution, para quem o mais urgente é obter um consenso regional “Não há outra solução, a solução para os problemas mais óbvios, como o colapso dos serviços de saúde, vai depender das políticas públicas que forem aplicadas, os Governos têm que olhar as vantagens que a imigração traz.”

Os problemas para os países da região são múltiplos e de escalas diferentes. Os mais urgentes têm a ver com a assistência dada aos migrantes, que chegam em más condições físicas ou, como ocorreu no Brasil, com doenças que precisam ser tratadas urgentemente. Além disso, existe um problema com os documentos legais, já que as exigências dos países variam dependendo do país de destino ou, mesmo para quem tem a documentação em ordem, há casos em que o passaporte não tem espaço para carimbos e não é possível renová-lo.

Equador e Colômbia são dois dos países que estão impulsionando iniciativas para obter uma resposta coordenada à crise migratória. Entre os que não compartilham fronteira, México, Chile e Argentina são os mais ativos. O Governo de Lenin Moreno, do Equador, pretende envolver as autoridades venezuelanas, algo que, se obtido, será visto com bons olhos no Grupo de Lima, do qual o Equador não participa, segundo três altos funcionários de chancelarias desse grupo ouvidos pelo EL PAÍS. A Colômbia, por sua vez, quer ir além e obter o envolvimento da ONU, através do Acnur (agência para refugiados) e da Organização Internacional das Migrações (OIM). O Grupo de Lima tampouco quer excluir a OEA, cujo secretário-geral, Luis Almagro, convocou uma reunião extraordinária para abordar esse problema.

“Os dois níveis precisam dar as mãos”, observa uma das fontes diplomáticas. “Seria útil obter um esforço regional com a participação das autoridades venezuelanas, mas o volume de recursos e apoios supera o que a região tem condições de enfrentar. Necessitamos da colaboração da União Europeia e de países asiáticos, por exemplo”, acrescenta a mesma fonte, em concordância com os outros altos funcionários.

Os especialistas e fontes oficiais negam que tenha havido demora na reação das autoridades à crise migratória. Consideram que a deterioração da Venezuela foi muito veloz, e que a hiperinflação agravou o deslocamento. Somam-se a isso os esforços fracassados para obter uma solução da crise política. Fontes do Grupo de Lima dizem que a pressão contra Maduro continuará, mas em várias das chancelarias das principais potências regionais reina o desânimo com a fragilidade da oposição venezuelana. “É preciso manter certos limites, porque não há união na oposição e é cada vez maior o distanciamento entre a oposição e a sociedade”, afirma uma das fontes. “Evidentemente, é necessária uma sacudida interna e que debatam uma versão consensual como alternativa. A se continuar sem uma liderança clara, é difícil que os esforços da comunidade internacional frutifiquem.”

Em poucas ocasiões Maduro se referiu à saída maciça de venezuelanos do país, e quando o fez foi para minimizar. “O Governo é muito claro, se não quisesse que as pessoas fossem embora fecharia as fronteiras”, argumenta Bahar. “Maduro se tornou uma ameaça estratégica para a região”, argumenta Joaquín Villalobos, ex-guerrilheiro salvadorenho e consultor de resolução de conflitos. Em sua opinião, a crise migratória da Venezuela tem seu espelho em Cuba. No entanto, aquela ocorreu em ondas diferentes. “A grande diferença é que Cuba é uma ilha, a Venezuela pode expulsar milhões de pessoas de forma muito mais rápida.”


Fernando Gabeira: Uma visão de campanha

Por enquanto, os candidatos hipnotizam com suas propostas. Não se preocupam em mobilizar, dividir papéis. Nesse sentido, é uma campanha analógica, embora, paradoxalmente, tenha invadido as redes sociais

Estou em Boa Vista, pela quarta vez visito a fronteira Brasil-Venezuela. No princípio era apenas um aviso de que algo poderia sair do controle. Nas últimas viagens, era uma certeza.

O chamado socialismo do século 21 foi pro espaço. Seus estilhaços caem dentro do território brasileiro, na forma de onda migratória, crise energética, revolta e violência. Logo no Brasil, arruinado por uma experiência de esquerda e hoje governado pelos parceiros eleitorais do PT.

Não sei se isso vai repercutir na campanha eleitoral brasileira. É tudo tão longe. E aqui não temos o hábito de avaliar criticamente o passado. A esquerda comporta-se como se nada tivesse acontecido. Sua proposta nostálgica é uma viagem ao início do século, voltar a ser feliz.

Não se discute o processo de democratização, sua esperança de usar o Estado para a redução das desigualdades, superar por meio de uma ação de governo todos os grandes problemas do País. A própria Constituição foi escrita nessa ânsia de promover a justiça social, com juros limitados a 12% e uma previsão de imposto sobre grandes heranças. Ficou no papel, mas revela um pouco do espírito da época, que acabou encontrando sua maior expressão no governo de esquerda.

Ainda hoje, a ilusão de que o governo vai resolver todos os grandes problemas sobrevive. Os próprios candidatos revelam seus programas, dizem o que vão fazer em cada área, como se estivessem vendendo o serviço que nos prestarão.

Há pouco espaço nesse tipo de discurso para a participação social, exceto consumir bens e serviços. O PT, por exemplo, tende a igualar felicidade ao aumento de consumo. Um bom exercício para seus militantes seria, por exemplo, refletir sobre esta questão: muita gente diz que votaria em Lula, mas quase ninguém, exceto CUT e MST, se mobiliza para tirá-lo da cadeia.

Minha hipótese é de que todos recebem bem a ideia de aumento de consumo, mas poucos se interessam por valores. No caso de Lula, pode até ser que não se movam baseados num valor: o respeito à independência da Justiça. Mas se isso é verdade, como explicar sua opção eleitoral?

Parto da esquerda para avançar no espectro e constato que a maioria dos candidatos se apresenta como alguém que vai realizar inúmeras tarefas, como se estivesse vendendo seus serviços a clientes cuja única missão é comprá-los. Dificilmente mencionam nos debates o papel que destinam à sociedade na grande tarefa da reconstrução. Basta votar certo, isto é, no orador, que tudo se vai resolver a partir do esforço e competência dele.

O interessante, sem querer criticar os candidatos, pois os tempos são duros, é que se apresentam como aspirantes a um cargo e prometem trabalhar bem. Mas não ousam exercer uma liderança, definindo as tarefas conjuntas de governo e sociedade. No momento em que a hipótese de interação aparece na campanha, ela é inadequada e, ainda assim, respondida com a tradicional afirmação: isso é tarefa do governo e não devemos envolver as pessoas.

Refiro-me à proposta de Jair Bolsonaro de liberar a compra de armas. É possível afirmar que não é o melhor caminho, mas com outro argumento: o de que a participação da sociedade deve focar a informação, a autodefesa com a ajuda da tecnologia, celulares, aplicativos.

