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Revista Política Democrática || Martin Cezar Feijó: AOS QUE VÃO NASCER - Uma política cultural para o século XXI

Brasil vive em tempos sombrios, obscuros, avalia Martin Cezar Feijó. Terra plana, bruxas e conspirações são alguns dos temas que permeiam a mente de alguns brasileiros em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, escreve o articulista

Vivemos em tempos sombrios, lembrando Brecht. Na verdade, obscuros. Quem poderia imaginar que, em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, como o Brasil, com todos seus problemas de desigualdade ainda existentes, se acreditasse em Terra Plana, em bruxas e conspirações satânicas? E não por pessoas comuns, que não tivessem nenhuma educação formal e responsabilidade social, mas por pessoas que ocupam cargos públicos importantes na esfera federal. E, mais ainda, com poder em áreas como a Cultura e a Educação?

Claro que, como dizia o jornalista Paulo Francis, pessoas “que despontam para o anonimato”... Até porque eles passam, todos passarão, e nós, talvez, passarinhos.

E o Brasil é bem maior que qualquer abismo, já dizia o filósofo português Agostinho da Silva, que inspirou o último trabalho poético-musical-filosófico de Jorge Mautner:  Não há abismo que caiba. Mas o quadro é grave, até assustador. Lembra até o período de uma narrativa que marcou os anos 1930-1940: o nazismo. Havia um dirigente alemão nazista que citava um dramaturgo também alemão, também nazista, que dizia o seguinte:

- “Quando ouço a palavra cultura, logo carrego meu revólver”.

Eram tempos sombrios, como definiu uma filósofa alemã judia refugiada, Hannah Arendt. Quando acabou a guerra, um milionário norte-americano, Nelson Rockefeller, tripudiou sobre a fala do nazista:

- “Quando ouço a palavra cultura, logo pego um talão de cheques”.

A cultura é assim, plena de contradições. Principalmente riscos. Mas o maior risco é o de sua instrumentalização. Seja satanizando o rock como causador de aborto e adorador do Diabo, ou questionando a escolha de uma poeta para uma homenagem em um encontro literário em Parati, como o caso de Elisabeth Bishop. Ambos padecem de um mal anunciado, o da confusão entre conhecimento e estética e política no sentido de partidarização e ideologia. Claro que um caso se insere na questão de liberdade de opinião, mas o primeiro se trata de um claro posicionamento, com implicações práticas, como imposição de uma política que abre caminho para cerceamentos e censuras. O pior dos cenários, portanto.

E é disso que se fala aqui, de bases para uma política cultural em um sentido específico. Como pensar uma política cultural para os que vão nascer, ou que nasceram neste século, e vão vivenciar todas as transformações em curso. Uma verdadeira revolução, nunca antes imaginada, ou prevista.

Quem se debruçou sobre este cenário foi o historiador israelense, Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers mundiais, Homo Sapiens e Homo Deus, em seu livro 21 Lições para o Século 21, chama a atenção para o fracasso das três narrativas que predominaram no século XX -  fascista, comunista e liberal – e que acabaram por gerar profunda desilusão. E que a revolução em curso, no âmbito da biotecnologia e Big Data, pode comprometer uma das maiores conquistas da narrativa liberal: o regime democrático, sem o qual não há solução possível, independente do lado que se esteja. E nesse aspecto, a cultura tem papel decisivo, seja no âmbito dos empregos, da civilização e do meio-ambiente.

Por isso, a destruição da cultura é o principal aspecto que marca uma emergência do que podemos chamar de neofascista, mesmo que nascida das democráticas urnas. E isto vem ocorrendo em grande parte do mundo, apesar dos alertas de uma imprensa livre, por isso perseguida e atacada pelos fakenews através de milícias digitais; assim como a arte de modo geral, seja no teatro, no cinema, na literatura, nas artes plásticas. Nesse sentido, a cultura passa a ser não apenas um apêndice da política, mas um eixo central na sobrevivência da própria espécie.

E cultura em seu sentido amplo, que envolve não só uma radical liberdade de expressão que garanta uma diversidade plena, mas também um investimento na educação em todos os níveis. Em uma atualização constante, e respeito às nossas crianças, que merecem um mundo melhor, como demonstram os ativismos de jovens como a paquistanesa Malala e a sueca Greta; uma chamada de “pirralha” por um pretenso ditador, e outra levando um tiro no rosto só porque querida estudar. Uma reconhecida com um Nobel, e outra, como Personalidade do Ano pela revista Time. Aí está a promessa de futuro contra as reações que ocorrem!

Uma política cultural para o século XXI deve levar em conta a complexidade do quadro, as ameaças do emprego, as restrições às liberdades e um descrédito do conhecimento científico e filosófico como marca de uma direita agressiva e ativa. Recorrendo mais uma vez aos alertas do historiador israelense:

“O...surgimento da inteligência artificial pode expulsar muitos humanos do mercado de trabalho – inclusive motoristas e guardas de trânsito (quando humanos arruaceiros forem substituídos por algoritmos, guardas de trânsito serão supérfluos). No entanto, poderá haver algumas novas aberturas para os filósofos, haverá subitamente grande demanda por suas qualificações – até agora destituídas de quase todo valor de mercado. Assim, se você for estudar algo que lhe assegure um bom emprego no futuro, talvez a filosofia não se seja uma aposta tão ruim.”

Em outras palavras, seja no âmbito das novas tecnologias, seja no âmbito dos riscos políticos, o conhecimento e a cultura serão decisivos.  E uma política cultural que leve isso em conta será fundamental.

