vacinação

Cristovam Buarque: IDH - A culpa é nossa

Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo

O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.

O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.

Nisto está nossa falta: melhoramos ficando para trás, sobretudo em educação. Depois de quase 50 anos de medidas paliativas, avançamos piorando ao ampliar três brechas: avançamos, mas os outros países avançaram mais; a educação dos pobres melhorou, mas a dos ricos mais; estudamos mais, entretanto, o que ensinamos aumentou menos do que o que o mundo moderno exige.

Tudo indica que os países vizinhos, inclusive mais pobres, erradicarão o analfabetismo de adultos antes do Brasil. Os que se preocupam com a educação investem em escolas privadas para resolver o problema de seus filhos, não do país. Não têm educação de qualidade como propósito nacional, apenas para seus filhos, ignoram a educação de todos que é utilizada para calcular o IDH. Não vemos a necessidade de executarmos uma estratégia nacional consistente a longo prazo, para termos educação de qualidade para todos, sem o que o IDH não sobe em relação aos outros países.

A resistência à essa estratégia decorre, em primeiro lugar, de que não e gostarmos de longo prazo, preferimos as ilusões dos pequenos passos – Fundef, Fundeb I e II, Piso Salarial do Professor, Merenda, Livro Didático, PNE-I e II, IDEB, ENEM. Tudo certo e tudo insuficiente. Em segundo lugar, porque educação com a máxima qualidade pelos padrões internacionais não é um sonho brasileiro, ainda menos a crença de que a escola deve ter a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Preferimos nos comparar pelo padrão FIFA do que pelo padrão PISA ou IDH. Nestas condições, dificilmente vamos ter uma estratégia de longo prazo para o governo federal adotar a educação de base nas cidades pobres. o apego municipalista prefere sacrificar as crianças das cidades pobres a entregar as escolas municipais ao governo federal.

Por isto, daqui a dois anos teremos novas surpresas tristes com o PISA e com o IDH e jogaremos a culpa no governo do momento, esquecendo os erros de todos nós no passado e relegando a tragédia no futuro.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Luiz Sérgio Henriques: O que legaremos para 2021

2020 é um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso

Como se fossem poucos os desafios ultimamente lançados às democracias, com as novas e audaciosas estratégias de corrosão da legitimidade das suas instituições, o ano que ora se encerra nos trouxe, na forma de uma pandemia, recados que costumamos imprudentemente esquecer nas horas ditas normais. O processo civilizatório avança constantemente, mas aos saltos. Vivemos mais e melhor, mas há intolerável desigualdade no gozo desse tempo adicional de vida. E tudo isso sem falar que o relativo “recuo das barreiras naturais” possibilitado por aquele avanço não se faz sem riscos permanentes. Somos seres precários, cujos impulsos de conquista convém temperar para manter a harmonia com o mundo natural e não alimentar a ilusão de domínio absoluto sobre ele.

O vírus que saltou a barreira entre espécies num remoto mercado teve o condão de nos lembrar que a máquina do mundo não funciona em moto contínuo e nem sempre estamos preparados para responder do modo mais racional ao inesperado, pelo menos não num primeiro momento. E muitos não responderão racionalmente em momento algum.

Não faltou quem, no início do grande drama, apostasse na ideia de um “vírus inventado” para propiciar o fortalecimento dos mecanismos societais encarregados de vigiar e punir. Uma ideia que, apregoada em setores progressistas, encontraria terreno já intensamente lavrado pelo moderno negacionismo científico de marca ultraconservadora. Não por acaso os negacionistas propriamente ditos passaram a repetir à exaustão a fábula do vírus desenhado em laboratório chinês, assim como, antes, haviam se atrevido a afirmações destrambelhadas, como a de que vacinas infantis são perigosas a ponto de levarem ao autismo.

Tal absurdo, aliás, propalado há alguns anos por Donald Trump em pessoa, leva-nos ao ponto em que se cruzam, hoje, os ataques simultâneos à ciência e à democracia. É bem verdade que tais ataques não são monopólio da extrema direita contemporânea, basta mencionar que, em episódio grotesco há quase cem anos, a “epistemologia” marxista-leninista reinante na antiga URSS dividia as ciências em “burguesas” ou “proletárias”, de acordo com os desígnios do ditador ou prepostos seus na ciência oficial. Trofim Lysenko, por exemplo, teve seu nome para sempre associado à manipulação política da genética e ao fracasso da agricultura soviética, um fracasso que moldaria profundamente toda aquela sociedade e os impasses que jamais superou.

O fato é que hoje as ameaças mais evidentes carregam um sinal oposto. Os problemas nascem, ironicamente, de uma mutação genética no campo conservador. Saiu de cena, ao menos em boa medida e em muitos contextos nacionais, o conservadorismo voltado para a preservação das instituições e para hipóteses de mudanças lentas e controladas na estrutura social. Em seu lugar, ameaçadoramente autoritário, surge o conservadorismo com pretensões revolucionárias, se é que vale a expressão paradoxal. Um conservadorismo em busca da uniformidade (étnica, religiosa, cultural) que teria sido perdida na vida moderna, intrinsecamente cosmopolita, e deveria ser reencontrada num passado imaginário e inventado dos pés à cabeça.

Na sua versão clássica, o pensamento conservador é índice das complexidades do mundo real. O tipo de abordagem que em geral propõe permite o debate produtivo com as mais diversas tradições, incluídos o marxismo e o socialismo “evolucionários”, para os quais a revolução há muito deixou de ser uma irrupção violenta ou um fetiche ideológico a que todo o resto deve estar subordinado. Também dessa ponta do espectro se propõem mudanças “moleculares”, certamente em direções novas e diferentes, e tais mudanças, sendo pela própria natureza objeto de disputa ou de negociação, envolvem a participação consciente dos cidadãos e decidem-se no terreno da política como mútua persuasão.

