Venezuela

Representantes do governo e da oposição da Venezuela durante negociação na Cidade do México - Ministério de Relações Exteriores do México

Governo e oposição da Venezuela assinam acordo de normalização das relações

Opera Mundi | Brasil de Fato

As delegações do governo da Venezuela e da Plataforma Unitária – maior coalizão entre partidos opositores da direita venezuelana – assinaram neste sábado (26/11) o segundo acordo parcial para a proteção do povo venezuelano, no final da rodada de diálogo iniciada no dia anterior, na Cidade do México.

Em ato realizado em um hotel da capital mexicana, representantes dos dois setores estabeleceram as diretrizes de um documento que foi previamente lido por um dos mediadores, o diplomata norueguês Dag Nylander.

O documento, batizado como Segundo Acordo Parcial para a Proteção do Povo Venezuelano, consiste em uma série de compromissos de ambos os lados, visando a recuperação de recursos legítimos por parte do Estado venezuelano que estão bloqueados devido às sanções impostas por governos estrangeiros – especialmente o dos Estados Unidos – contra o país sul-americano. Esses recursos, também segundo o acordo, devem ser utilizados no atendimento das necessidades sociais e melhoria dos serviços públicos.

Segundo o chanceler mexicano Marcelo Ebrard, o outro mediador do encontro, o acordo deste sábado representa, “uma esperança para toda a América Latina. É uma boa notícia quando há diálogo, mediação e essa é a nossa posição sobre esse assunto”.

Em entrevista para o canal TeleSUR, o diplomata também destacou o documento “cria um mecanismo prático, voltado para atender necessidades sociais vitais e problemas de serviço público, com base na recuperação de recursos legítimos, propriedade do Estado venezuelano, que hoje estão bloqueados no sistema financeiro internacional”.

Ambas as partes concordaram com a criação de uma Junta Nacional de Assistência Social, que servirá como “órgão técnico auxiliar para a mesa de diálogo e negociação, que trabalhará para realizar ações e programas específicos de assistência social para o povo venezuelano”.

Os recursos bloqueados serão direcionados principalmente para a assistência social das populações em termos de saúde, eletricidade, alimentação e assistência às vítimas de tragédias naturais.

O líder da delegação governista no encontro foi o deputado Jorge Rodríguez, presidente da Assembleia Nacional, o legislativo unicameral da Venezuela. Ele destacou que este segundo acordo possui virtudes que permitirão ao governo ter acesso a recursos necessários para que a confrontação política entre ambos os setores não signifique uma piora nas condições de vida das pessoas.

“Através deste acordo, estamos arrecadando mais de três bilhões de dólares, que vão diretamente para o financiamento da educação, saúde, eletricidade e para a atenção direta das vítimas das tragédias ocorridas na Venezuela devido às mudanças climáticas”, disse o parlamentar.

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato


Tanto Bolsonaro quanto Chávez fizeram carreira militar e tiveram problemas disciplinares que os levaram a deixar as Forças Armadas | Foto: Reprodução/BBC News Brasil

O roteiro Chavez

Sérgio C. Buarque,* Jornal do Commercio

Depois de fracassar na tentativa de golpe, em 1992, o coronel Hugo Chavez se elegeu presidente da Venezuela em 1998. Saiu do poder apenas quando morreu, em 2013, tendo governado o país durante 15 anos. Depois de morto, o regime bolivariano montado por ele continuou através do seu sucessor, Nicolas Maduro. Mesmo afundando na maior crise econômica e social da histórica da Venezuela, níveis alarmantes de pobreza num dos países mais ricos da América Latina, o chavismo governa o país há 24 anos. O roteiro Chavez para consolidação do poder é um exemplo para os candidatos a ditadores: controle do Judiciário, militarização do governo, autorização para reeleição sem limites, armamentismo da população e pressão e controle da imprensa.

Em 2003, Chavez conseguiu aprovar na Assembleia Nacional o aumento dos membros do Tribunal Constitucional de 20 para 32 ministros, nomeando 12 novos membros com seus aliados. A legislação autorizou o governo a afastar ministros do Tribunal quando julgasse que sua conduta feria o "o interesse nacional", o que tem levado ao desligamento de ministros que desagradem ao presidente. Para completar o controle jurídico, Hugo Chávez substituiu o procurador-geral, que questionava a legalidade de algumas das suas decisões, pelo seu vice-presidente e aliado incondicional.

Hugo Chavez distribuiu os mais importantes cargos do governo com militares, praticamente entregou a PDVSA e toda a cadeia de produção petrolífera e mineral. Comandantes militares se organizaram em empresas que passaram a controlar vários ramos da economia e dos serviços públicos da Venezuela. Ao mesmo tempo, ele promoveu uma massiva distribuição de armas com a população criando um exército paralelo de milicianos e formando grupos paramilitares politicamente alinhados ao chavismo, que, em várias ocasiões, reprimiram manifestações populares.

Além do apoio total dos militares, Chavez conseguiu maioria na Assembleia Constituinte para conceder poderes extraordinários ao executivo e autorização para reeleição ilimitada do presidente da República. No seu segundo mandato, o governo bolivariano passou a perseguir e silenciar a imprensa: cancelou a renovação da concessão da Radio Caracas Televisión, sufocou financeiramente as emissoras críticas e comprou o apoio de outras com a distribuição generosa de anúncios. Ao menos 200 órgãos de imprensa tiveram sua atuação suspensa e houve sucessivas violações do trabalho jornalísticos, incluindo prisões arbitrárias de jornalistas.

Este modelo de poder construído pelo coronel Chavez é o roteiro que o capitão vem conduzindo no Brasil, um manual para implantação da ditadura bolsonarista. Se for reeleito, Bolsonaro vai avançar nas medidas para consolidação do seu poder autoritário. O Brasil será a Venezuela amanhã.

