vacinação

Evandro Milet: Livros, uma vacina contra a ignorância

Steve Jobs vivia e respirava música. Era um fã incondicional de Bob Dylan e dos Beatles e já tinha namorado Joan Baez, cantora famosa na época. Seu interesse pessoal guiou as estratégias da Apple em música, basta lembrar do iPod e iTunes. O interesse pessoal de Jeff Bezos também teve forte influência na Amazon. Bezos não apenas amava livros; ele mergulhava neles, processando cada detalhe metodicamente.

No apêndice do livro A loja de tudo”, que conta a história da Amazon, há a lista de leitura de Jeff incluindo, entre outros, “O dilema da inovação” de Clayton Christensen, “A lógica do cisne negro” de Nassim Taleb, “Empresas feitas para vencer” e “Empresas feitas para durar”, ambos de Jim Collins, que se tornou grande consultor da empresa. Aliás também consultor fundamental da equipe de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles em seus sonhos grandes na Ambev.

Bill Gates, criador da Microsoft, é outro leitor compulsivo. A imprensa costuma publicar sua lista de recomendação de livros, mais ampla inclusive que apenas obras de gestão e tecnologia.

O livro de Daniel Bergamasco “Da ideia ao bilhão”, conta a história dos unicórnios(startups que atingem valor de mercado de um bilhão de dólares) brasileiros. Em duas das histórias os livros também desempenham papel fundamental nos processos de gestão, incentivados pelos fundadores. Na fintech Stone a seleção de empregos é feita com uma lista de livros com sete títulos à escolha dos candidatos. Em um dos processos constavam o já citado “Feitas para vencer” e “Por que fazemos o que fazemos” de Mário Sérgio Cortella. Até alguns anos atrás só havia uma obra, “Paixão por vencer” , do icônico Jack Welch, ex-CEO da GE.

O objetivo é ler, entender, interpretar e estabelecer conexões entre os conceitos apresentados e as próprias crenças. “Estudar é uma forma de esticar as pessoas” dizem na Stone. Num livro os autores reúnem o aprendizado de uma vida em algumas páginas, diz André Street, fundador da Stone, que até hoje separa duas horas diárias para estudar. Como ele diz, começou lá pelos 12 anos de idade a encarar livros de auto-ajuda, como “Mais esperto que o diabo” de Napoleon Hill e “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie.

Na unicórnio Arco Educação, o CEO Oto de Sá Cavalcante, um devorador de livros de diferentes estilos, premia as melhores resenhas sobre títulos indicados a cada ano, que vão de “Foco” de Daniel Goleman, a “O Príncipe” de Maquiavel. Os cinco melhores textos recebem cada um mil dólares. "Líderes também precisam ler”, dizia um folheto que anunciava o livro de 2020: “A marca da vitória”, autobiografia de Phil Knight, criador da Nike.
Além disso, as equipes da Arco participam semanalmente do “método da cumbuca”, disseminado por Vicente Falconi.

Um livro é proposto a um grupo de 4 a 6 pessoas. e a cada semana eles se encontram para falar sobre um capítulo que todos devem ter lido. Os nomes vão para a cumbuca e a pessoa sorteada deve resumir o capítulo. Se ele não tiver lido a reunião é cancelada, para constrangimento do sorteado. Aliás, a inspiração para o nome da empresa veio de uma passagem de um clássico: “As cidades invisíveis'', de Ítalo Calvino.

Atualmente há uma proliferação de clubes de leitura para empresários, como o que é organizado pela empresa de consultoria KPMG, por onde passaram o sempre presente “A lógica do cisne negro” e mais “Miopia Corporativa” de Richard S. Tedlow e “A Regra é Não ter Regras”, de Reed Hastings e Erin Meyer, com o modelo de gestão da Netflix.

Aqui também em Vitória, as organizações de jovens empreendedores Líderes do Amanhã e Ibef Academy usam a ideia de discutir livros entre os associados como forma de aprendizado em empreendedorismo, economia e gestão.

Que 2021 seja um ano sem pandemia, com muitos livros, ficção e não-ficção, clássicos ou atuais, best sellers ou não, técnicos e não-técnicos(menos o do torturador). As experiências mostram que os livros são importantes para o empreendedorismo, mas também representam o tratamento precoce amplo contra obscurantismos ou uma vacina contra a ignorância.