O conservadorismo revolucionário, porém, é inerentemente subversivo. As instituições e as interações sociais devem ser dobradas em sentido autoritário e, se preciso, dilapidadas. Há um pesado elemento ideológico nele envolvido, a saber, a difusão massiva de meias-verdades ou mentiras consumadas. Um elemento, portanto, com amplas implicações “cognitivas”, a disseminar a irracionalidade. Inaugurando a noite em que todos os gatos são pardos, a irrazão é que permite a construção de um consenso passivo em torno de práticas e políticas fortemente regressivas. Não há nenhuma inocência na estratégia que promove a “pós-verdade” nem se trata propriamente de diversionismo para encobrir assuntos mais sérios.

Esse conjunto de problemas, de dimensões mundiais, também nos afeta em cheio e será um legado tremendo para o ano próximo. Nesse sentido, 2020 é mais um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso. Só que agora nosso país, muitas vezes desanimadoramente lento em curar suas feridas, não tem tempo a perder. Homens e mulheres de bem, só com as armas da política, terão de encontrar rapidamente outro caminho mais razoável.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Ascânio Seleme: Quem vai pagar a conta?

Custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo, por causa e entre os negacionistas

Não se preocupe, se você se vacinar direitinho, tomar as duas doses como recomendado, não vai ser infectado por negacionistas, seja um vizinho, um parente, um amigo ou um desconhecido com quem esbarrar na rua. Você estará imune. Do ponto de vista da sua saúde ou da sua família, não precisa fazer mais nada, embora seja conveniente manter o uso de máscaras por ainda algum tempo. Também não custa nada lavar sempre as mãos com bastante água e sabão. Seu problema será outro e terá natureza financeira. Você vai solidariamente pagar a conta que os que se negaram a tomar a vacina contra a Covid acabarão gerando para os cofres públicos. E ela não será pequena.

Imagine o cenário final, pós-vacinação. Neste momento, 46 milhões de brasileiros, ou 22% da população, não estarão imunizados e continuarão a exercer pressão sobre a rede pública de saúde. Se hoje os leitos dos hospitais estão quase 100% ocupados por pacientes com Covid, no futuro terão 22% da sua capacidade tomada por pessoas infectadas por uma doença que poderia ser evitada. Quem vai pagar esta conta? Você e eu. Na verdade, este volume pode ser maior, se os planos de saúde corretamente se recusarem a pagar internações hospitalares e remédios de quem se recusou a se vacinar. Se a doença era evitável, os planos vão recorrer e os pacientes com planos poderão acabar na rede pública.

Se a Justiça acabar obrigando os planos de saúde a pagar as contas dos negacionistas, o que sempre é possível, mesmo assim você e eu arcaremos com um custo adicional. Ninguém aqui é bobo, claro que os planos repassarão a conta para toda a sua clientela. Nós.

Haverá ainda outros custos indiretos gerados pelos negacionistas mas que serão arcados por nós. Primeiro, calcule o impacto que terão sobre a cadeia produtiva quando o mundo voltar ao normal. Se uma gripezinha de influenza afasta uma pessoa por dois ou três dias do trabalho, uma infecção pela Convid pode tirar o funcionário por até 14 dias da linha de produção, quando não o afastar definitivamente. Isso tem um custo que as empresas pagam e repassam aos preços dos produtos e serviços que você e eu iremos consumir.

Os não vacinados vão também compor uma nova estatística de morbidade no Brasil. Com a vida de volta ao normal, os 22% de não vacinados serão eventualmente contaminados e muitos vão morrer. Aos números. Mantida a média de 1.000 óbitos por dia, morrerão então 220 negacionistas a cada 24 horas. Em um ano, serão 80 mil. Mais do que os 12 mil que falecem a cada ano por câncer de próstata ou mama, os 44 mil que morrem em razão de doenças hipertensivas ou os 54 mil que são acometidos de diabetes. Trata-se de índice igual ao de mortes por infarto, que também somam 80 mil por ano.

Sim, há os que já foram infectados e dizem que não vão se vacinar porque já têm anticorpos, como afirma o magnífico Jair Bolsonaro. Estes ignoram a potencialidade da reinfecção ou o surgimento de cepas diferentes que podem lhes acometer. Vejam o caso da gripe influenza, que já exige quatro vacinas diferentes para ser obstruída. Na rede pública, as vacinas aplicadas são as trivalentes, que imunizam contra até três variações da doença. Na rede privada já estão sendo aplicadas as tetravalentes.

Claro que os custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo depois da vacinação em massa, por causa e entre os negacionistas. E elas ocorrerão por todos os lados, mas serão maiores nos grotões bolsonaristas. São os seguidores fiéis de Sua Excelência que mais se rebelam contra a vacina. Seguem o líder cegamente, como ratos ao flautista de Hamelin, mesmo que seja em direção ao hospital ou ao cemitério.

Rebanho

O que vai acontecer com aqueles que se recusarem a ser vacinados? Certamente perderão alguns direitos, como o de frequentar escolas, academias e clubes. Devem também perder o acesso a bolsas e outros auxílios oficiais, o direito de participar de concursos públicos e de votar. Podem ainda ser proibidos de viajar de avião e ônibus. E também não serão imunizados. Serão apenas parte do rebanho.

Eles erram

Presidentes erram. Sarney errou na economia, mas foi o presidente que avalizou a reabertura democrática. Collor errou ao confiscar a poupança dos brasileiros e ao permitir que seu contador PC Farias trocasse influência por dinheiro, muito dinheiro. Mas é verdade também que abriu a economia brasileira para o mundo. Fernando Henrique errou ao fazer aprovar o instituto da reeleição, mas estabilizou a moeda nacional. Lula deixou seu governo e seu partido se corromperem, mas distribuiu renda como nenhum dos seus antecessores. Dilma errou feio na economia e ao tentar falsear seus resultados acabou afastada. Bolsonaro erra como jamais se viu. Erra no atacado, desde o primeiro dia de seu mandato e em todas as frentes. Como Dilma, e ao contrário de seus antecessores, não deixou até aqui qualquer legado.