Sempre vai aparecer alguém para dizer: e se um assaltante entra na sua casa, armado, de que adianta o telefone celular? De fato, nessa circunstância há pouco a fazer. Mas dentro de uma outra perspectiva, câmeras, vizinhos antenados, sistemas de alarme, tudo isso pode fazer um estranho ser detectado antes de entrar numa casa. É apenas um exemplo, até prosaico, para indicar a sensação de lacuna que sinto na campanha.

A sociedade brasileira teve esperanças e ilusões. Elas se perderam no caminho. Mas precisam de alguma forma ser renovadas.Um escritor espanhol costumava dizer que uma sociedade sem esperança e ilusões é como um monte de pedras na beira de um caminho. O que às vezes os candidatos parecem dizer é isto: reconheço seu ceticismo, mas vou trabalhar muito bem e quando concluir minhas tarefas o País estará novamente de pé.

O que a esquerda propõe é renovar as esperanças num projeto fracassado. Por seu lado, a direita nos remete ao dístico da bandeira: ordem e progresso. Ordem com uma política de segurança rígida e progresso por meio de uma economia liberal.

Uma simples frase inspirada no positivismo não é capaz de abarcar a complexidade do momento. Mesmo porque o progresso hoje é visto também com desconfiança, num momento em que as ameaças ao planeta se tornam visíveis. Progresso para continuar ou acabar com a sobrevivência humana.

O próprio conceito de ordem não se limita à segurança pública. A corrupção é uma desordem, o gasto irracional da máquina do governo é outra, assim como obras inacabadas, vulnerabilidade biológica com o colapso da saúde pública.

Reconheço que é muito difícil sintetizar num slogan uma saída para o Brasil. No passado, quando se tratava apenas do progresso, Juscelino nos propôs avançar 50 anos em 5. Tenho a impressão de que agora, num momento eleitoral, é preciso falar de crescimento para 13 milhões de desempregados.

Mas creio que cada vez mais amadurece entre as pessoas a hipótese de que a educação pode ser o motor dessa nova fase nacional. Seria preciso alguém afirmando que, além de suas tarefas presidenciais, nos levaria a uma sociedade mais bem educada, alguém que propusesse essa nova esperança, acreditasse mais na sociedade do que no próprio governo e a liderasse para esse objetivo.

Por enquanto, os candidatos hipnotizam com suas propostas. Não se preocupam em mobilizar, dividir papéis. Nesse sentido, é uma campanha analógica, embora, paradoxalmente, tenha invadido as redes sociais.

Como ela está no começo, merece o benefício da dúvida: são reflexões provisórias.


Luiz Carlos Azedo: Pacaraima

“O governo brasileiro pisa em ovos em relação ao regime de Maduro. Tudo o que não interessa ao Brasil é uma escalada no conflito”

Com pouco mais de 12 mil habitantes, Pacaraima surgiu após a demarcação da fronteira com a Venezuela pelo Exército, em torno do marco conhecido como BV-8, portal de entrada para o Brasil a partir daquele país, ocupado por garimpeiros brasileiros. A “corrida do ouro” prometia enriquecimento fácil e rápido para os aventureiros que desbravaram a região, a maioria do Nordeste. Fica apenas a 15 quilômetros da cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén. Por ser uma fronteira seca, é o caminho mais fácil para os refugiados venezuelanos que chegam a pé e vão para Boa Vista e outras cidades brasileiras.

A 220 quilômetros de Boa Vista, a cidade foi emancipada em 1995, na onda de criação de municípios que ocorreu naquele período. Devido às temperaturas baixas, é conhecida como o Polo Norte de Roraima. Pacaraima e Uairén funcionam como centros de abastecimento uma da outra: a energia elétrica e o combustível vêm da Venezuela, onde a gasolina é barata; os gêneros de primeira necessidade e bens de consumo duráveis, de Boa Vista, pela BR-174. Os incidentes ocorridos no fim de semana, nos quais refugiados venezuelanos foram atacados por moradores de Pacaraima, foram provocados porque alguns venezuelanos atacaram um comerciante brasileiro, com intuito de roubá-lo. Mas esse foi apenas um catalisador da tensão crescente entre os refugiados e os moradores da cidade.

Entre 2017 e junho deste ano, quase 128 mil venezuelanos entraram no Brasil por Pacaraima. Mais da metade deles, porém, deixou o país: 31,5 mil voltaram para a Venezuela pelo mesmo caminho, e os outros 37,4 mil saíram de avião ou por outras fronteiras terrestres. Ficam em Pacaraima e Boa Vista os venezuelanos mais pobres, com menos instrução, que não conseguem meios para buscar outras regiões. Os venezuelanos mais instruídos e com posses preferem o Equador, a Colômbia, o Peru e o Chile, por causa da facilidade da língua, e outras cidades do país, como São Paulo.

Acampados como sem-teto em Pacaraima, os venezuelanos eram 1.500 até a crise de sábado. Ou seja, mais de 10% da população da cidade, que também começa a sofrer os efeitos da crise econômica venezuelana no comércio local. Não se sabe até que ponto a disputa política entre a governadora Suely Campos (PP) e seus principais adversários, Anchieta (PSDB), que lidera a disputa, e Antônio Denarium (PSL), que está em segundo, agrega complicações à crise. Suely Campos já tentou fechar a fronteira com a Venezuela e volta a insistir na medida, recorrendo ao Supremo Tribunal Federal (STF), o que o governo federal rejeita. Para o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Sérgio Etchegoyen, é “impensável” fechar a fronteira entre o Brasil e a Venezuela. O caso está nas mãos da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal.

O cenário é mais complicado por causa da crise econômica e política na Venezuela. Ontem, entrou em vigor a nova moeda no país, o Bolívar Soberano. Nicolas Maduro cortou cinco zeros nas cédulas e multiplicou por 34 vezes o valor do salário mínimo, ancorado no “petro”, a criptomoeda criada pelo regime bolivariano para obter liquidez. Promete acabar com a inflação, mas pode ser o colapso total. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projetou inflação de 1.000.000% no país em 2018, o que não vai se alterar com a “mágica” feita para reduzir a quantidade de papel-moeda em circulação. Com isso, aumenta o número de pedidos de refúgio por parte de venezuelanos.

O governo brasileiro pisa em ovos em relação ao regime de Maduro. Tudo o que não interessa ao Brasil é uma escalada no conflito. Até agora, as autoridades dos dois países estão cooperando. Um dos pretextos dos moradores revoltados de Pacaraima para as agressões aos venezuelanos foi o fato de o Exército brasileiro manter uma ambulância à disposição dos refugiados, que não teria sido acionada para socorrer o comerciante ferido. O ataque aos venezuelanos pelos moradores de Pacaraima envergonha o Brasil, porque foi um gesto de barbárie. Está sendo muito condenado nas redes sociais, mas o que espanta é o silêncio dos nossos “internacionalistas” em relação ao regime de Maduro.