João Gabriel de Lima: Palavras que queremos ouvir em 2021

 ‘Moral money’, ‘ESG’, ‘impacto’, vocábulos, siglas e expressões que prometem irromper o ano

Uma boa forma de fazer a retrospectiva do ano é lembrar das palavras que se tornaram correntes em 2020. Algumas são novas, que incorporamos ao vocabulário. Outras são ressuscitadas de épocas passadas. Em 2020 tiramos do baú palavras tristes como “pandemia”, “isolamento”, “máscara” – e outra mais esperançosa, “vacina”. Há motivo para otimismo, no entanto, quando se olha para alguns dos vocábulos, siglas e expressões com os quais nos acostumamos ao longo de 2020: “moral money”, “ESG”, “impacto”. Com sorte, essas palavras boas serão muito usadas ao longo de 2021.

Na Inglaterra, a expressão “moral money” se popularizou como título de uma das seções do Financial Times, um dos mais importantes jornais de economia do mundo. No cabeçalho, o diário londrino explica que “moral money” trata de negócios socialmente responsáveis, finanças sustentáveis, investimentos de impacto e ESG (“environmental, social and corporate governance”) – sigla que, de certa forma, engloba tudo isso.

Tais palavras prometem irromper em 2021 cavalgando números impressionantes. US$ 45 trilhões estão aplicados atualmente em fundos que utilizam estratégias sustentáveis, segundo estimativa do banco Morgan Stanley. Isso significa metade dos investimentos mundiais no mercado financeiro. Há dois anos, data do último levantamento, eram US$ 31 trilhões – número, por sua vez, 34% maior que o de 2016.

Existe a possibilidade de que parte desses números seja “para inglês ver” – dinheiro aplicado em ações de empresas que se declaram sustentáveis sem cumprir os requisitos mínimos. Pois são justamente os britânicos, líderes tradicionais na área financeira, que irão pagar para ver. No Reino Unido, uma aliança entre o governo e o setor privado fará um mapeamento de tais fundos, com o objetivo de classificá-los. O líder da força-tarefa é o português Rodrigo Tavares, personagem do mini-podcast da semana. Professor de finanças sustentáveis na Nova School of Business and Economics, ele é um dos maiores especialistas mundiais no assunto.

Os trabalhos para a confecção deste ISO das finanças começam já em janeiro, e seguirão ao longo de 2021, ano em que o assunto “moral money” estará crescentemente em pauta. No Brasil, “moral money” será o tema recorrente dos cursos e seminários da Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial, a Aberje – que importará a discussão que explode na Europa. Trata-se daquilo que os alemães chamam de “zeitgeist”, espírito do tempo.

Faz parte desse espírito a decisão de grandes empresas de varejo, como Nestlé, Walmart e Tesco, de não comprar mais grãos de produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O fato, anunciado na semana passada, foi lembrado em análise feita pelo site Virtù, editado pelo cientista político Luiz Felipe D’Avila e referência na área de políticas públicas. O texto aponta uma queda das vendas do agronegócio brasileiro para o Velho Continente, pondera que os números brasileiros de desmatamento não permitem acusar os europeus de protecionismo, e atribui a catástrofe ao “Brasil arcaico que, infelizmente, possui representantes em Brasília”. 

“Desmatamento”, “queimadas”, “Brasil arcaico” – eis outras palavras tristemente recorrentes neste ano. Devemos deixá-las em 2020. O melhor que se pode desejar para 2021 é que, ao final do próximo ano, seja possível encher o espaço desta coluna apenas com palavras boas.


Cristina Serra: Que vergonha, excelências!

Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas, e STF e STJ já estavam prontos para furar a fila da imunização

No Brasil, existem cidadãos comuns, como você, leitor, e eu. E existem castas, como o Judiciário, sustentadas com o dinheiro dos nossos impostos e adubadas com privilégios e mordomias que ofendem o simples bom senso. Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas e suas excelências do STF e do STJ já estavam prontas para furar a fila da imunização. As duas mais altas cortes enviaram os pedidos à Fundação Oswaldo Cruz, que os rechaçou.

Num momento de emergência sanitária e com autoridades incompetentes no comando da saúde dos brasileiros, as maiores instâncias do Judiciário deveriam ser as primeiras a dar o bom exemplo e aguardar sua vez na escala de prioridades, a ser definida de acordo com critérios científicos e levando-se em conta a vulnerabilidade de grupos mais expostos ao vírus. Mas as cúpulas do Judiciário preferiram se orientar pelo adágio mesquinho: farinha pouca, meu pirão primeiro. O que me lembra também o salve-se quem puder da primeira classe no convés do Titanic.