Falando em Collor

O governo de Jair Bolsonaro mergulhou de corpo e alma na política de negociação de cargos por apoio político. Um dos membros da tropa de choque de Fernando Collor no Congresso, o deputado Ricardo Fiuza, batizou este tipo de operação com um trecho da Oração de São Francisco: “É dando que se recebe”. Uma prática comum na política nacional ganhava um apelido. Fiuzão, que era um conhecido “caneleiro”, morreu em 2005, mas sua criação sobreviveu. Hoje, o capitão dá cargos para receber em troca votos para o deputado Arthur Lira (desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito, rachadinhas, violência doméstica) na sucessão da Câmara. E, para não perder a coerência, Bolsonaro mantém Roberto Jefferson, o segundo líder da velha tropa de choque de Collor, como seu brucutu de plantão.

Extrapolei

Foi engraçado ver Bolsonaro tentando representar o papel de estadista, que se desculpa com o país quando erra. Na cerimônia de divulgação do plano (?) de vacinação, o capitão disse que se alguém extrapolou foi na busca de resultados. Uma piada. A frase deveria ser lida assim: “Se algum de nós extrapolei ou até exagerei, foi no afã de buscar solução”. O pior é que mesmo que tivesse sido franco, o presidente não teria sido honesto. Ele exagerou e extrapolou por outras razões, você sabe, não porque queria encontrar saídas.

E há o Rio

No Brasil, vices seguidamente ocupam o posto principal pelo impeachment, a desincompatibilização ou a morte do titular. Em alguns casos tivemos sorte. Itamar Franco, por exemplo, substituiu Fernando Collor e devolveu dignidade ao cargo. Em São Paulo, Bruno Covas era vice de João Doria, assumiu a prefeitura e fez uma boa gestão, a ponto de ser reeleito. Há outros exemplos no país. E há o Rio. Por aqui, parece que não tem remédio. O governador em exercício Cláudio Castro fica melhor quando não fala, ou quando não faz nada. Esta semana ele quis fazer alguma coisa e falou. Foi uma calamidade. Num discurso ao lado do zero das rachadinhas, Castro disse para quem quisesse ouvir: “Eu confio no general Pazuello”. Pasmem, há alguém que confia no general. E acrescentou: “Não é fazendo politicagem com a saúde que vamos sair dessa”. Embora seja o presidente quem faz politicagem rasteira com o vírus, o recado de Castro era para seu colega João Doria. Puxou tanto o saco do governo Bolsonaro que até mesmo o zerinho que ouvia tudo calado não conseguiu esconder seu constrangimento.

Mais mortes

Um estudo feito pelo jornal The New York Times mostra que o crescimento do número de mortes por Covid é maior em cidades universitárias depois do retorno das aulas presenciais. A pesquisa do NYT foi feita em 203 cidades cuja população estudantil é maior do que 10% do total. Também cresceu exponencialmente o número de infectados nestas localidades, bem acima da média nacional. No Rio, as aulas nas escolas públicas estaduais voltam em janeiro. Em São Paulo, as escolas estaduais funcionam com até 35% da sua capacidade desde setembro. Doria anunciou que começará a vacinar em janeiro. Aqui, vacinação só em fevereiro, março, sei lá, já que Claudio Castro diz que vai seguir seu líder, o general paradão.

Assédio

O assédio do deputado Fernando Cury à deputada Isa Penna é uma demonstração absurdamente explícita do desrespeito e do abuso. Como pôde o deputado imaginar que podia se esfregar assim numa mulher sem o seu consentimento e que não aconteceria nada? Ainda mais em se tratando de uma parlamentar do PSOL, partido conhecido por sua constante luta contra este tipo de abuso. O partido de Marielle Franco, convenhamos. E, depois, o local do assédio era o plenário da Assembleia Legislativa de SP, local monitorado por câmeras o tempo todo. Cury deve ser punido por importunação sexual, falta de decoro e burrice atroz.


Adriana Fernandes: Vacinação para todos

Guedes reconhece que vacina é essencial à sustentação da retomada em 2021

 “Saúde e vacinação para todo mundo!” Foi com essa despedida que Paulo Guedes encerrou a entrevista virtual que concedeu para fazer um balanço geral de 2020. Guedes sai de férias (ele volta ao trabalho no dia 8 de janeiro) não sem antes reconhecer o que todos cobravam: a vacinação em massa dos brasileiros é essencial para a sustentação da retomada econômica em 2021. 

A fala do ministro se segue à do presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, que defendeu também as vacinas. Sem uma vacinação rápida, mais vidas serão perdidas. Ponto. Não há nem o que se discutir. A economia naufraga e o ministro sabe que as condições para uma nova rodada de expansão de gastos na mesma magnitude da de 2020 inexistem. 

“Se há uma vacina aí, com duas sociedades extraordinariamente avançadas e civilizadas vacinando, vou olhar e falar ‘quero essa aí, rápido’”, reconheceu, sem revelar se vai se vacinar. Alegou privacidade, mas com 71 anos, ninguém ao seu redor tem dúvidas de que o fará. Aliás, como deve ser feito. O Brasil precisa vacinar a maior quantidade possível de pessoas. Para eliminar a doença, mais de 70% da população teria de ser vacinada.

A declaração de Guedes foi sensata, mas, infelizmente, na direção oposta à do presidente Bolsonaro, que insiste em atrapalhar o combate da pandemia com frases como a de que “não há garantia de que a vacina não transformará quem a tomar em um jacaré”, dita da véspera. Seguimos assim, o presidente falando uma coisa e seus ministros ajustando o tom. Isto é, quando dá.

Os críticos que cobram realismo do ministro ouviram declarações do tipo: “Acabou. Não prometo mais nada”; “Eu esperava avançar nas reformas com mais ímpeto? Sim”; “Não sei se o governo é reformista ou não porque na hora da verdade chegou um vendaval”; “É natural Bolsonaro pensar em fazer obra, usar empresas estatais”, “Sou o ministro mais vulnerável” e “demissível em cinco minutos”.

