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Cristiano Romero: A nova onda

Enfrentamento da pandemia agora será muito mais difícil

A segunda onda da pandemia no Brasil já é uma realidade. Em São Paulo, segundo revelou a esta coluna o secretário de Fazenda do governo estadual, Henrique Meirelles, o número de internações nas redes hospitalares pública e privada em São Paulo cresceu 18% neste mês. Isso já caracteriza uma retomada forte do contágio da população pelo novo coronavírus. Aparentemente, a faixa da população mais afetada tem sido as classes A e B, mas não surpreenderá ninguém se, em breve, as estatísticas mostrarem o aparecimento massivo de casos de covid-19 também entre as camadas menos favorecidas da população.

O que é ruim para os Estados Unidos, onde a segunda onda da pandemia tem feito a nação mais rica do planeta bater recordes seguidos de novos casos por dia e mortes, não deveria sê-lo para o Brasil, o vice-campeão no desonroso torneio de quem dá mais vexame nesta crise sanitária. Meirelles afiança que São Paulo adotou os mais rigorosos protocolos de segurança do país, antes de autorizar o relaxamento do isolamento social, especialmente, para as empresas interessadas em voltar o mais rapidamente possível às atividades normais, o que inclui o trabalho presencial.

A nova onda, pelo menos em São Paulo, estaria sendo provocada pelo comportamento das pessoas fora do trabalho, ou seja, na vida privada. De fato, depois de conviver _ e respeitar, em sua maioria _ as restrições impostas pelo isolamento social, paulistanos voltaram às ruas para celebrar a vida. O motivo é justificável, uma vez que o novo coronavírus tem se mostrado muito mais perigoso do que se dizia no início da pandemia e infectar-se ou não é jogar na loteria, mas o fato é que aglomerações, em locais abertos e fechados, são vistas em todos os lugares e não apenas nos bairros boêmios da capital paulista.

O resultado será trágico tanto em número de perdas de vidas quanto em seus impactos na economia brasileira, que passa por situação muito delicada, o que significa que o espaço para minorar os efeitos econômicos de uma nova onda da crise sanitária é diminuto. A pandemia chegou ao país no momento em que a situação das contas públicas começava a melhorar, mas ainda estava muito longe de dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Operando com déficits primários (receitas menos despesas, excluído o gasto com juros da dívida pública) desde 2014, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) obrigou o Tesouro Nacional a ir ao mercado endividar-se, via emissão de títulos públicos, para poder pagar as contas. Quando gerava superávits no conceito primário, o setor público usava os recursos para honrar os juros da dívida e, se possível, reduzir seu estoque.

O controle da evolução da dívida não é uma abstração. É um expediente que, levado a sério, melhora com o tempo a vida de todos os brasileiros. Senão, vejamos: quanto menor é a dívida de um governo, menor é sua despesa com os juros dessa dívidas e menor também é o seu custo de rolagem (ver tabela). Isso faz com que sobre mais dinheiro no orçamento para o Estado usar no que realmente interessa, numa democracia cujo regime econômico é o livre-mercado: igualar oportunidades por meio de políticas afirmativas que procurem compensar as distorções sociais provocadas pelo racismo, da oferta de ensino fundamental público de qualidade e de saúde universal.

O Brasil quebrou em 1982, nos anos seguintes centralizou o câmbio, aplicou calotes no pagamento das dívidas externa e interna, tornando-se um pária no mercado de crédito internacional. Só recebia dinheiro de instituições multilaterais de crédito e olhe lá. Sucessivos governos depois, sendo que cada um deu sua contribuição para melhorar a situação fiscal, obteve, em 2008, o grau de investimento (o equivalente ao selo de bom pagador) das agências de classificação de risco.

Antes de obter o grau de investimento em maio de 2008, registre-se, o país concluiu a renegociação da dívida externa durante o governo Itamar Franco (1992-1994), promoveu também a federalização das dívidas dos Estados em 1997 na gestão Fernando Henrique Cardoso _ uma medida crucial para a consolidação das contas do setor público e, por que não dizer, para o fechamento de uma das principais fontes inflacionárias da economia brasileira _ e, no governo Lula, antecipou a quitação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional.

Aquele momento teve uma carga simbólica, embora muitos não tenham prestado atenção, até porque, justiça seja feita, o tsunami da crise mundial deflagrada pouco menos de um ano antes nos Estados Unidos já se avistava no horizonte. Mas o fato é que foi justamente a disciplina fiscal dos anos anteriores, consagrada no grau de investimento obtido em maio de 2008, que deu ao Brasil as condições de enfrentar bem aquela que é considerada a maior crise da história do capitalismo. O país sofreu uma recessão técnica (dois trimestres consecutivos de PIB negativo) e, por causa do espaço para adotar estímulos fiscais, saiu da crise rapidamente e, no ano seguinte, expandiu-se à taxa de 7,5%, a mais alta em 24 anos.

Tudo isso virou pó em apenas sete anos. De 2008 a 2015, o gasto corrente da União cresceu 50% acima da variação da inflação no período, enquanto as receitas avançaram 17%. O descompasso provocou a explosão da dívida. Desde então, as contas não saíram mais do vermelho. Com a pandemia e a justificável necessidade de o governo conceder estímulos fiscais para ajudar pelo menos uma parte das empresas afetadas pela crise e dar meios de sobrevivência a um universo de 67 milhões de brasileuiros em situação vulnerável, a dívida chegou, em setembro, ao equivalente a 90% do PIB.


Fernando Exman: Frente de prefeitos contra o isolamento

Bolsonaro quer apoio para pressionar governos estaduais

Jair Bolsonaro sentiu o baque. Anda reclamando da vida até mesmo em eventos públicos e conversas informais com os apoiadores que fazem plantão em frente ao Palácio da Alvorada.

O presidente tinha confiança no peso do seu voto e achou que poderia fazer uma entrada triunfal no fim da campanha. Fracassou. Elegeu poucos aliados e agora terá que observar, pacientemente, adversários questionarem seu prestígio político. No entanto, neste momento preocupa-o, sobretudo, como os prefeitos eleitos enfrentarão a pandemia a partir de 2021. Desenha-se a tentativa do presidente de construir uma frente municipalista formada por prefeitos dispostos a promover a reabertura das atividades econômicas, a despeito de eventuais orientações partidárias ou determinações dos governadores.

Esta é uma questão crucial para o governo federal. Pouco se sabe o que o ministro da Saúde pensa a respeito, mas na equipe econômica já se fala de imunidade de rebanho. No Planalto, teme-se que uma segunda onda de covid-19 leve os entes subnacionais a adotarem novas medidas de isolamento social, o que atrapalharia a retomada da atividade econômica.

Também por isso o presidente ignorou a recomendação de alguns auxiliares e acabou decidindo ampliar a campanha para além do seu grupo político mais próximo. Mal sabia o número ou a legenda daqueles que estava promovendo. Insistia, por outro lado, que os eleitores escolhessem quem estivesse disposto a pressionar os governadores contra a adoção de novas medidas de isolamento social.

O governo tem um mapeamento de quais foram as políticas de contenção dos Estados. Acompanha as consequências dessas medidas em relação à evolução da pandemia e aos seus efeitos na economia. Monitora os setores mais prejudicados em algumas das unidades da federação, como o de serviços em São Paulo ou no Rio Grande do Sul.

Isso começou a ser feito logo depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou a autonomia de Estados e municípios para a implementação de ações voltadas a impedir a propagação do coronavírus.

Desde o primeiro momento, Bolsonaro preferiu se posicionar contra as políticas de restrição social e virar uma voz crítica aos governadores que pensavam de forma diferente. Sem um exemplo vindo de Brasília, cada Estado agiu de uma forma, diante de suas especificidades e das informações disponíveis.

Não houve uma padronização. Algumas unidades da federação deixaram poucas alternativas aos municípios e determinaram de forma rigorosa as ações a serem executadas em seus territórios. Isso ocorreu, em alguns casos, porque os prefeitos hesitavam em reagir à moléstia que se espalhava com rapidez pelo país. A maior preocupação era o risco de colapso do sistema de saúde. Na visão do poder central, agiram dessa forma Goiás, Pará e Santa Catarina - neste último caso, apenas num primeiro momento.

Outros Estados preferiram políticas articuladoras, como Ceará, Pernambuco ou São Paulo, ainda de acordo com autoridades federais. Essa estratégia buscou encorajar o diálogo entre órgãos públicos estaduais, municipais e entre prefeitos de cidades vizinhas. A ideia era compartilhar responsabilidades e, claro, eventuais ônus políticos.

Um grupo de governadores preferiu delegar às prefeituras o poder de decisão. Outro optou por dar liberdade de ação aos prefeitos, desde que as políticas adotadas não fossem rigorosas demais ou impeditivas. Em diversos casos, as posturas de Estados e municípios evoluíram ou foram sendo calibradas ao longo dos últimos meses, dependendo do achatamento ou não da curva de mortes e infecções.

A leitura de uma recente pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios também pode explicar por que o presidente está tão decidido a impedir novas iniciativas de controle e prevenção, mesmo que a equipe econômica não trabalhe com a possibilidade de uma segunda onda.