 


Revista Política Democrática || Lilia Lustosa: Uma plateia em transe

Terceiro longa metragem de Glauber Rocha (1939-1981), filme gerou enorme polêmica à época de seu lançamento. Em um contexto de guerra fria, a direita acusava-o de fazer “propaganda subliminar marxista” enquanto a esquerda o considerava “fascista", por se vê representada na tela como populista e demagoga

Estive há pouco em Genebra para falar sobre Terra em Transe (1967) no Festival FILMAR en América Latina, um festival de cinema que acontece nesta cidade desde 1997extremamente politizado e de fundamental importância para a divulgação do cinema latino-americanoO convite veio da Maison de l’Histoire, da Universidade de Genebra, instituição que elegeu o filme brasileiro em função de seu status de filme cult e, ao mesmo tempo, de sua incrível atualidade.

Terra em Transe é o terceiro longa metragem de Glauber Rocha (1939-1981), um dos maiores cineastas que o Brasil já teve, considerado louco por muitos, gênio ou visionário por outros, e até “profeta alado” pelo grande historiador e crítico de cinema Paulo Emilio Sales Gomes.

Realizado em 1967, o filme gerou enorme polêmica à época de seu lançamento, desagradando em cheio a gregos e troianos. Em um contexto de guerra fria, a direita acusava-o de fazer “propaganda subliminar marxista”, incitando a luta de classes; a esquerda o considerava “fascista”, já que se via representada na tela como populista e demagoga. A única unanimidade em torno do filme era a de que se tratava de uma obra confusa, hermética, praticamente impossível de se entender, um “texto chinês de cabeça para baixo”, como escreveu o direitista Nelson Rodrigues no Correio da Manhã.

Mas o que não se sabia na época é que toda essa confusão havia sido planejada - ou, ao menos almejada - por Glauber, que queria, de fato, que seu filme tivesse o efeito de uma bomba, atirando faíscas para todos os lados. Não por acaso o formato escolhido por ele foi o da alegoria, figura de linguagem/retórica que permite múltiplas interpretações. Em Terra em Transe, ele já não falava mais de Brasil, não precisando, portanto, temer nem a censura nem os militares. O Golpe acontece em Eldorado, “país interno atlântico”, que poderia ser qualquer país da América Latina, até o Brasil!

Assim, o diretor baiano acabou criando uma obra que serviu, e serve até hoje, como disparador de discussões e reflexões sobre a situação política de nosso país e de nosso continente. Não é difícil traçar paralelos entre o Eldorado de 1967 e o Brasil de 2019. O jogo político é o mesmo, tramado a portas fechadas, como nos grandes dramas barrocos, bem longe dos olhos e ouvidos do povo. Terra em Transe mostra uma esquerda populista, que convence o povo de que vai realizar as mudanças necessárias para transformar o país em um lugar mais justo, e uma direita sem escrúpulos, que não aceita perder o poder, dando o bote quando percebe o avanço do inimigo. A esquerda acaba se deixando dominar, porque também tem ali seus interesses…

Ainda que ciente de que de lá pra cá demos largos passos rumo à democracia, me peguei várias vezes conjecturando sobre que tipo de filme Glauber faria hoje… Que tipo de alegoria escolheria para retratar seu país e sua América Latina neste final de 2019? E resolvi terminar minha fala justamente lançando essa pergunta no ar.

Como era de se esperar, com essa escolha, afastei toda e qualquer possibilidade de discussão cinematográfica. As perguntas que se seguiram foram quase todas sobre a atual situação da América Latina. Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Venezuela, Argentina… todas estiveram na boca (e nos corações) do público ali presente. E eu querendo falar de Terra em Transe, querendo apresentar Glauber Rocha, querendo falar de sua genialidade, de sua poética, de sua importância para a cinematografia brasileira. Ora, não sou cientista política e só poderia dar ali uma opinião de leiga, da cidadã brasileira e latino-americana que sou. Confesso que fiquei um pouco frustrada com o rumo que tomava o debate, mas, à medida que as discussões avançavam, fui entendendo que estava sendo ali um instrumento para o que Glauber havia idealizado. Sua obra não fora concebida para ser apenas arte ou objeto estético. Sua obra sempre quis ser (e foi), acima de tudo, um manifesto. Cada um de seus filmes foi construído para gerar discussão, para fazer pensar, para colocar o espectador em situação incômoda, para fazer-lhe refletir sobre o que estava acontecendo a seu redor. Fui-me acalmando e senti que, apesar de não ter conseguido falar muito de Terra em Transe, havia feito valer o papel que Glauber sonhara para seu filme.

E concluí, com ajuda daquela plateia em transe, que infelizmente a alegoria de hoje seguiria sendo uma “alegoria do desencanto”, como é Terra em Transe, chamada assim por Ismail Xavier, maior autoridade em Glauber Rocha.

 


Revista Política Democrática || Ivan Alves Filho: Johann Sebastian Bach

Johann Sebastian Bach é, para muitos, o maior nome da música em todos os tempos. Mestre do contraponto, o músico alemão fez nosso planeta soar de outra maneira

A pequena cidade de Eisenach teve um papel singular no desenvolvimento da civilização ocidental moderna. Nas suas cercanias, mais exatamente no Castelo de Wartburg, Martinho Lutero traduziu a Bíblia Sagrada para a língua alemã, tornando praticamente irreversível a Reforma protestante. E os partidários de Marx e Engels fundaram ali, em 1869, o Partido Social Democrata da Alemanha. Mais: na acanhada cidadezinha cercada de encantadoras florestas, nasceu Johann Sebastian Bach, para muitos, o maior nome da música em todos os tempos. Ninguém ou nada vem ao mundo em Eisenach impunemente, pelo visto.