Sobre o autor

Sérgio C. Buarque é economista, com mestrado em sociologia, foi jornalista da Deutsche Welle (de 1975/1979) e correspondente da IstoÉ na Alemanha (1977) e professor titular da FCAP/UPE (de 1982/2014).

Atualmente é consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, é sócio da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade, conselheiro do Conselho Consultivo da Fundação Astrojildo Pereira e seminarista do Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco. Membro do Conselho Editorial da Revista Será? colabora como articulista com o Jornal do Commércio e com a revista Política Democrática.


O que ensina a Venezuela

A presença de militares na política tem custos altos e reversão difícil

Maria Hermínia Tavares / Folha de S. Paulo

Mais de uma vez, ao desfechar ataques desvairados às instituições que garantem a democracia no país, Bolsonaro invocou o "meu Exército", sugerindo que conta com o apoio das Forças Armadas para levar a cabo seus intentos liberticidas.

Até aqui, parece haver antes farolagem do que fundamento nessas falas. Ainda assim, é nítido que desde a ditadura de 1964-1985 os militares brasileiros nunca estiveram tão perto de cruzar a linha que separa seu papel constitucional do engajamento aberto na disputa política.

A história nunca se repete ao pé da letra; e experiências de outros países costumam viajar mal. Ressalvas feitas, há muito que aprender com o artigo do cientista político americano Harold Trinkunas "As Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela: medo e interesse face à mudança política", recém-publicado pelo Woodrow Wilson Center de Washington.

O estudo trata da politização das instituições militares sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro e de sua subordinação aos governos populistas da dupla.

De um lado, isso implicou na doutrinação ideológica nas academias militares, em sistemas de promoção e atribuição de missões que favoreceram o oficialato leal ao chavismo; na reestruturação das Forças com a inclusão formal da Milícia Bolivariana diretamente afeta ao presidente; e no fortalecimento de um vasto sistema de contrainteligência militar que vigia os suspeitos de deslealdade ao regime. De outro lado, vieram as recompensas.

Em especial sob Maduro, militares ocuparam o centro do poder. Comandam ministérios, governam estados e controlam setores econômicos estratégicos, como parte da indústria petrolífera, a mineração de ouro e a distribuição de alimentos. Gerem também o multimilionário comércio de armas com a Rússia e a China. E não é propriamente um segredo em Caracas que oficiais de alta patente têm parte com o tráfico internacional de drogas e o contrabando de mercadorias.

Maduro, ele sim, diz a verdade ao proclamar que o politizado Exército do país é seu. E este, cúmplice do desastre nacional que o populismo chavista promoveu, compartilha com o autocrata a responsabilidade pela destruição de uma democracia que já foi forte o suficiente para vencer a guerrilha revolucionária e ficar ao largo da onda de autoritarismo que sufocou a região nos anos 1960-70.

Acima de tudo, os fuzis são hoje o principal obstáculo para a Venezuela voltar por meios pacíficos à normalidade democrática. Por atraente que possa parecer aos brasileiros desiludidos com o sistema, a presença dos militares na política tem custos altos e reversão difícil.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/08/o-que-ensina-a-venezuela.shtml


Esquerda auxilia Bolsonaro sempre que apoia ditaduras

Militantes de esquerda ficam muito irritados quando seus políticos são questionados por jornalistas sobre Cuba ou Venezuela. Acreditam que esse tipo de pergunta é capciosa, uma espécie de espantalho que busca amedrontar o eleitorado e desviar a atenção dos temas substantivos de políticas públicas.

O antigo mal-estar foi reavivado agora quando diversos políticos de esquerda, entre eles o ex-presidente Lula, deram declarações apoiando a ditadura cubana, que enfrenta uma onda de protestos.

A esquerda não gosta de ser comparada a Bolsonaro em sua falta de compromisso com a democracia. Em parte tem razão: nos 13 anos de governos petistas não houve nenhum movimento relevante de esmorecimento da ordem democrática. Apesar de declarações criticando a imprensa ou ataques a movimentos de protesto, não houve nenhuma ação dos governos de esquerda que minimamente se aproximasse das rotineiras ameaças de Bolsonaro à integridade das eleições, à independência dos Poderes ou à liberdade de imprensa.

Por isso mesmo, é bastante surpreendente a incapacidade das maiores lideranças de esquerda de marcar distância dos regimes autoritários em Cuba ou na Venezuela. Essa recusa em condenar ditaduras alimenta o medo de setores da direita, e mesmo do centro, que pode empurrá-los outra vez para Bolsonaro na busca do mal menor.

A esquerda precisa escapar da lógica binária segundo a qual o injusto e excessivo embargo americano contra Cuba autoriza ações repressivas como a que vimos na semana passada, com a prisão em massa de dissidentes e a suspensão da internet. A ditadura de um só partido, a limitação da liberdade sindical e a restrição da liberdade de imprensa não podem ser defendidas como o preço a pagar pelas boas políticas de saúde e educação cubanas.

O mesmo vale para a Venezuela. A perseguição à oposição e o cerceamento à liberdade de imprensa, de um lado; e, de outro, a falta de independência entre os Poderes, com o estrito controle do Executivo sobre a Corte constitucional e o redesenho de distritos eleitorais para manter o controle do Legislativo, não pode ser defendida porque a oposição tentou dar golpes de Estado ou porque o governo americano ameaça intervir no país.

No caso da Venezuela, para além das questões democráticas, é preciso uma reflexão profunda sobre os graves equívocos da política econômica, que levaram o país a uma inflação anual de 3.000% e a uma queda no PIB de 30% em 2020 —esse desastre todo não se explica apenas pelas sanções americanas e por um suposto locaute do empresariado.