Segundo o levantamento da CNM, 96,5% das prefeituras aplicaram medidas restritivas para a diminuição da circulação de munícipes ou de aglomerações. Outros números também chamam atenção: 52,4% adotaram barreiras sanitárias, com posto de monitoramento de entrada e saída de pessoas no município; 75,7% estabeleceram isolamento social com a permissão de abertura e funcionamento apenas dos serviços essenciais; 94,2% publicaram normas para uso obrigatório de máscaras; e 54,4% reduziram oferta de transporte público.

Por outro lado, o documento traz um relativo alento para o presidente, pois 61,9% dos executivos locais reconheceram que houve flexibilização durante o período da pesquisa. O levantamento foi realizado entre março e agosto.

No último fim de semana, contudo, a democracia deu mais uma lição a Bolsonaro. Fazer política é um processo que demanda mais do que uma conexão de internet e um horário na agenda depois do expediente para transmissões ao vivo nas redes sociais. Exige conversa e a valorização dos partidos políticos, além do respeito às instituições.

Mesmo assim, novamente o presidente demonstra a intenção de arregimentar um grupo suprapartidário em torno de suas ideias. No início do governo, ele achou que conseguiria negociar com o Congresso por meio das frentes parlamentares temáticas e foi obrigado a aproximar-se dos políticos tradicionais que tanto desprezava. Agora, acena aos gestores locais com programas federais e uma possível ajuda na implementação de iniciativas potencialmente populares, como a estruturação de escolas cívico-militares.

Os prefeitos tomarão posse em janeiro já pedindo mais apoio financeiro, diante da perspectiva de que não se repetirá o grande volume de transferências de recursos observado durante este ano. Será uma nova oportunidade para o presidente defender o fim do isolamento social e movimentar a máquina em direção à campanha de 2022.


Andrea Jubé: Destinos cruzados

Bolsonaro repete teimosia de Dilma e preocupa aliados

Candidato a prefeito de Recife, o deputado João Campos (PSB) teme o revés de uma derrota em dose dupla: para as urnas e para o destino.

Mais do que vencer a prima Marília Arraes (PT) no segundo turno na principal capital do Nordeste, João precisa driblar a arapuca eleitoral que o destino armou para ele.

O projeto político de João é repetir o pai, Eduardo, e se tornar governador de Pernambuco num futuro próximo. Mas João não quer repetir o pai, que saiu derrotado de sua primeira eleição majoritária. Justamente, para a Prefeitura de Recife.

Eduardo Campos tinha a mesma idade de João em 1992, quando desobedeceu a recomendação do avô, o ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, que o desaconselhou a concorrer ao comando da capital naquele ano.

Arraes ponderou que o neto, embora dedicado e competente, era jovem e inexperiente. Até então, seu único currículo na política era a chefia de gabinete do avô, em seu segundo mandato no Palácio do Campo das Princesas, de 1987 a 1990.

Arraes profetizou que Eduardo seria engolido pelos tubarões da política pernambucana. Ele enfrentaria nas urnas: Jarbas Vasconcelos (MDB), Humberto Costa (PT), André de Paula (do então PFL de Marco Maciel) e Newton Carneiro (PSC).

Cumpriu-se o vaticínio de Arraes: aos 27 anos, Eduardo Campos acabou em quinto lugar na eleição para a Prefeitura de Recife, atrás de quatro lideranças pernambucanas.

Agora, as coincidências tramam contra João: ele completará 27 anos no próximo dia 26, a três dias do segundo turno. Terá, então, a mesma idade de Eduardo quando este concorreu ao comando da capital há quase três décadas. Assim como o pai, seu primeiro emprego foi a chefia de gabinete do governador - no caso, Paulo Câmara (PSB), cria política do pai.

Não se sabe o que pensaria Miguel Arraes, morto em 2005, sobre o embate eleitoral entre os seus descendentes: a neta Marília e o bisneto João. A pecha da imaturidade, entretanto, recai sobre João. Não pelo alerta do bisavô, mas pela acusação da prima e adversária, que exibe trajetória mais longeva que ele na política.

No único debate na televisão antes do primeiro turno, Marília apontou o dedo para o primo, usando o argumento que o avô usou contra o neto no passado. “O debate mostrou quem é experiente e tem propostas, e quem é imaturo. Eu tenho trajetória, já o candidato do PSB é inexperiente e fabricado pelo marketing”.

João concorre menos verde que o pai na disputa atual: além da chefia de gabinete do governador, também exibe no currículo quase dois anos de mandato de deputado federal.

Dez anos mais velha que o primo, Marília foi vereadora em Recife por três mandatos. Em 2014, quis concorrer a deputada federal pelo PSB, mas não teve o respaldo de Eduardo, que presidia a sigla. No mesmo ano, ele nomeou João líder da juventude do PSB, cargo cobiçado pela prima.

Foi o estopim para o rompimento. Marília filiou-se, então, ao PT. Em 2018, despontou como nome competitivo para o governo, mas acabou sacrificada em nome de um acordo que evitou o apoio do PSB à candidatura presidencial de Ciro Gomes (PDT).

Agora, o destino pregou uma peça nos petistas. Marília se projeta como a principal aposta do PT para tentar levar uma prefeitura de capital, depois de um desempenho a desejar nas eleições municipais. Se João repetir a sina do pai, o destino pode dar um voto decisivo para Marília no segundo turno. Mas o destino, aos eleitores pertence.

Teimosia

Um dos aliados mais antigos do presidente Jair Bolsonaro acredita que ele paga o preço da teimosia ao sair com a pecha de derrotado nas eleições municipais.

Este aliado explica assim o desempenho presidencial no pleito: Bolsonaro “jogou errado” porque entrou tardiamente na campanha, e insistiu em apostar em candidatos desde o começo comprometidos com o fracasso.

Um exemplo emblemático é o Coronel Menezes (Patriota), que acabou em quinto lugar na disputa pela Prefeitura de Manaus. Em nenhum momento na campanha ele despontou sequer entre os três primeiros colocados nas pesquisas.

Confrontado por este aliado sobre o apoio inconsequente, Bolsonaro retrucou que não acredita em pesquisas. Alega que os institutos teriam falhado em sua eleição. Na tréplica, o aliado ponderou que na reta final, todas as pesquisas o confirmavam no segundo turno em 2018. Mas o presidente não dá o braço a torcer.

O presidente também não gosta de ouvir que as incursões pelo país para inaugurar obras irrelevantes ou inacabadas são inócuas para manter ou alavancar sua popularidade. Os poucos amigos não-bajuladores o advertem que as claques de 150, 200 pessoas que o recebem nos aeroportos, não representam, nem de longe, sua aprovação popular naquele Estado. Mas o presidente se irrita e desconversa.

Este aliado reafirma o que já se sabe até aqui: o presidente é refratário a críticas. Em vários episódios, demitiu auxiliares que ousaram dizer a verdade. O exemplo mais recente é o ex-porta-voz, general Otávio do Rêgo Barros.

Os ouvidos moucos e a aversão às críticas são reclamações que os petistas repetiam como ladainhas em relação à então presidente Dilma Rousseff. Lideranças influentes da sigla lamentavam que ela não sabia ouvir, e pagaria o preço da teimosia, quiçá, da arrogância.

Quando cedeu aos apelos para ouvir o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez um primeiro gesto: substituiu Aloizio Mercadante por Jaques Wagner na Casa Civil. Mas já era tarde demais.

Este aliado critica os conselhos do núcleo político para que o presidente intensifique o tom moderado. O rompante da semana passada, com o “país de maricas”, e a menção à pólvora, assustou a ala militar, mais ponderada, e os aliados de centro preocupados com a reeleição.

O aliado rechaça que Bolsonaro se converta ao centro de uma vez por todas. “Como ele vai se transformar em político de centro, se ele foi de direita a vida toda?” Ele descarta qualquer mudança radical de Bolsonaro. “É uma bobagem falar em conversão, ele nunca vai mudar o jeito de ser”.


Sergio Lamucci: O contraste entre 2021 e o cenário de curto prazo

Economia foi bem no terceiro trimestre, mas o quadro para o futuro continua incerto

O crescimento da economia brasileira no terceiro trimestre saiu melhor que a encomenda. As estimativas apontam para uma expansão na casa de 9% em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal. Além da reação ao tombo violento dos três meses anteriores, quando houve o impacto mais forte da pandemia, o efeito do auxílio emergencial foi significativo, e setores como construção civil e agronegócio vão bem. No ano, é possível uma queda do PIB na casa de 4% ou até menos, um recuo significativo, mas bem menor do que a retração de 9,1% que o Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou a projetar em junho.

Esse bom resultado de curto prazo, contudo, não assegura que o ritmo de crescimento vai continuar firme nos próximos meses. Mais uma vez, o governo de Jair Bolsonaro age para produzir incertezas, em vez de buscar diminuí-las. Primeiro, não há clareza sobre o quadro fiscal que vai prevalecer em 2021, a um mês e meio do começo do ano. A definição do Orçamento deve ficar para o primeiro trimestre do ano que vem. Não se sabe se um programa mais amplo de transferência de renda será criado, por exemplo.