Os votos de Lula
A pesquisa do Ibope divulgada ontem pela TV Globo revela que a estratégia de Lula para se manter na mídia deu certo: com 37% de intenções de votos, o petista foi o único candidato pesquisado que cresceu. Os demais estão estacionados: Jair Bolsonaro (PSL): 18%; Marina Silva (Rede): 6%; Ciro Gomes (PDT): 5%; Geraldo Alckmin (PSDB): 5%; Alvaro Dias (Podemos): 3%; Eymael (DC), Guilherme Boulos (PSOL), Henrique Meirelles (MDB) e João Amoêdo (Novo): 1%; Cabo Daciolo (Avante), Vera (PSTU) e João Goulart Filho (PPL) não pontuaram. Branco/nulos: 16%; Não sabe/não respondeu: 6%.

Com Lula fora da disputa, seus votos migram principalmente para Marina, que sobe para 12%; Ciro, que vai a 9%; Bolsonaro, que sobre para 20% e até Alckmin, que chega a 7%. Haddad, substituto virtual de Lula, tem 4% de intenções de votos. Branco/nulos sobem para 29% e Não sabe/não respondeu, 9%. Esse é o gargalo da estratégia do PT.


Luiz Carlos Azedo: A crise venezuelana

Engana-se quem pensa que o regime bolivariano cairá num passe de mágica. Não há a menor chance disso acontecer enquanto os militares venezuelanos apoiarem Maduro

Integrante do Grupo de Lima, formado por 14 países das Américas, o Brasil anunciou ontem que não reconhece a legitimidade das eleições presidenciais na Venezuela, em que Nicolás Maduro foi reeleito presidente. Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lúcia também condenaram a reeleição. Cuba, Bolívia, Rússia e Bolívia apoiaram a recondução de Maduro; a China foi pelo mesmo caminho, enquanto os Estados Unidos anunciaram a adoção de duras sanções econômicas.

As eleições venezuelanas foram marcadas por dois tipos de oposição: o não comparecimento às urnas de 54% do eleitorado (8,6 milhões de eleitores) e uma das mais baixas votações do chavismo, 5,8 milhões, ou seja, 67% dos votos. Também emergiu das urnas uma dissidência do chavismo, que reiterou aquilo que a oposição já antevia ao boicotar o pleito: houve uma fraude escandalosa nas urnas. Os candidatos derrotados, Henri Falcón, que obteve 21% dos votos, e Javier Bertucci, com 11%, ambos chavistas, não reconhecem o resultado e pedem novas eleições.

Em reação ao pleito, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, proibiu o envolvimento de cidadãos norte-americanos em negociações de títulos da dívida da Venezuela e de outros ativos. Segunda a Casa Branca, o objetivo é impedir que oficiais venezuelanos corruptos façam negócios e lavem dinheiro de propina. Desde maio, 62 pessoas e 15 entidades venezuelanas estão com bens congelados e proibidos de fazer negócios nos Estados Unidos, que consomem um terço do petróleo da Venezuela. As petroleiras americanas não podem mais negociar dívidas públicas do país ou comprar petros, a criptomoeda criada por Caracas.

Entretanto, a China ainda aposta alto no regime de Maduro. Recentemente rebateu as acusações do Tesouro dos Estados Unidos de que estaria ajudando o governo venezuelano com investimentos suspeitos envolvendo empréstimos em troca de petróleo. Em Pequim, o porta-voz da chancelaria chinesa, Geng Shuang, destacou que o país auxiliou a construção de mais de 10 mil casas de baixo custo, a geração de eletricidade e o gasto com eletrodomésticos para três milhões de lares venezuelanos de baixa renda.

A Venezuela vive uma crise humanitária, com mais de um milhão de venezuelanos em fuga pelas fronteiras com a Colômbia e o Brasil. A situação tende a se agravar com as novas sanções. Mas se engana quem pensa que o regime bolivariano cairá num passe de mágica. Não há a menor chance disso acontecer enquanto os militares venezuelanos apoiarem Maduro. A única tentativa de rebelião militar, no Forte Paramacay, no ano passado, foi um fracasso. A probabilidade maior é o regime endurecer ainda mais, expurgando a oposição interna, que passará a ser tratada como a antiga oposição liberal e social-democrata. Do ponto de vista das relações internacionais, Maduro ainda tem aliados poderosos, tanto do ponto de vista econômico quanto militar.

Armas
Militarmente, a Venezuela aparece em 45º lugar no mundo. Na América Latina, ocupa o sexto, atrás da Colômbia (40º), Peru (39º), Argentina (35º), México (34º) e o Brasil, que ocupa a 17ª posição do GFP (Global Firepower, compilado pelos Estados Unidos). Não existe nenhum risco de crise militar entre os países da região que possa resultar numa guerra com a Venezuela a curto prazo; na verdade, a tensão externa serve como biombo e pretexto para o endurecimento do regime, que já pode ser caracterizado como uma ditadura disfarçada.

O regime de Maduro não seria o que é hoje sem a passagem do coronel Hugo Chávez pela Presidência. Ele operou com destreza o alinhamento do alto-comando militar das Forças Armadas com seu projeto político, dando aos militares grande poder na economia, seja na gestão das empresas, seja no direcionamento dos negócios, principalmente petrolíferos. Além disso, modernizou o equipamento militar, com a aquisição de aviões, tanques e mísseis russos. Também formou uma milícia com 500 mil voluntários em todo o país, nos moldes cubanos, que pode ser mobilizada e prontamente armada pelo Exército.

Maior do que o risco de guerra com um país vizinho, que a Venezuela hoje não pode bancar sem entrar em completo colapso, a não ser que receba ajuda direta e maciça de Cuba, da Rússia ou da China, o que impensável sem uma escalada de tensões com os Estados Unidos, é a possibilidade de desestruturação progressiva de suas forças armadas, que já não têm condições de atender necessidades elementares. São cada vez mais frequentes os casos de militares venezuelanos doentes ou feridos que buscam socorro médico atravessando, sem se identificarem como tal, a fronteira com o Brasil. O maior problema são armas de mão e mísseis que podem ser transportados e lançados por um só homem, armamentos que podem ser vendidos ou contrabandeados por oficiais corruptos ou soldados em dificuldades financeiras para manter as respectivas famílias.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-crise-venezuelana/


El País: Maduro é reeleito com uma forte abstenção e em meio a denúncias de fraude

Candidato líder da oposição não reconhece processo eleitoral e pede novas eleições

Por Alonso Moreiro, do El País

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro,foi reeleito para mais 6 anos de mandato com uma abstenção de 54% em meio a uma eleição boicotada pela maioria das forças da oposição e com denúncias de fraudes. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), a participação dos eleitores chegou a 46%, embora fontes do organismo citadas pela Reuters assegurem que no fechamento das seções eleitorais, às 18h, esse número era de 32,3%. Nas últimas eleições presidenciais, celebradas em 2013, 80% dos eleitores compareceram aos colégios eleitorais. Ao longo do dia, a maioria das ruas da Venezuela registravam muito pouco trânsito e os colégios eleitorais estavam quase vazios.