Bach, um fervoroso protestante, era originário de uma família de músicos. Religião e arte faziam parte do seu corpo, como sangue e ossos. A darmos crédito a um depoimento, ao tocar órgão, Bach "corria sobre os pedais como se seus pés tivessem asas, fazendo o instrumento ressoar de tal maneira que quase se diria ouvir uma tempestade".

Bach era um homem de luta. O Duque de Weimar chegou a mandar prendê-lo, porque o músico insistia em deixar a cidade em busca de melhores condições de trabalho. Obstinado, Bach não cedeu às pressões do Duque e ainda concebeu, na prisão, o Pequeno livro do órgão.

Toda vez que ouço algo de Johann Sebastian Bach, firmo a convicção de que sua música – de tão tensa, retorcida, obcecada até – não cabe completamente nos limites das notas musicais. Na verdade, Bach nos remete a um som que extrapola ou atropela tudo que conhecemos em matéria de escala ou métrica. Talvez resida aí a principal característica do estilo barroco, o qual ocupa todos os espaços possíveis da superfície musical. Ou o barroco não é um exagero, algo que transborda sempre?

Cantatas – e penso em Magnificat e na Cantata dos camponeses. Motetos – e me recordo de Jesus, minha alegria. Obras corais – e não tenho como deixar de lembrar da Paixão segundo São Mateus. Fugas – e não há como deixar de rememorar a impressionante A arte da fuga. Tocatas – e não se pode esquecer o comentário de Mendelsohn diante da Tocata e fuga em fá maior, "que soava como se fizesse a igreja desmoronar". Além de missas, sonatas, variações, suítes e incontáveis prelúdios. Pois Johann Sebastian Bach abordou praticamente todos os gêneros musicais de seu tempo.

Contudo, acredito que o Bach concertista tenha sido o que deixou marcas mais profundas na história da música ocidental. Um exemplo apenas (ou melhor: seis...) corrobora o que digo: os monumentais Concertos de Brandemburgo. Os Concertos têm por base os instrumentos de sopro. Orquestrados, são muitas vezes tensos e conflitantes entre eles.

São seis concertos, eu lembrava mais acima – ou um verdadeiro festival de contrapontos e espantosa energia sonora. Ao mesmo tempo erudito e popular. Técnico e emotivo. Alegre e triste. Suave e enérgico. Cândido e explosivo. Alternando período longo e período curto. E – nunca é demais lembrar – contrapontísico ao extremo. Unificando tudo. Sonoridades italianas, alemãs, francesas, inglesas. Bach fazia uma música de uma época de contrastes, de Reforma e Contrarreforma, e, por isso, mesmo contraditória, rica. E bela, muito bela.

Bach combinava o recurso aos contrapontos no stilo antico com as formas orquestrais mais modernas de sua época, conforme salientou certa vez Helmut Rilling, maestro e organizador de suas obras completas. Contrapontos esses que lembram estranhamente o jazz e seu estilo sincopado. Talvez resida nessa relativa atemporalidade uma boa parte do fascínio que Bach exerce ainda hoje sobre nós.

 


Revista Política Democrática || Entrevista Especial - A democracia no Brasil está sob risco, avalia Carlos Melo

Cientista político e professor do Insper, Carlos Melo avalia que o Brasil vive uma democracia porque tem eleições, mas não é liberal porque não aceita as instituições e os valores do liberalismo político, como os direitos essenciais - liberdade de expressão e de manifestação. De acordo com ele, os próprios direitos humanos são questionados dentro dessa visão 

Por Caetano Araújo

O cientista Político, mestre e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Carlos Melo, professor tempo integral do Insper desde 1999, é o entrevistado especial desta 13 edição da Revista Política Democrática Online. Analista político, com participação ativa em vários veículos de comunicação, palestrante e consultor de empresas nacionais e estrangeiras, Carlos Melo tem buscado contribuir com o debate político, econômico e social do Brasil por meio de uma análise conjuntural isenta e reflexão desapaixonada.

Mundo hoje, para Melo, vive uma crise de liderança, inclusive no Brasil. "Em minhas palestras, tenho chamado atenção para o fato de que, há 30, 40 anos, gostasse ou não das lideranças, se via Ronald Reagan; hoje, é o Donald Trump. Onde se via Margaret Thatcher, vê-se Boris Johnson. Onde se via Mikhail Gorbatchov, vê-se Vladimir Putin. E no caso do Brasil, sabemos a situação em que estamos", critica.

A falta de líderes reflete, ainda, na oposição ao governo Bolsonaro, avalia Melo. "É preciso definir o que unifica a oposição. Qual é a pauta mínima para as oposições, no plural? Eu diria que é a questão da democracia. Poderia haver também algum acordo em relação as reformas como a da Previdência", avalia.

Colaborador de vários veículos de comunicação, é também colunista do UOL onde alimenta um Blog com análises a respeito da política brasileira (carlosmelo.blogosfera.uol.com.br), Melo é pesquisador de temas como eleições, partidos, conflito político e liderança política. Na entrevista especial que concedeu ä Revista Política Democrática Online, ele também trata de temas como o governo Bolsonaro e o Legislativo brasileiro, que tem assumido um protagonismo inédito na política do país, entre outros temas. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Carlos Melo à Revista Política Democrática Online.