Além disso, Bolsonaro politiza ao máximo a pandemia, como ficou mais uma vez evidente na semana passada, quando o presidente comemorou a interrupção dos testes com a vacina Coronavac, determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para completar, o país caminha para ficar mais isolado no cenário externo. Com Joe Biden na presidência dos EUA, a política ambiental do Brasil estará na mira de outra grande potência, além da União Europeia (UE). A insistência de Bolsonaro nas atuais diretrizes para o ambiente poderá afetar as exportações brasileiras e afastar parte do investimento estrangeiro do país.

Essas incertezas atrapalham a economia num cenário em que os ventos externos podem se tornar mais positivos. A possibilidade de que esteja disponível em não muito tempo uma vacina com eficácia elevada melhora as perspectivas para a economia global, embora a segunda onda da covid-19 em alguns países abale a atividade no curto prazo, como ocorre na Europa. A tendência de juros baixos nos principais países avançados por um longo período, por sua vez, favorece mercados emergentes como o Brasil. Por fim, o governo de Joe Biden não deverá ser uma fonte de volatilidade e preocupação para a economia global como foi a administração de Donald Trump, ainda que a rivalidade entre os EUA e a China deva continuar intensa.

Desse modo, o bom momento da economia brasileira no curto prazo contrasta com o cenário para 2021, totalmente indefinido por causa dessas várias incógnitas. O Indicador de Incerteza da Economia (IIE-Br) da Fundação Getulio Vargas (FGV) deve voltar a subir neste mês, uma notícia ruim para o investimento, que depende de um horizonte de maior previsibilidade para deslanchar.

Divulgada na sexta-feira, a prévia do índice de novembro mostra uma alta de 7,6 pontos, para 151,4 pontos. Se confirmado, será o primeiro aumento depois de seis quedas seguidas. As dúvidas em relação à trajetória das contas públicas contribuem para elevar o indicador de incerteza. No auge do impacto da pandemia sobre a atividade, em abril, o IIE-Br bateu em 210,5 pontos, mas o nível sugerido pela prévia de novembro é muito alto - o recorde anterior à eclosão da covid eram os 136,8 pontos de setembro de 2015.

Nesse quadro, a economia tende a perder dinamismo, podendo patinar em 2021. O auxílio emergencial, cujo valor já foi reduzido de R$ 600 para R$ 300, deve expirar em dezembro. Não parece haver tempo suficiente para que se monte um programa de transferência mais amplo até o começo do ano. O ideal seria unificar programas sociais existentes ao Bolsa Família, o que seria possível fazer respeitando o teto de gastos, mas é algo que não está no radar, pois o governo resiste a tomar medidas nessa linha.

Já prorrogar o auxílio por poucos meses até que se encontre uma solução para o sucessor do Bolsa Família tende a ser juridicamente complicado e pode causar ruídos, se for feito fora do teto e sem o compromisso com uma agenda de reformas que combatam a expansão de gastos obrigatórios.

Nesse ambiente, é importante que, passado o primeiro turno das eleições municipais, seja feito um esforço para dar um rumo claro à condução das contas públicas em 2021. Há o risco de que haja uma retirada de estímulos muito abrupta se o auxílio emergencial for encerrado e nada for colocado em seu lugar. Ao mesmo tempo, há o risco de perda de credibilidade da política fiscal se o teto de gastos for abandonado e não ficar claro que reformas serão aprovadas. O câmbio pode se desvalorizar mais, tornando mais duradouras as pressões sobre a inflação que, por enquanto, são temporárias e localizadas.

Também causa muito ruído a atitude de Bolsonaro em relação à pandemia. Desde o começo, o presidente negou a gravidade da doença e acusou os governadores pela adoção de medidas de distanciamento social. Agora, bombardeia a vacina produzida pela chinesa Sinovac e pelo Instituto Butantan, por causa de sua rivalidade com o governador João Doria (PSDB). Em vez de apostar na coordenação de ações com Estados e municípios no combate à covid-19, Bolsonaro opta pelo conflito.

A resistência em cumprimentar Biden pela vitória e os sinais de que não haverá mudança na política ambiental tambem são negativos para a economia brasileira. O Brasil fica mais isolado no cenário internacional, havendo um risco de que as exportações do país sejam afetadas. O fluxo de investimento externo também pode minguar, num momento em que empresas e fundos estrangeiros dão cada vez mais importância à questão da sustentabilidade.

Se essas incertezas forem reduzidas, especialmente no front fiscal, o país poderá ter um crescimento na casa de 3,5% em 2021, estimulado por juros ineditamente baixos. Caso elas permaneçam, porém, uma expansão em torno de 2% tende a ser mais provável, um ritmo muito fraco depois do tombo deste ano e do desempenho medíocre dos anos anteriores.


Bruno Carazza: Em busca de sinais

Eleições mornas dificultam leitura dos resultados

“Que lições podemos tirar destas eleições?”, pensava eu enquanto voltava para casa depois de cumprir minha obrigação democrática, esta coluna esperando para ser escrita. Seções sem filas, nenhum cabo eleitoral distribuindo santinhos nas imediações do local de votação, ruas desertas como num feriado qualquer - nem parecia dia de eleição.

A pandemia foi apontada por muitos como a principal razão para o desinteresse demonstrado pelo eleitor com o pleito deste ano. Certamente o medo da contaminação e as medidas de distanciamento social tiveram sua importância, mas o novo coronavírus está longe de ser a única explicação.

Nos últimos meses os governos locais flexibilizaram as restrições às atividades econômicas e sociais, e muitos de nós também relaxamos as limitações auto impostas de circulação. Dados compilados pelo aplicativo Waze e disponibilizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que a taxa de congestionamento de trânsito nas regiões metropolitanas brasileiras, que chegaram a cair mais de 80% em abril, já estavam “apenas” 8% menores na última semana. O relatório de mobilidade urbana do Google também vai na mesma direção, indicando que a frequência a locais de trabalho, que atingiu -34% na última semana de março, já havia recuperado para -5% no dia 10, na média nacional.

Com bares lotados, comércio reaberto e até atividades de lazer e interação social (como clubes, academias e cultos) liberadas, seria muito raso atribuir à pandemia a culpa pelas eleições mais mornas de nosso passado recente. Afinal, se as campanhas não ganharam as ruas, tampouco agitaram as redes sociais. Depois de tudo o que se falou sobre o poder dessas novas mídias em 2018, a disputa entre Biden e Trump teve repercussão imensamente superior nos grupos de WhatsApp e no Twitter dos brasileiros do que o pleito atual.

Embora careça de comprovação científica a hipótese de que as eleições municipais são uma prévia das disputas gerais a serem realizadas dois anos depois, sempre houve uma conexão entre o local e o nacional, seja olhando para frente ou para trás.

Em 1992, o processo de impeachment de Collor impulsionou a vitória de muitos candidatos da esquerda (PT e PDT), e a implantação do Plano Real foi fundamental para o sucesso dos partidos da base de apoio de FHC em 1996.

Na sequência, os três principais partidos da redemocratização dominaram também o poder na maioria das cidades brasileiras na primeira década do século, com MDB, PSDB e PT angariando a maioria das prefeituras do país (e não só nas capitais).

Mas eleições municipais também funcionam como pequenos sismos que podem anunciar grandes terremotos políticos sendo gestados nas entranhas do território nacional. Foi assim em 2000, quando a vitória do PT em seis capitais importantes, nas cinco regiões geográficas, sinalizou que o partido abria caminho para alçar seu voo mais alto, com a eleição de Lula dois anos depois. Da mesma forma, o efeito devastador da Lava-Jato, o impedimento de Dilma e a crise econômica aplicaram uma surra nos petistas em 2016, permitindo o avanço de um discurso anti-establishment e conservador que desaguou na onda bolsonarista de dois anos atrás.

Em 2020, porém, nada disso parece ter ocorrido. Os grandes figurões da política nacional abstiveram-se de vestir a camisa e entrar com vontade no campo municipal. Bolsonaro, Lula, Ciro, Doria, Moro e Huck - nomes que vêm sendo apontados como prováveis nas urnas em 2022 - ou tiveram atuação pontual nas disputas (em geral com resultados bem ruins, como Lula e Bolsonaro), não se envolveram (Moro e Huck) ou até mesmo foram ignorados por correligionários (caso de Bruno Covas e Doria).

Com isso, as eleições deste ano perderam muito de seu apelo como previsão meteorológica do clima político no futuro próximo. Para completar, o auxílio emergencial ainda deixa a população anestesiada quanto aos efeitos econômicos da covid-19 (que chegarão com força em 2021), também impedindo a nacionalização da disputa. Isso não quer dizer, porém, que não possamos extrair algumas tendências para serem monitoradas a partir dos resultados eleitorais de ontem.

A maioria dos analistas tem criticado a fraqueza de Bolsonaro como cabo eleitoral (principalmente por causa do fracasso de Russomano em São Paulo), mas a recuperação de Crivella na véspera da eleição no Rio e o bom desempenho de candidatos evangélicos e militares Brasil afora mostram que o presidente mantém forte influência sobre boa parte do eleitorado brasileiro.