O único adversário real de Maduro era Henri Falcón, que obteve 1,8 milhões de votos. O líder opositor declarou minutos antes do anúncio do resultado que não reconhecia o processo eleitoral deste domingo e exigiu a convocação de novas eleições. O candidato da oposição afirmou ter recebido 900 denúncias de irregularidades na jornada eleitoral. Com um tom enfático, ele criticou o "descaro" e o "vantagismo" do chavismo no pleito.

Ao fundamentar suas denúncias, Henri Falcón fez questão de ressaltar a presença dos chamados "pontos vermelhos", núcleos de ativismo e proselitismo político, proibidos por lei, que as organizações chavistas instalaram a 200 metros dos locais de votação, e inclusive dentro deles, sob total consentimento do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Os pontos vermelhos são considerados por muitos dirigentes oficialistas, como Diosdado Cabello, um direito adquirido.

Costumam ir a esses espaços os eleitores do presidente Maduro para registar seu voto com o chamado "carnê da pátria", com o qual estariam assegurando as ajudas e os programas sociais em troca de votos. O carnê é um documento com que o chavismo tenta conquistar o apoio das classes populares. Circulam no país mais de 16 milhões. Eles permitem o acesso a bônus e serviços e, ainda que oficialmente não sirva para receber atenção preferencial no recebimento das caixas periódicas de alimentos, é um instrumento utilizado para medir a fidelidade ao regime.

Maduro
O presidente havia emitido um aviso aos venezuelanos. "Votos ou balas", enfatizou pela manhã depois de ir ao seu colégio eleitoral no oeste de Caracas. Depois da divulgação dos resultados, ele deixou o palácio de Miraflores e falou a milhares de apoiadores. Ele falou de "vitória popular permanente", destacou a margem com a qual venceu Falcón - 67,7% contra 21,2% - e pediu diálogo.

Maduro enfatizou o caráter "histórico" do dia. No entanto, dezenas de locais de votação, mesmo nos bairros populares, pareciam vazios, quando é comum ver as calçadas de Caracas com longas filas de venezuelanos esperando para votar. Foi o que aconteceu em Petare, que tem alta porcentagem de militantes e apoiadores de Chávez e é um dos mais populosos da cidade. "Eles me disseram para fazer o cartão da pátria [um sistema que o governo usa para ter um segundo registro de participação] depois que eu votei, vim. Eu votei voluntariamente em Maduro. Eu acredito nele porque espero que ele resolva a situação no país. Tudo o que aconteceu é por causa da guerra econômica", disse um dos poucos eleitores no colégio, aderindo à retórica usada pelo oficialismo para justificar a hiperinflação que, segundo o Fundo Monetário Internacional, pode levar a aumento de preços de 1.800.000% em dois anos.

Esse é o argumento usado pelo aparato do Estado. "Quem foi o grande derrotado hoje? A abstenção. Dissemos que a votação de hoje entraria para a história como um voto antiimperialista", disse Delcy Rodríguez, presidente da Assembléia Nacional Constituinte (ANC). Horas antes, Neisa Calderón, uma aposentada de 65 anos, exigiu uma mudança profunda e queixou-se dos procedimentos de controle da população instalados pelas autoridades: "Não sei por que devo me registrar para o cartão da pátria, mas faço porque acredito que assim posso validar meu voto. Votei porque quero que a situação na Venezuela mude. Caso contrário, não sei como fazer isso ".

Eleição
O processo eleitoral deveria terminar oficialmente às 18h (19h de Brasília), mas algumas escolas ficaram abertas uma hora e meia após esse horário em várias partes do país. Maduro votou pouco antes das 6h ao colégio Miguel Antonio Caro, em Caracas. "Fui o primeiro votante da pátria (...) sempre em primeiro nas batalhas pela nossa soberania, pelo direito à paz", declarou o líder chavista.

Alguns países como Argentina e Chile afirmaram que não irão reconhecer as eleições presidenciais venezuelanas, além da União Europeia. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, classificou as eleições presidenciais na Venezuela como "fraudulentas" e disse que elas "não mudam nada" no cenário do país. "Observando hoje (o que acontece na) #Venezuela. As fraudulentas eleições não mudam nada. É preciso que o povo venezuelano dirija este país... Uma nação com tanto o que oferecer ao mundo", escreveu Pompeo no Twitter.


El País: Com desaprovação de 70%, Maduro procura uma vitória eleitoral para se legitimar

Algumas pesquisas dão vantagem ao opositor Henri Falcón, dissidente do chavismo, nas eleições deste domingo na Venezuela

Por Francesco Manetto, do El País

A Venezuela realiza nesse domingo eleições presidenciais repudiadas por amplos setores da sociedade, a comunidade internacional e sem a participação da maioria das forças de oposição. A eleição, decidida no começo do ano pelo Governo de Nicolás Maduro, não tem legitimidade, de acordo com a oposição, por não possuir garantias democráticas, supervisão suficiente e por ter um formato que favorece o chavismo. O presidente se prepara, dessa forma, para amparar seu poder em meio a uma catástrofe econômica sem precedentes.

O mandatário mede forças nas urnas com Henri Falcón, militar aposentado e ex-governador do Estado de Lara, e com o pastor evangélico Javier Bertucci. Ainda que algumas pesquisas deem vantagem a Falcón, que tem um passado de dirigente da situação até sua ruptura com o ex-presidente Hugo Chávez em 2010, Maduro, com o controle das instituições e com a máquina socialista, continua como favorito.

A desaprovação a sua gestão é altíssima, acima de 70%. É difícil, entretanto, vislumbrar outro resultado que não seja sua vitória. A eleição, mesmo com diversas suspeitas de fraude, é importante ao chavismo porque é a primeira reeleição do presidente bolivariano, já que as eleições de 2013, em que venceu por uma pequena diferença Henrique Capriles, foram uma espécie de trâmite após o falecimento de seu antecessor. Hoje começa de alguma forma uma nova fase dentro do regime, que já rompeu com alguns postulados de Chávez, começando por sua Constituição.

O realmente crucial serão, de qualquer forma, os próximos passos, o que acontecerá a partir de amanhã. Várias hipóteses sobre o futuro da Venezuela surgiram nos últimos meses. A primeira, feita, por exemplo, pelo presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, tem a ver com mais uma fuga rumo ao futuro. “O que irá acontecer lá é um exercício de consolidar uma ditadura, porque o que está previsto é que depois dessas eleições façam uma nova Constituição com artigos que de certa forma permitem ao regime ser mais repressivo do que foi até agora”, afirmou recentemente Santos em declarações ao EL PAÍS. A segunda possibilidade, que não é necessariamente oposta a esse plano, pode ser a tentativa de formar uma espécie de Governo de unidade nacional com Falcón. Isso dependerá dos apoios recebidos por seu rival e da participação. Seria, de qualquer maneira, um mero golpe de imagem que, de acordo com a maioria das forças de oposição, não teria efeitos práticos e não significaria uma mudança na gestão.