A esquerda, se quer se apresentar como contraponto ao autoritarismo de Bolsonaro, precisa melhorar muito suas credenciais democráticas. Não pode tomar posições que sugiram que, se a oportunidade surgir, poderá sacrificar a democracia na busca pela justiça social. Sempre que a oportunidade surgir, é mais do que pertinente que o jornalista pergunte ao candidato da esquerda: “E a Venezuela?”.


Sérgio C. Buarque: A milícia do presidente

O presidente Jair Bolsonaro parece inspirar-se no seu grande desafeto ideológico, o populista autoritário presidente Nicolás Maduro (que sucedeu o falecido coronel Hugo Chavez) na missão muito bem sucedida de destruição da Venezuela. Os dois decretos assinados por Bolsonaro, facilitando a posse de armas de fogo pela população, é um instrumento a mais de formação de grupos armados, que pode levar à escalada de violência e intimidação na política brasileira.

A simplificação do acesso a volumes mais amplos de armas, fora do controle das Forças Armadas, facilita o armamentismo dos grupos criminosos que atuam e controlam amplas áreas das cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro (narcotraficantes e milicianos), e permite a formação das milícias bolsonaristas com os fanáticos seguidores do presidente. Esta é a intenção de Bolsonaro. “Eu quero todo mundo armado!”, disse ele mais de uma vez. Quando diz isso, Bolsonaro sabe quem vai comprar armas e organizar pequenos arsenais: os caçadores e atiradores (autorizados a comprar até 60 armas sem necessidade de autorização do Exército), numa fachada para todo tipo de criminoso e fanatismo político.

O governo autoritário da Venezuela, segundo declaração recente de Maduro, já conta com “3,3 milhões de milicianos organizados, treinados, armados e dispostos a defender a união da Venezuela”. O dado é exagerado, segundo especialistas, mas esta Milicia Nacional Bolivariana supera em muito os 123 mil homens do contingente das Forças Armadas. Este é o povo armado dos sonhos de Bolsonaro, milicianos bolsonaristas, para copiar, no Brasil, o modelo bolivariano de intimidação e violência política contra os adversários, que mantém o governo no poder, apesar da devastadora crise econômica, social e política.

Mas o presidente brasileiro diz que pretende armar o povo brasileiro porque não quer uma ditadura. Logo ele, que não cansa de defender e louvar a ditadura militar brasileira, e que afirmou, lá atrás (1999), que o Brasil só iria mudar “quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!”

Raul Jungmann tem razão quando adverte, em carta aberta aos ministros do STF-Supremo Tribunal Federal, que os decretos de Bolsonaro que facilitam o acesso a armas estimulam uma guerra civil no país. “Ao longo da história, diz ele, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”.

O povo armado nunca serviu à democracia. Muito pelo contrário, empurra a política para o terreno pantanoso da violência, substitui os argumentos e a negociação política pela disputa armada, quebra o monopólio da força pelo Estado, e permite a formação de milícias e exércitos partidarizados. Tem sido assim na Venezuela de Chavez e Maduro.  Pode vir a ser assim também no Brasil, se Bolsonaro continuar com seu projeto de armar o “seu” povo para o enfrentamento político que se avizinha com as eleições de 2022, lembrando que, seguindo o exemplo de Donald Trump, ele já antecipou que podem vir a ser fraudadas, se ele não for reeleito.

O mais absurdo e chocante desta iniciativa armamentista de Bolsonaro é o seu lançamento num momento em que morrem cerca de mil brasileiros por dia por Covid-19, em grande parte por conta de sua irresponsabilidade na condução (ou ausência de condução) da política sanitária do Brasil. Já são mais de 250 mil mortos, que se somam às 60 mil vítimas anuais de homicídios, quase sempre por arma de fogo. O presidente Jair Bolsonaro é o senhor das armas, e parece ter um desprezo especial pela vida dos brasileiros.

*Economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.


Elio Gaspari: A radioatividade do capitão

Bolsonaro e Hugo Chávez assemelharam-se na largada

Quando o senador Tasso Jereissati disse que até a eleição do ano que vem “as instituições precisam ser fortes, trincar os dentes”, ele sabia do que estava falando. Semanas depois dessa advertência, o capitão fritou de forma espalhafatosa o presidente da Petrobras, com as consequências que são conhecidas.

Como escreveu o economista Gustavo Franco: “Boa tarde, Venezuela”. Bolsonaro e Hugo Chávez assemelharam-se na largada. Ambos foram militares indisciplinados, ambos mantiveram relações agrestes com as instituições e ambos encantaram-se com o apoio de modalidades milicianas. Se Chávez foi para a esquerda, esse oportunismo vem a ser irrelevante. Nos dois casos, a mola propulsora era a busca e a manutenção do poder.

Com a fritura de Roberto Castello Branco, o capitão mostrou sua forma rombuda de governar. Na sua sala de troféus estão as cabeças de Gustavo Bebianno, o advogado que se juntou a ele quando os bolsonaristas cabiam numa Kombi. (Foi Bebianno quem levou Paulo Guedes ao deputado.) Ao lado dessa cabeça estão as de Sergio Moro, Luiz Henrique Mandetta e a do general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Dispensar colaboradores faz parte do jogo, e o general francês Charles De Gaulle ensinou que a ingratidão é um dever do governante. Espalhafato e falta de argumentos racionais nada têm a ver com isso, sobretudo quando se vê o equilíbrio com que Bolsonaro e seus filhos tratam o miliciano Fabrício Queiroz.

Seria injusto, contudo, atribuir apenas à radioatividade de Bolsonaro o desfecho das crises que alimenta. Todos os colaboradores que dispensou eram maiores de idade quando foram para o aglomerado contagiante de seu governo, inclusive o superministro Paulo Guedes, que lá continua, de máscara.