No outro extremo, o mau resultado nas capitais comprova a tendência, já visível em 2018, de enfraquecimento do petismo em favor de outras legendas que costumavam girar ao seu redor. Assim, a esquerda entra no jogo das próximas eleições presidenciais dividida entre um partido com estrutura, mas com forte resistência do eleitorado (PT), e novas lideranças com um discurso mais atraente principalmente para os jovens, mas sem musculatura nacional (Psol, PDT e PCdoB). Unir-se numa frente única ou seguirem independentes pelo menos no primeiro turno será o grande dilema a atormentar a esquerda daqui pra frente.

Para aqueles que esperam contar com uma opção viável entre Bolsonaro e um adversário de esquerda em 2022, os resultados de ontem indicam que o eleitorado pode se inclinar mais à centro-direita do que à centro-esquerda. As vitórias (ou lideranças provisórias) de candidatos do DEM, PSDB, PSD e demais partidos do Centrão nas capitais mais populosas e no Nordeste - onde se deu a resistência de Haddad em 2018 - indicam que a construção de uma opção nesse campo pode ter condições de furar a polarização atual. Resta saber se essas forças de direita, menos extremas que o bolsonarismo, conseguirão chegar a um denominador comum ou entrar fragmentados (e assim, fadados à derrota) como foi há dois anos.

A falta de empolgação do eleitor e a prevalência de fatores locais sobre os nacionais tiraram o brilho da disputa de ontem. Isso, porém, não reduz a importância do seu resultado. Pelo contrário, analistas e principalmente lideranças políticas levaram um bom tempo deglutindo os números das urnas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Fernando Exman: Um ponto central para analisar no domingo

Fim das coligações proporcionais é esperado desde 2017

Muitos sucumbirão à tentação. Já na noite de domingo, antes mesmo de uma análise mais fria dos resultados das eleições municipais, irão comemorar a eficiência do sistema político-eleitoral brasileiro e uma suposta pujança da democracia local. Farão comparações do desempenho das urnas eletrônicas com o que se viu recentemente nos Estados Unidos, onde a apuração demorou dias para ter um desfecho e ainda enfrenta questionamentos do lado derrotado. Mas, recomenda-se cautela.

Só depois de uma avaliação pormenorizada da configuração das novas câmaras de vereadores será possível dizer se a proibição das coligações nas disputas proporcionais de fato ajudará a depurar o sistema político. Espera-se há anos pela aplicação dessa regra, instituída por meio de uma proposta de emenda constitucional em 2017, e finalmente seus efeitos serão conhecidos. Talvez o principal deles seja a diminuição no número de partidos existentes no país.

Será a primeira vez que os candidatos a vereador só poderão disputar o cargo por meio de chapa única dentro dos seus próprios partidos. Se não houver nenhum desvio de rota, a regra será mantida nas próximas eleições e isso pode fazer toda a diferença na conformação do Congresso que será eleito em 2022 e conviverá com o próximo presidente da República. Seja ele qual for.

No sistema proporcional, por meio do qual são escolhidos deputados e vereadores, o voto dado é primeiro considerado para o partido ao qual o candidato é filiado. O total de votos de uma sigla define quantas cadeiras ela terá no Legislativo e, definida a quantidade de vagas, os candidatos mais votados desse partido são chamados a ocupá-las.

No entanto, até agora a coligação funcionava como um partido único: ao votar em um candidato a vereador ou deputado, o eleitor dava seu voto para toda a coligação. O resultado é conhecido. São muitas as disfunções do sistema, que hoje conta com 33 partidos registrados na Justiça Eleitoral. Muitos deles viraram siglas de aluguel ou legendas criadas como empreendimentos voltados à captação de recursos públicos.

São diversos os exemplos de partidos de campos ideológicos antagônicos que fecharam alianças táticas, para eleger representantes e se manterem a salvo da cláusula de barreira. O sistema sempre incentivou a formação de coligações com finalidades meramente eleitorais. Pragmáticas, muitas siglas foram sobrevivendo - preservaram fatias nos fundos públicos e tempo de propaganda em rádio e TV.

Por outro lado, essas mesmas estruturas partidárias foram contribuindo com o processo de enfraquecimento de um sistema marcado por escândalos de corrupção e pelo descrédito dos agentes políticos.

O modelo até então vigente nunca facilitou a formação de maiorias congressuais ou primou pela estabilidade. Passadas as posses, essas mesmas legendas voltavam a atuar em lados opostos. Com o princípio da proporcionalidade distorcido, restava aos governantes a busca incessante pela formação de bases aliadas, muitas vezes por caminhos heterodoxos mais conhecidos pelos peritos da polícia do que pelos analistas políticos.

Mesmo assim, poucas iniciativas conseguiram avançar no Congresso no âmbito da reforma política, a exemplo das discussões sobre o voto distrital e distrital misto. O fim das coligações nas eleições proporcionais foi uma exceção e, embora inicialmente tenha sido concebido para já valer nas eleições de 2018, acabou sendo adiado para o pleito municipal deste ano.

Alguns efeitos da medida já foram percebidos. A estratégia de grande parte dos partidos foi lançar candidaturas majoritárias no maior número possível de municípios. São elas, muitas vezes, que acabam impulsionando a eleição de vereadores. Ao todo, o sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registra 557.383 candidaturas neste pleito, ante 496.927 em 2016. No período, houve um aumento tanto no número de candidaturas a prefeito (19.345 contra 16.568) como a vereador (518.321 ante 463.405).

Outros efeitos ainda deverão ser notados com o passar do tempo. Uma tendência é os partidos que não tiverem bom desempenho serem compelidos a enfrentar processos de fusão. Isso pode ocorrer, por exemplo, na esquerda. Outras siglas, como Novo e Rede, podem acabar tentando sobreviver com candidaturas de nicho nas disputas majoritárias, mesmo que fadadas a ficarem com modesta representatividade no Poder Legislativo.

Não é de surpreender, portanto, que a regra já seja alvo de críticas no Congresso. Existem algumas propostas em tramitação tentando mudá-la. E mesmo os maiores partidos, em tese os principais beneficiários, já fizeram chegar algumas queixas ao TSE.

Uma reclamação é que, agora, cada partido passou a ser obrigado a preencher 30% das candidaturas reservadas às mulheres individualmente. Antes, o cumprimento da chamada cota de gênero se aplicava à coligação como um todo. O mesmo tipo de reclamação se dá em relação a supostas dificuldades em respeitar a regra de divisão proporcional de verbas públicas de campanha entre homens, mulheres, negros e brancos.

Outra crítica ao formato final da regra se dá em relação ao rateio das vagas remanescentes nos legislativos. Elas serão distribuídas entre todos os partidos que participarem do pleito, independentemente de terem atingido ou não o quociente eleitoral. Isso pode acabar reduzindo a margem de redução do número de siglas no curto prazo.

Mesmo assim, seria positivo se ter um diagnóstico completo dos efeitos da nova regra, antes de recolocá-la em discussão apenas para atender interesses específicos de um ou outro partido. Não se deve, também, esperar alguma liderança do presidente da República nesse processo de otimização do sistema eleitoral. Além de colocar sob suspeição as urnas eletrônicas, sua batalha mais recente neste campo, a de criar um novo partido, diverge do espírito da PEC aprovada depois de muita discussão no Parlamento.


Cristiano Romero: Paulo Guedes, liberal?

Ministro quer a volta da CPMF, o tributo mais antiliberal

Paulo Guedes chegou a Brasília com credencial de liberal formado pela Escola de Chicago. Na prática, o que se vê não se parece nada com o liberalismo de Milton Friedman, maior expoente daquela escola. Com a economia rodando à taxa básica de juros (Selic) em 2% ao ano, o ministro quer recriar a CPMF, tributo que funciona como uma espécie de confisco e do qual o país se viu livre em 2007, por decisão soberana do Congresso.

Por que confisco? Ora, porque a CPMF não taxa diretamente o ganho, a renda, o lucro, o valor agregado nem mesmo o consumo ou a produção, mas, sim, a passagem do dinheiro por uma conta bancária. Basta o sujeito depositar seu dinheiro num banco e já tem que pagar o tributo. É um imposto, na verdade, sobre dinheiro. E, mesmo quem não tem conta, paga indiretamente porque tudo o que compra tem o custo da CPMF embutido no valor.

A CPMF é um tributo regressivo, injusto, pois ricos e pobres pagam proporcionalmente a mesma coisa. Sua incidência em cascata onera toda a cadeia produtiva e, portanto, os preços. Onera, ainda, a formação da taxa de juros.

No momento em que o Banco Central (BC) aproveita a maré de juros historicamente baixos para estimular a competição no sistema de crédito, a CPFM seria mais uma cunha fiscal sobre a intermediação financeira, portanto, um contrassenso.

“Do ponto de vista econômico, a incidência de impostos sobre operações de captação de recursos e concessão de empréstimos constitui uma distorção introduzida pelo governo na livre formação de um preço, a taxa de juros. Por representar um ônus para o tomador, mas não um bônus para o poupador, a tributação desestimula tanto o investimento quanto a poupança”, dizem, no estudo “A Cunha Fiscal sobre a Intermediação Financeira”, Renato Fragelli, do Ibre-FGV, e Sérgio Mikio Koyama, do BC. “Trata-se, portanto, de um entrave à boa alocação inter-temporal de recursos na economia, com consequências de longo prazo sobre o crescimento econômico.”