Também há quem espere que a hiperinflação, o desmoronamento de um sistema produtivo centrado no petróleo e a profunda crise social conduzirão a uma queda natural do regime. Enquanto isso, algumas das principais instâncias internacionais e quase todos os Governos da região já anunciaram que não legitimarão os resultados.

Sanções dos EUA
Na sexta-feira os Estados Unidos impuseram novas sanções contra o número dois do chavismo, Diosdado Cabello, e seu irmão. “O povo venezuelano sofre com políticos corruptos que reforçam seu controle do poder enquanto forram seus próprios bolsos”, disse o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin. Por isso, acrescentou, os EUA sancionam figuras como Cabello, que “exploram suas posições oficiais para envolverem-se no tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, malversação de fundos estatais e outras atividades corruptas”.

O Governo de Maduro reagiu na sexta-feira a essas medidas com palavras que recorrem à habitual retórica do inimigo exterior e prefiguram um aumento do isolamento internacional do país. “Não surpreende que, nas vésperas de um novo processo eleitoral, onde o povo venezuelano sairá para defender a democracia contra as agressões imperialistas”, afirmou o Ministério das Relações Exteriores em um comunicado, “mais uma vez o regime norte-americano da vez tente sabotar as eleições mediante o uso de medidas ilegais de coerção”.

Enquanto as tensões diplomáticas crescem e centenas de milhares de pessoas fogem aos países vizinhos, os venezuelanos se dispõem a votar em um país partido ao meio.


Cristovam Buarque: A ineficiência é injusta

Uma economia pode ser eficiente e injusta, mas uma economia ineficiente não consegue ser justa. Sem democracia os sistemas políticos não têm mecanismos de correção de erros e reorientação de rumos. Dentro do PT repeti isso inúmeras vezes e volto nisso ao assistir a programas na televisão sobre os pobres imigrantes que chegam em Roraima, vindos da Venezuela. Dois repórteres diferentes falaram da extrema pobreza dos venezuelanos, mas também de não haver analfabetos entre eles. Esse fato é a prova de que não se constrói sociedade justa sobre economia ineficiente.

Isso me lembra quando estive em Caracas, em 2006, para o lançamento da versão em espanhol de Um Livro de Perguntas, de minha autoria. Na ocasião, fui convidado pelo então presidente Hugo Chávez para a solenidade em que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declarava a “Venezuela Território Livre do Analfabetismo”. Antes do evento, em horas livres da minha agenda, percorri as ruas do centro da cidade com um pequeno papel no qual escrevi o nome e o endereço de uma livraria, que eu mostrava a vendedores ambulantes, pedintes, pessoas que pareciam vagar nas ruas, perguntando como chegar lá. Todos foram capazes de ler o texto.

À noite, em um jantar na casa dos editores do livro, contei o resultado dessa minha experiência ao ex-ministro da Educação de Chávez, Aristóbulo Istúriz, mas disse também o que eu ouvira de diversos críticos ao chavismo: benefícios sociais esbarrariam na irresponsabilidade com as finanças públicas, nas interferências estatais na economia e no desprezo à democracia.

O primeiro compromisso de quem deseja construir uma sociedade justa é manter compromisso com a eficiência econômica: responsabilidade fiscal; não gastar mais do que o arrecadado; manter o endividamento público dentro dos limites prudenciais; não interferir, irresponsavelmente, no mercado, tabelando preços ou manipulando taxas de juros.

Em 1998, defendi que, se eleito, Lula deveria manter o ministro Malan, na Fazenda, ao menos por 100 dias. Fui muito criticado dentro do PT, mas depois o ex-presidente entendeu a importância da eficiência econômica e fez um governo responsável, com base em sua “Carta ao Povo Brasileiro”.

A partir de 2004, os governos Lula e Dilma ficaram longe do compromisso de Chávez para abolir o analfabetismo que chegou a aumentar no ano 2012. A partir de 2011, especialmente com a proximidade das eleições de 2014, apesar de muitos alertas, o governo brasileiro, assim como o da Venezuela, passou a descuidar do seu dever para sustentar uma economia eficiente. Os partidos de esquerda chegaram a afirmar que a economia era uma questão de vontade política, sem necessidade de seguir regras técnicas.

Apesar da triste realidade que vemos na Venezuela, políticos que se consideram de esquerda continuam até hoje, seja por ilusão ideológica, defendendo a ideia de que a justiça social pode ser construída sem necessidade de uma base econômica eficiente, seja por incompetência técnica, achando que a economia será eficiente mesmo que suas bases sejam desrespeitadas.

Foi essa visão que levou a Venezuela ao estado em que está, apesar de toda a riqueza petrolífera. Foi a corrupção, o descuido com as contas públicas e a ilusão com o pré-sal que levaram o Rio de Janeiro ao seu colapso. Isso estava levando o Brasil ao desastre em 2014 e 2015, e ainda pode levar se descuidarmos da regra de que “economia ineficiente não constrói justiça social”.

Se não quisermos olhar para o desastre na Venezuela, basta compararmos os resultados do populismo argentino com a responsabilidade chilena para percebermos o valor dessa regra e sua consequência: os pobres são os primeiros a pagar pelos desastres da ineficiência econômica. Eles podem até ganhar no primeiro momento, com os gastos estatais sem base sólida, com os deficits fiscais para financiar despesas sociais, com o aumento das dívidas, mas são os primeiros a pagar com o desemprego e a inflação.

Por isso, entre os venezuelanos que chegam, não há analfabetos; mas também não há ricos. Estes se beneficiam da economia eficiente e injusta nos governos ditos de direita e se protegem na economia ineficiente e demagógica nos governos ditos de esquerda.

A justiça social não se faz mais por dentro da economia ineficiente, mas usando os recursos criados pela economia eficiente para investir especialmente na construção de um sistema educacional de igual qualidade para todos, na velocidade que a responsabilidade fiscal permitir. (Correio Braziliense – 13/03/2018)

* Cristovam Buarque é senador pelo PPS-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Roberto Freire: Silêncio cúmplice

O drama humanitário enfrentado pelos venezuelanos, que vêm deixando o seu país em função do desmantelo político, econômico e, principalmente social, é um problema grave no qual o Brasil está cada vez mais envolvido. Basta que se observe o que ocorre no estado de Roraima, sobretudo na capital Boa Vista, destino de algumas dezenas de milhares de refugiados que chegam em busca de uma oportunidade de sobrevivência.