O ectoplasma que se denomina “mercado” mostra-se perplexo com a conduta de seu capitão. Há hipocrisia nisso. Enquanto fritava Castello Branco, Bolsonaro nomeava Paulo Skaf, presidente da Fiesp, para o Conselho da República. O andar de cima acreditou na própria esperteza e deu-se mal. Esqueceram que, em 1999, o deputado Jair Bolsonaro defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e o fechamento do Congresso.

Frias, a alma da ‘Folha’

Boa parte da alma dos jornais vem da alma de seus donos. A “Folha de S. Paulo” comemorou seu primeiro centenário e, num pequeno e delicado artigo, a jornalista Ana Cristina Rosa retratou a alma de Octávio Frias de Oliveira, seu dono de 1962 a 2007. Quando Frias morreu, a empreitada ficou com seus filhos.

A história contada por Ana Cristina Rosa diz tudo. Há 20 anos, ela era uma jovem jornalista e, ansiosa e insegura, foi entrevistar o Frias (ele tinha horror a que o chamassem de “senhor”). Na saída, presenteou a moça com um livro e, na dedicatória, chamou-a de “terrível inquisidora”.

Ela agradeceu:

— Esse seu ‘terrível’ tem duplo sentido, mas vou tomar como elogio. Obrigada. Ah, e vou guardar bem este livro para apresentar aqui na ‘Folha’ quando eu precisar de emprego.

Frias respondeu:

— O sentido é único e está bem claro. Quanto ao emprego, é seu quando quiser. E não precisa trazer o livro.

Esse era Frias. Gentil, abertamente afetuoso e, acima de tudo, atento. Sua alma ficou no jornal.


BBC Brasil: Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela

O Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder

Luis Barrucho, BBC News Brasil em Londres

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa presença expressiva de militares, especialmente da ativa, atuando dentro do governo, contribui para a ideologização de uma instituição que deveria ser neutra.

Fortalece esse argumento a recente fala do ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, que chamou o Congresso de "chantagista".

A declaração de Heleno inspirou a convocação de manifestações contra o Congresso para o próximo dia 15 de março. Em um áudio captado durante uma transmissão em rede social, o ministro foi flagrado dizendo que Bolsonaro não poderia aceitar que o Legislativo queira avançar sobre o dinheiro do Executivo.

"Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. F*da-se", disse aos ministros da Economia, Paulo Guedes e da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

Bolsonaro encaminhou a amigos um vídeo que convoca a população a ir às ruas para defendê-lo. Lideranças políticas, como os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, criticaram o presidente e falaram sobre "crise constitucional".

"As evidências históricas nos mostram que a democracia tem uma sobrevida maior quando há um controle civil das Forças Armadas. Ainda que, por ora não se veja um movimento mais efetivo dos militares no sentido de gerar desgaste democrático, trata-se de uma mudança na correlação de forças que gera preocupação e, se não houver esse controle, certamente representa uma das fontes de risco para a democracia", diz à BBC News Brasil Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria Integrada.

"Os regimes políticos são mais instáveis quando não há esse controle. Gerir o monopólio da força não é trivial e não é por um acaso que boa parte dos regimes autoritários do mundo ou regimes com forte instabilidade tem um papel político dos militares bastante efetivo", acrescenta.

Para Christoph Harig, pesquisador da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, na Alemanha, e doutor em Estudos de Segurança na Universidade King's College, em Londres, onde estudou Brasil, "já é problemático ter vários militares da reserva no governo, mas convidar aqueles da ativa afeta diretamente as Forças Armadas como instituição e evidentemente ridiculariza seu suposto papel 'não partidário' na democracia brasileira".

Composição ministerial

Atualmente, os militares controlam oito dos 22 ministérios do governo de Jair Bolsonaro (36,36%). Com a recente nomeação do general Walter Souza Braga Netto para a Casa Civil, o Palácio do Planalto ficou totalmente 'militarizado', embora Jorge de Oliveira Francisco, da Secretaria-Geral da Presidência, não seja egresso das Forças Armadas — ele é major da Polícia Militar do Distrito Federal.

Os militares que estão no governo atual, além de Braga Netto, são: tenente-coronel da reserva Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), general da reserva Fernando Azevedo e Silva (Defesa), general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Braga Netto e Ramos ainda estão na ativa, embora o primeiro, pressionado, tenha decidido antecipar sua ida à reserva, marcada para o meio deste ano.

Já no caso da Venezuela, militares comandam dez dos 34 ministérios (29,4%), a cifra mais baixa dos últimos anos, segundo a ONG venezuelana Control Ciudadano. São eles: coronel Jorge Elieser Márquez (Despacho da Presidência e Continuação da Gestão do Governo), major-general Néstor Reverol (Relações Interiores, Justiça e Paz), general Vladimir Padrino López (Defesa), coronel Wilmar Castro Soteldo (Agricultura Produtiva e Terras), general Ildemaro Moisés Villarroel Arismendi (Habitação e Moradia), major-general Manuel Quevedo (Petróleo), major-general Carlos Leal Tellería (Alimentação), general de divisão Raúl Alfonso Paredes (Obras Públicas), Almirante Gilberto Pinto Blanco (Desenvolvimento de Mineração Ecológica) e major-general Gerardo Izquierdo Torres (Nova Fronteira de Paz).

O número de militares como ministros no governo de Jair Bolsonaro também é superior a três dos cinco presidentes da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) — cada um deles tinha na composição de seus ministérios sete nomes das Forças Armadas. Na mesma base de comparação, o governo de Bolsonaro empata com o de Costa e Silva, mas ainda está atrás de Castelo Branco, que tinha doze militares como ministros.

Além disso, o Palácio do Planalto conta com cargos de destaque ocupados por egressos das Forças Armadas, como o próprio presidente, que é capitão reformado do Exército, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, além do porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, também general da reserva.