A cunha fiscal imposta pela CPMF não é sobre o spread bancário, isto é, sobre a diferença entre a taxa de juros dos empréstimos e o custo de captação dos bancos. A CPMF é paga diretamente por quem toma um financiamento e também pelo investidor que compra um CDB emitido pelos bancos, logo, o tributo não está contido no spread.

Observe-se que a margem de lucro dos bancos em operações de crédito está dentro do spread, logo, a CPMF não alcança a rentabilidade das instituições financeiras, como apregoam alguns defensores desse tributo.

No estudo que fizeram para o Banco Central, Fragelli e Koyama identificaram sete impostos recolhidos ao longo da intermediação de recursos entre um poupador e um tomador de empréstimo bancário - isto, sem falar do recolhimento compulsório sobre depósitos à vista, prazo e poupança - hoje, respectivamente, 21%, 17% e 20%, percentuais bem menores do que os exigidos no passado.

“No grupo de impostos que tipicamente constituem uma distorção da atual estrutura tributária estão o PIS, Cofins e CPMF. Trata-se de tributos que não têm relação direta com o valor adicionado das empresas, pois, incidem (em cascata) sobre o faturamento das empresas. No caso da CPMF, a distorção é particularmente grave, pois ela só se faz presente quando a troca entre empresas dá origem a saques de conta corrente”, explicam os dois especialistas no estudo.

O liberalismo do ministro Paulo Guedes entorta também em temas como “o que fazer com o dinheiro levantado na venda de estatais”. Num país em desenvolvimento cuja dívida pública caminha para o equivalente a 100% do Produto Interno Bruto (PIB), Guedes defendeu que o dinheiro arrecadado com privatizações vá para o custeio de programas sociais. A ideia não era ruim antes apenas porque saía da cabeça de economistas de esquerda durante campanhas eleitorais.

Nota do redator: no primeiro mandato (2003-2006), o presidente Lula, entre outras medidas fiscais austeras, aumentou o superávit primário das contas públicas em 0,5% do PIB (num esforço fiscal nunca feito antes na história deste país); antecipou o pagamento da dívida com o FMI - nada mal para quem apregoava a realização de auditoria na dívida e suspensão de seu pagamento -, e aprovou mudanças na Constituição de 1988 para instituir a contribuição de aposentados do setor público à previdência e igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo público federal com as do trabalhadores do setor privado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Daí, a necessidade de ajuste fiscal. Digamos que todas as estatais fossem vendidas, e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar.

Com a dívida voltando a crescer, a despesa com juros também cresce e o custo disso - a taxa de juros exigida pelo mercado para continuar financiando o Tesouro - tende a aumentar exponencialmente. O déficit público escala e, aí, não se tenha dúvida, Brasília, premida a reequilibrar o orçamento, cortará verbas onde é mais fácil fazer isso - dos programas sociais, afinal, pobre - a maioria da população - não tem representante no centro do poder.

De onde Guedes e sua equipe propuseram tirar dinheiro para custear o “Renda Brasil”? Do congelamento, por dois anos, das aposentadorias pagas pelo INSS a 35 milhões de brasileiros, sendo que 70% desse contingente recebe um salário mínimo (R$ 1.045,00) por mês.

A propósito, dinheiro de que privatizações? Desde que assumiu embalado por um discurso liberalizante nunca visto por aqui desde a chegada do navegador espanhol Vicente Pinzón à “Praia do Paraíso” (hoje, Cabo de Santo Agostinho, litoral pernambucano) em 1499, antes, portanto, do português Pedro Álvares Cabral, o atual governo não vendeu uma estatal sequer, para deleite das corporações, de seus fundos de pensão e das empresas privadas que lucram com a ineficiência do Estado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Digamos que todas as estatais fossem vendidas e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar. A propósito, que privatizações?


Francisco Góes: Biden traz os EUA de volta ao ‘velho normal’

Brasil corre o risco de ficar isolado se não rever suas posições de política externa

A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos criou a expectativa de uma nova abordagem do governo americano em relação às instituições multilaterais e aos acordos de comércio. Se espera que o presidente eleito ajude o país a voltar a uma situação de “normalidade” quando se trata da inserção dos EUA em um sistema de cooperação internacional que eles mesmos ajudaram a criar e que foi sistematicamente torpedeado por Donald Trump nos últimos quatro anos.

O papel ativo de Biden em favor do multilateralismo, para fortalecer o trabalho conjunto dos países em áreas como sustentabilidade ambiental, saúde e comércio, não vai evitar, porém, que os Estados Unidos continuem a aplicar medidas pontuais de proteção para setores da economia americana.

“É preciso ter clareza de que, independentemente de o governo ser republicano ou democrata, os EUA sempre vão defender o que é percebido como interesse comercial do país, o que leva em conta lobbies de setores”, diz a economista Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes).

Uma diferença importante agora, no entanto, é que os EUA vão fazer a transição de um governo declaradamente protecionista e antiglobalização, sob o comando de Trump, para uma administração que tem apreço pelos mecanismos de concertação internacional, visão essa reforçada nos próprios discursos de Biden.

“Não é que o Brasil e o comércio exterior brasileiro vão ter vida fácil com Biden”, diz Sandra. Mas, na visão dela, o presidente eleito americano pode ajudar a criar novas condições para o sistema multilateral e para o comércio global, mudanças essas que também podem ser positivas para o próprio Brasil.

Historicamente, nos EUA, os democratas sempre foram vistos como mais protecionistas em matéria de comércio que os republicanos. Essa ideia se vincula ao fato de que a visão de economia dos republicanos sempre foi mais liberal e menos intervencionista, o que combinava com uma política mais “pró-comércio”, diz Sandra. Mas mesmo em governos republicanos houve medidas de proteção a determinados setores como no caso do alumínio e do aço. Também houve casos de aplicação de medidas antidumping e de direitos compensatórios para setores independentemente do viés político (democrata ou republicano).

A novidade com Trump foi ter incorporado o protecionismo ao discurso. Passou a ideia de que exportar era bom e importar era ruim, uma vez que contribuía para destruir empregos da indústria americana. Houve também a adoção de medidas unilaterais, muitas delas em desacordo com compromissos assumidos na Organização Mundial do Comércio (OMC). Prevaleceu o uso da força, do poder econômico, para implementar essa agenda, diz Sandra.

Com Biden, espera-se uma guinada a começar, por exemplo, pelo retorno dos EUA ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do qual o país saiu por decisão de Trump. Outro tema pendente é a reforma da OMC, que deve avançar a partir da chegada de Biden ao poder. Os americanos têm interesse em mudar alguns dos instrumentos da organização com os quais não se sentiam confortáveis já no fim da administração de Barack Obama, como é o caso do Órgão de Solução de Controvérsias.

Também há expectativa de que os EUA voltem ao Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês), o que pode ter impactos negativos para os produtos brasileiros uma vez que a exportação do Brasil para os países do acordo, sobretudo no agronegócio, concorre com itens vendidos pelos EUA.

Ainda será preciso ver como o Brasil se posiciona frente a essas mudanças esperadas pela comunidade internacional e também diante da própria administração Biden, sobre a qual Bolsonaro “calou” desde que os resultados eleitorais mostraram a vitória do democrata no fim de semana. Desde o início da gestão, em 2019, o governo Bolsonaro adotou retórica antiglobalista, seguindo os passos de Trump.

“O Brasil deveria fazer a releitura das suas posições de política externa à luz dos novos desdobramentos [a eleição de Biden]. Em contexto em que se fica isolado, não faz sentido manter a posição. Só faz sentido quando se está seguindo um líder, do contrário seremos conduzidos a uma posição de isolamento ainda maior. O Brasil vai tocar essa música sozinho agora?”, questiona o embaixador Marcos Caramuru, que esteve à frente da embaixada brasileira em Pequim entre 2016 e 2018.

Caramuru acredita que ainda há muitas indefinições. Por exemplo, os EUA, na gestão Biden, vão retirar de forma seletiva tarifas impostas a países na administração Trump? Vão reduzir tarifas para produtos chineses, o que poderia levar a China a fazer o mesmo? Qual será a postura em relação à tecnologia e ao 5G? O que está claro, diz o embaixador, é que com Biden haverá mais espaço para diálogo e cooperação incluindo temas como ambiente e proliferação de armas nucleares.

O embaixador José Alfredo Graça Lima pensa de forma semelhante. Diz que, com o tempo e com maior respeito para com os organismos multilaterais, existe a esperança de que os EUA se insiram novamente em uma “normalidade” dentro desse sistema em que foram cofundadores. “Sustento que os americanos não se tornaram protecionistas nos últimos quatro anos, mas recorreram via presidente e USTR [representante comercial dos EUA] a medidas que eram típicas da pré-rodada Uruguai do GATT [instância que antecedeu a OMC] em que os Estados Unidos aplicavam medidas unilaterais e não tinham propensão para o diálogo sobre regras multilateralmente acordadas”, diz Graça Lima.