Para que se tenha ideia da dimensão do estrago causado pela ditadura de Nicolás Maduro, dados obtidos pelo portal “800 Notícias” apontam que quase 2 milhões de cidadãos deixaram a Venezuela nos últimos anos. A Colômbia é o principal destino (550 mil), seguida por Equador (280 mil), Panamá (260 mil), Espanha (250 mil), Chile (160 mil), Peru (100 mil), entre outros. Até agora, o Brasil recebeu cerca de 34 mil pessoas vindas daquele país.

Quando se analisa a tragédia venezuelana sob o ponto de vista de quem vive no Brasil, o que chama a atenção é o silêncio conivente de grande parte da nossa assim chamada intelectualidade e de alguns artistas que, aliás, se notabilizam pelo ativismo político. Muitos dos nossos pensadores, além de inúmeros expoentes da cultura brasileira que se manifestaram de forma corajosa contra a ditadura militar de 1964, contribuindo decisivamente com a luta pela liberdade e a reabertura democrática do país, simplesmente silenciam em relação ao horror do regime de Maduro. Tal comportamento dá margem, inclusive, a que se imagine haver um caráter seletivo de indignação – como se houvesse extremo rigor ao se condenar o autoritarismo à direita, mas condescendência quando se trata de uma ditadura à esquerda. Esse duplo padrão moral é inaceitável e inadmissível.

Apesar da vergonhosa omissão de parte dos intelectuais brasileiros, o flagelo venezuelano se revela cotidianamente. De acordo com levantamento da Universidade Católica Andrés Bello (Ucab), nove em cada dez famílias não têm renda para comprar uma cesta básica. A inflação deve alcançar o extraordinário índice de 10.000% neste ano. Além de tudo isso, segundo documentos obtidos pela Organização dos Estados Americanos (OEA), já se chegou ao absurdo de quase 500 presos políticos no país.

O desastre promovido pelo chavismo e acentuado por Maduro nos últimos anos é um retrato do retumbante fracasso de uma tirania que viola a democracia, corrói as instituições, domina o Legislativo e o Judiciário, persegue, prende e mata opositores e dissidentes e, por fim, enterra a esperança das famílias em um futuro mais digno. Enquanto a “intelligentsia” brasileira se acovarda e mantém um injustificável silêncio a respeito, milhões de venezuelanos gritam por socorro. Não podemos ignorá-los.

https://veja.abril.com.br/blog/noblat/silencio-cumplice/


Fernando Gabeira: Fugindo do paraíso

A esquerda não pode encarar a realidade dos venezuelanos saindo em massa de lá

No século passado, tive a oportunidade de cobrir a chegada dos refugiados do comunismo às praias de Brindisi, na Itália. Vinham da Albânia, sedentos de liberdade e de algum conforto material. E agora testemunho o movimento dos refugiados do socialismo do século 21. Como o drama se desenrola no Brasil, tive a oportunidade de seguir sua trajetória em três viagens à fronteira.

Na primeira entrei na Venezuela. Nas duas últimas concentrei-me em Boa Vista, Pacaraima e no trecho de 200 quilômetros da BR-174 que liga a fronteira à capital de Roraima.

O Brasil ainda não se deu conta desse drama na sua amplitude. Cerca de 180 crianças venezuelanas entram todos os dias no País, na maternidade Boa Vista nascem quatro por dia. E há muitas mulheres grávidas. Toda uma nova geração de brasileiros está surgindo desse drama histórico.

Índios waraos, que desceram da Bacia do Orenoco, vieram em massa para o Brasil. Estão alojados em Pacaraima e em Boa Vista. No ano passado estavam na rua. Eram um perigo para eles e também para a pequena cidade brasileira. Muitos tinham doenças de pele, pelas circunstâncias em que vivam, amontoados na rodoviária e nas cercanias. Hoje estão em abrigo, ainda em situação precária. É praticamente toda uma etnia que se mudou para cá. O que fazer diante disso?

A novidade desta última viagem é que o drama ficou mais intenso, famílias dormindo no chão, crianças revirando latas de lixo, mulheres se prostituindo na capital. Há também nesse sofrimento muita iniciativa, muita gente vendendo picolé, cortando cabelo, desenhando retratos, enfim, buscando uma forma de atenuar a miséria.

Hoje, são os próprios habitantes de Roraima que alimentam os venezuelanos. Mas isso não significa a inexistência de rejeição. As pesquisas indicam um mal-estar crescente, uma xenofobia latente num Estado que já teve os maranhenses como bode expiatório num momento em que se deslocaram em massa para Roraima.

O governo lançou um plano de ordenamento da fronteira com a Venezuela. Assim como a intervenção no Rio, é uma ideia à espera de um plano concreto. O princípio é correto: cadastrar e distribuir os venezuelanos racionalmente pelo País.

Pelo menos em teoria, aprendemos com a história dos haitianos no Acre. Eram em menor número, mas ainda assim foi preciso mandá-los de ônibus para São Paulo, sem nenhum aviso ou preparação.

No caso dos venezuelanos, no êxodo em massa está embutida também uma fuga de cérebros. Não há indicações precisas, mas há quem calcule em 20% o índice de profissionais com curso superior.

Desde o ano passado eu estranho o silêncio das forcas políticas brasileiras. Naquela época, já era possível prever esse desdobramento e, mais ainda, é possível agora afirmar que não existe nenhuma solução no horizonte.

Os venezuelanos vão continuar saindo em massa do país e as eleições anunciadas por Nicolás Maduro, boicotadas pela oposição, devem fortalecer a ditadura bolivariana. Os instrumentos diplomáticos do continente, Mercosul, Unasul, OEA, parecem incapazes de encontrar saída.

O Brasil hesita em internacionalizar o problema, embora a ONU já tenha mostrado simpatia pelo plano teórico de Temer. A internacionalização dificilmente resolverá pela América do Sul um problema que é muito do próprio continente.

A Europa está sobrecarregada com o êxodo pelo Mediterrâneo. Os Estados Unidos são governados por Trump, que não tem simpatia pelos refugiados.

O plano de ordenamento da fronteira, segundo os militares, depende de segurança jurídica. Ali podem trabalhar contra a entrada de drogas e armas. Mas não podem legalmente tratar de migração.

A fronteira continua porosa. Existe algo muito difícil de combater, técnica e politicamente: o contrabando de gasolina. A 174 está cheia de carcaças de carros queimados, muitos deles tentando escapar da polícia com uma altamente inflamável carga desse combustível. Documentei como os carros evitam a aduana e entram por um caminho alternativo trazendo a gasolina, que no lado da Venezuela é tão barata que dez centavos de real dão para encher um tanque. No lado brasileiro é vendida por R$ 1,50 o litro.

É politicamente difícil combater o contrabando, pelos simples fato de que ele faz parte da vida de Pacaraima: a cidade não tem posto de gasolina. Em termos de coerência, o Brasil só pode combater esse tipo de contrabando se abrir um posto em Pacaraima. A cidade se organiza como se isso não fosse necessário.