No último dia 14 de fevereiro, Bolsonaro também nomeou o almirante Flávio Augusto Viana Rocha para comandar a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), que ganhou novas funções e agora está subordinada diretamente ao presidente. Oficial-general da ativa da Marinha, Rocha estava à frente do 1º Distrito Naval. A SAE estava ligada anteriormente à Secretaria-Geral da Presidência, uma das quatro pastas com status de ministério que funciona no Palácio do Planalto.

'Neutralidade'

Segundo Cortez, da Tendências Consultoria Integrada, o papel das Forças Armadas deveria ser "apolítico".

"A partir do momento em que os militares passam a exercer um papel mais político, sofrem desgaste e passam a ser percebidos como atores políticos, não só os da reserva como os da ativa. Isso gera um choque entre mundos: um que funciona como base na hierarquia e disciplina e outro com base em relações mais horizontais. Não há uma escala formal no universo da política. São dois modus operandi bastante complicados", diz.

"Quando os militares passam a fazer parte do governo, politiza-se a instituição e essa separação vai se tornando mais difícil, especialmente quando se combinam membros da reserva e da ativa. Essas relações vão se tornando mais delicadas e mais complexas. Boa parte da legitimidade das Forças Armadas é ter esse papel não político", acrescenta.

Christoph Harig, da Universidade Helmut Schmidt, concorda. Ele relembra o caso do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi ministro-chefe da Secretaria de Governo e deixou o cargo em junho do ano passado, seis meses depois de ser empossado, após se envolver em uma crise com o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, e o escritor Olavo de Carvalho, guru ideológico de Bolsonaro.

Santos Cruz se tornou, então, crítico do governo.

"Não acho que isso (presença de militares no governo) enfraqueça diretamente o conceito de democracia, mas levanta questões sobre responsabilidade e relações civil-militares (especialmente porque alguns são da ativa que foram apenas 'emprestados' ao governo federal). Os militares insistem que a instituição não se envolve na política do governo e que quem integra o governo não representa os militares como instituição."

"Mas essas linhas divisórias estão cada vez mais embaçadas, especialmente se os militares puderem retornar à ativa posteriormente. Eles podem dizer que estão sempre agindo no melhor interesse do país, mas os militares estão cada vez mais sendo identificados como parte do governo Bolsonaro", acrescenta.

"Basta comparar com os EUA, onde o presidente Donald Trump agora critica Kelly (general da reserva John Kelly, ex-chefe de gabinete de Trump) por se manifestar depois de deixar o governo: se, hipoteticamente, alguém como Braga Netto brigasse com Bolsonaro (como Santos Cruz 'brigou'), ele seria capaz de retornar à suposta atividade apartidária como oficial militar?", questiona.

'Diversas fases'

Cortez lembra que a relação de Bolsonaro com os militares passou por diversas fases.

"Não há dúvida de que parte do processo de legitimização da candidatura de Bolsonaro passou por esse apoio dos militares", diz.

Mas, uma vez iniciado o mandato, houve atritos. Além de Santos Cruz, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, também foi alvo de críticas.

"Num primeiro momento, houve um ativismo do vice-presidente, general Hamilton Mourão, bastante relevante de equilibrar e olhar com cuidado determinadas ações presidenciais. E isso perdeu fôlego ao longo de 2019", diz Cortez.

"Havia uma expectativa que me parece que não condiz tanto com a realidade de que as Forças Armadas iriam controlar eventuais abusos do presidente Bolsonaro, que imprimiriam um pragmatismo na administração do governo, que também é muito marcada por certa guerra ideológica. Os militares seriam assim um grupo que exerceriam esse poder de veto desses excessos. Essa expectativa não se confirmou", acrescenta.

Para Cortez, mais recentemente, ocorreu "uma segunda etapa desse papel mais ativo dos militares de ocuparem pastas mais importantes".

"A ideia de se cercar de militares reforça o mandato Bolsonaro diante de um conjunto bem relevante de críticas do estilo bolsonarista. É um movimento estratégico", diz.

Outro risco da atuação política de militares dentro do governo, também apontado por especialistas, é a contaminação da caserna, cuja simpatia ao bolsonarismo é amplamente conhecida. Soldados poderiam sentir-se assim 'avalizados' em possíveis reivindicações pelo posicionamento ideológico de seus superiores.

Recentemente, motins ilegais de policiais militares se espalharam por todo o Brasil.

"Ao trazer as Forças Armadas para o debate político, isso gera desgaste. Preservar o papel institucional passa por esse distanciamento. Toda essa conjuntura vai gerar um dilema para a instituição", conclui Cortez.


Luiz Carlos Azedo: Entre a águia e o dragão

Candidato a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo

— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)

Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.

No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.

Marisco

Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.

No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.

O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/entre-a-aguia-e-o-dragaox/

Ricardo Noblat: Um regime como o da Venezuela para Bolsonaro chamar de seu

Líder do governo na Câmara quer uma nova Constituição

Chico Rodrigues (DEM-RO), sim, o do dinheiro na cueca e entre as nádegas, foi destituído da função de vice-líder do governo no Senado porque o que ele fez poderia respingar na imagem do presidente Jair Bolsonaro. Não seria o caso, agora, e pelo mesmo motivo, de Bolsonaro destituir também Ricardo Barros (PP-PR) da função de líder do governo na Câmara dos Deputados?

Ex-ministro da Saúde do governo Michel Temer, Barros pegou carona no plebiscito do Chile que aprovou por quase 80% dos votos a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte para sugerir que algo parecido ocorresse por aqui. Para ele, a atual Constituição, em vigor desde 1988, deve ser reescrita porque é impossível governar com ela, tantos são os seus defeitos.

