Temer
Merval Pereira: Temer preso ao passado
Eliane Cantanhêde: Os homens do presidente
Prisão de Yunes e Lima ameaça Temer e cresce polarização esquerda-direita
Míriam Leitão: Os sinais da operação
Luiz Carlos Azedo: Perigo na pista
Temer pretendia decolar seu projeto de reeleição do aeroporto de Vitória, mas quase foi abatido na pista
1º de Abril no #ProgramaDiferente: É Domingo de Páscoa e Dia da Mentira no País da Propinocracia
Tem gente que acredita em Coelhinho da Páscoa, Papai Noel, duende, saci... Tem até quem acredita em políticos corruptos, denunciados na Lava Jato. A seis meses das eleições, neste #ProgramaDiferente de 1º de abril que reúne por coincidência a Páscoa e o Dia da Mentira, com a prisão dos amigos mais próximos do presidente Michel Temer e às vésperas de uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de prisão do ex-presidente Lula, vamos tratar dessas histórias, lendas, crenças, fraudes, embustes, trapaças, balelas... É o Brasil da Propinocracia. Assista.
Monica de Bolle : Azedume
A imagem do Brasil, hoje, é de país degradado pela corrupção e 'cupinizado' por um sistema político apodrecido
Nas palavras sábias de um amigo, a execução calculada de Marielle Franco e de Anderson Gomes no Rio de Janeiro há exatamente uma semana matou, de uma tacada, a vereadora e seu motorista, os fatos, e a civilidade política. A violência com fins políticos, modalidade recém-inaugurada no Brasil, as mentiras propagadas nas redes sociais, e a brutalidade dos comentários sobre o atentado somam-se aos aviltantes pronunciamentos de candidatos com aversão aos direitos humanos, aos insossos e desgastados presidenciáveis da chamada centro-direita, às propostas macroeconômicas fantasiosas da esquerda brasileira. Somam-se também à debilidade da retomada econômica que só o mercado festeja – o cidadão comum ainda pena para resgatar algum senso de segurança – e à visão nefanda de que o impeachment de Dilma mostrou que esse mesmo mercado tem o poder de remover governantes com pouca habilidade para gerir a economia do País.
O impeachment de coalizão – como na época chamei a remoção de Dilma com a preservação de seus direitos políticos contrariamente ao que diz a Constituição – foi por mim defendido por esse mesmo motivo: Dilma havia perdido a capacidade de gerir o País, e a funesta contabilidade criativa de seu governo levara a economia à beira da bancarrota. Confesso aqui sem medo algum de ser vilificada pelos autopresumidos destruidores de reputações que vivem de atacar os outros: já não tenho as mesmas convicções, ainda que continue a acreditar em meu relato sobre a condução devastadora da política econômica do governo Dilma no livro Como Matar a Borboleta Azul: Uma Crônica da Era Dilma.
Substituímos um governo péssimo na gestão econômica por outro tão marcado quanto o anterior pelas revelações da Lava Jato. A falta de escrúpulos estampada nas revelações do encontro de maio de 2017 na garagem do Jaburu enterrou de vez a reforma da Previdência, embora ela já estivesse na berlinda desde os primeiros dias do governo Temer, como disse em 2016. Afinal, o impeachment de coalizão e de conveniência não tinha como legitimar qualquer governo sucessor, por melhor que fosse sua agenda de transformação do País. Traduzo aí o sentimento de pelo menos algumas pessoas que vivem tanto no Brasil, quando fora dele. Mas, para alguns integrantes do mercado, essa é verdade, no mínimo, inconveniente – verdade azeda, corrosiva, pessimista. Verdade que atiça indignação, vituperações e ataques pessoais àqueles que a apontam. Denegrir é prática que se tornou ainda mais comum no Brasil desnorteado pós-impeachment. Rebater o argumento não interessa – interessa abater a pessoa para que se cale.