São 400 quilômetros de ida e volta entre Pacaraima e Boa Vista. É preciso encher o tanque na capital até transbordar ou, então, fazer o jogo do contrabando. Qual o sentido de tirar proveito de um país em ruínas? Jogar no quanto pior, melhor? Essa tese pertence ao outro lado, o de Maduro e seus apoiadores no mundo.

O êxodo entrou no noticiário talvez enfatizando apenas o sofrimento, sem atenção para os milhares de estratégias pessoais de sobrevivência, uma dimensão que é possível sentir nas descrições do escritor Primo Levi do campo de concentração em Auschwitz.

Mas na política mesmo ainda não descobriram o que se está passando por lá, exceto pelo voz desgastada de Romero Jucá. Impressionante como tanto sofrimento some no radar de Brasília. A condição humana escapa à esquerda quando as pessoas fogem do que ela considera um paraíso ou, como Lula, uma democracia em excesso. A esquerda não pode encarar essa realidade porque abalaria sua autoimagem. Entre abrir a cabeça ou se fechar para o mundo, já fez sua opção.

Felizmente, é um drama que não tem repercussão eleitoral, a não ser num universo de meio milhão de habitantes de Roraima. Com as paixões em fogo brando talvez seja possível responder com serenidade a essa tragédia, mesmo sabendo que o horizonte será mais sombrio.

 


Mario Vargas Llosa: A derrota de Correa

 

Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela também sairá do pesadelo

No plebiscito realizado no Equador, dia 4, não foi derrotado apenas o ex-presidente Rafael Correa, que não poderá se candidatar novamente à primeira magistratura do país, mas também o chavismo e sua criação ideológica, o “socialismo do século 21”, da qual Correa foi um promotor entusiasta.

Durante os dez anos em que esteve no governo, o exuberante demagogo que alardeava seu “socialismo cristão” foi, como o comandante Daniel Ortega, na Nicarágua, Evo Morales, na Bolívia, e Fidel e Raúl Castro, em Cuba, um propagandista tenaz das políticas que destruíram a democracia venezuelana e a transformaram numa ditadura devastada pela ruína econômica, a violência repressora e a inflação.

Por sorte dos equatorianos ingênuos que o levaram ao poder, Correa não imitou todas as políticas chavistas de nacionalização de empresas, redução drástica do setor privado, inchaço do setor estatal, corroído por incompetência e roubo, e perseguição sistemática à imprensa livre e aos críticos - embora tenha golpeado de várias maneiras os empresários privados e, entre outras ações antidemocráticas, tenha criado, em 2013, uma vergonhosa Lei Orgânica da Comunicação, condenada por todas as associações internacionais de imprensa, que equivalia a uma forma de censura ao dissidente e ao crítico e deixava suspensa uma espada de Dâmocles sobre os meios de comunicação independentes. Apesar de essa lei não ser mais aplicada, ela ainda não foi revogada.

De resto, como costuma ocorrer sempre que caudilhos se instalam no poder, a corrupção também se alastrou no Equador nos anos de Correa. Apenas encerrado o plebiscito, ele teve de depor ante a Promotoria de Guayaquil, que investiga os contratos de venda antecipada de petróleo assinados pelo Equador com China e Tailândia, os quais, segundo a Controladoria-Geral do Estado, causaram graves prejuízos ao Tesouro.

Rafael Correa sentia-se muito seguro, acreditando que seu sucessor, Lenín Moreno, que havia sido seu vice-presidente, protegeria sua retaguarda. Mas Moreno nunca concordou com a reforma constitucional promovida por Correa para - à moda de Evo e Ortega - se reeleger quantas vezes quisesse.

Desde que assumiu o poder, Moreno procurou acalmar o ambiente político e propiciar uma coexistência pacífica entre as diversas forças e partidos, visando a um consenso que permitisse reformas e progresso. Essa tranquilidade, da qual se orgulha, contrasta radicalmente com o estado de sobressalto e convulsão no qual as arengas de seu antecessor mantinham o país. Não é de se estranhar que o conflito de temperamentos, ao lado das diferenças políticas, provocasse a ruptura entre Correa e Moreno.

O presidente decidiu, sob critérios democráticos, convocar um plebiscito com várias perguntas para que o povo equatoriano se pronunciasse sobre a reeleição. Os resultados foram meridianamente claros. Uma maioria inequívoca se declarou contra e uma maioria ainda mais contundente vetou o acesso a cargos do governo de pessoas envolvidas em corrupção.

Correa, que havia voltado da Bélgica para defender suas “reformas”, fez campanha por um mês inteiro pelo país, o que serviu para comprovar, pela chuva de insultos, pedras e ovos com que foi recebido em muitos lugares, a queda radical da popularidade que teve em outros tempos - em consequência, ao que parece, de um despertar do povo equatoriano para a liberdade.

É preciso comemorar esse processo, que ao lado do que ocorreu na Argentina e da mobilização popular no Brasil contra a corrupção e pela regeneração democrática, assinala uma tendência muito positiva em toda a América Latina em favor da depuração e fortalecimento das instituições.

A outra face da moeda é sem dúvida a Venezuela. Com o surpreendente apoio do ex-primeiro-ministro espanhol Rodríguez Zapatero, que sem corar de vergonha acaba de exortar a oposição a Nicolás Maduro a participar da farsa eleitoral de abril - ou seja, a pôr no pescoço a corda com que será enforcada -, o filho putativo de Hugo Chávez espera se reeleger presidente de um país em que pelo menos três quartos dos cidadãos fazem verdadeiros milagres para sobreviver a uma penúria cotidiana na qual não há comida, remédios, trabalho ou esperança, salvo para a máfia de demagogos e narcotraficantes encastelada no poder.

Para ganhar essa eleição, Maduro precisará contrariar violentamente a vontade popular. Tomara que a heroica e maltratada oposição venezuelana não se preste a dar ao pleito uma aparência de legitimidade participando dele. Nas condições atuais, não existe nenhuma possibilidade de uma eleição legítima. A comunidade democrática internacional deveria anunciar, desde já, que não reconhecerá seus resultados.

Já o plebiscito equatoriano deixa também entrever, no governo de Lenín Moreno, a esperança de que, abandonando o servil apoio que o governo de Rafael Correa deu à ditadura de Chávez e de Maduro, o Equador se una ao chamado Grupo de Lima, que há algum tempo vem mobilizando os países democráticos de todo o mundo para continuar isolando e pressionando a Venezuela para que seu governo aceite eleições verdadeiras, sob controle das Nações Unidas e da OEA, com observadores internacionais independentes. Só assim colocaremos fim a uma das mais ineptas ditaduras da história da América Latina, que em poucos anos conseguiu transformar um dos países mais ricos do mundo em um dos mais pobres.