Depois da ênfase da necessidade de vacina, talvez, a declaração mais franca e importante do ministro tenha sido sobre a reforma tributária. O ministro abriu o jogo e praticamente cortou os canais de diálogo para uma negociação da PEC 45 de reforma tributária que tramita na Câmara. “Tem uma proposta deles. Não é nossa; tem um impasse”. E acrescentou: “Ia exigir uma alíquota de 30%. Comércio e Serviços iam quebrar. Não posso me lançar numa aventura dessa. Prefiro esperar”. Até agora, ao menos em público, não tinha sido tão claro.

Guedes carimbou a PEC 45 como uma proposta que aumenta impostos. Um sinal evidente de que a reforma tributária não está na lista de prioridades para 2021 e que não passou de blefe a fala de líderes do governo, nas últimas semanas, apoiando a votação da proposta e até mesmo do projeto do governo que cria a CBS, o IVA federal

O ministro teve de admitir também na entrevista que o governo não quis garantir a concessão do 13.º para os beneficiários do Bolsa, após Bolsonaro dizer que a culpa era de Rodrigo Maia. Em reação à mentira do presidente, Maia, irado, colocou em votação a MP 1.000, editada para a prorrogação do auxílio emergencial em R$ 300 até dezembro. Depois da fala de Guedes, foi retirada. Era isso ou o risco de perder o controle na votação.

Nas redes sociais, a #MP1000 pedia a votação de uma nova prorrogação do auxílio, o que o governo não quer deixar até buscar um acordo depois das eleições da Câmara e do Senado. Por isso, Guedes tem insistido num ponto: “A cobertura do auxílio emergencial vai até fevereiro, temos até lá para ver”.

É que o cronograma dos pagamentos do auxílio de 2020 foi estendido pela Caixa até o início de 2021. Mas ninguém dá detalhes sobre esses pagamentos ou responde aos questionamentos oficiais. O Ministério da Economia manda o Ministério da Cidadania explicar. E a Caixa finge que não é com ela há três semanas. Definitivamente, tem coisa aí para tanto jogo de empurra.

É curioso que depois da reação de Maia começaram a ser tiradas das gavetas dos deputados propostas de emendas à MP. Uma delas cria a Contribuição Social Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira Emergencial para bancar o benefício.

Embora tenha notadamente falhas jurídicas para avançar, é visível o ímpeto dos congressistas. Essa pressão volta com tudo em janeiro quando Guedes retornar das férias e será maior a depender do estágio da pandemia. Os sinais de piora estão aí com o aumento dos casos da doença e das mortes.

Que a vacina chegue rapidinho. A coluna termina desejando a todos os leitores um pouco mais de paciência e cuidados adicionais até lá. E também com a mesma saudação do ministro Paulo Guedes: vacinação a todos. Bom Natal em segurança! 


Cristina Serra: Sobreviver até 2022

Bolsonaro ainda tem 742 dias no poder para executar seu projeto de dissolver o país; resta-nos morrer de inveja de quem tem a vacina

O mundo da ciência e das luzes pode se orgulhar de uma façanha que vai beneficiar toda a humanidade: a produção de vacinas contra o coronavírus apenas um ano depois do registro dos primeiros casos de contaminação. Os países que se adiantaram para comprar os imunizantes comemoram, autoridades se vacinam em público para dar exemplo, as populações felizardas respiram aliviadas e se preparam para um Natal cheio de esperança.

Mas isso é lá fora. No Brasil, comandado pela personificação do mal, a torcida é contra o antídoto, seja qual for a sua origem. Quem tomá-lo pode virar "jacaré"; se for homem vai "falar fino", se for mulher, pode "nascer barba". E você, que está ansioso esperando pela vacina, pode tirar o cavalinho da chuva porque "não vai ter para todo mundo".

A língua malsã de Bolsonaro reverbera no submundo digital por meio de uma rede de seguidores extremistas, jornalistas, pastores, políticos e médicos vigaristas. O vírus da desinformação se propaga tão rapidamente quanto a pandemia e se hospeda comodamente em parcela significativa da sociedade, que se reconhece e se vê representada em Bolsonaro.

Com o discurso de sabotagem à vacina, Bolsonaro consegue esfarrapar o tecido social, esvaziando as reservas de solidariedade que qualquer grupo precisa mobilizar diante de uma situação de perigo, como a que vivemos agora. Compreender isso e contrapor projetos alternativos para o Brasil são os maiores desafios nos próximos dois anos para os que acreditam na democracia.

Com o horizonte do novo ano já ao alcance da vista, se tivéssemos a certeza de um plano de vacinação para todos poderíamos tentar virar a página desse infausto 2020. Mas o vírus volta a se infiltrar entre as famílias, a abrir covas e a erguer jazigos, o impeachment é uma miragem e Bolsonaro ainda tem 742 dias no poder para executar seu projeto de dissolver o país. Resta-nos morrer de inveja de quem tem a vacina e tentar sobreviver até 2022.


Hélio Schwartsman: A culpa é do brasileiro

Um dos problemas com a democracia é que ela realiza as preferências do eleitorado

Juro que tento pautar-me pelo humanismo e pela compaixão nas avaliações que faço da epidemia de Covid-19 no Brasil, mas às vezes é difícil. O último Datafolha foi uma ducha de água fria em meus pendores filantrópicos.

Sim, Jair Bolsonaro é um dos grandes responsáveis pela situação de descalabro que vivemos, mas receio que a população brasileira não fique muito atrás. E não o afirmo apenas porque caiu a disposição do brasileiro em ser vacinado (ela agora é de 73%, contra 89% em agosto) e porque a maioria (52%) considera que o presidente não tem nenhuma culpa pelas mais de 180 mil mortes, resultado que já comentei no início da semana. Novos achados da mesma pesquisa contribuem para derrubar minha fé, senão na humanidade, ao menos no brasileiro.

A crer na "vox populi", a primeira coisa que deve ser fechada para evitar os contágios são as escolas (66%)... e a última, as igrejas (49%). Até os bares (55%) vêm antes da educação. Com prioridades assim não é um espanto que estejamos no ponto em que estamos, como a segunda nação com mais mortes no planeta.