No meio dessa cacofonia, agora ampliada pelos assassinatos execráveis no Rio de Janeiro, poucos notam como é visto o florão da América fora de suas fronteiras. Trata-se não de indiferença ou descaso – antes ainda fosse assim. A imagem do Brasil, hoje, é de país degradado pela corrupção, “cupinizado” por sistema político apodrecido, violento e brutal, tão deploravelmente brutal. Ignorante de si, tenta o País emplacar o enredo do governo salva pátria, da retomada econômica cujo êxito se sobreporia à degeneração institucional e social em tão visível exibição. Quem vê de longe enxerga isso.
Alguém para por um momento para refletir porque membros do Parlamento Europeu proferiram palavras tão duras a respeito do Brasil? Alguém se dá conta de que na disputa pela atenção do governo americano na briga do aço nós estamos entre os últimos da fila? “Ah, mas que importa? O investimento estrangeiro continua a vir para cá, o mercado lá fora nos vê com bons olhos, portanto, que erro de análise!”, devem pensar os que com pouco precisam se preocupar, os 10% da população que detêm 55% da renda brasileira, segundo o último relatório World Inequality Report.
A recuperação vai ganhar força, a inflação vai continuar baixa, o desemprego vai continuar a cair, a intervenção militar no Rio vai dar conta do recado, os Estados quebrados vão se reerguer. Tudo vai se ajeitar, o Brasil vai eleger o reformista, o Brasil vai crescer, o Brasil vai voltar a ser respeitado, o Brasil será tratado como país sério, o Brasil é o futuro, eternamente.
“Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro dessa flâmula
Paz no futuro e glória no passado”
É mesmo?
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Rogério Furquim Werneck: Temas menos espinhosos
Diante das dificuldades de aprovar Previdência ainda neste governo, o Planalto deveria ter mantido o plano do jogo e persistido
Na reta final, o Planalto preferiu abandonar o plano de jogo e improvisar. E qual era mesmo o plano de jogo que o governo Temer conseguiu vender ao país, em meados de 2016, quando se deparou com as reais proporções do descalabro fiscal deixado por Dilma Rousseff?
Diante da necessidade de um ajuste fiscal da ordem de 5% do PIB — politicamente inviável —, o novo governo arguiu que o esforço para reequilibrar as contas públicas não precisaria ser feito de imediato. Poderia ser empreendido aos poucos, desde que com inequívoca determinação, no decorrer de vários anos, que se estenderiam não só pelo curto mandato tampão de Temer como pelo mandato presidencial seguinte.
A promessa de um esforço fiscal paulatino ganhou credibilidade, à medida que providências adotadas pelo novo governo desencadearam um círculo virtuoso que parecia deixar antever uma saída ordenada do atoleiro fiscal em que o país fora metido.
Tiveram especial importância, entre tais providências, a nomeação de uma equipe econômica de excelente nível, a imposição de um teto à expansão do gasto público, a transparência com que passaram a ser tratadas as contas públicas, a reversão da irresponsabilidade fiscal que vinha pautando a gestão das instituições financeiras federais e a submissão, ao Congresso, de uma proposta ousada e abrangente de reforma da Previdência Social.
Em meados do ano passado, não faltava quem acreditasse que o governo estava prestes a conseguir mobilizar, no Congresso, a maioria requerida para a aprovação da reforma da Previdência. Foi quando sobreveio o 17 de maio. E o presidente se viu forçado a consumir parte substancial do seu capital político para se manter no cargo.
No fim do ano, quando Temer voltou a ter condições de retomar o esforço de mobilização da bancada governista para aprovação da reforma, as condições se revelaram muito mais adversas.
A votação da reforma teve de ser adiada para fevereiro. Mas, findo o carnaval, Temer não quis nem esperar o final do mês. Preferiu jogar a toalha. Ao alegar que a urgência da intervenção no Rio de Janeiro inviabilizara a aprovação da reforma, permitiu-se perpetrar uma cambalhota política de alto risco, que já tive oportunidade de analisar neste mesmo espaço, há duas semanas (“O malabarismo de Temer”, 23/2).