O ocorrido na Venezuela ficará como um dos exemplos mais trágicos de suicídio político de uma sociedade. Durante 40 anos, a terra de Bolívar teve uma democracia com eleições livres nas quais eram renovados os governos e combatia resolutamente as ditaduras que naqueles anos assolavam o restante do continente. Embora nesse período houvesse corrupção, a sociedade venezuelana prosperou mais que nenhuma outra no continente.

Chávez foi um militar que traiu sua Constituição e seu Exército, sendo por este derrotado em sua tentativa golpista. Em lugar de ser indultado pela cegueira do presidente Rafael Caldera, deveria ter sido julgado e condenado pelos tribunais. Seria outra a realidade da Venezuela hoje se o povo venezuelano não se tivesse deixado seduzir pelo canto de sereia do caudilho revolucionário.

No entanto, pelo menos, ele soube reagir e agora luta com bravura pela democracia. Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela sairá do pesadelo. Tomara que aprenda a lição e esta seja a última ditadura de sua história. / Tradução de Roberto Muniz

*Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de Literatura


Luiz Sérgio Henriques: A crise latino-americana no espelho da Europa

Pouca ou nenhuma compreensão merecem aduladores de tiranetes terceiro-mundistas

Este tem sido um tempo de manifestos de intelectuais, no Brasil e fora daqui, a respeito dos problemas que nos acometem num ritmo quase de tirar o fôlego. Fácil demais, mas inútil, ironizar esse tipo de “literatura”, caracterizando-a como manifestação superficial de intelectuais sartrianamente engajados, para usar terminologia anacrônica, a respeito de caóticas situações de um Ocidente distante, posto na periferia do mundo e submetido, em passado não tão remoto assim, a golpes sangrentos e regimes de exceção.

Não se trata só de cálculo pragmático. Todo e qualquer democrata, seja de que tendência for, conhece o peso e a dimensão de um Jürgen Habermas ou de um Charles Taylor – para só mencionar dois nomes que, avalizadores da hipótese de golpe contra a democracia brasileira com o impeachment de Dilma Rousseff e os problemas judiciais de Luiz Inácio Lula da Silva, carregam consigo a capacidade de influenciar pessoas de bem nas mais diferentes latitudes. Não são “companheiros de viagem”, como se dizia outrora daqueles cujo apoio uma esquerda muitas vezes sectária aceitava transitoriamente, enquanto lhe serviam de um ponto de vista puramente tático. Na verdade, mais além do pragmatismo, o que dizem de certo ou errado, de profundo ou superficial, faz pensar nas relações entre cultura e política, nos meios e modos de recíproca influência entre duas esferas ligadas, mas irredutíveis uma à outra.

Se Habermas é um intelectual que estimula e inspira respeito, há, evidentemente, outros nomes cuja atitude diante não só do Brasil, como também da América Latina, dá margem a preocupação e a pessimismo. A virada à esquerda que marcou a política do subcontinente sulamericano na primeira década do novo século nem sempre foi acompanhada com sobriedade e mesmo seriedade. Tendências que se afiguravam desde o início autoritárias e potencialmente destrutivas foram saudadas por figuras públicas maiores ou menores como indícios de insurgência anti-imperialista, rebeliões populares contra o neoliberalismo, como se conviesse à esquerda reeditar, com sinal trocado, o doloroso passado de caudilhos e ditaduras de nuestra América.

A justiça social, assim, se imporia à força, em contraposição às formas de uma democracia estruturalmente vazia e oligárquica. Novos heróis libertadores elaboraram, ou tiveram quem por eles elaborasse, estratégias de refundação radical de seus países. Nas situações mais extremadas, a mistura de nacionalismo e militarismo criou o terreno para o surgimento do homem forte e providencial, acima das instituições, que, aliás, deveriam ser remodeladas segundo uma receita que pouco a pouco se espalharia – Constituintes (ou “prostituintes”) exclusivas, reeleições indefinidas, mecanismos plebiscitários de legitimação.

A Venezuela, o país vizinho e amigo que ora apodrece sob o chavismo e o madurismo, terá sido o exemplo mais acabado desse retorno tosco ao nacional-popular de outras eras. O bolivarianismo lançou ondas de choque por toda parte, hegemonizando o discurso da esquerda não só no entorno mais imediato. No reino restaurado do nacional-popular, um submarxismo não poderia deixar de se fazer presente, como quando o caudilho anunciou, com a megalomania característica, a criação de uma “V Internacional” em torno de seu país, a nova Meca revolucionária. Ou quando passou a exportar para a Europa – para alguns de seus políticos e intelectuais – as estratégias de uma esquerda de tipo populista, como suposto remédio para a crise – efetiva – da esquerda histórica. Que o diga o Podemos espanhol, que por aqui teve, e tem, seus admiradores.

O petismo, que poderia ter sido um contraponto a esse movimento, não raro foi um elemento a ele subordinado e, por isso, incapaz de se tornar a vanguarda do Ocidente político na subregião. Construiu uma mitologia global em torno de seu líder único, o que talvez seja agora um elemento de força para a agitação e propaganda em torno do “golpe branco” e do regime de exceção que teria imposto ao Brasil. Num tempo em que não só mercadorias transitam velozmente, mas também ideias e visões de mundo, estabeleceu pontes com a cultura europeia progressista, aproveitando-se, também nesse ponto, do caráter cartorial e provinciano das demais correntes partidárias internas. Conseguiu prodigiosamente manejar a linguagem bolivariana e a do socialismo reformista, que evidentemente considera como capitulação – ainda que, no poder, tenha praticado um reformismo errático e fraco, passivamente sustentado, como acontece a qualquer economia agroexportadora, no extraordinário dinamismo da “globalização chinesa” da década inicial do século.

Nada casual, pois, que intelectuais da área social-democrata, de sólido compromisso com as liberdades, subscrevam a versão petista da nossa crise. Num mundo ideal, grandes intelectuais não deveriam vir a reboque da política de uma facção – de qualquer uma delas. Deveriam ser mais amigos da democracia como um todo do que de um só partido, atitude que requer estudo, serenidade e análise refletida de mitos, mais além da imensa competência em seus campos específicos. Seja como for, trata-se de interlocutores preciosos, pensadores que defendem a razão neste tempo conturbado e não isento de perigos para todas as democracias, incluída aquela sob a qual vivemos ininterruptamente desde 1988.

Pouca ou nenhuma compreensão merecem os aduladores de tiranetes terceiro-mundistas de fachada revolucionária. A destruição da Venezuela é séria demais para que deixemos de cobrar responsabilidades de quem insiste em ver a América Latina como uma Sierra Maestra que não passa. Quanto à nossa esquerda, longe de projetar golpes e catástrofes, já era para ter ciência plena de que ciclos eleitorais vão e vêm, como é próprio das democracias normais, que, com toda a firmeza, deveríamos aspirar a ser.