E não são meus impulsos anticlericais que me levam à revolta. Pela própria lógica dos religiosos, que creem num Deus benevolente, onisciente e onipresente, não deveria fazer diferença se o fiel faz suas preces no templo ou em casa. Em tese, o Cara ouve de qualquer lugar.

Outro ponto que me deixa desconfortável é ter de aplaudir João Doria. O governador de São Paulo, embora não seja muito menos conservador e autoritário que o presidente, ao menos abraçou a causa da vacina e da abertura das escolas. Mais, ainda que se valendo de um certo populismo, conseguiu fazer com que o Ministério da Saúde se mexesse para acelerar a vacinação.

Um dos problemas com a democracia é que ela realiza as preferências do eleitorado. Isso significa que, se a maioria desejar bobagem, mais cedo ou mais tarde bobagens serão cometidas.


Bernardo Mello Franco: Estupidez contagiosa

Enquanto Jair Bolsonaro esperneia, o Supremo tenta proteger os brasileiros do coronavírus e do desgoverno. Em outubro, o presidente disse que a Justiça não poderia decidir “se você vai ou não tomar uma vacina”. Ontem a Corte ignorou a bravata e autorizou estados e municípios a adotarem a imunização obrigatória.

Ao contrário do que sugere a propaganda bolsonarista, ninguém será arrastado pelos cabelos até o posto de vacinação. Mas quem se negar a entrar na fila poderá ser impedido de frequentar escolas, comer em restaurantes ou usar o transporte público.

“A saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas”, resumiu o ministro Ricardo Lewandowski. “A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser soberanamente egoísta”, reforçou Cármen Lúcia.

O ministro Alexandre de Moraes lembrou as mais de 180 mil mortes e disse que o momento não permite “demagogia”, “hipocrisia”, “obscurantismo” e “ignorância”. Faltou combinar com o capitão e seus aspones.

Em mais uma aglomeração no Planalto, o novo ministro do Turismo discursou contra as medidas de distanciamento social. Ele também defendeu a realização de festas de réveillon com até 300 pessoas “A gente tem que viver a vida, não dá para morrer por antecipação”, disse.

Entre um disparate e outro, o sanfoneiro do Alvorada fez uma serenata de bajulação. Sem corar, Gilson Machado afirmou que Bolsonaro está “recuperando a autoestima de todo o povo”. “Aonde o senhor vai, o povo lhe aclama”, derramou-se, de olhos postos no chefe.

No segundo palanque do dia, o presidente retomou a cruzada contra a vacina. Ele tentou assustar a claque com efeitos colaterais inexistentes, que fariam mulher cultivar barba e homem falar fino. “Se você virar um jacaré, é problema de você, pô”, pontificou.

Como a ignorância é contagiosa, o capitão continua a engordar seu rebanho. No último domingo, o Datafolha informou que cresceu de 9% para 22% a fatia de brasileiros que não querem se imunizar contra o coronavírus. E 52% acham que Bolsonaro não tem nenhuma culpa por tantas mortes no país.


Eliane Cantanhêde: Aos trancos e barrancos

Bolsonaro é Bolsonaro, mas o STF e as instituições sabem defender o Brasil. Até dele

A vacinação contra a covid-19 preserva vidas, é um direito e uma obrigação coletiva e “não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político eleitoreiras e, principalmente, não permite ignorância”. Essa enxurrada de bom senso, que serve como uma verdadeira aula para todos e cada um, foi dada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, em mais um julgamento memorável do Supremo nesses nossos tempos tão sombrios, às vezes macabros.

Na votação a favor da vacina obrigatória, por bem ou por mal, Moraes mandou um claro recado ao presidente, ao ministro da Saúde, a governadores, prefeitos e seguidores desses lunáticos de internet que são contra vacinas, especialmente contra a “vacina da China”. Isso começa “de cima”, quando o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em guerrear contra isolamento social, máscaras e “maricas”, declara: “Não vou tomar a vacina. Ponto final”.

Quantos, por ideologia ou ignorância, não acataram o grito de guerra do presidente contra as vacinas? Quantos, por se acharem “de direita”, sendo simplesmente burros, não começaram a ver demônios e “interesses geopolíticos” na Coronavac, chamada de “vacina da China” ou “do Doria” por Bolsonaro? Assim como isolamento e máscaras eram as únicas saídas para escapar do vírus e reduzir a contaminação, as vacinas são o único instrumento científico capaz de salvar vidas, trazer de volta a normalidade, os negócios e os empregos. Bolsonaro atacou aqueles, tentou combater estes.

As instituições, porém, salvam o País e o Supremo, que erra no varejo, nas brigas comezinhas, acerta no atacado, na defesa da democracia e da racionalidade. Foi assim contra golpistas, extremistas e fake news e quando decidiu que governadores e prefeitos não estariam sujeitos às maluquices de Bolsonaro na pandemia. E é assim, agora, ao permitir que União, Estados e municípios garantam, direta ou indiretamente, a obrigatoriedade da vacina. E que os pais sejam obrigados a imunizar seus filhos.

A decisão do Supremo – com o voto contrário, ora, ora, de Kassio Nunes – é um tanto confusa: o que é vacina obrigatória, mas não forçada? A melhor explicação é que ninguém vai ser puxado pelos cabelos ou “sofrer condução coercitiva” para se vacinar, como disse o procurador-geral, Augusto Aras, mas aqueles que se recusarem a fazê-lo sabem que vão sofrer as consequências.

Na prática, o Supremo autoriza empresas públicas e privadas, escolas e supermercados, cinemas e companhias aéreas, por exemplo, a recusarem funcionários e clientes que não sejam vacinados. Se você não toma vacina contra a febre amarela, é proibido de viajar a vários países. Se não tomar contra a covid-19, poderá sofrer sanções diferentes formas. Logo, onde se lê que o Supremo determinou a “obrigatoriedade”, leia-se que criou “mecanismos indutores” para a vacinação.

E para que tudo isso? Para, mais uma vez, botar o pé na porta e impedir, ou prevenir, arroubos insanos do presidente e do seu governo contra os interesses e os direitos à vida e à saúde da Nação. Assim como não se ouve falar mais em manifestação e convocações golpistas pela internet, o presidente mudou o tom, o tal ministro da Saúde foi obrigado a agir.