O STF pediu uma reserva de 7.000 doses para ministros e servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça. O STJ disse que enviou um “protocolo comercial”, que se refere à “intenção de compra” das doses para imunizar magistrados, servidores e seus dependentes. Sim, você leu direito. O STJ alegou que pretendia comprar as vacinas que, até onde se sabe, serão distribuídas gratuitamente pelo Plano Nacional de Imunização (vai saber quando). Seria um auxílio-vacina?

Não fosse a revelação pela imprensa e a negativa contundente da Fiocruz, talvez outras categorias já estivessem a reivindicar tratamento “isonômico”. A mentalidade da aristocracia do setor público brasileiro opera uma rota de colisão com qualquer projeto de sociedade menos desigual e mais justa. Regalias de toda sorte para uma elite “diferenciada” transformam em uma quimera o ideal de cidadania já alcançado por outros países. Data vênia, excelências, que vergonha!


Hélio Schwartsman: O país das carteiradas

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista. Em vez de as pessoas se pensarem como cidadãs de uma República de iguais, veem-se (e agem) como membros de corporações que se julgam detentoras de direitos especiais.

Tanto o STF como o STJ enviaram à Fiocruz ofícios em que pediam a "reserva" de alguns milhares de doses de vacinas contra a Covid-19 para aplicação em seus servidores.

Mais espertos do que o grupo de promotores paulistas que tentara uma despudorada carteirada para a categoria furar a fila da imunização, os responsáveis pelos tribunais evitaram o uso de termos como "prioridade" e "preferência". Escreveram os ofícios de um jeito que ficava parecendo que receber as vacinas era uma espécie de sacrifício que as cortes fariam em prol da coletividade.

Felizmente, a Fiocruz, num raro exemplo de espírito republicano, rejeitou ambos os pedidos, enfatizando que toda a produção de vacinas será destinada ao Ministério da Saúde e que a fundação não estava reservando doses nem para seus próprios funcionários.Como já escrevi aqui, não há um critério único para organizar filas éticas. Pode-se dar a prioridade aos mais vulneráveis ou aos mais expostos ou ainda proceder a diferentes combinações dessas duas lógicas. Só o que não faz sentido, em termos éticos, é dar preferência a grupos específicos pelo fato de eles terem mais prestígio ou mais poder de influenciar. As duas mais altas cortes do país deveriam saber disso e dar o exemplo. Lamentavelmente, preferiram a carteirada envergonhada.

A crer nas ideias de economistas como Daron Acemoglu e James Robinson, o que distingue nações que fracassam das que dão certo é o desenho de suas instituições. Quando elas servem primordialmente a elites extrativistas, o país naufraga; quando são inclusivas, o desenvolvimento chega. O corporativismo está matando o Brasil.


Ricardo Noblat: As duas faces de Bolsonaro no Natal da pandemia

Escolha a que lhe pareça mais verdadeira

Na véspera do Natal, o presidente Jair Bolsonaro ofereceu aos brasileiros duas versões dele mesmo – uma por cadeia nacional de rádio e televisão e a outra por meio das redes sociais.

Na primeira, ao lado de Michelle, sua mulher, ele leu um texto escrito por assessores. Na segunda, ao vivo, falou de improviso como costuma fazer sempre às quintas-feiras.

O Bolsonaro que tratou o novo coronavírus como “gripezinha”, receitou cloroquina para os doentes e disse que morreriam os que tivessem de morrer, ficou de fora do rádio e da televisão.

Ali foi servido um presidente da República que se solidarizou com as vítimas da pandemia, destacou que seu governo agiu para salvar vidas e empregos e que por isso acabou sendo bem-sucedido.

“Nessa ocasião, solidarizo-me com as famílias que perderam seus entes queridos. Externo meus sentimentos, pedindo a Deus que conforte os corações de todos”, afirmou Bolsonaro.

Em seguida, lembrou o pagamento do auxílio emergencial, o financiamento a micro e pequenas empresas e a medida que compensou parte da redução de salários em empresas.

No dia em que o Brasil ultrapassou a marca das 190 mil mortes pela Covid-19, o Bolsonaro das redes sociais preferiu atacar o governador João Doria (PSDB-SP).