A reforma da Previdência era um passo crucial para manter a credibilidade do discurso de ajuste fiscal paulatino que, bem ou mal, conseguiu manter sob controle um quadro de contas públicas alarmantemente insustentáveis. Diante das dificuldades de aprová-la ainda neste governo, o Planalto deveria ter mantido o plano de jogo e persistido, com mais empenho do que nunca, na campanha política em favor da reforma, que já tinha logrado avanços promissores no convencimento da opinião pública, desde que passara a bater na tecla certa da eliminação de privilégios.
No prometido esforço paulatino de ajuste fiscal, é ao próximo governo que caberá, afinal, a maior parte do esforço requerido. E para dar credibilidade a essa promessa, será preciso não só assegurar a eleição de um presidente comprometido com o ajuste fiscal, mas também convencer o eleitorado e, indiretamente, o Congresso, de que a reforma é imprescindível.
Fazer da reforma previdenciária a questão central da campanha eleitoral — para manter a credibilidade do discurso do esforço paulatino de ajuste fiscal — é o que recomenda a prudência. O eleitorado precisa entender que a União está tão quebrada quanto os estados. E que qualquer discussão consequente sobre programas de dispêndio — inclusive na área de segurança pública — não pode prescindir de um entendimento prévio e claro desse fato.
Mas o governo está em outro clima. E agora prefere se ater a temas menos espinhosos. Tudo indica que, mais uma vez, o Brasil poderá marchar para as eleições passando ao largo do problema primordial que tanto lhe tolhe as possibilidades. Será lamentável se, no estado em que está, o país acabar tendo mais uma campanha presidencial marcada pelo escapismo.
* Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio
Luiz Carlos Azedo: Canetada decisiva
Jungmann tem a seu favor a confiança de Temer, boas relações com as Forças Armadas e trânsito junto aos governadores aos quais socorreu nas crises de violência mais problemáticas
Raul Jungmann assumiu o Ministério da Segurança Pública e logo demitiu o diretor da Polícia Federal, Fernando Segóvia. Foi uma demonstração de força, antes que se organizassem resistências às mudanças decorrentes da criação da pasta. Segóvia já estava no pelourinho, por sua atuação desastrada, mas ninguém esperava uma medida tão imediata e de tamanho impacto na estrutura que pretende comandar como ministro extraordinário. O demitido despachava diretamente com o presidente Michel Temer e tem amplo relacionamento político, principalmente junto à cúpula do Senado.
Vários problemas foram resolvidos com a canetada: primeiro, Jungmann assegurou o monopólio da interlocução com Temer; segundo, apaziguou a relação da PF com o ministro Luís Barroso, do Supremo Tribunal Federal, relator de inquérito que investiga o presidente da República; terceiro, limpou a área com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que andava indignada com o diretor da PF por causa das tentativas de monitorar as investigações da Operação Lava-Jato; quarto, aproximou a nova pasta do ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao nomear para o lugar de Segóvia o delegado Rogério Garollo, que o assessorava como secretário de Justiça; finalmente, acenou para os delegados da PF que a autonomia na condução das investigações não sofrerá interferência.
Segóvia era um fio desencapado, em quatro meses no cargo abriu várias frentes de conflito. Por ser relacionado com a cúpula do MDB, se movimentou com açodamento na política, o que foi seu maior erro. Sua intenção era mostrar serviço para o Palácio do Planalto, mas acabou virando uma presença incômoda na equipe do governo, como é comum acontecer quando o sujeito começa a ser chamado de macaco em casa de louças. Quando Jungmann tomou posse, a demissão já havia sido decidida. Temer estava sendo responsabilizado pelas ações de Segóvia.