Aos trancos e barrancos, o governo lançou um plano nacional de vacinação e uma medida provisória para liberar R$ 20 bilhões, encomendou vacinas, engoliu a do Butantã (de origem chinesa), reincluiu os presos entre os prioritários e até convocou o Zé Gotinha. Bem, nenhuma das vacinas é por gotinhas, mas deixa para lá... O importante é que Bolsonaro continua sendo Bolsonaro, irrita, cansa, ameaça, desperdiça tempo, mas é obrigado a recuar e se render à realidade. Apesar dos pesares, o Brasil sabe se defender. Inclusive dele.


Fernando Abrucio: Um 2021 a favor da vida

A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos

Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.

A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.

O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”

Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.

Destacaria cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político. Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de opinião irá mudar substancialmente.

A revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais, com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras epidemias famosas.

Uma vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo, porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente, especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.

A pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais. A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da vida.

O maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços. Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.

A pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de um não rotundo contra a ordem desigual atual.

Essa quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam. Você irá se surpreender.

A agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo. Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância, a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância. Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de veracidade.

E como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou, nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e as instituições.

O pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o mundo nos próximos anos.

Inaugurar um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Elena Landau: Ho, ho, ho

Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar

Antes de mais nada, boas-festas para todos. Parece um desejo quase impossível neste ano terrível de 2020. Mais de 180 mil brasileiros não estarão nem nas mesas com suas famílias, nem via zoom, nem em grupos de zap. A vacina é o principal pedido para Papai Noel, juntando adultos e crianças na esperança de um milagre de Natal. Só que, do mundo imaginário ao real, um longo caminho nos espera. Os imunizantes apareceram em tempo recorde no mundo, mas por aqui a politização da saúde, a negligência, a incompetência, reflexo do pouco caso oficial, tornam o acesso dos brasileiros à vacinação um sonho duvidoso e incerto.

No jornal, o Bonequinho me recomenda uma ida ao cinema para ver a nova versão de Poderoso Chefão e a declaração de amor a Babenco. Junto com as ofertas de viagem e hotéis que chegam, me soa como bullying. Parece que há uma realidade paralela. E há; está refletida na imagem de um Bolsonaro possuído, discursando na Ceagesp. Nem Joaquin Phoenix faria melhor.

A saudade do beijo e do abraço é enorme. Até da turbulência de um voo de verão, para ver amigos na cidade de São Paulo, eu sinto falta. É a volta da normalidade, com seus perigos e delícias. São meus sonhos mesquinhos, mas não posso fingir que não é o que quero para 2021. Fazer planos. Enquanto isso, vou atravessando este momento, seguindo Guimarães Rosa: “A felicidade se acha em horinhas de descuido”. É procurar.

Com a chegada do fim do pior ano da minha vida, há um natural alívio gerado pela mística ideia de que a virada da meia-noite nos trará um mundo novo. Estava nesse espírito até que recebi um meme “Antes de entrar 2021, eu quero ver o trailer”. De fato, com esse governo, tudo sempre pode piorar. Para quem tem alguma dúvida, recomendo assistir o documentário Cercados, na Globoplay. Em duas horas, o resumo da atuação do Capitão Morte. O deboche e o desprezo pelos brasileiros sendo revivido dia a dia.

Nove meses se passaram desde os primeiros sinais da pandemia e o documentário mostra a escalada das mortes. Impressionante. Fiquei pensando como ainda estamos, passivamente, como sociedade, aceitando a permanência na Presidência da República de uma pessoa que comete crimes contra a saúde de seu povo de forma tão consciente e premeditada. Quantos mais precisarão morrer? Aí vejo o resultado das pesquisas de opinião e a perplexidade aumenta. De volta à Idade das Trevas. 

Se o presidente é um irresponsável, para dizer o mínimo, o que dizer das nossas instituições? Uma agência reguladora, capturada pelo mais mesquinho critério político, se junta no desrespeito aos brasileiros a um Ministério da Saúde, que obedece a qualquer ordem porque (acha) que tem juízo. 

A vida vai seguindo como se fosse natural encher três Maracanãs com vítimas da covid-19. E Pazuello nos pergunta por que tanta ansiedade, tanta angústia? Diz que podemos confiar nele, o rei da logística, que deixou testes perderem validade esquecidos em um canto qualquer. 

Negociações para presidência da Câmara e do Senado continuam com base nas mesmas pautas comezinhas, tratando a responsabilidade de Bolsonaro na tragédia da pandemia como questão menor.

E a vacina é só o primeiro passo. Ano que vem ainda serão sentidos os graves efeitos da pandemia, que escancarou a realidade da desigualdade social. Os tais invisíveis. Habitação insalubre, falta de saneamento e acesso a itens básicos de higiene, desigualdades na educação e transporte público de péssima qualidade foram estampados nos jornais. Não dá mais para varrer para debaixo do tapete.

Apesar disso, não há nenhuma iniciativa do governo. Representante supremo do mundo da fantasia, o ministro da Economia foi abduzido de vez pela realidade paralela. Sumiu, junto com as reformas prometidas. E enquanto isso, no apagar das luzes, a diretriz orçamentária é votada a toque de caixa, com seus puxadinhos e sem obedecer os ritos tradicionais. Em fato inédito, Orçamento mesmo, só em fevereiro. Pelo jeito, já vamos começar 2021 devendo 2023.

Não há perspectiva de crescimento sustentado. Nem há na agenda nenhuma política social de qualidade. O único alento é que não ficamos parados esperando as novidades da semana que vem e uma Lei de Responsabilidade Social foi proposta.

Para sorte de muitos, a sociedade civil se mobilizou; cestas básicas foram distribuídas, vizinhos se cuidaram e doações de todo tipo apareceram. Tem quem pense ser esse um novo normal, mais humano, que veio para ficar. Não acredito nisso. As aglomerações e o abandono dos cuidados mostram como é fácil tudo isso se desmanchar no ar. São necessárias políticas públicas bem desenhadas e permanentes que possam, ao menos, reduzir a segregação da população e salvar vidas.