 “Eu quero o cidadão de bem armado. Com o povo de bem armado, acaba essa brincadeirinha de ‘vai ficar todo mundo em casa que eu vou passear em Miami’”, disparou Bolsonaro.

Que insistiu: “Pelo amor de Deus. Oh… calcinha apertada! Isso não é coisa de homem. Fecha São Paulo e vai passear em Miami. É coisa de quem tem calcinha apertada. Isso é um crime”.

Outra vez pôs em dúvida a segurança das vacinas que estão sendo desenvolvidas por vários laboratórios e que já começaram a ser aplicadas na Inglaterra, Estados Unidos, México e Chile:

– A eficácia da vacina em São Paulo parece que está lá embaixo, né? Não vou aceitar uma vacina que não está devidamente comprovada, que está em fase experimental.

Por fim, da vacina saltou para o uso de armas e declarou: “Ajudamos muita gente a comprar armas e munições. Quero que o brasileiro se arme. O povo armado jamais será escravizado”.

A primeira vez que Bolsonaro falou em armar o povo foi dentro de um quartel do Exército em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, seis meses depois de empossado na presidência da República.

Contra o regime militar de 64, a esquerda brasileira usou os slogans “O povo unido jamais será vencido”, “O povo organizado derruba a ditadura” e “Só povo armado derruba a ditadura”.

Feliz Natal para todos com o Bolsonaro que melhor lhe aprouver.


Eliane Cantanhêde: Mas vai melhorar...

Vacina, saúde, felicidade e esperança para a Nação, eficiência e responsabilidade para os líderes!

O melhor presente de Natal que Papai Noel pode embrulhar em esperança e otimismo para dar ao mundo é a vacina que salva vidas, economias e empregos. Mas os líderes políticos precisam colaborar, planejando, adquirindo e distribuindo com eficiência e responsabilidade as diferentes vacinas contra a covid-19, criadas em tempo recorde pela genialidade dos melhores cientistas e pelo compromisso dos melhores laboratórios de toda parte. É essa eficiência e essa responsabilidade dos líderes que andam em falta por aí, ou melhor, por aqui.

Em torno de três milhões de pessoas dos grupos prioritários já se vacinaram no mundo, mais de um milhão só nos Estados Unidos, inclusive o presidente eleito Joe Biden, mas o Brasil continua envolto numa nuvem de negacionismo, de um lado, e de afoiteza, de outro, deixando os cidadãos confusos, indecisos, descrentes. Esse é, ou seria, o pior dos mundos: ter vacinas, mas parte da sociedade se recusando a tomá-las.

O presidente Jair Bolsonaro só abre a boca para falar besteira, como aquele velho personagem de TV, e trabalha não a favor, mas contra a vacina, particularmente contra a vacina que já vem chegando ao País, a Coronavac. E o governador de São Paulo, João Doria, decidiu dar tiro no pé no final de um ano tão aterrorizante, quase no início de outro que pode ser a salvação da lavoura. Vá-se entender...

O governo federal errou na estratégia, se atrapalhou com prazos, pendurou equivocadamente todas as fichas numa só vacina, a AstraZeneca/Oxford, e agora tem dificuldades para ampliar negociações, por exemplo, com a Pfizer, que chegou primeiro no Reino Unido, nos EUA e por aí afora e está com a lista de encomendas congestionada.

Já o governo de São Paulo foi mais previdente, saiu na frente na parceria com a Sinovac da China e na articulação com o nosso Butantã e trouxe os primeiros lotes de vacina e de esperança ao Brasil, em torno de 10 milhões de doses para início de conversa. Mas João Doria, que colhia elogios por ter posto Bolsonaro contra a parede e chacoalhado o Ministério da Saúde, errou na pior hora.

Num dia, o governo paulista comunica ao distinto público que ninguém pode ir a lugar nenhum no Natal e no ano-novo. No dia seguinte, o governador quebra a regra e escapole para... Miami. Ninguém é de ferro e Doria teve um ano dificílimo, foi diligente, trabalhou incansavelmente e tem direito a um bom descanso. Mas política é símbolo. Sair no dia seguinte? Para Miami? Sem avisar?

Ficou a sensação, errada ou não, de que estava fugindo. Na boa, sempre está lá. Na dividida, larga na mão da equipe. Enquanto a mídia e as redes discutiam a ida e a volta de Doria, atingido em cheio também pelo teste positivo do vice Rodrigo Garcia, sua equipe inundava o País, Estados e municípios de frustração. Em vez dos relatórios sobre a Coronavac, só uma vaga declaração atestando a “eficácia suficiente” da vacina, seja lá o que isso signifique.