O embaixador vê as mudanças de forma positiva para o Brasil porque obrigam o governo a tratar com a contraparte americana dando prioridade a relações institucionais. “Leva a atuar de forma protocolar, o que é bom na relação entre Estados. Relação entre Estados tem que ser feita por estadistas, indivíduos que tenham objetivos específicos, o que é feito por diplomacia. A diplomacia presidencial pode dar muitos frutos, mas depende de como o diálogo é tocado”, diz Graça Lima. Um dos desafios do Brasil será se inserir mais no comércio global. “Ainda somos muito voltados para dentro”, diz o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro.


Andrea Jubé: O risco do apagão eleitoral de Davi

Falta de água e luz ameaça irmão de Alcolumbre

A foto obrigatória em Macapá é no Marco Zero, o monumento de 30 metros que delimita a passagem da linha do Equador pela capital amapaense. A pessoa se posiciona no meio do traço demarcado no chão, e então, coloca um pé no hemisfério norte, outro no hemisfério sul, e registra o seu instante no meio do mundo.

Um círculo no alto do Marco Zero permite a contemplação do equinócio - quando o sol cruza a linha do Equador - duas vezes por ano. Em março e setembro, o sol alinha-se ao círculo e projeta um raio de luz sobre a linha imaginária.

O fenômeno confere a Macapá o título de “capital do meio do mundo”. Ela também é a única capital banhada pelo Rio Amazonas. O Estado também é reduto eleitoral de autoridades do primeiro escalão da política nacional: o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM), e o ex-presidente José Sarney.

Tanta singularidade e projeção política não asseguraram ao Amapá desenvolvimento ou excelência nos serviços públicos. Ao contrário, a população amargou 100 horas sem água e luz até que um restabelecimento parcial da energia elétrica fosse providenciado a partir de sábado.

Foram quatro dias na seca e no escuro. O apagão começou na noite de terça-feira, há uma semana, quando, durante uma tempestade, um raio atingiu a subestação de energia localizada na Zona Norte de Macapá. Dois dos três geradores sofreram danos irreversíveis e terão de ser substituídos. Esse processo pode levar mais de dez dias.

“Descobrimos que não tínhamos ‘backup’ na estação de transmissão, não temos geradores sobressalentes, fomos expostos a um risco altíssimo”, criticou em conversa com a coluna o advogado Rubem Bemerguy, que é candidato da Rede a vice-prefeito de Macapá na chapa encabeçada pelo ex-senador João Capiberibe (PSB).

“Dizem que um raio causou tudo isso. Um raio? Eles [a concessionária] não tinham equipamento de proteção contra raios?”, questionou. Bemerguy argumenta que São Paulo jamais seria exposto a uma situação dramática como essa porque é um Estado rico, industrializado, onde as estações devem contar com “backups” e com a fiscalização atenta da Aneel [agência reguladora do sistema elétrico]. “O governo nos trata ainda como colonizados”.

Mesmo sem garantia do restabelecimento regular da energia, os amapaenses vão às urnas no domingo por deliberação do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), que recusou o apelo da oposição para adiar o pleito.

Os amapaenses, no entanto, vão às urnas pintados para a guerra em meio a tanta devastação. Em plena pandemia, num momento de aumento dos casos de covid-19 no Estado, a população ficou sem água para tomar banho e lavar as mãos. Pelo menos 80% dos moradores não têm caixas d’água em suas residências em Macapá.

Estoques dos bancos de sangue, e dos bancos de leite materno (para os prematuros) foram comprometidos. Quem ainda encontrasse água mineral, gelo ou mantimentos que dispensassem refrigeração para comprar, podia persistir na necessidade se não tivesse como pagar. Máquinas de cartão de crédito descarregaram. Caixas eletrônicos pararam de funcionar.

Uma peculiaridade é que um alto número de pessoas recorre a “gatos” para o fornecimento de energia em suas casas. São os moradores de baixa renda das chamadas “áreas de ressaca”, nas casas em áreas invadidas, sobre braços de rios ou igarapés. Outro detalhe é que um dos principais itens da dieta dos amapaenses são os peixes: pescadores foram prejudicados, bem como as pessoas que armazenavam as carnes frescas ou congeladas em suas geladeiras.

“A insegurança aumentou: na escuridão, com alarmes desativados, sua casa pode ser assaltada, e você não tem nem telefone para chamar a polícia”, relatou Bemerguy. Há o agravante de que as forças de segurança sumiram. Segundo ele, não apareceram nem guardas municipais para controlar o trânsito nas ruas, aumentando o risco de acidentes.

Por isso, é nesse ambiente de revolta que Bemerguy prevê reflexos do apagão na campanha de seu adversário, Josiel Alcolumbre (DEM), irmão do presidente do Congresso, que lidera as pesquisas. Com apoio das máquinas federal, estadual e municipal, Josiel desponta com 15 pontos percentuais de vantagem em relação a Capiberibe, segundo as principais pesquisas.

Bemerguy explica que a população culpa o “governo” pelo infortúnio, sem dissociar, precisamente, a administração federal, estadual ou municipal. “Como o Josiel tem o apoio do governo federal, atribuem a ele essa responsabilidade. Ele é a única pessoa passível de perder voto”, diz o candidato da Rede.

Uma derrota em sua base eleitoral seria um revés emblemático a Davi Alcolumbre, sobretudo num momento em que busca a recondução ao posto. E uma reeleição cheia de obstáculos, dependendo da boa vontade do Supremo Tribunal Federal.

Com 40 segundos no horário eleitoral, a oposição também levou prejuízos. Sem energia completa ou parcial na última semana, a campanha foi afetada com a interrupção da propaganda eleitoral na televisão, no rádio e na internet. A saída foi uma ofensiva nos grupos de WhatsApp, diz Bemerguy.

O candidato da Rede observa que a interrupção na campanha impede a oposição de dialogar com a população, de tentar mostrar ao eleitor o que de fato ocorreu. Bemerguy atribuiu a deterioração do sistema elétrico à concessão dos serviços à iniciativa privada e declara-se contrário à privatização.

“Essas mesmas pessoas que queimam pneus hoje, amanhã votarão em quem apoiou a privatização do serviço, e em quem defende a privatização da Eletrobras”. Ele lamenta que as pessoas, por desinformação, atribuam o episódio a uma fatalidade ou provação divina. “A população não tem discernimento sobre isso”.

Bemerguy receia, entretanto, que o eventual adiamento da eleição aumentasse o sentimento de revolta no eleitor. “Tem o risco politico do adiamento, de deixar o eleitor ainda mais chateado, porque os políticos estão sendo muito demonizados”. A expectativa dele é que o apagão leve a um recorde no índice de abstenção nas eleições no Amapá.


Bruno Carazza: Trump 2024

Engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho: Biden venceu, mas o trumpismo sai fortalecido

“I’ll be back”, teria dito o presidente Grover Cleveland ao deixar a Casa Branca depois de perder a reeleição em 1888. E ele cumpriu a promessa. Ao dar a volta por cima em 1892, Cleveland ainda é, até hoje, a única pessoa na história americana a governar o país em dois mandatos não consecutivos (1885-1888 e 1893-1896). Donald Trump pode lhe fazer companhia em 2024.

Cleveland era democrata - e o vínculo partidário não é a única característica que o diferencia de Trump. Discreto, fez da austeridade e da retidão seus principais ativos políticos. Na sua primeira eleição, sofreu uma intensa campanha difamatória na imprensa, com os adversários acusando-o de ter um filho ilegítimo. Ao ser questionado por seus apoiadores sobre qual deveria ser a sua estratégia de defesa, respondeu com uma frase que marcou época: “Tell the truth”. Ao assumir que caiu em tentação e admitir a possibilidade de ser pai da criança, Grover Cleveland mereceu um voto de confiança do puritano eleitorado americano no final do século XIX.

Mas à parte a coloração partidária, a discrição e a postura em relação ao dilema “fato ou fake”, há pontos em comum entre eles. Ambos tiveram uma carreira política meteórica: em apenas dois anos, Cleveland elegeu-se prefeito de Buffalo, governador de Nova York e presidente da República, enquanto Trump… bem, todos sabemos o quão rápida foi sua ascensão.

Os dois presidentes também viveram em mundos muito polarizados. Cleveland chegou ao poder derrotando seu adversário James Blaine por apenas 0,3% dos votos nacionais e se não fosse uma diferença de apenas 1.200 votos no estado de Nova York, teria perdido a disputa no Colégio Eleitoral - assim como Donald Trump venceu Hillary Clinton com margens apertadas e ainda perdendo nacionalmente.

Ao tentarem a reeleição, tanto Cleveland quanto Trump ampliaram seu eleitorado, mas por um triz não conseguiram manter o domínio sobre Estados relevantes, e acabaram sendo derrotados. Em 1888, Nova York e Indiana representaram para Grover Cleveland o que Georgia, Pensilvânia e Michigan foram para Trump em 2020.

Quatro anos depois, o retorno de Cleveland à Casa Branca foi possível pelo agravamento da situação econômica, o acirramento das disputas raciais no país e a ausência de alternativas no seio de seu partido - condições que podem contribuir para a volta de Trump em 2024.

A vitória de Joe Biden vem sendo efusivamente comemorada como o fim de uma era. Analistas chegaram a dizer que “a aventura populista norte-americana chegou ao fim” e que a razoabilidade e a sensatez se impuseram de modo definitivo sobre a truculência das táticas de Donald Trump. Calma lá.

Deixando de lado a teatralidade das acusações de fraude e as ameaças de judicialização do resultado das urnas, Trump poderá deixar a presidência de cabeça erguida. Ele conseguiu mobilizar seu eleitorado para fazer frente à onda azul que se mobilizou desde os protestos em resposta ao assassinato de George Floyd, manteve o domínio republicano em suas bases tradicionais e ainda angariou votos em redutos antes considerados monopólio democrata, como parcelas relevantes do eleitorado latino - tudo isso em meio a uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes na história recente.

A derrota trumpista se deu em margens tão apertadas quanto as de 2016, o que evidencia que os Estados Unidos continuam tão divididos quanto antes, tanto geográfica (litoral x interior, cidades grandes x zonas rurais) quanto demograficamente (brancos x não brancos, homens x mulheres, alta x baixa escolaridade). Não é por outro motivo que tanto Joe Biden quanto Kamala Harris, em seus discursos da vitória, usaram a mesma expressão: “curar o país”, como se ele sangrasse em função de tantas divisões.

Amainar diferenças tão acirradas até 2024 será uma tarefa hercúlea, ainda mais se os democratas não conseguirem o controle do Senado. É bom lembrar que nem Barack Obama, com todo o seu carisma e contando com oito anos de mandato, conseguiu vencer resistências, unificar o país e fazer sua sucessora.

Como a Emenda nº 22 da Constituição americana não impede um ex-presidente que perdeu a eleição de candidatar-se de novo, Donald Trump tem à sua frente quatro anos para fazer campanha e azucrinar o governo de Joe Biden pelas redes sociais e manipulando as atenções da mídia.

Outra circunstância que o favorece é a ausência de novas lideranças em ambos os partidos. Do lado republicano, ainda que existam críticas às suas postura e personalidade, nenhum nome lhe faz sombra. Entre os democratas, as primárias deste ano, com um número recorde de pré-candidatos e a escolha recaindo sobre um senhor de 77 anos, dizem muito sobre o deserto de alternativas.

É verdade que o atual presidente tem um passado nebuloso e a perda da imunidade presidencial abre flancos para processos judiciais que podem inviabilizar um plano de retorno ao centro máximo do poder nos Estados Unidos. Nesse caso, ainda lhe restaria um plano B, que atende pelo nome de Donald Trump Jr.

Clãs sempre fizeram parte da política americana: John & John Quincy Adams, no alvorecer da República, e George H. & George W. Bush são duplas de pais e filhos que chegaram à presidência. Outro exemplo é William Harrison (1841-1844) e seu neto Benjamin Harrison, que derrotou Grover Cleveland em 1888. Também tivemos os Dead Kennedys na década de 1960 e o casal Clinton mais recentemente, todos com grande protagonismo. E ainda há Michelle Obama - que nega interesse em entrar no jogo, mas parece ser uma carta guardada na manga dos democratas para o futuro.

Com um perfil super ativo nas redes sociais, papel de comando nas campanhas do pai e tendo participado como consultor na administração que se encerra, não seria surpresa ver Trump Jr., 43 anos, sendo preparado para assumir o bastão do pai caso ele não possa concorrer em 2024.

É muito cedo para especular sobre o que vai acontecer nos EUA daqui a quatro anos. Mas engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho. Sua campanha, aliás, já começou.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Fernando Abrucio: Bolsonaro não aprendeu nada com a história

A cada dia que passa, Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos

O bom governante é o que aprende com a história. Essa é uma máxima que deveria estar na porta de entrada de todos os palácios e sedes governamentais. Tal ensinamento se tornou ainda mais relevante com a eleição de 2018, quando venceu a ideia de que viria algo completamente novo que substituiria a velha política. Só que a mudança só se torna factível se a liderança política sabe o quê e como mudar, e apenas quem tem efetivo conhecimento histórico pode realizar essa transformação. O problema atual é que, a cada dia que passa, o presidente Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos, tanto no campo político como nas políticas públicas.

A própria definição de Bolsonaro como novidade, tal qual apareceu na última eleição presidencial, foi um engodo. É preciso desmistificar essa ideia, uma vez que ele foi deputado federal por quase 30 anos e não esteve na linha de frente de nenhuma proposta séria de transformação do país. No máximo, dizia que o regime militar errou por não ter fuzilado mais umas 30.000 pessoas.

Quando o país entrou numa enorme crise política e econômica, iniciada em 2013, a sociedade começou a rejeitar o sistema partidário que fora hegemônico por pouco mais de 20 anos, desde o impeachment de Collor. Foi aí que surgiu o espaço para uma liderança que defendesse a mudança completa do país. O eleitorado majoritário não olhou para o passado de Bolsonaro e acreditou que ele seria uma ruptura positiva. O fato é que essa massa enorme de eleitores, muitos com ódio do petismo e outros sentindo-se descontentes com as alternativas de centro-esquerda e centro-direita, comprou gato por lebre, como se diz popularmente. Na verdade, a melhor expressão para definir essa escolha eleitoral é outra: quem votou em Bolsonaro comprou o velho por novo.

O início do governo Bolsonaro foi marcado por duas tendências. De um lado, procurou se distinguir do passado trazendo nomes que não ocuparam cargos nos últimos governos, aparentemente abraçou o lavajatismo com a vinda de Sergio Moro para o Ministério da Justiça, não criou uma aliança explícita com o Congresso Nacional e os partidos tradicionais, e, como pretensa forma mais inovadora, buscou imprimir um ritmo alucinante de discussão pelas redes sociais, dando a impressão que governaria por meio delas.

Havia outro lado deste modelo, entretanto. Junto com uma agenda fortemente conservadora nos costumes, defendida com muita agressividade pelos bolsonaristas, o presidente da República pouco a pouco foi instalando uma agenda claramente autoritária. Uma das principais ações neste sentido foi enfraquecer os controles democráticos impulsionados pela Constituição de 1988, como os Conselhos de Participação Social, a Polícia Federal e o Ministério Público, escolhendo um procurador-geral que fosse completamente vinculado às ordens presidenciais. Este namoro de Bolsonaro com o autoritarismo teve seu auge em meio à pandemia, com ameaças aos outros Poderes e manifestações antidemocráticas comandadas por seus apoiadores.

A história não se repetiu nem como uma farsa nem como tragédia. Bolsonaro não percebeu que o país - e o mundo - estavam num ano diferente de 1964. A prisão de Fabrício Queiroz ligou o despertador para o presidente e ele, ainda bem, mudou de rumo. Os grupos de extrema-direita perderam força no governo, mas não foram desalojados por completo da aliança governista. De tempos em tempos, Bolsonaro abraça causas malucas e radicais, como no debate sobre a vacina, piscando para os autoritários de plantão.

A ambiguidade entre a democracia e o autoritarismo não acabou por completo, mas Bolsonaro optou por fazer um compromisso com a classe política, o que foi um alento para a governabilidade do país. O presidente finalmente descobriu que os parlamentares tinham tanta legitimidade quanto ele. Podia se abrir um novo capítulo, que garantisse estabilidade democrática e gerasse a aprovação de medidas importantes para a economia e a sociedade.

O problema é que o condomínio político montado junto ao Centrão se orienta apenas por uma perspectiva defensiva de governabilidade. Trocando em miúdos, esse casamento tem como objetivo básico salvar todos os sócios de qualquer pendência judicial - inclusive (ou principalmente) as relacionadas aos filhos do presidente. Vez ou outra surge uma afinidade ideológica ou o interesse em algum tema estrutural nessa aliança do Executivo federal com esse grupo parlamentar, mas, no geral, esse novo casal tem sido incapaz de gerar uma agenda sólida de propostas legislativas.

Se quiser dar maior efetividade a essa aliança, Bolsonaro tem de estudar mais a história recente. Claro que é preciso montar uma coalizão parlamentar para governar um sistema político marcado pelo multipartidarismo. Mas o presidencialismo de coalizão vai além disso. Para obter sucesso neste modelo, faltou ao bolsonarismo aprender três lições derivadas de outros governos: é necessário ter agenda clara, coordenação política e construir políticas públicas consistentes, capazes de gerar mais do que uma popularidade momentânea.

Uma aliança parlamentar só resulta em governabilidade efetiva caso tenha uma agenda que a oriente. Os bolsonaristas podem dizer que mandaram vários projetos ao Congresso Nacional, alguns de reconhecida relevância. Mas está claro que não há prioridades bem definidas nesta inflação de PECs e leis enviadas ao Legislativo. Na verdade, o próprio presidente da República não saberia dizer o que é mais importante, a reforma tributária ou a administrativa, alterar o pacto federativo ou a legislação penal. Bolsonaro, no fundo, não quer comprar briga com ninguém, não deseja apoiar nada que o indisponha com parcelas do eleitorado. Prefere comemorar a aprovação do Código Nacional de Trânsito e falar de medidas vinculadas à pauta dos valores, embora tais temáticas não tirem os cidadãos brasileiros do atual buraco econômico e social.