Garollo era o candidato do ex-diretor-geral da Polícia Federal Leandro Daiello à sua própria sucessão. Apesar do apoio do ministro Torquato Jardim, teve a nomeação barrada pela cúpula do MDB, que via em Segóvia um delegado amigo e capaz de dar um freio de arrumação na Operação Lava-Jato. Garollo atuou no Comitê Executivo da Interpol, foi adido em Washington, diretor-executivo, diretor de Administração e Logística, superintendente em Goiás, além de chefe-adjunto em Pernambuco e da Divisão de Passaportes. Também chefiou o grupo de inteligência policial e fiscalização de drogas do estado de São Paulo, o que está em sintonia com a nova prioridade do governo.
A missão
A canetada de Jungmann pode ser comparada a uma tacada de golfe: olhar a trajetória da bola não vai modificar o seu curso. A direção do vento, os acidentes do terreno, a distância a percorrer, o ângulo de sua trajetória inicial, a velocidade, tudo isso tem de ser levado em conta antes da batida do taco na bola. A troca de comando na Polícia Federal determinará o sucesso de sua gestão à frente da nova pasta. Se escolheu a pessoa errada, não terá a menor chance de sucesso, porque o tempo é muito curto e uma nova mudança seria a confissão de fracasso.
Jungmann tem a seu favor a confiança de Temer, boas relações com as Forças Armadas e trânsito junto aos governadores aos quais socorreu nas crises de violência mais problemáticas. Transita bem no Congresso, o que facilitará a aprovação da medida provisória que criou o ministério. Mas não terá vida fácil, seja por causa da complexidade do problema, que exige um ataque eficaz às suas causas, seja devido à oposição, que assumiu a bandeira dos direitos humanos e acusa o governo de golpista e autoritário.
Ontem, seu discurso de posse incendiou os debates nas redes sociais, com esta afirmação polêmica: “Pela frouxidão dos costumes, pela ausência de valores, pela ausência de capacidade de entender o que é lícito e ilícito, passam a consumir drogas. Impressiona-me no Rio de Janeiro, onde vejo as pessoas durante o dia clamarem pela segurança contra o crime. E estão corretas. E, à noite, financiarem esse crime pelo consumo de drogas. Não é possível! São pontas que muitas vezes se ligam e precisam de estratégias diversas para serem devidamente combatidas”.
Dois debates vão esquentar na esteira das ações federais. Um deles é a legalização da produção, comercialização e consumo de maconha, como já acontece em outros países; outro, a legalização do aborto, que tem impacto direto e comprovado nos indicadores de violência e criminalidade, como ocorreu em Nova York. Os políticos, porém, se recusam a enfrentar as duas questões, que são muito polêmicas.
Míriam Leitão: Temer e Meirelles, fogueira das vaidades
O primeiro objetivo do presidente Temer ao se colocar como candidato é adiar a hora em que será um pato manco, um governante sem poder, em fim de mandato. Temer quer manter a ideia de que tem um horizonte amplo. A expectativa de que possa ter poder no futuro aumenta sua força agora. Seu movimento levou ao improviso do ministro Henrique Meirelles, considerando encerrado seu tempo na Fazenda.
O Brasil terminou a semana com duas estranhezas. Um presidente impopular que tem ambições de permanecer no cargo e por isso todos os seus atos serão considerados de campanha, e um ministro da Fazenda que já encerrou o expediente, mas ainda não deixou o cargo.
Temer e seu grupo são profissionais do poder, sempre estiveram colados aos cascos dos navios, e agora estão no comando. Seus ministros mais próximos são investigados, e, se continuarem ministros, terão a vantagem do foro privilegiado. Isso sem falar em outras regalias. Ele próprio tem uma vantagem decorrente de uma falha na lei eleitoral: pode disputar a eleição estando no poder, enquanto seus concorrentes precisarão estar fora de qualquer cargo.
O ministro Henrique Meirelles tem bons serviços prestados, tanto no Ministério da Fazenda quanto no Banco Central. Ajudou o ex-presidente Lula a vencer a desconfiança contra ele, que, em 2003, elevara o dólar, a inflação e o risco-país. Depois, foi o ponto de resistência contra as propostas econômicas equivocadas do partido do então presidente. No Ministério da Fazenda, montou uma boa equipe. Ele, sua equipe e um competente Banco Central tiraram o país da inflação de quase dois dígitos e da recessão.