É assim que as doses de Coronavac chegam, mas a Anvisa, que estava a postos, ainda não começou a contar o tempo para a análise e a autorização de uso no Brasil, seja o emergencial, seja permanente. Notícia péssima para o País, para os cidadãos e para os Estados e municípios que já fecharam acordos para a vacina.

Bem... Hoje é Natal, dia de festa, alegria, amor e esperança. Hora de confraternização segura, sem aglomeração, sem embrulhar vírus para presente e sem jamais perder o otimismo, a crença na ciência, nas instituições, no nosso povo. A vida anda difícil, sim, mas vai melhorar, como conclama Martinho da Vila em Canta Canta, Minha Gente. E “amanhã há de ser outro dia”, já ensinava o grande Chico Buarque em outros tempos, também cabeludos. Feliz Natal!


Luiz Carlos Azedo: A vacina do Natal

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança

Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em ultima instância, a si próprio.

Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.

A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.

Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.

Eugenia
Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimica- mente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.

Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos não deixaram descendentes. Cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram, pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (…) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”

O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança. Que venham as vacinas contra a covid-19. Feliz Natal!

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-vacina-do-natal/

Bernardo Mello Franco: Suprema carteirada na fila da vacina

Luiz Fux assumiu a presidência do Supremo com uma posse contagiante. Na contramão das recomendações sanitárias, o ministro insistiu numa cerimônia presencial seguida de coquetel. A festa deixou ao menos dez autoridades infectadas com a Covid. Além do homenageado, contraíram o vírus o presidente da Câmara e o procurador-geral da República.

A presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que entrou na lista dos contaminados, precisou ser transferida para um hospital em São Paulo. Passou 16 dias internada e teve que receber oxigênio por um cateter. Chocada com o mau exemplo, a professora Ligia Bahia definiu a FuxFest como um “covidário”. “Foi um evento totalmente irresponsável”, resumiu.

Três meses depois da posse, o presidente do Supremo está de volta ao noticiário da pandemia. Ontem ele defendeu o tribunal pela tentativa de furar a fila da vacina. O órgão pediu à Fiocruz que reservasse sete mil doses para imunizar ministros e servidores.

Em documento oficial, o Supremo sustentou que a vacinação vip seria “uma forma de contribuir com o país nesse momento tão crítico”. Questionado, Fux disse não ver nada de errado na carteirada. “Temos de nos preocupar para não pararmos as instituições fundamentais do Estado”, justificou.

O ministro informou que o tribunal fez o pedido “de forma delicada, ética”. Delicadamente, a Fiocruz respondeu que destinará suas vacinas ao Ministério da Saúde, sem atender a “qualquer demanda específica”. As doses serão distribuídas segundo os critérios do Programa Nacional de Imunizações. As regras não mencionam o uso da toga como fator de risco para a Covid.

O Supremo não é a primeira instituição a reivindicar preferência na distribuição da vacina. No início do mês, promotores paulistas pediram que a categoria fosse incluída “em uma das etapas prioritárias” da imunização. Depois foi a vez de o Superior Tribunal de Justiça tentar furar a fila da Fiocruz. A turma do “vacina pouca, meu braço primeiro” nunca admite estar em busca de privilégios. Ontem Fux disse ter uma “preocupação ética” com o assunto.


Celso Ming: Vacina não é só vacina

População vacinada produz impacto positivo na economia, nos investimentos, na retomada do emprego, na educação, na cultura e na vida social

Instituto Butantan adiou o anúncio do nível de eficácia da vacina Coronavac, que deveria ter acontecido hoje. A razão admitida foi a de que ficou necessário consolidar os resultados dos testes finais com os dos outros centros que vêm desenvolvendo o produto na China, na Indonésia e na Turquia

Mesmo que o governo do Estado de São Paulo mantenha o início da vacinação para o dia 25 de janeiro e mesmo que o Instituto Fiocruz, do Rio de Janeiro, também obtenha dentro de mais algumas semanas a vacina britânica da Oxford, não basta apenas contar com a aprovação da Anvisa, a agência reguladora do setor, para dar início ao processo de vacinação em massa, mesmo em caráter emergencial.

Ainda é preciso definir como o processo de imunização acontecerá. É preciso saber quais grupos terão prioridade, com que vacina, em que condições e com que logística será aplicada. Começar pelos profissionais de saúde e com os idosos de apenas um Estado é bem diferente de atender a esses segmentos preferenciais na maior parte do território nacional.