Este dezembro está sendo um teste para meu lado Pollyanna, peço desculpas pelo pessimismo. Afinal, é hora de festejar. Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar. Então vamos lá, são só mais 13 dias. Feliz 2021.

Mas se a tristeza baixar em você, cante Belchior, como faz Emicida: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro”.

*ECONOMISTA E ADVOGADA 


El País: STF decide que vacina contra covid-19 poderá ser obrigatória e impõe derrota para Bolsonaro

Ministros determinam que população não poderá ser forçada a se vacinar, mas União, Estados e municípios poderão criar restrições para quem não tomar o imunizante

Marcelo Cabral, Beatriz Jucá, El País

Os ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, decidiram nesta quinta-feira pela obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19 no país. Por dez votos a um, o STF entendeu que as vacinas são obrigatórias ―mas não forçadas―, porque, na visão da corte, a decisão individual de cada pessoa não pode se sobrepor à saúde coletiva do país como um todo. Na prática, isso significa que ninguém será forçado ou coagido a tomar uma vacina, mas que poderá sofrer medidas restritivas por leis criadas pela União, Estados e Municípios, caso deixe de fazê-lo. Essas restrições podem incluir a proibição de embarcar para viagens ou de frequentar alguns espaços públicos, por exemplo.

A decisão do Supremo representa uma derrota para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que declarou publicamente várias vezes ser contra a obrigatoriedade da vacinação. Na terça-feira, durante entrevista ao apresentador José Luiz Datena, Bolsonaro afirmou que " Como cidadão é uma coisa, e como presidente é outra. Mas como eu nunca fugi da verdade, eu digo: Eu não vou tomar a vacina. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final”.

Bolsonaro também não irá participar de campanhas para incentivar a população a se vacinar contra o novo coronavírus, segundo o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello― uma posição contrária à de diversos líderes mundiais, como o presidente eleitos dos EUA, Joe Biden, que deve se imunizar na próxima semana, ou a rainha Elizabeth, do Reino Unido. “Sobre o presidente ser voluntário ou não, eu acho que é o mesmo enfoque: ele está reforçando a voluntariedade, e não a obrigatoriedade. É uma visão”, afirmou o ministro, durante sessão no Senado nesta quinta.

O presidente também vem defendendo a exigência de um termo de consentimento, a ser assinado pelas pessoas que receberem doses das vacinas que forem autorizadas em caráter emergencial. No entanto, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que não irá incluir esse termo na votação da Medida Provisória que autoriza o Brasil a aderir ao consórcio mundial liderado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para providenciar o acesso à vacinas a preços mais baixos. “O relator não vai incluir esse retrocesso na MP. Que seja incluído por emenda do governo, não por um partido da presidência da Câmara. O governo que tente ganhar no Plenário”, disse Maia.

O líder da Câmara também chamou de “lamentável” a decisão de Bolsonaro de não se vacinar. “Enquanto ele briga pelo tema, milhares de brasileiros vão se infectando e centenas vão perdendo suas vidas. Está tratando de um tema tão grave de forma tão irresponsável, mas tenho fé que ele compreenda seu papel e consiga não fazer uma guerra ideológica e responder aos anseios da sociedade brasileira”, criticou o político.

Já a oposição celebrou a decisão do STF. O ex-ministro da Saúde e deputado federal Alexandre Padilha (PT) destacou que a vacina não é proteção individual, mas proteção coletiva. “Quem se vacina protege a si, aos seus pais, seus filhos, seus colegas de trabalho, seus pares no mundo”, afirmou no Twitter. Já o deputado federal Marcelo Freixo considerou a decisão importante após Bolsonaro criticar publicamente a vacina. “Nós só vamos vencer a covid-19 se nós lutarmos juntos e pensarmos uns nos outros. Cuidar de si é cuidar de todos”, publicou o parlamentar do PSOL.

Julgamento triplo

O julgamento do STF surgiu a partir de duas ações sobre o tema movidas por partidos políticos ―o PDT e o PTB. Na primeira, os ministros eram questionados se Estados e municípios teriam competência para determinar a vacinação compulsória durante a pandemia. Já na segunda, o PTB, partido aliado de Bolsonaro, pedia que o Supremo declarasse inconstitucional a obrigatoriedade da vacinação. O Supremo decidiu confirmar a primeira tese e rejeitar a segunda. Também foi julgada ainda uma terceira ação sobre o tema, que questionava se o Estado poderia obrigar pais a vacinarem os filhos, a despeito de objeções filosóficas, religiosas, morais e existenciais. A decisão, também nesse caso, foi favorável à obrigatoriedade da vacinação.

Durante o julgamento, os ministros lembraram, por exemplo, da obrigatoriedade do voto, em que o eleitor não é coagido a se dirigir às urnas, mas pode sofrer sanções caso não cumpra o seu dever eleitoral. Eles também disseram que, sem condições dignas de saúde pública, não existe liberdade.

Votaram a favor da vacina obrigatória os ministros Ricardo Lewandowski, relator do caso, e os magistrados Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux. O único voto parcialmente contrário foi do magistrado Kassio Nunes Marques. Ele reconheceu a possibilidade de restringir ações para quem não tomar a vacina, mas afirmou que a medida deveria depender de aval do Governo Federal, via Ministério da Saúde. Marques foi indicado ao STF em outubro deste ano, justamente por Jair Bolsonaro.

Importação rápida das vacinas

Lewandowski, aliás, também determinou uma liminar sobre vacinas na noite desta quinta-feira, determinando que prefeitos e governadores poderão importar diretamente vacinas no caso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não der o aval para uso de vacinas já registradas em agências reguladoras internacionais em um prazo de até 72 horas. Vacinas autorizadas por pelo menos uma das agências sanitárias citadas por lei ―da União Europeia, Estados Unidos, Japão ou China― e distribuídas comercialmente nos respectivos países poderão ser adquiridas por gestores locais, caso não seja cumprido o plano nacional de vacinação ou “não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença”, segundo o ministro. A decisão acontece em meio a críticas de uma suposta inércia do Governo Federal e de suspeitas de politização na agência.