Revista Política Democrática Online (RPD) – A democracia corre risco no Brasil de hoje?
Carlos Melo (CM) - Corre sim. Existe um espírito antidemocrático, que tenta de alguma forma desqualificar as instituições da democracia; um espírito que não aceita um princípio básico da democracia que é um sistema de freios e contrapesos. Esse espírito acha normal o aparelhamento de instituições importantes como a diplomacia, a Polícia Federal, o Ministério Público, a Justiça. Isso tudo, evidentemente, coloca em risco a democracia. Não há como negar. Há, pelo menos, uma parcela significativa da população – não diria uma maioria – que é relativamente mobilizada que, se pudesse, liquidaria todas as instituições da democracia. É o que o cientista político alemão Yascha Mounk chamou “O Povo Contra a Democracia”; uma democracia iliberal. Ela é democracia porque há eleições, mas não é liberal porque não aceita as instituições e os valores do liberalismo político, como direitos essenciais, com liberdade de expressão, liberdade de manifestação; mesmo os direitos humanos são também questionados, nessa visão. Amplamente falando, penso que há risco sim.

RPD – Como se deveria comportar a oposição no tocante às reformas em discussão? Pensando em ser governo nas próximas eleições, deve apoiar as iniciativas reformistas, ou, ao contrário, é melhor combatê-las para pavimentar seu caminho ao poder?
CM – Vamos por partes. Algumas reformas devem ser entendidas como clássicas e inevitáveis: a reforma da previdência, uma reforma tributária, a questão do federalismo. Isso não tem a ver com direita ou esquerda, e o necessário ajuste deveria ser um ponto pacífico. Um imperativo. Ninguém governa com desajustes fiscais. É necessária uma estrutura tributária que incentive a atividade econômica, senão não haverá emprego. Simples assim. É imperativo uma reforma da previdência que seja justa e que envolva todos os setores da sociedade, que não proteja corporações; que não se volte apenas para o regime geral da previdência. As mudanças demográficas e no mundo do trabalho foram extraordinárias na maior parte do planeta, e em especial, no Brasil; o sistema que tínhamos – e cumpriu um importante papel – se esgotou, é hoje inviável. Reitero, pois: as reformas dessa natureza deveriam ser enfrentadas com muito pragmatismo, por imperativas. Assim deveria enxergar a oposição.

Mas há alguns desafios. Primeiro: definir o que unifica a oposição. Afinal de contas, qual é a pauta mínima capaz de aglutinar as oposições (no plural)? À parte do pragmatismo, diria que é a questão da democracia. Poderia haver acordos quanto a abrangência das reformas, pelo menos em relação a aspectos de algumas delas. Mas, então, superada essa fase, o desafio seria a formação do que tem sido chamado de uma frente ampla em nome da democracia e de uma pauta possível, de resgate da economia e das funções básicas e inescapáveis do Estado, como Educação, Saúde, Segurança e Política Externa. Assim, seria possível olhar para a política de uma forma mais propositiva e construtiva.

Estamos passando por um problema que é uma grande transformação do mundo do trabalho, e não estou falando do capitalismo, estou falando do mundo do trabalho, seja em qualquer regime, por conta da revolução tecnológica que vivemos. O termo uberização já é hoje um termo vulgar, bem conhecido. Uberização significa uma precarização das relações de trabalho, isto é, muita gente já está fora do mercado de trabalho e não mais dele fará parte, do modo como nos acostumamos, pelo menos. É diferente do que tivemos no passado, quando a tecnologia se impunha, acabava com alguns empregos, mas novos postos se abriam em outras áreas, nos serviços ou no comércio, por exemplo. Isso não mais ocorrerá.

Terá, assim, uma parte considerável da população que carecerá de políticas públicas para mitigar essa situação. Vivemos um momento de transição para alguma coisa que não sabemos exatamente o que será. Serão necessárias políticas públicas para mitigar todos os problemas dessa revolução tecnológica, econômica e social. Além de apenas reduzir danos, será importante também agir com sentido de antecipação. Qual é a Educação para esse novo mundo, para nossos filhos, para nossos netos? O tempo dos nossos pais e dos nossos avós já se foi. Nosso tempo é de transição. O mundo dos nossos filhos e dos nossos netos é um novo mundo, para o qual temos de nos preparar. Esse desafio da Educação implica a capacidade de aprender a aprender, educação em termos de valores humanos, democráticos, que tampouco podem ser perdidos. E claro, também a questão da Segurança, do combate ao crime organizado que hoje já atua na lógica de cartéis.

A oposição, que vai do centro liberal até a esquerda, deveria se unir em torno desta pauta mínima. Fazer oposição olhando para trás, falando dos velhos e bons tempos que o país viveu e que não retornarão, não nos levará a lugar algum. Aceita-se um conjunto de reformas como imperativo, é inevitável. Ponto. Sem transformar isto no pomo da discórdia. Unifica-se a oposição numa frente bastante ampla e democrática com uma pauta voltada ao futuro, capaz de responder à indagação e ao medo das pessoas, hoje atormentadas pelas incertezas do futuro. Política se faz olhando para frente, não para trás. O desafio não está à direita ou à esquerda, mas em avançar ou retroagir à idade das trevas. Naturalmente, não é simples. Qualquer resposta simples provavelmente estará errada; será preciso construir na complexidade.