Esses temas se tornaram essenciais, especialmente depois das confusões em que se meteram o presidente Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello.

Como em tantas outras questões, Bolsonaro não se limitou a fazer opções erradas. A maneira como vem lidando com a vacina se transformou em tiros em seus próprios pés. Se é para condenar a quarentena e o isolamento social para que a economia não desabe e, assim, produza estragos ainda maiores do que os da doença – como ele próprio argumentou –, então seria melhor dar toda a força para a vacina, o instrumento que abriria o caminho para a recuperação da economia.

Essa postura negacionista em relação à covid-19 atendeu às necessidades eleitorais do presidente: com uma economia em desabamento, como o que se seguiria ao isolamento social, Bolsonaro perderia ainda mais apoio político e não teria condições de se reeleger, como pretende. No entanto, porque viu que a vacina salvadora do Butantan injetaria ar quente no balão de seu adversário político, o governador João Doria, Bolsonaro resolveu atacar não só a Coronavac, mas quaisquer outras vacinas. Com isso, viu seu próprio balão murchar ainda mais.

Uma população vacinada não produz impacto positivo apenas na economia, nos investimentos e na retomada do emprego. Produz, também, em outras atividades: no ensino, no acesso à cultura, na vida familiar e na vida social. É preciso repensar e enfrentar, por exemplo, os problemas que surgirão com o retorno às aulas, mesmo antes da vacinação em massa. Pergunta inadiável: haverá vagas para os alunos que perderam o ano e que se somarão aos que passaram a atingir a idade escolar? As disparidades aumentaram. A população mais pobre não conseguiu acesso ao ensino nem por meio digital, porque não tem computadores.

Hoje a vacina ainda é produto escasso. Há apenas cinco com eficácia comprovada. Mas logo virão outras. Pelos levantamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS), há no mundo 223 em desenvolvimento, das quais 10 estão em fase final de testes.


Zuenir Ventura: E Biden não virou jacaré

Presidente eleito dos EUA, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina da Pfizer/BioNTech

Além de tudo, a vacinação em massa seria um bom negócio para o país. É o que dizem duas autoridades econômicas do governo: o presidente do Banco Central e o ministro da Economia. Roberto Campos Neto afirma que investir em vacina é mais barato do que o pagamento de benefícios emergenciais. Já Paulo Guedes traduz isso em números. Em entrevista, ele lembrou que o auxílio emergencial chegaria a R$ 55 bilhões por mês, enquanto a vacinação da população custaria menos da metade, R$ 20 bilhões.

Isso não deveria ser novidade. Desde criança, me acostumei ao ritual de ser picado contra diversas doenças, numa boa. Doía um pouquinho, mas valia a pena, porque fazia bem à saúde da gente e do país. Nunca chegou a me fazer chorar.

Até que ultimamente comecei a ouvir perguntas disparatadas sobre possíveis efeitos que seriam causados pela imunização. Ideia de algum maluco, como a hipótese de que quem tomasse corria o risco de virar jacaré. Parei de rir quando soube que não era uma fake news das redes sociais. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi quem, num evento na Bahia, advertiu os ouvintes assustados: “Se você virar um jacaré, é problema seu”.

Ele não costuma dizer coisa com coisa, mas dessa vez garantia, com a autoridade de presidente da República, acredite, que o contrato da Pfizer/BioNTech isentava o laboratório da responsabilidade pelos efeitos colaterais. E dava mais exemplos: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso”.

O teste definitivo aconteceu anteontem, quando o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina, justamente do laboratório contra o qual Bolsonaro lançara a advertência, o Pfizer/BioNTech.

Mas até ontem pelo menos, até o momento em que escrevo esta coluna, tudo indica que Joe Biden não virou jacaré. Se isso tivesse acontecido, acho que não só eu, mas o mundo todo teria sabido.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Pra não esquecer jamais

Tirar lições de dificuldades ou de situações de crise é uma questão de bom senso

Colaboro regularmente com O Estado de S. Paulo há seis meses, período pautado pela pandemia do novo coronavírus, que deixará marcas profundas na história. Agradeço ao jornal, do qual sou leitor há muitas décadas, por essa jornada inestimável. Escrever para contribuir com o debate sobre os vários temas suscitados pela covid-19 e a realidade brasileira abre novos desafios de raciocínio.