Falta ao Executivo federal, ademais, maior coordenação interna e externa. A briga entre os vários lados do governo é constante, com um grau de publicidade inédito. O presidente não tem sido capaz de acabar com essa balbúrdia. Quando arbitra, é para tomar decisões movidas pelo fígado e pelo desejo de eliminar os concorrentes eleitorais. As relações com o Congresso também são caóticas. A pauta das duas Casas mexe-se lentamente e muitas vezes contra os interesses do governo. Bolsonaro provavelmente não aprovará nenhum sucessor do auxílio emergencial e, o pior de tudo, as eleições de fevereiro para Câmara e o Senado continuam em aberto, gerando enorme incerteza para os dois anos finais do mandato.

O presidencialismo de coalizão, por fim, precisa se ancorar num caminho claro de políticas públicas. A popularidade inesperada cegou Bolsonaro, que botou o carro na frente dos bois: ele já está em campanha para a reeleição sem construir o que vai mostrar. E é exatamente no campo das políticas públicas que o presidente da República menos aprendeu com a história recente.

Primeiro, Bolsonaro não entendeu que cortes muito abruptos não dão certo. Fez mudanças em políticas públicas sem saber o que estava dando certo e o que estava no rumo errado, e jogou o governo no escuro. Como consequência, a maioria dos setores não entregará bons resultados até 2022 - a principal exceção, a área de infraestrutura, é a de maior continuidade em relação ao passado recente.

Também faltou colocar gente competente nos postos-chave, profissionais que entendam dos assuntos pelos quais são responsáveis. Este é um dos governos com mais gente amadora na história brasileira. Soma-se a isso o fato de que é necessário dialogar com os atores vinculados às políticas públicas, porque a interdição da conversa ou, pior, uma agenda completamente contrária a quem historicamente está ligado a uma área não produz uma mudança bem-sucedida. Se alguém tiver dúvida disso, acompanhe o que está acontecendo na Cultura, na Educação e na Saúde. É uma coleção de desastres.

A lógica do conflito, quando não da briga de rua, alimenta boa parte da dinâmica das políticas públicas bolsonaristas. A desarticulação federativa tem atrapalhado muito as políticas sociais. Menos Brasília não é, necessariamente, melhor Brasil, muito menos governo federal bem avaliado - vide as eleições nas capitais, majoritariamente antibolosonaristas. Bolsonaro não percebeu que é preciso fazer compromissos institucionais e políticos inclusive com adversários para apresentar resultados. Em vez disso, a maneira bélica de agir tem se espalhado até na Esplanada, gerando falsas dicotomias em seu governo, como a volta da luta entre ministros gastadores e fiscalistas. Nesta disputa, quem perde é o país e o presidente da República.

Ao repetir erros do passado e não aprender com os acertos, o governo Bolsonaro fica velho antes do tempo. Esse fracasso bolsonarista não quer dizer que o país não precise de lideranças e ideias novas. Renovação é fundamental para combater os problemas estruturais e colocar o Brasil novamente nos trilhos. Mas os que portarem a mudança em 2022 só terão sucesso se conhecerem bem a história e souberem utilizá-la a seu favor.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getúlio Vargas


César Felício: Turbulência em qualquer cenário

Eleição americana pode radicalizar o bolsonarismo

A próxima Presidência americana trará consequências para o bolsonarismo no Brasil, em qualquer cenário. A vitória de Bolsonaro em 2018 decorreu de vários fatores e um deles foi a ascensão da direita nos Estados Unidos, alavancada, sobretudo, pela habilidade no uso de redes sociais.

Até o momento em que essa coluna é escrita, não há certeza sobre quem estará na Casa Branca a partir de janeiro do próximo ano. Tenha o desfecho que tiver a contenda entre republicanos e democratas, Donald Trump pode ter cruzado uma linha vermelha, ao buscar o Judiciário para tentar se manter no poder.

Se reeleito em um pleito decidido na Suprema Corte, com intervenções judiciais não apenas em um Estado, como se deu na Flórida em 2000, durante a eleição presidencial de George W.Bush, o presidente atual tende a ser muito contestado nas ruas.

Terá um déficit de legitimidade insanável que pode desencadear uma radicalização, com reflexos no Brasil.

Caso seja derrotado, Trump planta a semente de uma possível candidatura presidencial em 2024 - ele estará legalmente habilitado a fazê-lo - e conduzirá um exército de apoiadores que passará a descrer do sistema eleitoral como solução política. As tribos de Trump e de Bolsonaro se confundem.

Um contingente grande dos influenciadores digitais mais duros do conservadorismo brasileiro está nos Estados Unidos. A começar do mais famoso deles, Olavo de Carvalho.

A extrema-direita brasileira rompeu o casulo graças a um movimento que veio de fora para dentro. Bolsonaro pessoalmente se empenhou em fazer um amálgama entre a política brasileira e a americana, tarefa da qual Eduardo Bolsonaro foi o principal operador.

Embaixador do Brasil nos Estados Unidos que foi sem nunca ter sido, patrono do primeiro congresso brasileiro do CPAC, o evento mais importante do conservadorismo americano, o deputado está aí para demonstrar quem é matriz e filial nesse processo. Não há dúvidas de que a disputa americana levou incerteza ao bolsonarismo sobre o que o destino lhes reserva na eleição brasileira de 2022.

“A esquerda é bem organizada em nível mundial. Por isso é importante acompanhar as eleições nos Estados Unidos. O que acontece lá pode ser repetir aqui”, escreveu no Twitter anteontem, apreensivo. Um aliado seu, Daniel Silveira (PSL-RJ), foi além, na mesma rede social. “Isso mostra o tamanho do perigo e o potencial do inimigo que enfrentamos. Aqui no Brasil não será diferente em 2022 para tentar retirar o presidente Bolsonaro do governo”.

Assim como Trump está fazendo nos Estados Unidos, se a coisa apertar, entrará no radar bolsonarista de pronto a contestação de resultados eleitorais, talvez por meio de uma judicialização.

Como indicou no Twitter outro aliado, o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), é de se esperar mais questionamentos ao sistema brasileiro de voto eletrônico, e o aumento de fabulações sobre possíveis fraudes na eleição que obrigou Bolsonaro a disputar segundo turno, há dois anos: “Se por lá fazem isso com cédulas, imagino o que acontecerá aqui em 2022. Afinal por aqui usamos a tecnologia, sabidamente manipulável, com um agravante, as máquinas não são auditáveis”.

Se Biden for o eleito, deve haver de início um grande movimento do presidente democrata em relação a posições mais centristas.

Como comentou o empresário e cientista político Jared Cohen, convidado a apresentar uma palestra ontem em evento do Banco Itaú, Biden será levado ao pragmatismo para impedir que a maioria republicana no Senado obstrua por completo sua administração. Ele não terá muitos caminhos para demarcar diferenças em relação a Trump, ao menos enquanto persistir essa situação.

Na opinião do historiador Niall Ferguson, palestrante no mesmo evento, será talvez a mais fraca presidência democrata em muito tempo, com condições limitadas para avançar em muitas das agendas que se comprometeu durante a eleição. Os especialistas americanos ouvidos ontem pelo Itaú não acreditam em guinadas significativas do governo americano em relação às prioridades nacionais: enfrentar a China na nova guerra fria que divide o mundo e controlar a pandemia, que, na opinião de Ferguson, poderá matar 500 mil pessoas nos Estados Unidos antes de ser vencida.

Jogar duro com o Brasil pode, portanto, ser uma alternativa interessante para atender a um eleitorado democrata mais radical. Bolsonaro mexe com dois símbolos caros a este contingente: a ameaça ambiental e o extremismo ideológico. Para Cohen, dois países no mundo entram em uma zona de risco de problemas na relação: Brasil e Arábia Saudita.

Como nem só de extremistas vive o governo Bolsonaro, é razoável supor que a ala militar e os aliados do centrão possam aumentar o protagonismo dentro do governo federal, encolhendo a ala ideológica, com quem travam permanente disputa por espaço.

São Paulo

A pesquisa de ontem do Datafolha posiciona o ex-governador paulista Márcio França (PSB) com chances concretas de chegar ao segundo turno. Não tanto pelo seu desempenho, mas pelo fato de Guilherme Boulos (Psol) ter parado de crescer e sobretudo por Celso Russomanno (Republicanos) cair em parafuso. A se confirmar um duelo entre Bruno Covas (PSDB) e França, a eleição em São Paulo teria uma particularidade não vista desde 1985: nenhum candidato de esquerda em primeiro ou segundo lugar. Embora filiado ao PSB, França é um político de centro. Centristas têm alguma dificuldade para chegarem ao segundo turno, mas vantagem quando cruzam esta barreira, por oferecerem atrativos aos dois polos.

O curioso é que Covas, ao contrário do que fez o governador João Doria há dois anos, ao buscar associação com Bolsonaro, também se coloca no centro. Caso haja este duelo, a eleição paulistana quebraria a tendência nacional de polarização. Ambos teriam que buscar tanto os eleitores de Boulos quanto os de Russomanno, o que embalhararia o segundo turno.