RPD – Há hoje uma crise de lideranças?
CM – Sem dúvida, há uma crise de liderança mundial. Em minhas palestras, tenho chamado atenção para o fato de que, há 30, 40 anos, gostássemos ou não desta ou daquela liderança, o espaço era ocupado por gente como Ronald Reagan, onde hoje está Donald Trump. Onde se via Margaret Thatcher, vê-se Boris Johnson; Mikhail Gorbatchov, Vladimir Putin... E assim vai. No caso do Brasil, sabemos a situação em que vivemos.

De onde surgiu essa crise de liderança política mundial? Essa é a pergunta, que me tenho feito nos últimos anos. Decerto, haverá uma série de fatores que poderão ajudar a “cercar” o fenômeno, mas destaco uma frase emblemática de Thatcher, nos inícios dos anos 1980: “Esse negócio de sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e suas famílias”. Esse pensamento fez um estrondoso sucesso e deu impulso ao liberalismo. A riqueza das empresas disparou e também se estabeleceu um individualismo hedonista, vinculado ao narcisismo e ao consumo extremo. Ora, se “sociedade não existe”, se o que existe são apenas indivíduos e suas famílias, a política é desnecessária. E, mais do que desnecessária, é um estorvo; as pessoas vão cuidar de suas próprias vidas, no mercado. Perde-se o elo comunitário forjado pela Política.

Essa lógica não é nova, pelo menos desde Weber, na "Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", no começo do século XX, sabe-se disto. Mas, nas últimas décadas, a sociedade de consumo disparou e fez com que a política implodisse. A partir daí, as lideranças começaram a escassear.

Não é verdade que no Brasil não tenha havido grandes lideranças políticas. Houve, sim, desde a época do Império. Na República, também, tanto quanto no período do Getulismo, à direita e à esquerda. Tivemos lideranças políticas importantes durante o regime militar. Na transição para a democracia, tivemos lideranças importantíssimas, mas, depois – coincidente com essa transformação mundial –, elas começaram a rarear. Se olharmos, por exemplo, para o campo da esquerda – que entendo seja de esquerda – encontraremos Lula e Fernando Henrique Cardoso. Fernando Henrique Cardoso é um cidadão com cerca de 85 anos, e o Lula, 73 anos. Ambos chegaram à presidência da República, governaram por dois mandatos, e o tempo passou; não fizeram sucessores à altura. Não como “filhos” de uma sociedade patriarcal, mas como um processo natural de renovação política. Também a história foi madrasta com o Brasil: uma parte da possível renovação ficou comprometida pelo mensalão; outra, simplesmente morreu: Luiz Eduardo Magalhães, Eduardo Campos, Marcelo Deda, Luís Gushiken... E alguns morreram politicamente: Antônio Palocci, José Dirceu, Aécio Neves e, até, Eduardo Cunha, que chegou a despontar no cenário nacional como uma liderança conservadora, hábil e sagaz. E o que sobrou foi isso aí, que não é liderança. Na verdade, é uma coisa mítica. É mítica no sentido quase religioso mesmo, messiânico, que é a figura do Jair Bolsonaro, ou mesmo a beatificação que se chega a fazer de Lula. É uma crise muito grande de liderança política, no mundo e no Brasil. O novo, simplesmente, ainda não nasceu ou está apenas sendo gerado.

A indagação é: como, sem lideranças dispostas e capazes, construir essa pauta mínima? É uma excelente pergunta, para a qual evidentemente não tenho respostas. Mas posso lembrar que, até meados de 1941, Winston Churchill era considerado um derrotado, fracassado em Galípoli na primeira guerra mundial, quando era o primeiro lorde do almirantado. Era tido como excêntrico beberrão, mas se transformou pela própria crise, pela necessidade, pelas circunstâncias, no maior estadista do século XX. Acredito que as circunstâncias sejam capazes de produzir também suas lideranças. A liderança é sempre um fenômeno em contexto. Às vezes, é necessária uma bela crise para que apareçam. Penso que as condições objetivas estão dadas para que voltem a surgir, passem a propor projetos e tentem conversar; é questão de tempo. Embora, ao contrário dos chineses – capazes de esperar por séculos que as crises decantem –, somos bem mais ansiosos.


RPD –
 Como sabemos, não existe vácuo de poder em política. Quem, a seu ver, estaria tirando proveito dessa falta de liderança no governo?
CM – Muita gente, como se sabe, está-se reunindo, fazendo encontros por aí, tentando encontrar uma saída. Estamos no meio desse processo. Concordo que não exista vácuo de poder. Por exemplo, há dois anos Rodrigo Maia não era o que vemos hoje; ele cresceu, deu um salto enorme. Provavelmente, porque foi jogado ao mar e teve que aprender a nadar. Viveu ocasiões em que seria fácil se amesquinhar pelo poder, preferiu a prudência; como por exemplo não investir no impeachment do presidente Temer e assumir a presidência da República. Teve a clareza – a meu ver, até mesmo a grandeza – de não de deixar morder pela mosca azul. E mesmo agora tem tido postura interessante, sendo um importante freio às loucuras do Executivo. Em torno dele, Maia, vem-se formando um grupo eclético, política e ideologicamente; talvez, uma nova elite parlamentar. Fico preocupado, como analista, quanto à sucessão do Rodrigo Maia, lembrando que o próximo ano será complicadíssimo: carnaval no final de fevereiro, depois, março, abril, maio, junho, festa junina, eleição, votamos em novembro. E, logo depois, a pauta da sucessão do Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Rodrigo Maia terá um sucessor à altura? Será uma figura tipo Rodrigo ou estará mais para o estilo Eduardo Cunha? É preocupante. Mas, enfim, vejo que o Rodrigo Maia já é um dos exemplos de liderança que surgem justamente da crise.