Trata-se, segundo o ex-ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, da “opinião de alguém que não sabe o que é Constituição, não sabe o que é política, não sabe o que é governabilidade”. Se política tem a ver com dinheiro sujo no bolso, Barros entende. Em meados do mês passado, ele foi alvo de operação que investiga crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

A operação teve como base os depoimentos de dois ex-executivos do grupo Galvão que fecharam acordos de delação premiada com a Lava Jato. Segundo os delatores, Barros recebeu mais de R$ 5 milhões em propina da empresa Galvão Participações, de 2013 a 2014. Na época, ele era secretário de Indústria e Comércio do Paraná. O deputado jura que é inocente.

Assembleia Nacional Constituinte só faz sentido quando há uma ruptura institucional. Aqui houve quando se esgotou em 1985 a ditadura militar de 64 e o Brasil reconciliou-se com a democracia. Era preciso uma nova carta para regular o novo regime. A democracia no Chile foi restabelecida em 1990, mas o país vive até hoje sob uma Constituição herdada da ditadura.

O Congresso tem como fazer mudanças pontuais na Constituição de 1988 por meio de propostas de emendas – e muitas já foram feitas. A Constituição suportou dois processos de impeachment de presidente da República – o de Collor e o de Dilma. E tem sobrevivido incólume às investidas de Bolsonaro contra ela. Não há sequer sinais de uma ruptura institucional por estas bandas.

Então para quê reformá-la de ponta a cabeça? Para aumentar os poderes de um presidente adepto da ditadura e defensor da tortura? Era só o que faltava. Bolsonaro denuncia os males do regime venezuelano de Chávez e Maduro e, no entanto, gostaria de poder cloná-lo. É porque esse é seu sonho que ele não destituirá Barros. Se não dá agora, quem sabe em um segundo mandato?

Vida é o que importa, o mais é negacionismo ou estupidez

A obrigatoriedade da vacina

Roga-se ao ministro da Justiça, ao advogado geral da União e ao Procurador-Geral da República que orientem o presidente Jair Bolsonaro em tudo o que diga respeito ao ordenamento jurídico do país, assunto que é de supor que eles dominem. Ou não?

Em mais um ato do seu teatro mambembe à entrada do Palácio da Alvorada, dessa vez Bolsonaro afirmou que nenhum juiz pode decidir “se você vai ou não tomar a vacina” contra a Covid-19. Disse ainda que seria mais fácil investir na cura do que na vacina.

Se ele admite que ministro do Supremo Tribunal Federal é também juiz, é bom que saiba que 7 dos 11 ministros do Supremo são a favor da vacinação obrigatória. E por uma razão muito simples: interesses coletivos estão acima de interesses individuais.

Quem se recusa a ser vacinado pode contrair o vírus e infectar outras pessoas. Não há garantia de que alguém que já teve a doença não possa voltar a ter. A imunização também não é para sempre. O vírus poderá ser para sempre como tantos outros.

Em abril último, Bolsonaro tentou impedir que estados e municípios pudessem decretar medidas de isolamento. Perdeu no Supremo por 9 a zero. Perderá outra vez se tentar. Quanto a sair mais barato investir na cura do que na vacina…

Por estúpido, o argumento dispensa comentários.


O Globo: No auge da animosidade com Venezuela, Exército fez simulação de guerra sem precedentes na Amazônia

Ocorrido no mês passado, exercício simulou uma invasão e usou uma série de recursos, incluindo aeronaves e mísseis; governo mudou recentemente estratégia das Forças Armadas

Vinicius Sassine, O Globo

BRASÍLIA — O Exército brasileiro gastou R$ 6 milhões somente em combustível, horas de voo e transporte para simular uma guerra entre dois países na Amazônia, numa operação militar inédita, que ainda não havia sido feita no país. Os militares decidiram criar um campo de guerra em que um suposto país “Vermelho” invadiu um país “Azul”, sendo necessário expulsar os invasores.

A simulação ocorreu num momento de animosidade com a vizinha Venezuela, praticamente ao mesmo tempo em que o governo brasileiro decidiu retirar as credenciais dadas aos diplomatas do regime de Nicolás Maduro que atuam no Brasil. A operação envolveu 3,6 mil militares e se concentrou nas cidades de Manacapuru, Moura e Novo Airão, no Amazonas, num raio de 100 a 300 quilômetros de Manaus.

Mapa das manobras militares do Brasil na Amazônia Foto: Editoria de Arte
Mapa das manobras militares do Brasil na Amazônia Foto: Editoria de Arte

A “guerra” na região amazônica ocorreu entre 8 e 22 de setembro. No dia 18 daquele mês, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fez uma visita a Roraima, região de fronteira com a Venezuela. O chefe da diplomacia de Donald Trump esteve em Boa Vista — a 840 quilômetros de Manacapuru — e foi ciceroneado pelo chanceler Ernesto Araújo. A visita foi duramente criticada, por ter ocorrido durante a campanha eleitoral em que Trump busca a reeleição, por ter se passado na região de fronteira e por ter emitido um sinal belicoso da relação de EUA e Brasil com a Venezuela.

Lançamento de mísseis

O valor gasto com a chamada Operação Amazônia, que incluiu o lançamento de mísseis com alcance de 80 quilômetros, foi obtido pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação. A lei também foi usada para obter a informação sobre o ineditismo da operação. Antes, o Ministério da Defesa se recusou a fornecer essas informações.

“Dentro da situação criada e com os meios adjudicados, foi a primeira vez que ocorreu este tipo de operação”, informou o Exército à reportagem. Os R$ 6 milhões gastos saíram do Comando de Operações Terrestres (Coter). A Força não informou os outros gastos com a operação, além de combustível, horas de voo e transporte de civis.

“Foram empregados diversos meios militares, tais como viaturas, aeronaves (aviões e helicópteros), balsas, embarcações regionais, ferry-boats, peças de artilharia, o sistema de lançamento de foguetes Astros da artilharia do Exército, canhões, metralhadoras, ‘obuseiro’ Oto Melara e morteiros 60, 81 e 120 mm, além de veículos e caminhões especiais”, afirmou o Exército.