Economia, política, ética, solidariedade, sustentabilidade, administração pública, deveres do Estado e do cidadão; nenhum desses assuntos deixou de ser avaliado e discutido intensamente, em 2020, pela comunidade científica, classe política, empresários, sociedade civil. Todos. Tentei acompanhar os debates e oferecer minha contribuição. 

A discussão ampla, franca e honesta dos problemas de uma sociedade é a ferramenta mais eficaz para encontrar boas soluções, faz parte da construção da democracia. É gratificante e enriquecedor receber, da parte de leitores, críticas, sugestões, ideias, outras perspectivas, e até elogios, que estimulam a reflexão mais profunda e sistemática sobre nossas potencialidades e problemas. Estou certo de que, ao longo de 2021, o exercício de compartilhar ideias, valores e crenças será cada vez mais profícuo. 

Conhecemos as consequências da pandemia para o Brasil e o mundo. Façamos uma rápida avaliação. Este ano, o número de mortes no País por Covid-19 supera os 180 mil. É uma tragédia sem paralelo. As medidas de isolamento social, mais severas no início, reduziram de forma drástica a atividade econômica. Teremos em 2020 uma queda do Produto Interno Bruto (PIB) estimada em 4,5%. Isto agravou o desemprego, que atinge agora quase 14 milhões de trabalhadores. 

Os desembolsos do governo no combate à pandemia e aos seus reflexos econômicos – sem os quais a atividade econômica teria uma queda muito maior – geraram um problema fiscal que não será resolvido no curto prazo: terá de ser enfrentado por este governo e os próximos. Até outubro, o governo federal acumulou um déficit de 680 bilhões de reais e o seu financiamento elevou a dívida pública para 91% do PIB. Essa dívida provavelmente será superior a 100% do PIB pelos próximos anos. 

Tivemos outros fatos que marcaram o ano, como o incêndio no Pantanal, o aumento do desmatamento na Amazônia e o assassinato de João Alberto Silveira de Freitas, um homem negro, num supermercado de Porto Alegre. Ganharam repercussão mundial e levantam pontos relevantes, como a questão do meio ambiente, uma de nossas maiores riquezas, além de desnudar o racismo estrutural em nossa sociedade. 

Entretanto, 2020 pode servir de ponto de partida. Tirar lições de dificuldades ou de situações de crise é uma questão de bom senso. Insensato seria persistir no erro e caminhar para crises mais graves. Perder a oportunidade de usar eficientemente os conhecimentos (econômicos, científicos e sociais) adquiridos neste ano dramático é subtrair à próxima geração a possibilidade de viver em um país melhor, menos instável, mais próspero, mais justo e igualitário. 

Acredito que o Natal é um tempo propício para reafirmar esses princípios. É quando percebemos mais a solidão e as carências dos outros, reconhecemos as nossas imperfeições e projetamos como melhorar como seres humanos. 

Conhecemos a pauta econômica que deve nos orientar. As reformas estruturais são fundamentais. As mudanças sociais que reclamamos, como o combate à desigualdade em todos os seus aspectos, também o são. Sabemos ainda que todas essas mudanças para se tornarem perenes pressupõem uma educação melhor e realmente inclusiva. 

Este é um ano que não pode ser esquecido. Mostrou o paradoxo que é a vida: o nosso bem mais valioso, ao mesmo tempo tão frágil. Portanto, é preciso colocá-la em primeiro lugar. 

O Natal de 2020 reforça que valores, afetos e o aquecer dos corações são o que realmente importa. 

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. 


Miguel Nicolelis: Sem vacina, sem seringa, sem agulha e sem rumo

Sem uma ação coordenada de todo o país, envolvendo medidas sincronizadas de isolamento social, bloqueio sanitário das rodovias e uma campanha nacional de vacinação, o Brasil não conseguirá derrotar a covid-19

Apesar de assemelhar-se a um refrão de sucesso de carnavais passados, o título da minha última coluna de 2020 certamente não tem qualquer ambição de servir como inspiração para alguma futura marchinha carnavalesca. Pelo contrário, ao tentar reproduzir o estilo literário predileto do último astrofísico-poeta da humanidade, o persa Omar Khayan, que viveu entre os séculos XI e XII, esta quadra sem rima rica tem como propósito expor, de forma nua e crua, a situação trágica vivida pelo Brasil, depois de nove meses de uma pandemia que nunca esteve sob controle das autoridades governamentais e que ameaça atingir níveis ainda maiores de casos e óbitos nas próximas semanas.