RPD – O Legislativo tem assumido um protagonismo inédito na política brasileira. É de se prever a continuidade desse processo até o fim do governo Bolsonaro?
CM – Houve, pela deficiência do Executivo, uma transferência de poder para o Legislativo. Tenho dito que estamos vivendo um presidencialismo em transe. Certamente não é parlamentarismo, o sistema é presidencialista, mas é um presidencialismo em transe. Transe pode ser entendido como “em transição” ou como “em vertigem”; veremos. Depende do modo como a própria política queira traduzir o termo: se o sucessor de Rodrigo Maia, na presidência dos trabalhos, for alguém afinado com sua atuação ou a negação disto – que tanto pode ser a oposição desmedida ao Executivo, como, por outro lado, a total submissão a ele.  Ou ainda se, mesmo no chão do Plenário, Maia atuará como um centro agregador no Congresso Nacional, o que daria continuidade a esse processo de imposição do Poder Legislativo. De toda sorte, não vejo o governo Bolsonaro capaz de se impor, de tomar a contento e moderadamente as rédeas do processo político. A grande incógnita é se o Congresso terá o tipo de liderança necessária, após a presidência de Rodrigo Maia.

RPD – O Supremo Tribunal Federal está perdendo sua função histórica de poder moderador?
CM – Um elemento grave da crise é a politização da Justiça. Não só do Supremo, mas do Supremo inclusivo. As raízes desse processo talvez estejam na omissão do poder Legislativo no passado: a indecisão de votar questões como a união homoafetiva, o aborto anencéfalo, a fidelidade partidária ou se impor em relação à intervenção do STF quanto à cláusula de barreira. Sabemos, não há vácuo; o poder é como gás, ele tem a forma do que o contém. Se nada o contém, ele se expande, e eu acho que o Judiciário se expandiu politicamente, a meu ver, de modo perigoso. Por vários motivos: primeiro, porque não é seu papel, e, segundo, porque isso aconteceu de uma forma fragmentada, como a inegável divisão e politização entre os próprios ministros da Corte.

Digo desde 2014, pelo menos, que me surpreendo ao ver pessoas comuns capazes de declinar o nome dos onze ministros do STF, sem a mesma capacidade para escalar a seleção brasileira de futebol. A crise é séria; no futebol, na política, e na Justiça. Costumo provocar minha audiência com a pergunta: por qual turma que você torce? A primeira turma ou a segunda turma? Os garantistas ou os tais consequencialistas?

Isso é ruim, porque, num sistema democrático, o Supremo tem a “última palavra”, no limite dos conflitos políticos. Além de um papel contramajoritário. O Supremo não tem de agradar a maioria da população; tem de arbitrar de acordo com a lei. Claro que há um certo nível de hermenêutica na interpretação da lei, mas ele tem de arbitrar de acordo com leitura razoável e coerente, no tempo, a respeito da lei. E não está acontecendo exatamente isso, porque as interpretações têm variado substantivamente ao longo do tempo, talvez ao sabor das conveniências políticas de cada grupo ou indivíduo ali estabelecido. Quando a política não consegue o consenso, quando a política não consegue o pacto, quem vai arbitrar antes de um conflito de verdade, maior, com consequências indesejáveis, é a Justiça, o Supremo no limite. Quando o Supremo se politiza, ele perde esse papel importante de ser um árbitro respeitado e inconteste. E o que acontece hoje? Dependendo da decisão do Supremo, à direita ou à esquerda, setores da sociedade simplesmente desqualificam sua decisão. A desconfiança de influências políticas no processo decisório - ora para um lado, ora para o outro – faz com que se perca a importante característica salomônica (sábio e criterioso) que deveria possuir. Para contar com a confiança de seus súditos, o Rei Salomão precisa ser percebido como justo.

RPD – Como resumiria as opções para a saída dos problemas políticos da atualidade?
CM – O Brasil precisa de um processo de conciliação, e não é um processo de conciliação com todo mundo. Há uma parcela hoje que não aceita a conciliação, porque não é democrática. Os setores democráticos precisam de um processo de conciliação. Quando a gente pensa em liderança, pensa-se em um sujeito como o Mandela ou como o José Mojica no Uruguai, que saíram da cadeia para articular uma grande conciliação nacional. Quando saem da cadeia, transformam-se em grandes líderes, não porque conciliam com aqueles que os prenderam, mas porque articulam um campo bastante amplo para se opor e vencer o outro lado, com o qual é impossível conciliar. Acho que o Brasil precisa de lideranças com essa disposição, tipo Nelson Mandela ou José Mojica, capazes de abrir mão do poder individual; generosos ao abrir espaços para o surgimento de novas lideranças; novas opções.

 


Revista Política Democrática || Editorial: Democracia e República

Sabemos por experiência que cenários de corrupção sistêmica minam a legitimidade das instituições democráticas, ao ponto de propiciar o alastramento de correntes de opinião autoritárias no conjunto dos cidadãos. A luta contra a corrupção, em favor da prevalência de regras e práticas republicanas, constitui, portanto, parte importante do repertório da vigilância e mobilização permanentes em favor da democracia.

Na luta concreta contra a corrupção hoje no Brasil, contudo, há vertentes que levam água ao moinho do autoritarismo. Manifestações em favor do fechamento ou expurgo do Supremo Tribunal Federal são o caso óbvio, mas não único. Um dos pilares do estado democrático de direito é o respeito aos direitos e garantias individuais, cuja premissa é a independência do Poder Judiciário, ou seja, sua capacidade de fazer valer posições contramajoritárias, em particular quando de ameaças aos direitos de grupos minoritários.