O problema do ministro é que ele não tem os atributos de comunicação naturais de um candidato. Sua única experiência com as urnas foi no seu estado natal, Goiás, numa eleição proporcional. É difícil imaginar Meirelles empolgando as massas em um palanque ou usando de forma convincente o horário eleitoral.
Meirelles não fez um anúncio formal sobre a candidatura. Numa entrevista à rádio Itatiaia, disse que sua etapa à frente do Ministério está cumprida e que estava “contemplando” a possibilidade de se candidatar. Mais tarde, em entrevista à CBN, confirmou sua ambição de concorrer. Um ministro da Fazenda que diz que essa etapa de sua vida está encerrada tem que, em seguida, entregar o cargo. Mas ele disse que a candidatura ainda depende de alguns fatores. Um deles é ter estrutura partidária. Se Meirelles anda se aconselhando com marqueteiros experientes como Duda Mendonça, deve ter ouvido que esse anúncio na condicional o deixa num limbo. Nem é mais ministro da Fazenda, nem ainda é candidato. Fica difícil entender a estratégia de Meirelles.
Temer tem ouvido que, se há um legado do seu governo, ele mesmo deve se aproveitar disso. Vários dos que estão no seu grupo dependem dessa vitória, como biombo contra a Justiça. O STF, pela sua espantosa lentidão, faz com que o foro seja um excelente negócio. A prerrogativa pode ser restringida, mas essa decisão ficou presa na armadilha Dias Toffoli. O ministro interrompeu a tomada de decisão do STF sob o argumento de que o Congresso estava deliberando sobre isso, e os políticos engavetaram o assunto. Agora a intervenção trancou a gaveta a chave.
Temer e Meirelles têm o mesmo pensamento. Ambos calculam que a economia vai crescer este ano e com inflação baixa, aumentando a sensação de conforto econômico. Ambos acham que podem ser beneficiários desse momento. A recuperação, desta vez, tem características próprias. O desemprego permanece muito alto, e a sensação de insegurança está presente nas famílias. Há bons indicadores de melhora. É possível medi-los, mas ainda é difícil senti-los. É improvável que o tímido fim da recessão, em ambiente hostil de desemprego e renda, seja capaz de alavancar candidatos que pontuam tão pouco nas pesquisas. Há outros itens na agenda do brasileiro. A intervenção federal na segurança do Rio é manobra que tem muitos riscos e, se trouxer ganhos, serão a longo prazo. A candidatura de Temer aumentará o combate à intervenção, porque ela será vista como manobra eleitoreira. As ambições do presidente tornam ainda mais difícil esse fim de governo.
Rogério Furquim Werneck: O malabarismo de Temer
É possível que se Joesley tivesse sido barrado no Jaburu naquela noite, a reforma da Previdência já estivesse aprovada
E tudo se acabou na quarta-feira. Na véspera do carnaval, o Planalto ainda parecia empenhado em levar adiante o que anunciara poucos dias antes: uma derradeira tentativa de mobilizar a maioria de três quintos que permitiria a aprovação da reforma da Previdência, ainda em fevereiro. Mas, num piscar de olhos, as prioridades mudaram. E, de início, Temer nem mesmo deu o dito por não dito. É impressionante a sem-cerimônia com que políticos podem abandonar de chofre um tema que lhes dominou o discurso por meses a fio, como se jamais tivesse sido sequer mencionado.
É bem verdade que o tema ficara espinhoso. Já em dezembro, parecia claro que a aprovação da reforma se tornara difícil. Mas o Planalto fez o que pôde para manter viva a perspectiva de aprovação, dando amplo uso ao tema para ocupar o noticiário de janeiro.