Ainda nesta quinta, apesar de estar imerso em uma enxurrada de críticas nas últimas semanas pela demora para apresentar a estratégia brasileira de vacinação contra a covid-19, Pazuello afirmou que o Brasil está na vanguarda do mundo com o seu planejamento ―mesmo com países como Reino Unido, Estados Unidos e Rússia já tendo iniciado seus programas nacionais de vacinação. Segundo o ministro, o Brasil pode receber 24,7 milhões de doses das vacinas da Astrazeneca, da Pfizer e da Sinovac no mês de janeiro, caso estes imunizantes recebam o aval da Anvisa e cumpram o cronograma de entrega estabelecido em memorandos de entendimentos. Até o momento, o Governo só tem contrato assinado para a aquisição de doses com a Astrazeneca. Mesmo considerando estas três vacinas, a previsão é de chegar a 93,4 milhões de doses até março ― o que vacinaria pouco mais de 42 milhões de pessoas, considerando a necessidade de duas doses por pessoa e as perdas por eventuais problemas logísticos.

“Nós não estamos sendo atropelados, nós estamos numa vanguarda”, afirmou Pazuello, um dia depois de apresentar oficialmente o plano operacional de vacinação brasileiro. O documento já incluía a intenção de aquisição da Coronavac ―vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac com parceria de produção pelo instituto Butantan, vinculado ao Governo de São Paulo―, mas não especificava um cronograma com o quantitativo de doses previstas. O ministro diz que a campanha pode começar em janeiro, se houver registro da Anvisa e se os laboratórios conseguirem entregar as doses negociadas. Uma medida provisória foi publicada no Diário Oficial nesta quinta para destinar 20 bilhões de reais para aquisição de vacinas, compra de insumos como agulhas e seringas e realização de campanha de vacinação.


Juan Arias: Brasil reage com iniciativas de vida aos instintos de morte de Bolsonaro

Sobre os ombros do presidente cairá a dor de que o o país tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas pela covid-19

Os dois maiores crimes do presidente Jair Bolsonaro em seus dois anos de Governo foram o negacionismo da pandemia, chamando-a de “gripezinha” e depois qualificando de “covardes e maricas” aqueles que se esforçam em tomar as medidas ditadas pela medicina e pela ciência para se proteger do contágio. Para dar o exemplo, Bolsonaro desprezou publicamente todas as medidas de prevenção.

Junto com o desprezo pela epidemia que fez mais de 180.000 vítimas, o que lhe valeu o qualificativo de genocida, Bolsonaro entrará tristemente na história também por seu desprezo pelo meio ambiente e sua destruição da Amazônia, uma das maiores riquezas do país e do mundo.

Diante desses crimes com instintos de morte e destruição, o Brasil começa a reagir com uma iniciativa de vida fortemente simbólica: a de plantar uma árvore para cada vítima da epidemia que terá gravados seus nomes. Dois desafios de vida contra os instintos de destruição do presidente.

O Brasil está, efetivamente, perdendo sua imagem no mundo com as atitudes de morte e destruição de seu Governo. O The New York Times, considerado um dos jornais mais sérios do mundo, acaba de publicar que o Brasil é o país que travou da pior maneira a luta contra o vírus, talvez junto com os Estados Unidos de Trump, o ídolo de Bolsonaro. Não por acaso são os dois países do mundo com mais óbitos.

A pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher e dos Direitos Humanos que quer que os meninos usem azul e as meninas, rosa, nas escolas, teve o sarcasmo de afirmar que o Brasil finalmente tem o presidente que necessitava: um presidente “macho”. Talvez tenha querido dizer um presidente que odeia as mulheres, as pessoas frágeis, os diferentes, a quem chama de covardes. Um presidente sem empatia pelos que vivem à margem da sociedade, sofrendo o flagelo das terríveis desigualdades sociais e que está destruindo a economia e a convivência nacional. Um presidente com o qual o Brasil perdeu cinco posições no ranking de desenvolvimento humano, como a ONU acaba de anunciar.

Não, o Brasil não precisa de um presidente “macho”. Está precisando de um estadista com projetos de vida e de reconstrução de um país em crise. Um estadista que aposte em projetos de vida e não de morte. Que tenha um sentimento de empatia pelas pessoas, que saiba sofrer com suas dores e suas tristezas. Que seja solidário com as famílias das vítimas, que apresente programas capazes de fazer o país crescer e lhe devolva o amor pela vida e não pela morte. Um presidente que acredite no melhor deste país, que é seu amor pela vida em vez de semear ódios e instintos de morte.

Dizer que o que este país precisa é de um presidente “macho” é ofender as mulheres em um país que mais as mata e onde elas ainda não ocupam o lugar que lhes corresponde na sociedade. É a melhor forma de dizer que o Brasil deve ser governado por machistas, autoritários, amantes das armas, do autoritarismo, que despreza tudo o que é frágil e marginal. É ir na contramão de uma luta universal contra o desprezo pelo feminino e onde, com muito sofrimento e lutas, o mundo da mulher começa a abrir espaço.

Machismo é o que o mundo tem de sobra. Chegou a hora de abrir novos espaços e horizontes para combater definitivamente o preconceito em relação aos valores femininos. Com a presença de Bolsonaro, o presidente macho, o Brasil continuará indo ladeira abaixo em suas lutas para construir uma sociedade mais humanitária, menos classista e desigual. Enquanto isso o Brasil afunda, brincando com o caos, brincando com a vida. O Natal se aproxima, e o presidente macho, que coloca em seu emblema “Deus acima de tudo”, continua apostando na morte em vez de na vida.

Sobre seus ombros cairá a dor de que o Brasil tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas. Na boca de Bolsonaro, com o nome de Deus que evoca amor por todos e principalmente pelos abandonados e marginalizados, a vida soa mais como uma blasfêmia.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.