Além dos quatro itens, que fazem parte da “Lista dos Sem”, como a batizei, eu poderia continuar enumerando outras várias razões que transformaram o Brasil num verdadeiro navio à deriva, uma nau “Sem capitão”; um barco gigantesco que, “Sem comando”, se contenta em vagar às cegas num vasto oceano viral, à mercê de ventos e correntes fatais, que ameaçam conduzir este nosso Titanic tupiniquim, depois da maior crise sanitária da nossa história, para dentro de um redemoinho que pode culminar na maior catástrofe socioeconômica jamais vivida abaixo da linha do equador.

O meu alarme decorre de uma simples análise de risco do cenário atual. Por exemplo, apesar de inúmeros avisos prévios, mesmo antes das festas de final e ano, o Brasil já sofre com uma nova explosão de casos e óbitos de covid-19. Esta escalada de casos, gerada pelo afrouxamento das medidas de isolamento social, abertura desenfreada do comércio e pelas aglomerações eleitorais, desencadeou uma segunda onda de superlotação hospitalar em todo país, com algumas capitais atingindo taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 90%. Sem qualquer plano de comunicação de massa para alertar a população sobre os riscos que, em razão das aglomerações geradas no período das festas de final de ano, esta nação enfrentará uma explosão ainda maior de casos e óbitos, como ocorrido no período após o feriado de Ação de Graças nos Estados Unidos, quando o “Sem governo” ―ou seria (des)governo?― abandonou sua população à própria sorte. Não é à toa, portanto, que boa parte do país hoje se orienta através do último boato de Whatsapp a viralizar nas redes sociais. Acima de tudo, entre outros crimes lesa-pátria cometidos em 2020, há uma total falta de informações confiáveis e recomendações apropriadas para orientar a população em como proceder para se proteger contra o coronavírus, antes da chegada de uma vacina eficaz e segura.

Mas os absurdos não param aí. No país do “Sem a menor ideia”, técnicos do Tribunal de COntas da União (TCU), depois de minuciosa auditoria, concluíram que não existe planejamento estratégico minimamente aceitável para a distribuição de equipamentos de proteção, kits de testes, bem como de seringas e agulhas, e de vacinas ―até mesmo porque ninguém sabe qual ou quais serão usadas― para todo o território nacional. Se tudo isso não fosse o suficiente para gerar alarme em Pindorama, mesmo depois de vários países terem proibido todos os voos, de passageiros e de carga, oriundos do Reino Unido, para evitar a propagação de uma nova cepa mais contagiosa de SARS-CoV- 2, que provocou o estabelecimento de novo lockdown na Inglaterra, o espaço aéreo brasileiro continua aberto, e nossos aeroportos continuam não checando os passageiros, permitindo desta forma que diariamente novos casos de viajantes infectados possam entrar no Brasil, sem qualquer tipo de controle sanitário.

Diante desta situação dantesca, o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste publicou na última sexta-feira o seu Boletim de número 13. Nele, além da análise minuciosa da situação atual e futura de cada um dos Estados nordestinos, o comitê fez uma série de recomendações emergenciais para os nove governadores da região. Dentre elas, a mais urgente é a que os governadores nordestinos levem a seus colegas de todo o Brasil a proposta de criar, em caráter emergencial, uma Comissão Nacional de Vacinação, formada pelos principais especialistas na área, para atuar de forma independente do Ministério da Saúde e do Governo federal e criar um Plano Nacional de Imunização efetivo e seguro, a ser implementado em todo território nacional, através da ação conjunta de todos os Estados brasileiros. Esta proposta traz à luz do dia a verdade que ficou escondida em baixo do tapete durante todo o ano de 2020: sem uma ação coordenada de todo o país, envolvendo medidas sincronizadas de isolamento social, bloqueio sanitário das rodovias em todas as regiões do país, e uma campanha nacional de vacinação, o Brasil não conseguirá derrotar a covid-19 nem a curto prazo, nem a médio prazo. E o custo desta omissão será épico, em termos de centenas de milhares de vidas perdidas.

Depois de quase 200.000 mortes, não há mais nenhum tempo a perder se a sociedade brasileira deseja realmente evitar que no Natal de 2021 tenhamos mais de meio milhão de mortos como consequência daquela que já entrou para a história brasileira como a pandemia dos “Sem Noção”.

Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis