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César Felício: O tempo no Amazonas começa a fechar

Política e pandemia estão entrelaçadas de modo absoluto

No Amazonas, a estação das chuvas está próxima. É bom se preparar para a tormenta. No café de um hotel em São Paulo, o governador amazonense Wilson Lima (PSC) puxa do celular e abre em sua tela diversos vídeos de WhatsApp que recebeu. Mostram cenas da campanha eleitoral deste ano tanto em Manaus quanto em cidades do interior.

Muita gente, muita música. Abraços, beijos, festa popular. Em pelo menos um dos vídeos não é possível distinguir uma pessoa sequer de máscara. No Amazonas, explica Lima, a política funciona assim: com contato físico e, obviamente, intensa troca de partículas microscópicas por aerossol.

Na capital, o decano das eleições amazonenses, Amazonino Maia (Podemos), com 80 anos, tenta voltar à prefeitura. Faz campanha sem circular, com reuniões remotas, presença digital. Seu jingle remete a isso: “O pai tá on”. Ele perde terreno nas pesquisas. Seus rivais mais próximos, Davi Almeida (Avante) e Ricardo Nicolau (PSD) fazem campanha de rua e se aproximam. Seguem a lógica do Estado.

A campanha eleitoral, adiada, engata com a virada da estação, em que síndromes de quadro respiratório proliferam. No Amazonas, comícios foram proibidos em apenas dois dos 62 municípios. No Amapá, a covid parou a campanha na capital.

A média de óbitos por dia em Manaus está em nove. Era cinco há algumas semanas, mas chegou a ser de 100 nos piores dias da pandemia. O indice de ocupação de leitos da UTI já alcança 86%. Precisamente só há hoje 51 vagas disponíveis para esta enfermidade. No Estado. O governador sabe que os casos vão aumentar e na segunda-feira começa o processo para colocar mais 42 leitos no sistema.

Lima diz que não considera provável, mas também não descarta de todo, a possibilidade de Manaus reviver em breve o cenário de maio, com hospitais alojando pacientes em contêineres e os cemitérios organizando filas para enterros coletivos.

O “lockdown”, segundo o governador, não é uma opção. Embora bastante alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, não usa argumentos ideológicos para combater a política de isolamento social. Para Lima, ela não é uma afronta a liberdade, como dizem os bolsonaristas xiitas. Ela é inútil, porque um decreto de fechamento do Estado não seria obedecido.

“Ninguém respeita. Ninguém respeita. Isso na França, na Espanha, na Alemanha, é muito bacana. Em Manaus, não funciona. Isso não é opinião, é constatação”, diz. Ressalve-se que o pensamento de Lima não é unanimidade no Amazonas. O entendimento do prefeito de Manaus, o tucano Arthur Virgílio, é outro, a favor do isolamento.

A proatividade do governador do Amazonas pode estar sendo afetada por dois fatores: um é sua sustentação política frágil. Ele foi alvo este ano de uma tentativa mal sucedida de impeachment, que deixou como saldo seu afastamento definitivo do presidente da Assembleia Legislativa.

Outro foi a rumorosa compra de respiradores com indícios de superfaturamento na intermediação do negócio por uma loja de vinhos. Lima tornou-se personagem da “Operação Sangria”, que já está na sua segunda fase, com direito a busca e apreensão de documentos e a um pedido de prisão, este negado pelo STJ. Sua situação não está resolvida. As investigações continuam na Procuradoria-Geral da República.

“A investigação está sob sigilo e eu estou tranquilo. Se houve superfaturamento, foi em uma relação entre privados. O Estado só estava preocupado em garantir o atendimento em um momento de escalada de preços e de falta do produto”, diz. Ainda assim, ele assegura ter trocado todo o pessoal da Secretaria da Saúde e instituído uma controladoria para auditar todas as compras relativas à pandemia.

Medida necessária, considerando que a secretária da Saúde foi presa em junho. O antecessor dela também foi parar na cadeia.

Sem ter muito o que fazer para deter a progressão da doença, ou pelo menos é nisso que ele acredita, que seu raio de ação é reduzido, o governador amazonense aguarda com ansiedade que a poeira baixe e a discussão sobre vacinação caminhe para uma direção técnica.

Lima receia um quadro em que a Anvisa avalize uma vacina de origem chinesa produzida em São Paulo, mas o governo federal não a coloque no plano nacional de imunização, como ameaça Bolsonaro. “Não faz sentido um Estado poder vacinar sua população e o outro não. Um Estado pobre não terá como comprar vacinas”, diz.

Para Lima, a discussão sobre vacinas está de cabeça para baixo. “Não temos que pensar se vacina é uma obrigação ou não. Temos que assegurar a vacinação como um direito. Isso não está assegurado”, alerta. Ele arrisca um palpite: “Eu não acredito que alguém da periferia de Manaus rejeite uma vacina porque ela vem da China. Isso não existe.”

São Paulo

A última pesquisa XP-Ipespe, divulgada pelo Valor, mostra que o primeiro turno da eleição paulistana pode ser decidido por dois candidatos de baixa competitividade: Jilmar Tatto (PT) e Arthur do Val, o “Mamãe Falei”, do Patriota. Os dois saíram do traço para o patamar dos 5%.

Ambos crescem de maneira assimétrica nas diversas faixas do eleitorado. A ascensão de Tatto complica a passagem de Guilherme Boulos para o segundo turno, porque se dá nos segmentos de menor renda. Na alta renda e na população com ensino superior, Boulos já lidera. São veios que parecem estar próximos do esgotamento. Para ultrapassar 20%, o candidato do Psol precisa da periferia.

O crescimento de “Mamãe Falei” acontece entre homens jovens. É um eleitorado que lastreou o começo do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas, na fase de pré-campanha presidencial. Em tese, seria um eleitor mais próximo do bolsonarismo. Se este candidato avançar, pode aprofundar o declínio de Russomanno.

Ainda que não vá para o segundo turno, uma votação acima de dois dígitos deixa Boulos muito maior do que entrou na disputa.


Claudia Safatle: Tempos de aflição

“Rombo” fiscal se arrasta desde os anos 1980, com breve período de exceção

O país vive um momento em que decisões na economia vão ter grande impacto nos próximos anos, de forma mais ou menos análoga ao que os ex-presidentes Geisel e Figueiredo viveram quando dos choques de preços do petróleo em que optou-se por pisar no acelerador ao invés de ajustar a economia àquela condição de grave restrição. Foram os 20 anos seguintes de elevadíssimas taxas de inflação, só domada após o Plano Real, em meados de 1994. Ao ouvir as alternativas que tinha à mão na ocasião, Geisel teria dito: “Mas logo na minha vez vocês querem brecar a economia?”.

O momento, agora, é o retrato de um desequilíbrio que está na cobertura da imprensa desde a crise da dívida externa nos anos de 1980, quando os jornalistas de economia começaram a escrever sobre o “rombo” nas finanças públicas. Para alguns, iniciava-se alí um aprendizado da importância da política fiscal para a estabilidade da economia.

Foi a partir de um acordo de socorro financeiro com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que preconizava austeridade nas contas do setor público como medida de controle da inflação, que tomou-se conhecimento das metodologias de cálculo do déficit e o assunto passou a ser parte da pauta de cobertura da imprensa de 1983 para cá.

O fato é que os governos não foram capazes de resolver, até hoje, as restrições fiscais que se arrastam, freiam o crescimento da economia e atrasam a vida de milhões de brasileiros. Houve períodos de enfrentamento, quando no segundo mandato o governo de Fernando Henrique Cardoso começou, em 1999, a política do tripé macroeconômico calcado no regime de metas para a inflação, câmbio flutuante e superávit primário nas contas públicas.

As primeiras iniciativas de abandono das metas fiscais começaram no segundo mandato de Lula, mas foi Dilma Rousseff que deu um basta nos superávits e inaugurou o tempo dos déficits públicos. Ficou famosa a definição da presidente de que “gasto [público] é vida.”

Na gestão de Michel Temer foi aprovada a PEC do Teto do Gasto, pela qual o aumento da despesa anual é limitado à correção pela inflação acumulada em 12 meses até meados do ano anterior. Foi uma forma, talvez dura demais, de lidar com uma expansão desmedida do gasto público nos últimos quarenta anos.

Quando Bolsonaro assumiu, parecia muito claro no discurso do ministro Paulo Guedes o entendimento da dimensão do problema. Mas o tempo mostrou que o presidente não comungava das convicções liberais do ministro da Economia nem tinha a compreensão das limitações que o “rombo” das contas públicas impunha aos seus eventuais planos de governo.

Bolsonaro nunca gostou das privatizações, não apoiou a reforma da Previdência, aceitou a reforma administrativa desde que vigorasse só para os novos entrantes no setor público e não concordou com a proposta de reestruturação dos programas assistenciais (tais como o abono salarial, seguro-defeso e vários outros) para financiar um projeto de renda básica. O Congresso, nesse aspecto, foi mais reformista.

O presidente, definitivamente, não lida bem com as restrições que lhe são colocadas pelo “buraco” das contas públicas. Mas não há muitas alternativas para ele a não ser a perda da confiança e da credibilidade na sustentação da trajetória da dívida pública como proporção do PIB. Dívida que era de 51,7% do PIB em 2010 e uma década depois já encosta em 100% do PIB. Os economistas do setor público e privado entendem que esse não é um patamar sustentável e o mercado reage mudando os preços dos ativos.

Dois sinais muito claros dos mercados nos últimos meses são: a inclinação da curva de juros que dá uma diferença grande, de cerca de 500 pontos-base, entre as taxas de longo prazo e as de curto prazo; e a desvalorização de 40% do real frente ao dólar americano.

“A trajetória da dívida começa a estar sob os holofotes”, diz uma fonte que opera no mercado desde os anos 1970. “A questão fiscal não está equacionada e a aparente guinada de Bolsonaro para acordos políticos torna inverossímil a possibilidade de um ajuste”, avalia.

Sem a pandemia da covid-19, a história seria diferente?, indaga ele, que responde: “Marginalmente, seria diferente porque os agentes entenderam a pandemia como um evento ‘once for all’ do ponto de vista fiscal. Foi preciso gastar R$ 900 bilhões e não dá para chamar isso de irresponsabilidade fiscal”, diz a fonte.

A pandemia, porém, empurrou o endividamento para a casa dos 100% do PIB.

Isso não seria um enorme problema se fosse possível manter a taxa de juros baixa.

Mas a inclinação da curva está dizendo que a taxa de juros de curto prazo, a Selic de 2% ao ano, está fora de lugar.

Uma enorme diferença entre agora e os anos da década perdida de 1980 é a taxa de câmbio flutuante que somada às reservas cambiais dá um conforto na área externa e afasta o risco de uma crise cambial. De positivo, atualmente, o país tem juros baixos (condicionado à responsabilidade fiscal) e taxa de câmbio desvalorizada.

Em artigo publicado na “Folha de S.Paulo” do fim de semana, Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, sugeriu um roteiro de mudanças possíveis com o retorno à meta de primário como âncora fiscal, já que o teto do gasto levaria cinco anos para colocar o país em uma situação de equilíbrio das contas públicas. Arminio não acredita que o país tenha todo esse tempo. Ele propõe uma pequena folga para o teto e um ajuste de seis pontos percentuais do PIB nos próximos quatro anos, pelo qual o déficit primário de 3% do PIB de 2019 se converta em superávit de 3% do PIB em 2024.

“Não quero acabar com o teto, mas dar uma pequena folga de 1% além da inflação porque no curto prazo dá um espaço de manobra e, no longo prazo, eu prefiro ter um governo em condições de investir na redução das desigualdades”, explica ele.

Outro ex-presidente do BC, Affonso Celso Pastore, em artigo publicado no “Estadão”, alerta para o risco de o Banco Central ser forçado a tomar medidas de repressão ao livre movimento de capitais para evitar uma eventual sangria nas reservas.

Tal situação decorreria da dominância fiscal - da qual a dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação - que leva à inflação e à repressão financeira, com todas as distorções que ela produz.

O tempo corre, o ambiente se deteriora e o governo espera passar as eleições para tomar uma atitude.


Maria Cristina Fernandes: Como os milicianos tomaram a República

Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro

Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.

O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.

O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.

Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.

O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.

Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.

A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.

Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da República.

Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.

Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.

As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.

Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.

A explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas - provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de transportes.

A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.

A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.

A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso, Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a cidade. Ambos negaram as imputações à revista.

O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia Federal.

A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.

Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.

A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.


Ribamar Oliveira: Uma ajuda muito além do imaginado

União repassou R$ 31 bilhões acima das perdas estaduais

O apoio financeiro aos Estados para o enfrentamento da pandemia do coronavírus ficou muito acima do que se poderia imaginar. Os dados preliminares do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) indicam que a receita acumulada de janeiro a setembro do ICMS, o principal tributo estadual, caiu cerca de R$ 3 bilhões, na comparação com igual período de 2019. Para compensar a perda, os governadores receberam R$ 37 bilhões, considerando apenas a lei complementar 173/2020.

Mas a ajuda federal não ficou só nisso. A arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda (IR), que é dividida com Estados e municípios, também caiu durante os meses iniciais da pandemia. Por isso, a medida provisória 938/2020, que foi convertida na lei 14.041/2020, autorizou a União a manter os repasses aos fundos de participação de Estados e municípios (FPE e FPM), de março a novembro, em valores equivalentes aos repassados nos mesmos meses de 2019. Com essa medida, os Estados já receberam R$ 7,359 bilhões, de acordo com o Tesouro Nacional.

O Boletim de Arrecadação de Tributos Estaduais, editado pelo Confaz, estima que a receita de todos os tributos estaduais - além do ICMS, o IPVA, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e todas as taxas cobradas - ficou em R$ 437,4 bilhões, no acumulado de janeiro a setembro.

Este dado, no entanto, ainda não inclui a arrecadação do Distrito Federal e do Pará no mês passado. Se essas duas unidades da federação tiverem registrado a mesma receita de setembro de 2019, a arrecadação total subiria para R$ 439,52 bilhões. É provável que a receita fique maior do que esse valor, pois, em setembro, a arrecadação de todos os Estados superou aquela obtida no mesmo mês do ano passado.

Como a arrecadação acumulada de janeiro a setembro do ano passado do conjunto dos Estados ficou em R$ 445,14 bilhões, a perda de receita por causa da pandemia foi de, aproximadamente, R$ 5,6 bilhões.

Para compensar essa perda, os Estados receberam da União (LC 173 e MP 938) nada menos que R$ 44,359 bilhões (R$ 37 bilhões mais R$ 7,359 bilhões). Considerando que os recursos da União autorizados pela MP 938 foram apenas para manter constantes os valores dos repasses do FPM e do FPE, na comparação com 2019, os Estados tiveram cerca de R$ 31,4 bilhões a mais, de janeiro a setembro deste ano, do que em igual período de 2019 (R$ 37 bilhões menos R$ 5,6 bilhões).

O aumento nominal da arrecadação total dos Estados nos primeiros nove meses deste ano está em torno de 7% (considerando apenas o repasse de R$ 37 bilhões), o que é um dado significativo, tendo em vista que o país está em recessão, com a previsão de queda em torno de 5% para o Produto Interno Bruto (PIB). Mesmo nessa situação, as receitas estaduais apresentarão aumento real, uma vez que a inflação deste ano está estimada em torno de 3%.

Ainda não há informações sobre como os governadores estão gastando os recursos transferidos pela União. A LC 173 diz apenas que, dos R$ 37 bilhões repassados aos Estados, R$ 7 bilhões terão que ser utilizados em ações de saúde e assistência social.

Os demais R$ 30 bilhões serão utilizados livremente pelos governadores, pois cairão diretamente no caixa de cada Estado e não estão carimbados, ou seja, não têm destinação definida em lei. Os recursos poderão, portanto, ser utilizados no pagamento de despesa com pessoal.

É importante que o contribuinte saiba que a União foi obrigada a emitir títulos públicos para arrecadar os recursos que transferiu, na forma de ajuda financeira aos Estados e aos municípios. Assim, a receita maior dos Estados neste ano resultou de aumento do endividamento do Tesouro Nacional.

O impacto da pandemia nas receitas estaduais foi desigual. Na verdade, os Estados do Centro-Oeste e do Norte apresentaram ganho de arrecadação, provavelmente porque são grandes produtores de commodities agrícolas e suas economias não foram muito afetadas pela pandemia. As perdas ficaram com os Estados de Nordeste, Sul e Sudeste.

A arrecadação total de tributos de Mato Grosso, o maior produtor de grãos do país, por exemplo, aumentou 16,18% de janeiro a setembro, na comparação com igual período de 2019, de acordo com os dados do Confaz. Mesmo assim, o Estado recebeu um auxílio de R$ 1,485 bilhão da União (só com a LC 173). Com a ajuda, a receita total de Mato Grosso nos primeiro nove meses deste ano ficou em R$ 15,19 bilhões, um aumento de 28,8%, na comparação com a arrecadação do mesmo período de 2019.

Na região Norte, os maiores ganhos de arrecadação ficaram com Amazonas e Pará. O primeiro registrou aumento de 6,6% de janeiro a setembro, na comparação com o mesmo período do ano passado, de acordo com os dados do Confaz. O segundo ainda não divulgou os dados de setembro, mas a receita estava crescendo 6,62% até agosto.

Na região Nordeste, as maiores perdas ficaram com o Ceará (queda de 8,82%), Bahia (queda de 5,03%) e Rio Grande do Norte (menos 5,17%). No Sudeste, a receita total de Minas Gerais caiu 2,73%, a do Rio de Janeiro, 3,94%, e a de São Paulo, 2,76%. No Sul, a maior queda de receita foi de Santa Catarina, com menos 3,09%, de acordo com os dados do Confaz.

Todos os Estados que perderam receita foram mais do que compensados com o auxílio dado pela União, de tal forma que nenhum terá em seu caixa, neste ano, uma receita menor do que a obtida no ano passado, embora alguns tenham sido mais beneficiados do que outros pela ajuda federal.

Em conversa com o Valor, o secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, Henrique Meirelles, chamou atenção para o fato de que o pagamento das dívidas estaduais, que foi suspenso neste ano por causa da pandemia, será retomado em janeiro de 2021. “Isso vai acontecer em um quadro ainda de dificuldades”, observou. Para ele, embora a economia esteja em recuperação, está retomando em um nível mais baixo, o que impactará negativamente as receitas.


Maria Cristina Fernandes: Faísca, o SUS e o Rubicão dos liberais

Teto de gastos pode se mostrar curto demais para abrigar vacinas e empregos

Na segunda-feira, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, terminou, pelo Palácio do Planalto, uma agenda de visitas a autoridades em Brasília. Tratou de privatizações no BNDES e do socorro fiscal a seu Estado na Câmara dos Deputados. Com o presidente Jair Bolsonaro, resolveu acrescentar mais um tema, a vacina contra a covid-19.

Na entrevista que se seguiu, o governador conseguiu subir ao pódio do campeonato de disparates da atual temporada: “Sou de um partido liberal. Sou da opinião que quem quiser, deve se vacinar. Mas sou da opinião também que uma empresa que empregue mil funcionários exija, de alguém que trabalhe lá, que seja vacinado porque, caso contrário, ele pode representar risco para os outros. Então sou sempre favorável à liberdade do ser humano.”

Pela declaração do governador conclui-se que o dono da empresa que a comanda pelo zoom tem o direito de não se vacinar, mas ao funcionário do chão de fábrica resta apenas o dever de fazê-lo. Único governador eleito pelo Novo, Zema sugere um velho dilema: a liberdade do ser humano termina onde começa a necessidade de manter as empresas em funcionamento.

O ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-ministro e hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), viu na declaração do governador a “privatização do ordenamento jurídico”. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi além e identificou resquícios da “mentalidade escravocrata”. No dia seguinte, o governador voltaria a se pronunciar sobre a vacina num tom dois degraus abaixo dizendo que se tratava de um tema mais de “consciência do que de obrigatoriedade”.

A declaração de Zema foi a cereja de um falso debate. Desde o estabelecimento do Plano Nacional de Imunização, em 1973, as leis sobre o tema preveem algum grau de compulsoriedade - vide o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que criou o Bolsa Família ou até mesmo a primeira lei de enfrentamento da pandemia (13.379) em fevereiro deste ano.

Foi assim que o SUS, com um portfólio de 19 vacinas, uma das maiores ofertas públicas do mundo, chegou a erradicar doenças como poliomielite e varíola. Hoje enfrenta as notícias falsas, a fronteira com a Venezuela, o desaparelhamento de postos de saúde e o sucateamento da produção nacional para evitar que doenças como sarampo, já detectado em 21 Estados, voltem a se disseminar.

Nas pesquisas de opinião sobre a vacina da covid-19, a adesão supera 70%. Por isso, sanitaristas respeitados têm dito que não precisa obrigar a vacina, basta torná-la disponível e garantir que a população tenha acesso. Era assim que acontecia quando o tema era tratado acima das disputas políticas. O ex-ministro da Saúde e ex-governador José Serra (PSDB) posava vacinando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por quem havia sido derrotado.

Hoje o presidente da República sugere que só leva Faísca, seu cachorro, para se vacinar e diz que a cloroquina é mais importante que a vacina. Por outro lado, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que exibe a parceria da Sinovac com o Butantã como vitrine de sua guerra pela ciência, não desistiu de garfar a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Depois de recuo na Assembleia Legislativa, apresentou novo projeto (PL 627) para congelar 30% de seus recursos.

A guerra da vacina contaminou outros governadores, como Ratinho Jr (PSD), do Paraná, e Rui Costa (PT), da Bahia, que firmaram acordos com o instituto Gamaleya, para que as fábricas de seus Estados (Tecpar e Bahiafarma) produzam a vacina russa. O recuo federal na compra da Coronavac pelo SUS levou governadores a imaginar que poderiam repetir, com a vacina, os consórcios formados para a compra de ventiladores.

O alvoroço levou à precipitação do presidente do Supremo, Luiz Fux. Depois de ter provocado um surto da covid-19 na Corte com sua posse, o ministro resolveu que chegara a hora de convocar as partes a entrar na justiça. Se inexiste vacina, não dá para dizer que há direito sendo negado.

No afogadilho, a primeira vítima é a obviedade. Primeiro vem o estabelecimento dos critérios de eficácia e segurança testados pela Anvisa, depois a possibilidade de produção e fornecimento. Se ainda houver algo a ser definido que não conste da legislação, ou garantias que precisem ser reforçadas dada a presença do rei do agito no Palácio do Planalto, parece ser atribuição do Congresso e não do Supremo.

O alvoroço levou muitos a imaginar que poderiam replicar o atropelo dos ventiladores, quando a falta de coordenação nacional do Ministério da Saúde levou governadores a formar consórcios e outros, quadrilhas. Com vacina é diferente. Um Estado pode colocar uma equipe de médicos e fisioterapeutas para testar respiradores, mas não há como contornar o papel da Anvisa e do SUS na certificação e na distribuição da vacina.

Outra dificuldade é que não estão assegurados os recursos estaduais para um programa de imunização. Este sempre foi um gasto federal. Se os Estados tiverem que bancá-lo vai ficar difícil arrumar dinheiro para manter as Unidades Básicas de Saúde (UBS).

É este o pano de fundo da trapalhada desta quarta-feira em torno do decreto para estudar a viabilidade de parcerias público-privadas (PPIs) para a construção e gestão das UBS. O financiamento da saúde é um dos buracos negros do orçamento de 2021. Se o SUS não cabe no teto de gastos, não está claro como a terceirização de seus serviços pode vir a caber. Alguém vai ter que pagar a conta. O mais provável é que sejam aqueles que ganharão uma vacina do governador de Minas e perderão o emprego.

Do jeito que foi apresentado, o tema pareceu nascido de um governo que não sabe como enfrentará o ano que vem, quando se aproximará do que o ex-porta-voz da Presidência chamou de Rubicão. Pra quem achou que já tinha visto tudo, o general Otávio do Rêgo Barros, avisou que, para atravessá-lo, aquele a quem chamou de ‘governante piromaníaco’, ainda tem um arsenal de “atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade”.


Andrea Jubé: “A amizade supõe a confiança”

Três nomes revezam-se no entorno presidencial

A solução caseira para a reacomodação de quadros no Palácio do Planalto atesta que, embora o presidente Jair Bolsonaro tenha ampliado o leque de aliados ao se aproximar das cabeças coroadas do Centrão, o time de auxiliares em quem ele realmente confia é tão restrito que não lota um elevador na sede do Executivo federal.

Desde que se tornou presidente, um temor quase patológico de Bolsonaro é o de ser traído, ou abandonado, pelos aliados. A relação conflituosa, quiçá beligerante, com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e com o governador afastado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), dois veementes aliados na campanha eleitoral, a quem agora acusa de deslealdade, ilustra esse receio.

Por isso, desde o início do governo, o presidente escalou para postos estratégicos no palácio assessores de longa data, que a passagem dos anos de convivência promoveu ao patamar de amigos insuspeitos. “A amizade supõe a confiança”, escreveu André Maurois (1885-1967), biógrafo de Voltaire.

É nesse contexto que a recente reconfiguração dos espaços no entorno presidencial envolve três protagonistas, que convivem com o presidente, e seus filhos, há décadas: o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, que se despede do cargo para tomar posse no Tribunal de Contas da União (TCU); Pedro César Nunes Sousa, que assumiu a Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ) no lugar de Oliveira; e Célio Faria, que assumiu a chefia do gabinete presidencial, no lugar de Pedro.

Oliveira ascendeu a jato na República: a partir da vitória de Bolsonaro nas urnas, foi de assessor parlamentar a ministro do TCU em dois anos. Até quinta-feira, o major reformado da Polícia Militar do Distrito Federal acumulava o ministério com o posto de subchefe de Assuntos Jurídicos, umas das funções mais estratégicas ligadas à Presidência da República.

Quando foi alçado ao primeiro escalão, em junho de 2019, Oliveira manteve o cargo original, que exerceu desde o começo do governo. Para isso, a SAJ teve de ser deslocada da Casa Civil, sua pasta de origem, para a Secretaria-Geral.

O secretário especial de Assuntos Estratégicos, Flávio Rocha - outro quadro que Bolsonaro conhece dos tempos de parlamentar - é o mais cotado para assumir o ministério. Contudo, o posto-chave, de substituição mais delicada sempre foi a SAJ. Acabou sendo confiado a Pedro Nunes, ou simplesmente Pedro, como é conhecido internamente, por meio da nomeação publicada no “Diário Oficial” na quinta-feira.

Embora seja um cargo de segundo escalão, a SAJ trata-se, na verdade, de um posto que se equipara a um ministério, pela relevância do papel e influência junto ao presidente.

O titular da SAJ tem de ser da estrita confiança do presidente, porque terá trânsito livre no gabinete presidencial, dispensando-se, até mesmo, inclusão na agenda oficial. Despachará três, quatro vezes, ou mais por dia, com o chefe do Executivo para tratar da redação de projetos de lei, medidas provisórias, e discutir os vetos presidenciais.

O posto é tão estratégico que personalidades-chaves da República já o ocuparam. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Dias Toffoli têm a mesma trajetória: foram titulares da SAJ. Em seguida, foram nomeados para o comando da Advocacia-Geral da União (AGU) - Gilmar no governo Fernando Henrique, Toffoli no governo Lula. Depois da AGU, foram indicados para compor a Corte Constitucional.

O desafio de Bolsonaro era encontrar um nome com formação jurídica que desfrutasse de sua máxima confiança. Tarefa inglória, porque o laço de Jorge Oliveira com os Bolsonaro é muito singular. É notório que o capitão Jorge Francisco, pai de Jorge Oliveira, foi assessor e chefe de gabinete de Bolsonaro por 29 anos. Oliveira também foi assessor de Bolsonaro, e nos últimos anos, era chefe de gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

O nome de Pedro Nunes surgiu naturalmente porque ele sucedeu ao capitão Jorge Francisco na chefia de gabinete de Bolsonaro na Câmara. Major reformado da Polícia Militar, assim como Oliveira, Pedro é advogado, formado em Direito na Universidade Cidade de São Paulo (Unicid).

Por sua vez, para assumir o lugar de Pedro, na chefia do gabinete presidencial, Bolsonaro promoveu Célio Faria, que também foi seu assessor legislativo. Ex-assessor parlamentar da Marinha, Célio é economista, e até então, coordenava a assessoria especial do presidente.

O reconhecimento pelos anos de lealdade, dedicação e discrição transpôs os limites dos postos palacianos, levando Bolsonaro a também nomear Pedro e Célio para assentos concorridos nos conselhos das estatais e empresas públicas.

Até março deste ano, Pedro ocupou uma cadeira no Conselho Fiscal do BNDESpar, braço do banco de fomento, com remuneração de R$ 8,1 mil pelas participações nas reuniões. O valor reforçava sua remuneração mensal como assessor palaciano.

Célio Faria, por sua vez, exerce um dos cargos mais concorridos entre os políticos: uma vaga no conselho de administração de Itaipu Binacional, com remuneração de R$ 14,9 mil, valor que incrementa o salário de auxiliar palaciano. A vaga no conselho de Itaipu é tão concorrida que Célio a divide com dois veteranos da política nacional: o ex-ministro Carlos Marum (MDB) e o ex-deputado José Aleluia (DEM).

Vale sublinhar que o núcleo militar palaciano também é formado por velhos conhecidos de Bolsonaro. Sabe-se que o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos - no momento sob fogo cruzado do ministro Ricardo Salles, com amparo da área ideológica - foi contemporâneo do presidente na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).

Já o vice-almirante Flávio Rocha, que deverá suceder a Jorge Oliveira na Secretaria-Geral, frequentava o gabinete do deputado Bolsonaro quando era assessor parlamentar da Marinha - cargo que Célio Faria também exerceu.

No núcleo militar, um ponto fora da curva foi o ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, que Bolsonaro chamava de “irmão”. Mas não teve laço de sangue que o segurasse no cargo quando Bolsonaro cismou que a confiança já era.


Eric Posner: Crise constitucional a caminho nos EUA?

O direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública

Desde a eleição de Donald Trump em 2016, juristas como eu têm sido bombardeados por e-mails de jornalistas que querem saber se os Estados Unidos estão passando por uma “crise constitucional” ou caminham para ela. A maioria dos questionamentos tem sido motivada pelo desapreço do presidente às leis, incluindo sua interferência na investigação do promotor especial Robert Mueller sobre a interferência da Rússia nas eleições, seus ataques verbais a jornalistas e juízes e seus esforços para lançar investigações contra seus adversários políticos.

Uma crise constitucional, devidamente entendida como um ponto de inflexão que pode levar ao colapso ou transformação do sistema, não ocorreu. Mas tal crise parece agora cada vez mais provável. Não estou falando das eleições (embora elas possam produzir uma crise constitucional se o resultado for apertado, ou na improbabilidade de Trump de alguma forma se recusar a deixar o cargo). Na verdade, estou me referindo a uma crise que poderá ocorrer mesmo se Trump perder. Essa crise surgiria de uma tensão que existe ao longo de toda a história americana; isto é, entre os tribunais e um sistema de democracia que concede o poder máximo ao povo.

Até hoje houve duas crises constitucionais na história americana. Ambas envolveram um choque entre a Suprema Corte e autoridades eleitas apoiadas pela opinião pública. A primeira começou com o infame caso Dred Scott versus Sandford em 1857. Nesse caso, a Suprema Corte julgou que os afro-americanos não eram cidadãos dos EUA e que o Compromisso de Missouri de 1820 - que adiou a guerra civil ao fornecer uma fórmula para dividir o território entre Estados pró-escravatura e Estados pró-abolicionistas - era inconstitucional.

A decisão da Suprema Corte inflamou as tensões entre o Norte e o Sul e contribuiu para a Guerra Civil, em parte ao bloquear o caminho para um comprometimento. A crise constitucional que se seguiu ultrapassou o tempo de duração da guerra em mais de uma década, com a Suprema Corte continuando a enfraquecer a legislação e as emendas constitucionais que deveriam proteger os escravos libertos, e o Congresso retaliando com a retirada da jurisdição da Corte. A resolução definitiva confirmou a abolição da escravidão e a união dos Estados, mas preservou um sistema segregado no Sul.

A segunda crise aconteceu na década de 30, quando a Suprema Corte derrubou estatutos do New Deal que deveriam tratar da emergência econômica provocada pela Grande Depressão. Em 1937, eleito pouco antes com uma vitória esmagadora, o presidente Franklin D. Roosevelt propôs uma lei para aparelhar a corte com juristas pró-New Deal. Embora a proposta tenha sido derrotada, a Suprema Corte recuou, revertendo sua oposição à regulamentação econômica. Mesmo depois de Roosevelt ter conseguido preencher as vagas e garantir uma maioria simpática, a Suprema Corte permaneceria receosa por outros 20 anos.

Dada a exaltada volatilidade política atual, não há como saber exatamente que forma a próxima crise constitucional assumiria; no entanto, seu contorno geral começa a ficar aparente. Assim como nas disputas anteriores, o direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública. Desde os anos 80, decisões conservadoras vêm coagindo as regulamentações econômicas nacionais - repetindo a anteriormente desacreditada postura da Corte pré-1937 - e criaram o direito individual da posse de armas, fortaleceram os direitos religiosos, derrubaram restrições aos financiamentos de campanha, enfraqueceram as proteções às minorias raciais e corroeram o direito ao aborto.

À esquerda, a insatisfação com a Corte vem fervendo em fogo brando desde a década de 80, mas dois acontecimentos levaram essa raiva ao ponto de fervura em anos recentes. Primeiro, o Affordable Care Act (Obamacare), a conquista progressista que foi a marca dos últimos 20 anos, foi colocado sob grave ameaça. A lei foi confirmada por pouco pela Suprema Corte em 2012 e desde então ela vem sendo surrada por uma série de desafios jurídicos nas instâncias inferiores da Justiça. Se a Suprema Corte emitir decisões ainda mais desfavoráveis ao Obamacare, o futuro não só desse programa como também o de qualquer legislação progressista ambiciosa estará em dúvida.

Em segundo lugar, os democratas não confiam mais que os republicanos jogarão de acordo com as regras no que diz respeito a nomeações de magistrados, graças às reviravoltas dos republicanos nas nomeações para a Suprema Corte. Tendo se recusado até mesmo a apreciar a indicação de Merrick Garland pelo presidente Obama para a Suprema Corte em 2016, alegando a aproximação das eleições presidenciais, a maioria republicana do Senado agora se apressou para sabatinar a indicada por Trump, Amy Coney Barrett, menos de um mês antes das próximas eleições.

Essa má-fé, juntamente com a má sorte no “timing” do surgimento de vagas na Suprema Corte, praticamente garante que haverá uma maioria conservadora na Corte, capaz de bloquear as propostas legislativas democratas por pelo menos os próximos quatro anos - e provavelmente por muito mais tempo.

A combinação de uma Suprema Corte de direita com a visível má-fé dos republicanos encorajou os democratas a jogar duro. Muitos à esquerda querem que o adversário de Trump, Joe Biden, se comprometa a “aparelhar a corte” se ele for eleito. Isso significaria aumentar o número de assentos - supostamente de nove para treze - para que mais quatro juízes possam ser nomeados e assim criar uma maioria amigável de 7 a 6 para uma agenda liberal.

É difícil exagerar o significado dessa proposta. O plano de Roosevelt de aparelhar a corte sofreu uma derrota devastadora e causou um dano político duradouro à sua Presidência. Aparelhar a Corte é um ato radical, uma tática de déspotas. E a Suprema Corte continua relativamente popular entre a população. Mesmo assim, Biden, apesar de seus instintos moderados, não tem sido capaz de se afastar da ideia, sem dúvida por estar preocupado com a reação da ala esquerdista do Partido Democrata.

Mas o problema de Biden não é com a esquerda; é, ou será, com a Corte. Afinal, sua campanha vem se concentrando cada vez mais na promessa de serviços de saúde e numa resposta mais forte à pandemia - duas áreas com as quais os juízes conservadores vem demonstrando grande hostilidade. Assim, se Biden vencer as eleições e conseguir a maioria nas duas câmaras do Congresso - algo de que ele precisará para implementar qualquer plano de aparelhamento da Corte -, ele enfrentará um dilema. Se ele tentar aparelhar a Corte, corre o risco de perder apoio dos democratas moderados, aumentando a polarização política e prejudicando a posição da Corte aos olhos da população. Mas se ele não fizer isso, poderá acabar politicamente impotente.

Até mesmo Roosevelt ficou embaraçado demais para chamar seu projeto de lei de plano de aparelhamento da Corte. Em vez disso, ele alegou que os juízes mais velhos do Judiciário federal precisavam ser complementados por colegas mais jovens. Biden, longe de gozar da mesma popularidade de Roosevelt, não tem boas opções a não ser esperar que os juízes conservadores da Corte demonstrem bom senso e moderem sua hostilidade com a legislação popular e as ações do governo.

John Roberts, presidente da Suprema Corte, demonstrou até aqui que isso é possível. Mas com a adição de Barrett à Corte, Roberts poderá se ver em minoria. E se Barrett unir-se aos outros quatro conservadores linha-dura em anular a determinação de um governo democraticamente eleito, a crise constitucional decorrente poderá levar anos para ser resolvida. (Tradução de Mário Zamarian).

*Eric Posner, professor na Universidade de Chicago, é autor de The Demagogue’s Playbook: The Battle for American Democracy from the Founders to Trump (All Points Books, 2020). Copyright: Project Syndicate, 2020.


Bruno Carazza: Dando nome aos bois

Processo sobre imposto sobre doações é exemplo de concentração de renda

No início dos anos 2000, uma notinha da coluna Radar, na revista Veja, contou que um ascendente empresário de São Paulo, mostrando-se interessado em comprar um jatinho Gulf Stream de última geração, perguntou a Abílio Diniz sobre os custos de manutenção da aeronave. O então dono do Grupo Pão de Açúcar teria respondido nos seguintes termos: “Se você se preocupa com esse tipo de questão, certamente ainda não está preparado para ter um avião como esse”.

De acordo com os registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existem 46 jatinhos Gulf Stream voando pelos céus brasileiros. Quatro deles são modelos da sexta geração, cujo preço se situa acima de US$ 60 milhões, e foram comprados ou arrendados pelas famílias Diniz, Oliveira Andrade (Caoa) e Sanchez (farmacêutica EMS), além de uma empresa de táxi aéreo.

O que pouca gente sabe é que a propriedade de jatinhos de luxo não é tributada no Brasil graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007. Valendo-se de um malabarismo semântico e de uma frágil interpretação da evolução histórica da legislação, o ministro Gilmar Mendes convenceu a maioria de seus pares de que a determinação da Constituição de instituir impostos sobre a “propriedade de veículos automotores” (art. 155, III) só se aplica a veículos terrestres, não devendo ser estendida a aeronaves e embarcações (RE 379.572-4). A partir daí, ao contrário dos pobres mortais que pagam IPVA sobre seus carrinhos, os jatos, helicópteros, iates e lanchas dos multimilionários estão isentos.

Na última sexta (23/10) a instância máxima de nosso Judiciário iniciou um julgamento que pode ratificar uma nova benesse para os 0,001% mais ricos. Amparando-se numa ambivalência de outro dispositivo constitucional (desta vez o art. 155, § 1º, inciso III, alínea a), algumas das famílias mais ricas do Brasil recorreram ao STF para não terem de pagar tributos sobre recursos transferidos ou gerados no exterior por seus patriarcas e que agora retornam ao país na forma de doações a seus herdeiros. Alegando que o Congresso Nacional não aprovou uma lei complementar que deveria tratar da cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) quando o doador tiver residência no exterior, nossos bilionários pretendem ratificar uma lucrativa estratégia de planejamento sucessório.

As alíquotas do imposto sobre heranças e doações no Brasil situam-se na faixa de 4% a 8%, a depender do Estado. Trata-se de um patamar bem inferior ao de países como Japão, Coreia do Sul, França, Inglaterra e Estados Unidos, onde superam 40%. No entanto, são tantas as isenções e regras especiais criadas justamente para beneficiar os mais abastados, que a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem defendido sua completa reformulação, mudando sua incidência do doador para o recebedor das transferências de renda intrafamiliares. De acordo com a proposta, o valor recebido como herança ou doação deveria ser considerado renda, e taxado na fonte com alíquotas bem mais altas.

Por aqui, em vez de ampliarmos o debate por uma maior igualdade e progressividade na tributação, as discussões sobre a reforma são interditadas pela gritaria de setores que se dizem prejudicados com as PECs que criam um Imposto sobre Valor Agregado de alíquota única e simplificada, aplicado de forma justa e igualitária para todos os bens e serviços. E enquanto a reforma tributária empaca no Congresso Nacional, o topo do topo da pirâmide de distribuição de renda recorre ao Judiciário para sacramentar seu “planejamento tributário” que envolve remessas de valores para paraísos fiscais e sua posterior repatriação sem imposto, com o consentimento do STF.

Quando estudamos as causas do subdesenvolvimento das nações, as elites econômicas e políticas são frequentemente apontadas como responsáveis pela criação de mecanismos que levam à concentração de renda e de poder nas mãos de poucos, em detrimento de milhões. Mas na maioria das vezes as críticas ocorrem em bases genéricas, sem apontar quem são essas elites e tampouco quais engrenagens elas utilizam.

No caso específico do julgamento do ITCMD sobre as heranças, temos uma rara oportunidade de dar nome aos bois. No parágrafo anterior, onde está escrito “elite econômica”, segundo levantamento feito pelas repórteres do Valor Joice Bacelo, Beatriz Olivon e Adriana Cotias, estamos tratando dos herdeiros das famílias Safra, Depieri (laboratórios Aché), Steinbruch (CSN), Bellini (Marcopolo) e os já citados Diniz, entre outros.

Já no polo da “elite política” estão os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, que pode ratificar mais esse episódio de concentração de renda (RE nº 851108). Aliás, o relator Dias Toffoli já votou em parte favorável à tese dos mais ricos - o processo foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

As estimativas indicam que, só no Estado de São Paulo, esse presente para os bilionários pode passar de R$ 60 bilhões. Essa é a medida de mais um episódio explícito de benefícios concentrados para poucos e custos difundidos por toda a sociedade - afinal, todos nós acabaremos pagando o pato por essa perda fiscal, seja por meio do aumento de outros tributos, com juros mais altos ou uma maior inflação.

É bem verdade que nossa Constituição garante a qualquer pessoa recorrer ao Judiciário quando entender que seus direitos estão sendo lesados. Mas quando empresários bilionários se valem da Justiça para pagar menos impostos, eles perdem a legitimidade de reclamar do tamanho da carga tributária no Brasil e de suas distorções, pois eles são ampliados muitas vezes por privilégios criados em seu benefício.

Também não dá mais para admitir que a cúpula do Judiciário se valha de interpretações literais das normas para agravar um sistema de concentração de renda que se perpetua por décadas.

O caso da isenção da cobrança do ITCMD sobre a repatriação de recursos do exterior é mais um exemplo do mecanismo de concentração de renda brasileiro funcionando em toda a sua extensão.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Claudia Safatle: O mercado de trabalho e o temor da crise fiscal

Qualquer ação do governo só virá depois das eleições

Assessores do Ministério da Economia têm conversado com o ministro Paulo Guedes sobre a necessidade de o governo dar sinais claros do que pretende fazer para estimular o mercado de trabalho em 2021. Em dezembro termina o pagamento do auxílio emergencial para 66 milhões de brasileiros. O impacto, sobre a atividade, do fim da transferência desses recursos, com custo mensal próximo a R$ 50 bilhões, não será trivial e tem o poder, inclusive, de frear a retomada da economia.

Das conversas, em princípio, ficou a intenção de Guedes divulgar sua estratégia, diagnóstico e objetivos para o ano que vem tão logo se saiba o resultado das urnas em novembro.

“Temos que bater com o gato morto na cara da sociedade e da classe política”, disse uma fonte oficial. “Não é preciso ser adivinho para saber que estamos tendo uma crise no mercado de trabalho e temos que ter uma política para facilitar o processo de acesso ao emprego”, completou, citando a desoneração da folha de salário das empresas e a sua contrapartida, que é a criação do Imposto sobe Transações, “goste ou não a Faria Lima”, afirmou.

A proposta de desoneração da folha tem como base o diagnóstico de que a oferta de emprego é escassa porque ele é caro. Outra ideia que também se fundamenta nesse diagnóstico é a de segmentar os setores mais vulneráveis, sobretudo os jovens. “Essa população excluída precisa de regras simplificadas de contratação destinadas a ela”, disse, listando, também, a criação da Carteira Verde Amarela como uma rampa de acesso ao mercado livre dos principais encargos trabalhistas. “Não vamos mexer com o restante do mercado de trabalho”, assegurou.

Há, ainda, o programa de qualificação com o microcrédito que começou com as “maquininhas” e que, a partir de agora, deve aumentar de escala. E, por fim, completou: “Temos os marcos regulatórios de concessões que trazem investimentos geradores de empregos que hoje estão presos para atender aos interesses do establishment, que sempre se alimentou de obras públicas”.

É importante que Guedes trace o caminho para a retomada da economia com começo, meio e fim, com foco no mercado de trabalho que é, hoje, uma das principais raízes da iminente crise fiscal. Essa é uma das grandes incertezas que levam os mercados a exigir, a cada dia, mais prêmios para financiar a rolagem da dívida pública interna

Tem havido, nos últimos meses, uma intensa discussão sobre a criação de um programa de renda básica no pós-pandemia da covid-19, para atender às famílias em condições de pobreza ou de extrema pobreza, em função do fim do auxílio emergencial. Seria uma ampliação do Bolsa Família provavelmente com um novo nome para dar ao governo Bolsonaro uma marca do lado social. O presidente ficou entusiasmado com a popularidade adquirida com a criação do auxílio emergencial e quer repetir a dose com um programa de renda permanente.

Parece claro que o programa atenderia apenas uma fração das 66 milhões de pessoas inscritas no auxílio emergencial, por limitações fiscais. A situação de penúria de recursos se complica ainda mais com a aceleração inflacionária recente que deverá pesar sobre as despesas não obrigatórias do Orçamento do próximo exercício.

“A resolução das expectativas em relação a um eventual programa de transferência de renda para os mais pobres adquire urgência pela incerteza fiscal que a atual ambiguidade pode criar, trazendo o risco do atual impulso de retomada da economia vir a se dissipar por conta dessa incerteza”, conforme chamou a atenção o relatório da semana passada do banco Safra.

“Com a proximidade do fim do auxilio emergencial, cuja última parcela será paga em dezembro deste ano, a confiança do consumidor e o apetite dos investidores poderão ser negativamente afetados, até pelo pouco tempo que será deixado para o governo e o Congresso votarem o Orçamento de 2021”, assinalou o relatório.

O tamanho do auxílio emergencial - que começou com três parcelas de R$ 600 que foram prorrogadas por mais dois meses e depois, reduzido para R$ 300 nos três últimos meses do ano - teve papel crucial na expansão da demanda doméstica no terceiro trimestre do ano, com impacto notável sobre a capacidade de enfrentamento da população à pandemia e sobre a atividade econômica, que deve encerrar o execício com uma recessão menor do que a originalmente esperada. Algo em torno de -5%, segundo o boletim Focus, do Banco Central, desta semana, face à projeção de -9,1% feitas no auge da pandemia pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O FMI reviu seus prognósticos para uma recessão, no Brasil, em torno de 5,8%.

Para ter uma ideia da dimensão e amplitude do auxílio emergencial cujo gasto mensal está em torno de R$ 50 bilhões, o Bolsa Família custa por mês R$ 2,5 bilhões.

O projeto de lei do Orçamento para 2021 tem um espaço para aumento de 18,2% do Bolsa Família, suficiente para elevar o número de famílias assistidas dos atuais 14,2 milhões para pouco mais de 16 milhões. Se for pouco, o governo pode pedir um crédito extraordinário no ano que vem para abrigar mais famílias, nos termos do artigo 167 § 3º da Constituição, sugere um economista que deixou o governo recentemente.

No mercado, há a percepção de que a simples retirada do auxílio à partir de janeiro pode não só frear a recuperação da economia mas levar o país a uma segunda recessão. Razão pela qual há grande expectativa de um posicionamento da área econômica do governo em relação à estratégia que o ministro Paulo Guedes pretende imprimir para o enfrentamento da crise no mercado de trabalho privado e, por que não, para uma revisão dos benefícios do mercado de trabalho do setor público.

A questão do emprego está na gênese de uma temida crise fiscal, que se traduziria na dificuldade do Tesouro Nacional de honrar seus compromissos. É hora de o governo acalmar os mercados.


Fernando Abrucio: Aspectos centrais das eleições 2020

A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas

Toda eleição tem uma história própria, determinada por sua dinâmica territorial, pelo regramento institucional vigente e pelos elementos conjunturais que a influenciam. A disputa municipal de 2020 pode, até o momento, ser compreendida por cinco aspectos que delimitam sua peculiaridade: a redução do debate eleitoral, o choque entre as inovações e a força da política tradicional, os imensos desafios que aguardam os prefeitos eleitos, a percepção cada vez maior do mosaico que caracteriza os pleitos locais e, por fim, um cenário político nos grandes centros que não é o mais favorável às duas grandes forças eleitorais do país - o bolsonarismo e o petismo.

O primeiro aspecto a ressaltar não é alvissareiro à democracia: nunca houve tão pouco debate numa eleição brasileira desde o fim da ditadura militar. Na disputa municipal de 2020, os políticos falam menos ao povo, discutem menos entre si e disputam com dancinhas no TikTok a atenção de gente que está mais preocupada com memes. Esse fenômeno é resultado de uma tendência mais recente de mudanças no regramento eleitoral, da dificuldade de se montar discussões entre candidatos na mídia eletrônica e dos efeitos da pandemia.

Já faz quase uma década que o país tem optado, paulatinamente, pela redução do tempo de campanha e pela diminuição da duração do horário eleitoral gratuito. Para defender essa proposta, argumentava-se que o processo eleitoral tinha um custo excessivo, algo que gerou, em décadas, vários escândalos de corrupção. Essa proposição não deixa de ser em parte verdadeira, mas para uma eleição local, em que não há tanta exposição na mídia das principais disputas (a não ser na reta final), essa lógica pode beneficiar os que já têm cargos eletivos e os candidatos mais conhecidos, gerando uma barreira de entrada aos que venham de fora e que apresentem ideias novas, embora não necessariamente boas.

Junta-se a esse fato a ausência de debates na mídia eletrônica nos principais centros urbanos do país. De fato, por conta da legislação eleitoral e da grande quantidade de postulantes às prefeituras, não é fácil organizar algo minimamente adequado ao formato da TV e do rádio. Mas esse problema deveria ser mais bem discutido pela imprensa e por todos aqueles que reclamam cotidianamente de nossa democracia nos meios de comunicação de massa, especialmente porque concessões públicas deveriam servir mais como canais de informação à população, o que numa eleição exige o confronto de ideias.

Obviamente que a pandemia piorou esse cenário de falta de debates e de redução do diálogo dos políticos locais com a população. Não se pode esperar, por razões de saúde pública, que a campanha seja como antes. Mas quando isso se soma aos dois elementos anteriores, temos uma eleição municipal que beneficia mais os incumbentes, atrapalha a entrada de novas ideias e dificulta a comparação das propostas.

E aqui entra o segundo aspecto definidor dessa eleição municipal: há um choque entre propostas inovadoras de campanha eleitoral, em termos de forma e conteúdo, e um modelo político mais tradicional, que vai além do conservadorismo das ideias e se baseia, principalmente, na força dos partidos e políticos já estabelecidos há mais tempo no jogo eleitoral.