Na divisão de tarefas entre os Poderes, cabe ao Judiciário, portanto, julgar, e a nós, cidadãos, acatar suas decisões, malgrado a divergência que podem deixar em cada um. Trazer ao debate público a questão da culpa ou da inocência de A ou B, do acerto ou equívoco de tal ou qual decisão concreta dos tribunais é um equívoco, do ponto de vista da democracia.

Cabe a nós, contudo, cidadãos, e por extensão a nossos representantes no Congresso Nacional, manter sob escrutínio e reforma permanente as regras de funcionamento da nossa máquina de produzir justiça. Há tensão entre o papel que a tradição brasileira e o Código de Processo Penal atribuem ao juiz e os direitos e garantias consagrados na Carta de 1988? Caso afirmativo, como resolver essa tensão, sempre em benefício do fortalecimento da democracia?

O mesmo vale para os tribunais superiores. Não podemos trazer à arena política a discussão sobre o mérito de suas decisões concretas. Mas devemos discutir e deliberar sempre sobre a adequação de seu formato, composição e funcionamento. Há que debater, do ponto de vista das atribuições constitucionais, se os tribunais devem atuar como colegiado ou somatório das posições de seus membros. E, mais relevante ainda, no caso do Supremo Tribunal Federal, quais as melhores regras para favorecer a coerência temporal de suas decisões e preservar, dessa forma, sua credibilidade como árbitro final perante o conjunto dos cidadãos.


Revista Política Democrática Online || Fernando Lyra: Um país à margem do mundo

Bolsonaro teve – e perdeu – a chance de se fazer respeitar com o discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Repleta de fatos distorcidos e visões de mundo extremistas, a fala do presidente brasileiro envergonhou o País perante o mundo

Poucas vezes o discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), historicamente feito pelo Brasil, foi tão esperado pela comunidade internacional. Após nove meses de governo, período em que a imagem do Brasil se desgastou continuamente em face de uma política externa marcada pelo sectarismo, nacionalismo exacerbado e um conceito de soberania que ignora conceitos básicos de interdependência entre nações, o presidente Bolsonaro teve – e perdeu – a chance de se fazer respeitar. Com um discurso repleto de mentiras, fatos distorcidos e visões de mundo extremistas, envergonhou o País perante o mundo.

Já na semana anterior, observaram-se no mundo inteiro massivas manifestações de jovens em cobrança de ações dos governos para enfrentar a mudança do clima. Era véspera do início da Cúpula da Juventude sobre Clima e da Cúpula do Clima, eventos promovidos pela Organização das Nações Unidas, previamente à AGNU. Mas, ao contrário do histórico protagonismo exercido pelo País nos foros multilaterais ambientais, o que se observou foi a melancólica ausência do Brasil, agora olhado como pária ambiental por todas as nações relevantes do planeta, buscando, de forma patética, convencer formadores de opinião a mudarem suas próprias opiniões sobre a destruidora política ambiental brasileira.

O mesmo presidente da República que abriu a AGNU não se dispôs a perfilar-se, no dia anterior, junto a outros chefes de Estado, para expressar as visões e ambições do Brasil em relação ao tema que, globalmente, é o que mais tem mobilizado cidadãos, empresas e governos em todo o mundo: a mudança do clima. Melhor assim: não haveria muito o que falar. Há poucos dias, seu chanceler, Ernesto Araújo, que antes de tomar posse já havia descrito a mudança do clima como um dogma, explicitou em discurso num centro de estudos conservador norte-americano o que o novo governo pensa: não acredita no aquecimento global como resultado da ação humana; as queimadas e alertas de desmatamento no Brasil são superdimensionados e a mudança do clima é um pretexto para a ditadura e a perda da soberania nacional. Suas falas foram ridicularizadas até mesmo em conservadores meios americanos, de sorte que talvez fosse melhor, mesmo, o Brasil não falar nada na Cúpula sobre Clima.

Enquanto isso, o presidente despachou seu ministro do Meio Ambiente para um road show nos Estados Unidos e Europa. O ministro, que recentemente declarou: “nós falhamos na comunicação; esse é o ponto mais importante”, levou a sério sua crença e resolveu comunicar a atores governamentais e à mídia internacional uma visão distorcida da realidade oferecida pelo novo governo: exibir o Brasil como um líder mundial em conservação ambiental, apresentar dados que mostram a maior parte do território nacional preservado como florestas e relatar como os agricultores brasileiros fazem enorme esforço de conservação sem ganhar nada em troca.

Foto: Alan Santos/PR

 

A fórmula tem sido a mesma em todos os encontros: o ministro se vale de dados distorcidos, alguns números escolhidos a dedo e outros simplesmente errados. Se a ideia era esclarecer a verdade sobre a atual política ambiental brasileira, pode-se considerar a missão do ministro um sucesso: ninguém acredita nele. Até mesmo os insuspeitos órgãos conservadores de imprensa que o entrevistaram, escolhidos a dedo, apresentaram reportagens demolidoras em que contrastavam as falas do ministro com a realidade que hoje o mundo inteiro conhece. A reportagem da agência Associated Press, após entrevista com o ministro, ironizou: “em julho, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro descartou preocupações globais sobre incêndios na maior floresta tropical do mundo, dizendo: ´a Amazônia é do Brasil, não sua. Agora, o governo do presidente de extrema direita tem nova mensagem: está tudo bem e a floresta tropical está aberta para investimentos privados”.