No fim do recesso parlamentar, contudo, o governo já não escondia sua apreensão com o ônus político que poderia advir do desfecho decepcionante da longa batalha pela aprovação da reforma. O desafio passara a ser evitar que o abandono da batalha tivesse conotação de derrota. Ressabiado, o presidente da Câmara externava abertamente sua irritação com a possibilidade de que Temer ficasse tentado a se esquecer dos longos meses de aperto por que teve de passar, na esteira do 17 de maio, e quisesse pespegar toda a culpa pelo fiasco no Congresso.
É até possível que se Joesley Batista tivesse sido barrado na portaria do Jaburu naquela noite fatídica, a reforma já estivesse aprovada desde meados do ano passado. Nunca saberemos. É também verdade que, no fim do ano, quando Temer se livrou da última denúncia, o governo conseguiu afinal acertar seu discurso sobre a reforma, ao passar a bater na tecla certa da eliminação de privilégios. Mas, àquela altura, a fragilização de Temer já tinha comprometido em larga medida sua ascendência sobre a bancada governista.
Não eram infundadas, portanto, as preocupações do Planalto com o ônus político do abandono da batalha. O que surpreendeu foi a forma peculiar com que Temer, afinal, tentou se desvencilhar desse ônus, apostando numa cambalhota política de alto risco que, num passe de mágica, supostamente lhe permitiria transmutar-se, incólume, de patrono da reestruturação da Previdência em paladino da segurança pública.
Não é que as duas coisas não tenham relação. Têm, e muita. A deterioração da segurança pública vem sendo agravada, em grande medida, pela crescente penúria fiscal dos estados, engendrada, em boa parte, pelo crescimento insustentável de suas folhas de inativos. Não haverá solução estrutural para a crise da segurança pública sem o alívio fiscal que a reforma da Previdência poderá propiciar aos estados.
O governo poderia ter feito bom uso do agravamento da crise de segurança no Rio de Janeiro para dar ao Congresso o senso de urgência que faltava para aprovar a reforma da Previdência. Caso não conseguisse, pelo menos teria feito da questão previdenciária o tema central da campanha eleitoral deste ano.
Mas o Planalto não quis incorrer no ônus político de uma possível derrota no Congresso. Preferiu jogar a toalha, agarrando-se à absurda alegação de que a necessidade de intervenção federal imediata no Rio de Janeiro inviabilizara a aprovação da reforma na última semana de fevereiro. “O governo tomou a decisão de fazer da guerra ao banditismo sua prioridade”, foi o “esclarecimento” afinal dado, no início desta semana, por Carlos Marun, a quem Temer entregara, em dezembro, a Secretaria de Governo da Presidência da República, para que mobilizasse a maioria requerida para a aprovação da reforma no Congresso.
Nada disso implica subestimar o descalabro da segurança pública no Rio de Janeiro ou negar a necessidade de intervenção federal. O que é deplorável é que Temer tenha precipitado uma decisão que poderia ter sido tomada dez dias depois, para tentar se esquivar do ônus político de um desfecho desfavorável da batalha pela reforma da Previdência, de olho no seu impensado projeto de reeleição.
* Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio
Fernando Gabeira: Brasil horror show
Talvez tenhamos sofrido um transplante de consciência, mas não deu certo
- O Globo
Vendo o anúncio da série “Altered Carbon” tive uma estranha intuição sobre o que acontece no Brasil. A ideia central é o transplante de consciência de um corpo para outro. Creio que o filme deve levar a refletir também sobre o tema do momento: a inteligência artificial. Talvez tenhamos sofrido um transplante de consciência, só que foi uma operação que não deu certo. Alguns mecanismos deixaram de funcionar ou foram rejeitados pelo cérebro receptor.
Um exemplo: a decisão de Michel Temer de nomear Cristiane Brasil como ministra do Trabalho. Ela foi processada duas vezes na Justiça do Trabalho. Sua nomeação foi bloqueada. Temer insiste.
Com o caso prestes a ser julgado no Supremo, Cristiane Brasil aparece num barco dizendo barbaridades. O que mais repercutiu foi a forma de sua aparição, cercada de homens sem camisa, gritando “É isso aí, doutora”.
Mesmo se estivesse num convento cercada de piedosos frades, ela simplesmente mostrou que não conhece o tema para o qual foi designada: “Não sei quem passa na cabeça dessas pessoas que entraram na justiça contra mim.”
Ao dizer isso, revelou uma falha abissal na sua consciência política. Não ficou claro se ao pronunciar “quem” no lugar de “o que”, ela estava se referindo a uma possível entidade que baixa na cabeça das pessoas — um exu, uma pombajira — quando decidem reclamar seus direitos.
Temer diz que é uma escolha política. Entende por política apenas a relação com o Congresso. Falta nele a dimensão da sociedade. Acredita que basta frequentar programas populares de tevê. Falhas na operação de transplante.
A consciência de Itamar Franco, transplantada com êxito, não hesitaria diante do problema. Ele afastava ministros apenas por aceitarem hotel pago pela Odebrecht.
Foi tudo muito alterado no carbono político brasileiro. Os trabalhadores são insultados com uma escolha de uma ministra processada na Justiça do Trabalho, que nem sabe que santo baixa nas pessoas que reclamam direitos trabalhistas.
No passado, as entidades sindicais protestariam. Mas não se ouvem seus lamentos, nem nas ruas nem no Congresso. Algumas se concentram na defesa de seu líder condenado; outras estão envolvidas no toma-ládá-cá de Brasília.
A alteração transforma a cena política brasileira num show de horror. Uma ministra indicada dizendo aquilo e os homens sem camisa afirmando: todo mundo é processado na Justiça do Trabalho.
Quando digo show de horror não estou fazendo nenhuma alusão aos problemas que preocupam Temer. Ele confessou que sofria muito com a história de que estava ligado a práticas satânicas.
Tudo isso é uma bobagem. Assim como também acho injusto o apelido que ACM deu a Temer: mordomo de filme de terror.
Convivi com Temer alguns anos e o acho uma pessoa tranquila. Ele se parece com uma pessoa cordial. Não há nada de errado externamente. O problema foi esse possível transplante de consciência que não deu certo. Alguns reflexos desapareceram.
As evidências mostram como seu projeto de investir em Cristiane Brasil é um equívoco político. Mas em vez de dar graças a Deus porque juízes bloquearam a nomeação, decide lutar até o fim.
Vão morrer abraçados, Cristiane, Temer, os quatro homens sem camisa e até o ministro Carlos Marun, que, desde o tempo em que defendia Eduardo Cunha, não tem a tecla contato com a realidade social.
“Vocês queriam que ela estivesse de burka?”, perguntou Marun aos repórteres. Ninguém a quer usando burka ou biquíni. O que a consciência dos políticos precisa incorporar é simplesmente isto: é errado nomear não apenas acusados de corrupção mas também pessoas que ignorem o conteúdo de sua pasta.
Marun está para Temer como estava para Cunha: pronto para defender o chefe, não importa se as circunstâncias são constrangedoras.
Com a mesma expressão séria com que afirmava a inocência de Eduardo Cunha, agora se dedica não só a atacar procuradores mas a defender o direito de Temer de indicar seus ministros, sejam quem forem.
Neurônios se perderam na operação, sinapses tornaram-se impossíveis. Interessante é que chamam isso de política. Não percebem que para a própria sociedade, política é algo muito mais amplo e aberto.
O aliado maior de Temer, o PT, queria nos convencer que o objetivo último da vida é consumir eletrodomésticos e viajar de avião. Em nome dele, valia tudo. A parte da quadrilha que sobreviveu quer nos fazer crer que o objetivo central da vida é uma aposentadoria segura. Em nome dela, vale tudo.
O vírus chamado fins justificam os meios acabou se introduzindo na consciência com tanta força na cena política, e talvez seja ele que acionou a degradação do programa mental, tornando a política algo tão vulgar quanto uma pornochanchada.