Deve-se destacar as várias tentativas de inovação na atual campanha. Cresceram as candidaturas coletivas, os temas novos e vinculados a várias injustiças sociais do país, os concorrentes ligados a movimentos de renovação política, a ascensão de pessoas vindas de movimentos da periferia, em suma, surgiram propostas e nomes que vão dos liberais à esquerda. Não se trata de dizer que esses grupos tenham as melhores ideias, mas choques exógenos ao sistema político têm a qualidade de obrigá-lo a buscar o aperfeiçoamento.

O mais provável, entretanto, é que tais inovações tenham menor impacto do que o peso da política tradicional nesta eleição municipal. É bem surpreendente esse cenário depois de um pleito nacional, o de 2018, onde o discurso da antipolítica e da renovação tenha sido hegemônicos. Além da falta de debates e da pandemia, mais dois pontos podem ser acrescentados para explicar a força da política tradicional no pleito local. O primeiro é a capilaridade dos partidos do centro para a direita em boa parte dos municípios brasileiros, especialmente nos menores. É como se fosse uma alma profunda de peemedebismo (ou arenismo) que povoa grande parte do país.

Derivado de uma reforma institucional recente, outro elemento pode favorecer esse status quo: o fim das coligações em eleições proporcionais, cujo primeiro teste está sendo feito agora. A grande maioria da opinião pública defendia essa mudança, como uma forma tanto de distribuir mais fielmente as cadeiras segundo os votos dados, quanto de reduzir um multipartidarismo de certa maneira artificial, que aumentava o custo para a formação dos governos sem necessariamente aumentar a representatividade dos diversos setores sociais. É inegável que esses efeitos são positivos e poderão ficar mais claros no pleito nacional de 2022.

Mas também está acontecendo o que o cientista político Guilherme Russo, pesquisador do FGV/Cepesp, apontou com precisão em recente artigo na “Folha de S. Paulo”: a redução do número de partidos que lançam candidatos. Esse resultado favorece as agremiações partidárias mais tradicionais e sua organização mais fechada a novos atores e ideias. Claro que não se pode dizer que quem vem de fora do sistema seja, por definição, sempre melhor do que os mais experientes. O discurso da novidade já foi muito usado para gerar enormes retrocessos em vários momentos históricos. Não obstante, o atual cenário produz algo diferente: há uma enorme desigualdade competitiva e pouquíssimo espaço genuíno de debate entre os incumbentes ou os que têm longa vida no jogo político em contraposição aos que concorrem pela primeira vez e/ou defendem projetos diferentes dos vigentes. Tal disparidade não é boa para a democracia.

A tendência à maior continuidade dos atores políticos no plano local ocorre num momento de grandes desafios aos futuros prefeitos. O quadriênio que começará em 2021 será um dos mais difíceis, senão o mais difícil, desde que os municípios ganharam um novo status político, de maior autonomia, na Constituição de 1988. Este é um terceiro aspecto essencial dessa eleição. O que está em jogo é eleger um governante capaz de reconstruir as principais políticas públicas locais diante dos efeitos da pandemia. Essa tarefa será muito complicada em questões como a educação, a assistência direta aos grupos sociais mais vulneráveis e o apoio à economia local. Ora, se o quadro eleitoral aponta para pouco debate, como os eleitores poderão se informar adequadamente para escolher a proposta mais correta para enfrentar quatro anos difíceis?

Embora haja uma situação comum de grande adversidade, os municípios partem de patamares bem diferentes. No plano eleitoral, também existe uma diversidade federativa muito grande, de modo que é sempre mais correto falar no plural das eleições municipais, pois há variados jogos políticos em questão. De um lado, existem 2.069 cidades que só terão dois candidatos a prefeito e, por incrível que pareça, 117 municipalidades terão apenas um concorrente à prefeitura. Esse cenário pouco ou nada competitivo abarca cerca de 40% dos municípios do país. Mas, de outro lado, as cidades com mais de 50 mil habitantes e, sobretudo, as principais capitais devem gerar um cenário multipartidário de possíveis eleitos.

Os resultados das urnas tendem a consagrar um mosaico pluripartidário de vencedores nesta eleição municipal. Claro que as forças mais tradicionais do centro para a direita tendem a eleger mais prefeitos nas cidades até cinquenta mil habitantes, e nas capitais haverá uma variação maior. De toda maneira, o que importa destacar aqui como quarto retrato da disputa de 2020 é que provavelmente não haverá nenhum grande vencedor, seja partidário ou de discurso uniformizador (como o do antipetismo de 2016).

Mesmo sem ter um vencedor indiscutível, o cenário da maioria das capitais aponta para um último aspecto, esse sim com possíveis consequências para as próximas eleições presidenciais. Onde há segundo turno, geralmente há pouquíssimas chances para um candidato bolsonarista ou petista vencer o pleito. Na verdade, o PT já está mal em suas posições no primeiro turno, enquanto o antibolsonarismo é, no mais das vezes, maior do que o bolsonarismo nos principais colégios eleitorais municipais, tornando o segundo turno um túmulo para o jogo da polarização.

Todos os candidatos que disputam o favoritismo no segundo turno têm em comum o fato que estão se inclinando mais para o centro. Isso não define o que ocorrerá em 2022, porém traz duas consequências para o jogo futuro. A primeira é que, a despeito de Lula ser uma grande liderança nacional, o enfraquecimento do petismo no pleito municipal reduz sua hegemonia sobre as demais forças de esquerda e centro-esquerda. Além disso, o bolsonarismo parece ser incapaz de vencer segundos turnos em que há algum arranjo político mais centrista. A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


César Felício: Derrota quase certa

Politização da vacina pode ser barrada no STF

A não ser que o presidente desmanche com o cotovelo o que escreve com a mão, Jair Bolsonaro talvez tenha contratado uma derrota ao proclamar que rejeita vacinas contra a covid-19 oriundas da China ou que possam de um modo ou outro beneficiar o tucano João Doria.

O problema por ora não existe, por ainda não existirem vacinas. Mas na hora que se chegar a elas, é quase impossível impedir, dosar, ou retardar, ou direcionar politicamente a vacinação em massa da população brasileira.

Horas depois de Bolsonaro desautorizar seu ministro da Saúde, governadores avisaram que, no limite, quem vai decidir a questão é o Supremo Tribunal Federal. A julgar pelo retrospecto de decisões do STF sobre pandemia e sobre saúde pública, é provável que Bolsonaro se depare com uma ordem do Judiciário para que a União compre toda e qualquer vacina de eficácia comprovada pela Anvisa para o programa nacional de imunizações.

Em 16 de abril, o STF decidiu, por exemplo, que Estados e municípios podiam estabelecer normas próprias para a pandemia, impedindo que o presidente forçasse o comércio a reabrir contra a vontade dos governos regionais. Não foi uma votação apertada, foi por unanimidade.

Pode-se argumentar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estaria aparelhada ideologicamente pela extrema-direita e irá recusar a autorização do uso no Brasil da Coronavac por motivos de ordem política. Em se tratando de Bolsonaro nada pode ser descartado, mas como órgão técnico, a Anvisa precisa dar uma justificativa técnica. Qual seria? É uma questão que os bolsonaristas precisam responder antes de dar o seu golpe da caneta.

Conspiram contra a politização do tema as consequências que o país sofreria caso a vacinação se torne parte da guerra cultural, e essa é a força do argumento dos governadores.

Um risco é o que o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), chama de “cenário hobbesiano”: a Anvisa autoriza a Coronavac, o governo não compra a vacina, e cada governador vai à luta, ombro a ombro com o setor privado, em uma distópica guerra de todos contra todos. “Isso significa que os critérios para compra não serão uniformes e os problemas que existiram para a aquisição de respiradores podem se replicar para garantir o acesso à vacina”, disse.

A ausência do Ministério da Saúde no processo de capacitação do sistema público para poder atender os enfermos, como se sabe, rebaixou a tomada de decisão para Estados e municípios e abriu a porta para o descontrole: houve até importadoras de vinhos comprando respiradores, entre outras aberrações. Com a vacina, o descontrole pode ganhar escala geométrica.

Se a Anvisa não autorizar a Coronavac por problemas políticos, pode ser instalada uma crise entre China e Brasil, na visão do governador da Bahia, Rui Costa (PT). “A economia brasileira, o nosso agronegócio, é capaz de suportar uma retaliação chinesa?”, indaga o petista.

Caso a vacinação brasileira atrase em comparação com o processo de outros países, o Brasil dependerá da imunização de rebanho para sair da pandemia e ficará para trás. Estará desguarnecido quando vier a segunda onda de contaminação, que virá. O setor privado será afetado, na visão de Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo. “É mais tempo perdido para voltar à atividade plena”, argumentou.