Simulações de conflito e treinamento de militares já haviam sido feitos outras vezes, mas em escala menor, sem o uso de todos esses equipamentos e numa articulação entre Exército, Marinha e Aeronáutica. A reportagem pediu ao Ministério da Defesa e ao Exército, também via Lei de Acesso, informações sobre o tamanho das ações passadas. A Defesa não respondeu, e disse que caberia ao Exército responder. A Força informou que a Operação Amazônia, da forma como foi feita, é inédita.

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e o comandante do Exército, Edson Leal Pujol, foram à região do “conflito” no dia 14 de setembro. Eles acompanharam, por exemplo, o disparo de mísseis.

O sistema Astros, com lançadores múltiplos de foguetes, é considerado um projeto estratégico para o Exército. A exemplo de outros projetos, terá mais previsão de recursos no Orçamento de 2021. A proposta de Orçamento enviada ao Congresso prevê R$ 141,9 milhões para esses mísseis em 2021. Neste ano, a previsão é de R$ 120,7 milhões.

Segundo informação do Comando Militar da Amazônia, 20 foguetes foram disparados pela artilharia do Exército no dia 15, na altura do quilômetro 61 da rodovia AM-010. O objetivo foi “neutralizar uma base do Exército oponente”. O Exército diz que trabalha na elaboração de lançadores de foguetes com alcance de 300 quilômetros.

Três dias após a incursão de Azevedo e Pujol na simulação de guerra na Amazônia, Pompeo, o secretário de Trump, visitou Boa Vista ao lado de Araújo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chamou a visita de de “afronta” à “altivez de nossas políticas externa e de defesa”. O chanceler brasileiro reagiu e disse que Brasil e Estados Unidos “estão na vanguarda da solidariedade ao povo venezuelano”.

A guerra entre “azuis” e “vermelhos” foi causada pela invasão dos “vermelhos” em território “azul”, conforme a simulação feita pelo Exército. Os militares envolvidos atuaram na “libertação” de territórios como as cidades amazonenses de Manacapuru, Moura e Novo Airão. Segundo o Ministério da Defesa, houve ações também em Rondônia.

Não houve ações em Roraima, segundo a pasta. Mesmo assim, a operação contou com a participação de militares que atuam diretamente em regiões de fronteira, como os que estão na brigada de São Gabriel da Cachoeira (cidade do Amazonas na fronteira com Venezuela e Colômbia) e os da brigada de Boa Vista, capital de Roraima, estado que é a principal porta de entrada de refugiados venezuelanos no Brasil.

Participaram da operação as brigadas do Comando Militar da Amazônia, mais o grupo de artilharia de Rondonópolis (MT), o grupo de mísseis e foguetes de Formosa (GO), o comando de operações especiais de Goiânia, a brigada de artilharia antiaérea de Guarujá (SP) e a brigada de infantaria paraquedista do Rio.

Mudança de estratégia

Em agosto, O GLOBO mostrou a mudança da estratégia do governo de Jair Bolsonaro para a atuação das Forças Armadas, com a previsão inédita de uma “rivalidade entre Estados” na esfera regional e uma associação entre essa “rivalidade” e a necessidade de ampliação do orçamento para a Defesa, que chegaria a 2% do PIB nacional. A estratégia aparece em atualizações de documentos oficiais das Forças, as chamadas Política e Estratégia Nacional de Defesa, encaminhadas ao Congresso. Nos documentos, o governo Bolsonaro prevê pela primeira vez a ocorrência de “tensões e conflitos” em áreas vizinhas ao Brasil.

Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa diz que a Operação Amazônia foi feita entre 4 e 23 de setembro. O Exército informou que a operação ocorreu entre 8 e 22 de setembro.

Segundo a pasta, “foi um exercício em campanha com tropa no terreno que simulou uma ação convencional no contexto de amplo espectro e em ambiente operacional de selva”. “As ações ocorreram sobre uma imensa área e tiveram como objetivo estratégico elevar a operacionalidade do Comando Militar da Amazônia. A operação consiste em importante preparação para a atividade-fim das Forças Armadas, de defesa da soberania nacional, principalmente em uma região que tem a prioridade do Brasil”, afirmou o ministério.

A reportagem enviou questionamentos ao Itamaraty e à Embaixada dos EUA sobre a visita de Pompeo no mesmo momento da simulação de guerra pelo Exército. Não houve retorno até a noite de terça-feira.


Rubens Barbosa: Brasil e Venezuela, a quem possa interessar

Canal militar poderia sondar a possibilidade de iniciar conversas sobre transição pacífica

No início de setembro, em reunião do Brics, o Brasil exortou os governos da China, da Rússia e da Índia a encontrarem uma saída para a Venezuela, cujo regime se tornou, segundo se afirmou, um foco de crime organizado, terrorismo, tráfico de drogas e de ouro, além de não estar disposto a fornecer condições para eleições livres e justas. A solução demandada é a renúncia dos que detêm o poder e sua concordância com a formação de um governo de união nacional.

Na semana passada, de passagem por Roraima, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, com o ministro Ernesto Araújo, visitou acampamentos de refugiados venezuelanos em ato visando a favorecer a campanha para a reeleição de Donald Trump. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, com o apoio de ex-chanceleres, classificou a visita como “afronta à diplomacia brasileira”. Araújo considerou os comentários “infundados” e que “só teme a parceria (com os EUA) quem teme a democracia”.

Sem ter rompido relações com Caracas, o Brasil fechou a embaixada e os consulados na Venezuela e pediu a retirada de todos os diplomatas venezuelanos, declarando-os personae non gratae. Suspendendo a Venezuela no Mercosul, pelo descumprimento da cláusula democrática, o intercâmbio com o Brasil reduziu-se a iniciativas isoladas de empresas nacionais exportadoras de alimentos.