Eliane Cantanhêde: Aparelhada e abusada
Desvios e aparelhamento da CEF jogam bancos públicos na fogueira da Lava Jato
As revelações sobre a Caixa Econômica Federal trazem à tona como os bancos públicos não escaparam do assalto à administração direta, às estatais e aos fundos de pensão. Regras de governança? Pra quê? E, sem regras de governança, a CEF foi virando mais entre tantas casas da mãe Joana, como a Petrobrás. Aparelhada, abusada, a instituição passou a servir mais aos poderosos de plantão do que à população brasileira.
Por que um banco público precisa de 12 (12!) vice-presidentes? Para acomodar o máximo de apadrinhados políticos? Cada um responda com base no que souber, achar ou quiser achar, mas o fato é que a CEF é alvo de três operações da PF, Patmos, Sépsis e Cui Bono?, sem contar uma quarta, a Greenfield, sobre desvios no Funcef, o fundo de pensão dos funcionários.
Elas apuram empréstimos duvidosos, em torno de figuras bem conhecidas, já atrás das grades, como Eduardo Cunha e os ex-ministros (de Dilma e Temer) Geddel Vieira Lima e Henrique Eduardo Alves. E não é que Geddel, que mantinha um apartamento só para caixas e malas de dinheiro, foi vice da Caixa?!
Era a esse tipo de mandachuva que os demais vices, diretores e funcionários respondiam, sem falar que, indicados por PR, PP, MDB e sei lá mais o quê, os vices tinham de pagar favores, geralmente com juros, correção monetária e muita generosidade.
O resultado é quase aritmético: assim como na Petrobrás, o índice de corrupção na CEF corresponde ao tamanho do rombo, que ninguém sabe como pagar. A ideia mais criativa é abocanhar R$ 15 bilhões do FGTS, que não dá em árvore e não é dessa nem de nenhuma outra mãe Joana, mas efetivamente tem dono: o trabalhador brasileiro.
Os governos desfalcam e criam rombos, e o trabalhador é chamado a arcar com o prejuízo. Mas não fica nisso. Conforme o Estado, de um lado a cúpula da Caixa quer meter a mão na poupança do trabalhador; de outro, articula (ou articulava?) um aumentozinho camarada, de 37%, justamente para sua multidão de vice-presidentes.
Então, além de serem 12 e além de quatro deles terem sido afastados por suspeita de corrupção, os vice vão (ou iriam?) ter uma remuneraçãozinha de R$ 87,4 mil por mês, incluídos “ganhos por metas e desempenho”. A inflação ficou em 2,95%, o reajuste dos bancários foi de 2,75% e o teto constitucional, que vale até para o presidente da República, é de R$ 33,7 mil.
É ou não o fim da picada? Mas os “donos” da Caixa – o PP (que indicou Gilberto Occhi para a presidência) e, quem sabe, o próprio MDB de Temer – já estão em pé de guerra contra o estatuto aprovado na sexta-feira com novas regras para nomeação dos vices. Armados até os dentes, os partidos avisam que as vagas são deles e ninguém tasca. Leia-se: ou mantêm as vagas ou não votam a reforma da Previdência.
Onde a Lava Jato meteu a mão, lá estavam falcatruas na administração federal, nos governos estaduais, na principal estatal e nos fundos de pensão, mas os bancos públicos só sofreram arranhões. No Banco do Brasil, o escândalo ficou praticamente no ex-diretor Henrique Pizzolato e no ex-presidente Aldemir Bendini, também ex-Petrobrás. Mas é a CEF, o “banco do povo”, que joga o setor na fogueira.
Por falar nisso, a Lava Jato escarafunchou as maiores empreiteiras e remexe agora as entranhas do maior produtor de carne, mas nunca chegou perto das instituições financeiras. Como se fosse possível desviar bilhões, Brasil e mundo afora, sem passar pelos bancos.
Aquilo roxo. O lançamento de Fernando Collor à Presidência parece piada (de muito mau gosto), mas aumenta o preço do seu partido no leilão do Centrão e é um soco no estômago de quem liderou seu impeachment. O Brasil derrubou Collor para dar no que deu?