Como o presidente definitivamente não é tolo, torna-se um desafio tentar entender o porquê do movimento. A hipótese menos arriscada é a do cálculo político imediato: provocando uma tremenda confusão em um primeiro momento, Bolsonaro impede um ganho claro para o governador paulista em um momento em que decidiu se imiscuir na eleição municipal. A capitalização que Doria tenta fazer de seu protagonismo na questão da vacina é clara.

Na outra ponta, reforça a narrativa contra o vírus chinês, propagada por seu inspirador, Donald Trump, em um momento em que os republicanos estão nas cordas dos Estados Unidos. De quebra, o presidente reencanta a parte de seus seguidores que vive no mundo mágico das conspirações da internet. Os fascistas do YouTube tinham caído das nuvens com a indicação de Kassio Marques para a Suprema Corte.

A ser isso, Bolsonaro operou no curto prazo. Quantos brasileiros a mais morrerão por causa dessas tertúlias políticas, nesta ótica, é um mero detalhe.

Fome

Recluso desde março, o escritor e ativista Frei Betto lança seu “Diário da Quarentena”, pela Editora Rocco. É uma das primeiras reflexões organizadas de um pensador da esquerda sobre o processo que o mundo inteiro vive.

O irmão leigo dominicano não é otimista em relação ao fim próximo da pandemia. Lembra que na história das vacinas a que teve seu ciclo mais rápido foi a da caxumba, que demorou quatro anos para ser desenvolvida. Mas projeta a vista adiante, dimensionando uma das catástrofes que devem ganhar impulso com a pandemia: a fome generalizada. “A pandemia atinge a todos e leva ao gasto de bilhões e bilhões de dólares. A fome mata muito mais, mas não atinge a todos. Ela incide sobre os mais pobres e reforça a desigualdade. Ela faz distinção de classe”, diz.

Neste sentido, a entrega este ano do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Alimentar da ONU foi um alerta definitivo. O agravamento da fome, em escala planetária, será uma consequência incontornável da covid-19.

Frei Betto acha que, diante de tamanho desafio, é míope entender que a manutenção ou não de um auxílio emergencial robusto está condicionada ao quadro fiscal de cada nação. A perenização de um auxílio emergencial para os mais vulneráveis tende a se tornar uma bandeira universal e abalar sistemas políticos em todo o globo.

No caso do Brasil, Frei Betto considera que a pandemia teve um efeito político claro: deixou a oposição brasileira à mercê de variáveis que não controla e que não pode, por uma questão de integridade moral, torcer para o quanto pior melhor.

“O governo está com a hegemonia narrativa. Os panelaços silenciaram. O auxílio emergencial faz parte da explicação disso e não há como a esquerda se contrapor”.

Bolsonaro com o auxílio emergencial foi acolhido pelos que não votaram nele. “Em 13 anos de poder o PT não fez a alfabetização política do povo. O bebê do pobre chora de fome e não tem resposta. Isto é uma trava. Colabora com o conformismo. São 120 milhões que ganham até dois salários mínimos. É muita pobreza e este contingente fica acondicionado a acolher tudo o que vier.”


Ribamar Oliveira: Mais uma renegociação de dívidas a caminho

Projeto substitui e amplia o “Plano Mansueto”

Um projeto de lei complementar que deverá ser colocado em votação na Câmara dos Deputados em novembro vai alterar três leis complementares, três leis ordinárias e uma medida provisória. Ele prevê uma nova renegociação das dívidas estaduais com a União e estabelece condições para que os Estados classificados com capacidade de pagamento “C” pelo Tesouro Nacional possam realizar novas operações de crédito, com aval da União. Atualmente, existem 13 Estados com essa classificação de risco.

O projeto de lei complementar 101/2020 é de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) e substitui e amplia o escopo do chamado “Plano Mansueto” (PLP 149/2019), que foi encaminhado pelo governo ao Congresso no ano passado, mas que não chegou a ser votado.

O objetivo do plano, que leva o nome do ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, era justamente estabelecer condições para que os Estados classificados como “C” pudessem fazer novas operações de crédito, com aval da União. O PLP 149 terminou sendo transformado, na Câmara dos Deputados, em um seguro-receita aos Estados e municípios, com validade durante a pandemia da covid 19, o que foi rejeitado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e enterrado pelo Senado.

Agora, ele retorna como PLP 101, de autoria do ex-relator do “Plano Mansueto”. O deputado Pedro Paulo disse ao Valor que, passada a pandemia, quando a União transferiu diretamente recursos aos Estados e municípios, é preciso garantir crédito para que os governos estaduais e prefeituras possam realizar investimentos e bancar despesas correntes. “O PLP 101 autoriza novas operações de crédito, condicionadas à adoção de medidas de ajuste fiscal”, explicou.

O projeto de Pedro Paulo, no entanto, é bem mais amplo do que o “Plano Mansueto”. Ele prevê, por exemplo, uma nova renegociação das dívidas estaduais. Mesmo antes da pandemia, vários Estados conseguiram liminares no Supremo Tribunal Federal (STF) para não pagar as suas dívidas com a União.

Pela proposta em análise, os débitos serão incorporados ao saldo devedor e pagos em 240 meses, segundo informou o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), relator do PLP 101. Ele disse que as dívidas do Rio de Janeiro também serão renegociadas, com prazo de pagamento de 20 anos. Apenas durante a vigência do Regime de Recuperação Fiscal, o deputado disse que o Rio acumulou dívidas no montante de R$ 52 bilhões. “Ainda estou fazendo o levantamento do total dos débitos estaduais que serão renegociados”, disse Benevides. “O montante é impressionante”, afirmou.

O PLP 101 muda o Regime de Recuperação Fiscal (instituído pela Lei Complementar 159), com o objetivo de criar condições para que outros Estados, além do Rio de Janeiro, possam aderir ao programa. Para isso, o Estado precisará cumprir, simultaneamente, três exigências: ter sua dívida consolidada maior que a receita corrente líquida, ter o valor de suas obrigações superior às disponibilidades de caixa e gastar com pessoal mais do que 60% de sua receita corrente líquida ou sua despesa corrente ser superior a 95% de sua receita corrente líquida. Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Goiás estão na lista de Estados que poderão aderir ao regime.

Benevides Filho informou também que o projeto vai mudar o prazo de duração do regime, que passará dos atuais seis anos para até oito anos, e as condições de pagamento dos débitos, que começarão a partir do segundo ano da adesão, com 10%, aumentando o percentual progressivamente. Outra alteração importante é que o governo estadual não precisará mais privatizar suas estatais para fazer caixa, podendo vender apenas 49% do capital e, com isso, manter o controle da empresa.

Os Estados com classificação de risco “C” que quiserem fazer novas operações de crédito, com aval na União, terão que pactuar um Plano de Promoção ao Equilíbrio Fiscal (PEF), que será instituído pelo PLP 101. Para isso, eles terão que implementar pelo menos três das sete exigências que constam da LC 159. O PEF terá metas fiscais e compromissos a serem aceitos pelos Estados. Cada um deles terá limite individualizado de endividamento.

“Os Estados terão que sofrer um arrocho para ajustar as suas contas”, advertiu Benevides Filho, em conversa com o Valor. Em seu parecer, ele pretende exigir que os Estados cortem os seus incentivos fiscais em 10% ao ano, durante três anos.

O PLP 101 muda também a Lei Complementar 101, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Umas das alterações está relacionada com a forma de cálculo da despesa com pessoal. A proposta que o parlamentar cearense estuda é incluir na despesa com pessoal os gastos com aposentados, pensionistas e os aportes de fundos feitos pelos Estados para cobrir o déficit previdenciário.

No caso da lei complementar 156, será dado aos Estados um prazo de mais três anos para que eles se enquadrem no teto de gastos, com as despesas podendo crescer apenas pela variação da inflação. Mesmo assim, Benevides pretende estabelecer que os Estados poderão deduzir o “excesso” das vinculações com saúde e educação, para efeito de apuração do teto.

Hoje, governos estaduais são obrigados a destinar 25% de sua receita para educação e 12% para saúde. “Se a receita do Estado subir 10% e a inflação for de 3%, a despesa com saúde e educação vai aumentar mais do que a inflação”, explicou. “Há um excesso que precisa ser excluído para o cálculo do teto.” O relator explicou que a União não tem esse problema pois, desde que adotou o teto de gastos, suas despesas com saúde e educação não estão mais vinculadas à receita. O teto estabelece que o gasto mínimo com saúde e educação é o mesmo do ano anterior, corrigido pela inflação.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), colocou o PLP 101 na lista de prioridades para votação ainda neste ano. Benevides disse ao Valor que o seu parecer estará pronto para ser votado no dia 4 de novembro.

Questionado pelo Valor, o Ministério da Economia não quis dizer se está sendo consultado sobre o PLP 101.