O Brasil trata dos assuntos com a Venezuela por meio do Grupo de Lima, alinhando-se às ações do governo dos EUA em relação às sanções unilaterais contra o regime de Nicolás Maduro. Em 8 de agosto, o governo venezuelano solicitou ajuda do governo brasileiro para o combate à pandemia, especialmente na área de fronteira com permanente fluxo de refugiados para o Brasil. Sem resposta até agora, no final de agosto o Pro-sul, órgão de coordenação sul-americana, reuniu-se para tratar de ações conjuntas para combater a pandemia e aparentemente não houve comunicação pelo Brasil da carta recebida e as recomendações feitas ignoraram a situação na Venezuela e o apelo humanitário.

Os parceiros regionais, em especial Brasil, Colômbia e EUA, na prática, suspenderam suas relações com Caracas, em função da política de sanções econômicas contra o regime de Maduro. O vazio político e econômico criado abriu espaço para que países extrarregionais, como Rússia, China, Irã e Turquia, além de Cuba, se tornassem parceiros importantes da Venezuela. Nesse contexto, a exortação brasileira foi ignorada.

Os EUA apresentaram em março proposta para a transição política do governo na Venezuela. O plano, chamado Quadro Democrático para a Venezuela, incluía a retirada das sanções econômicas caso Maduro e o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, mandatário autoproclamado do país, abrissem mão do poder. O país passaria a ser governado por um conselho de cinco membros escolhido pela Assembleia até o fim de 2020, quando seriam realizadas eleições presidenciais e parlamentares. De seu lado, os EUA retirariam restrições sobre membros do governo e a venda do petróleo venezuelano, principal fonte de renda externa. A proposta foi apoiada pelo Brasil, mas nasceu morta por ter sido apresentada pelos EUA, e foi rejeitada de imediato pelo governo de Caracas.

O Brasil tem interesses concretos a resguardar, como a proteção da longa fronteira, combater o tráfico de armas, drogas e ouro, proteger a Floresta Amazônica, apoiar medidas para conter a pandemia e reduzir o número de refugiados, receber a dívida comercial e financeira e manter o fornecimento de energia venezuelana para o Estado de Roraima. Os interesses brasileiros estariam mais bem resguardados se o relacionamento com a Venezuela não fosse delegado a um grupo e a outros países do hemisfério ou extrarregionais.

Nenhum outro país estaria em melhor posição para tomar a iniciativa de ressuscitar uma proposta semelhante à dos EUA do que o Brasil. Cabe ressaltar que nunca foi interrompido o relacionamento entre as Forças Armadas dos dois países. A última visita de alto nível à Venezuela foi no governo Temer, quando o ministro da Defesa esteve duas vezes em território venezuelano para se encontrar com sua contraparte para examinar a questão dos refugiados e do fornecimento continuado de energia ao Brasil. Longe dos holofotes, o canal militar privilegiado e preservado, talvez com discreta ajuda de Cuba, poderia sondar a possibilidade de iniciar conversas visando a uma transição pacífica na política venezuelana.

É senso comum que em qualquer negociação, além da representatividade dos participantes, sempre se deve evitar encurralar e deixar o interlocutor sem alternativa. Há que oferecer uma saída ao outro lado. Os militares têm experiência nisso, pois negociaram a transição democrática com o elemento mais importante, a anistia – que não consta na proposta norte-americana. Por sua atuação histórica no processo de integração regional e sobretudo, no atual momento, por seus interesses concretos, o Brasil teria credibilidade para iniciar conversas nessa linha, via diplomacia militar. O governo seria insuspeito por tudo o que tem declarado a respeito do governo de Caracas, mas o interesse nacional estaria sendo posto acima de ideologias e alinhamentos.

*Presidente do IRICE


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a ONU

Governo atual é prova de que mundo acertou ao não conceder vaga no CS ao Brasil

O governo de Jair Bolsonaro e seus posicionamentos na arena internacional são a prova definitiva de que o mundo acertou ao não conceder ao Brasil um lugar como membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU, organização que completa 75 anos de existência.

Não que tenha havido uma chance clara de galgarmos tal condição. As discussões sobre reforma da ONU dificilmente passarão de discussões. Mas, durante muito tempo, em especial nos governos petistas, conquistar uma vaga permanente foi meta quase obsessiva do Itamaraty, o que, aliás, nos levou a posicionamentos moralmente discutíveis, incluindo a defesa de ditaduras de olho em seus votos.

Os despautérios sobre queimadas e pandemia que Bolsonaro deve proferir hoje em seu discurso de abertura da Assembleia Geral ficam mais ou menos limitados a nos expor ao ridículo, porque não passamos de um membro ordinário da organização Mas, se tivéssemos um papel de maior relevo, aí as inconstâncias e insensatezes de governos brasileiros teriam um impacto negativo mais concreto sobre o mundo. Uma das funções do CS é promover a moderação e limitar a capacidade das grandes potências de fazer o que bem entenderem.

O problema de fundo, que nos inabilita para uma vaga permanente no CS, é que nossa institucionalidade não evoluiu o bastante para diferenciar na prática os interesses estratégicos do Estado brasileiro dos objetivos propagandísticos de governos, que são por definição transitórios.

Pessoalmente, vou até um pouco mais longe e acho que o Brasil deveria abdicar permanentemente de alcançar uma vaga permanente no CS. Ela serviria para inflar o ego de presidentes, ministros e diplomatas, mas não vejo que benefícios traria ao cidadão. Pelo contrário, implicaria mais despesas para os cofres públicos e nos levaria a fazer alguns inimigos no cenário internacional. Não há nada errado em ser uma nação "low profile".