A ironia não é gratuita. Durante a mesma viagem, o ministro do Meio Ambiente relatou à imprensa, após encontro no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a futura criação de um novo fundo, a ser operado pelo banco, sem oferecer qualquer tipo de detalhes sobre países ou entidades doadoras, recebedoras, valores ou prazo para entrar em funcionamento. Disse apenas que será “um fundo que contempla países e setor privado, tanto na ponta de doação como na do recebimento dos investimentos, para desenvolvimento, pesquisa e desenvolvimento de atividades (...) um mecanismo importante para avançar na bioeconomia”.

Seria irônico se não fosse uma irresponsabilidade como agente público. A governança do BID requer que todos os projetos com valores minimamente expressivos sejam aprovados pelos seus doadores, o que inclui países como França, Noruega, Áustria, entre outros. Enquanto isso, o governo brasileiro está implodindo o Fundo Amazônia, hoje paralisado, que tem governança 100% nacional, sem doadores sentados à mesa e com recursos destinados prioritariamente a órgãos governamentais. Qual é o sentido, agora, de se alardear um fundo com governança multilateral em que diversos países, doadores ou não, estarão deliberando sobre projetos a serem implementados na Amazônia brasileira? E os argumentos em prol da soberania nacional?

A pá de cal da semana foi o discurso do presidente Bolsonaro. Ele até tentou as palavras mágicas, “nós cuidamos da Amazônia”, “nós nos preocupamos com o meio ambiente e com os nossos índios”, mas, a exemplo do que acontece com seu ministro do Meio Ambiente, não se trata de uma mera questão de comunicação. Em uma intervenção com forte viés ideológico, criticou outros países, desancou a mídia e negou responsabilidade no aumento do desmatamento da Amazônia... não convenceu ninguém.

O Brasil se tornou chacota nos meios diplomáticos. A fala do presidente confirmou, nos que tinham dúvidas, o desprezo do atual governo por temas que nos eram preciosos, como meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, e nos posicionou no espectro das Nações Unidas como um país de governante autoritário, sem capacidade de atuar construtivamente em busca de consensos, um paiseco satélite dos Estados Unidos. Ele sequer tentou disfarçar, parecer simpático, afável e contemporizador... ele foi apenas ele mesmo. E, nisso, podemos elogiá-lo. Hoje não há, no mundo, dúvidas sobre o tipo de governante que preside o Brasil. E ele não está à altura do País que somos.

 


Hostilidade como procedimento é método de governo, afirma Marco Aurélio Nogueira em artigo na Política Democrática online

Para professor da Unesp, em 2018, correntes democráticas e de esquerda privilegiaram mais as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita

Cleomar Almeida

Uma República democrática não pode vicejar em meio a impropérios oficiais e oficiosos que superpõem o perfunctório ao importante, o contingencial ao fundamental, as miudezas aos grandes planos estratégicos, o bate-boca nas redes às batalhas cívicas pelas reformas indispensáveis. É o que diz o professor titular de Teoria Política da UNESP (Universidade Estadual Paulista), Marco Aurélio Nogueira, em artigo publicado na oitava edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania.

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Nogueira foi diretor do Ippri (Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais) da Unesp (2011-2015), em São Paulo. Atualmente, coordena o Neai (Núcleo de Estudos e Análises Internacionais), vinculado ao Instituto. Ele é também colunista do Estadão.

“Uma República democrática com uma democracia sacudida por frêmitos e arroubos autoritários, pelo desgoverno, pela má qualidade da representação parlamentar e pelo funcionamento errático do Poder Judiciário só pode sobreviver aos solavancos, sem conseguir ganhar estabilidade”, afirma, para acrescentar: “Em um quadro com tais características, nenhum governo consegue governar”.

A hostilidade como procedimento é um método de governo, de acordo com o autor. “Cria crises e inimigos para a eles atribuir as dificuldades do governo e, ao mesmo tempo, para agregar sua base mais fanatizada. `Estou tentando, cumpro o prometido, mas o sistema não me deixa governar´, repete o presidente em seu mantra”, observa o professor da Unesp.

A culpa seria sempre da “velha política”, como ironiza o autor. De acordo com ele, em 2018, no Brasil, com o sistema político abrindo falência e a sociedade mostrando claro apetite anti-establishment e a situação econômica em franca piora, as correntes democráticas e de esquerda privilegiaram mais as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita.

“Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Algumas seguiram a carreira solo para buscar autoafirmação, outras, para tentar conter o desgaste, outras ainda para perseguir uma revanche redentora”, analisa Nogueira. Cada uma a seu modo, avalia, prepararam o terreno para a eleição de Jair Bolsonaro, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.

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Guilherme Mendes avalia necessidade de reforma tributária em artigo na revista Política Democrática online

Para o autor, endereçar a questão tributária é tão importante para o aumento da renda por trabalhador quanto a questão da educação e da infraestrutura no Brasil

Cleomar Almeida

O Brasil está entre os 10 piores países nos tributos (Banco Mundial), conforme lembra Guilherme Mendes, em artigo publicado na sexa edição da revista Política Democrática online. Segundo ele, a simplificação tributária, com a criação de um imposto único sobre o valor agregado, pode endereçar esses problemas de forma simples e eficiente. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania, novo nome do PPS (Partido Popular Socialista).

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No artigo, Mendes lembra uma declaração do economista Marcos Lisboa, na FGV-SP, segundo o qual “o Brasil está ficando mais pobre. Entre 1995 e 2016, países emergentes cresceram 127% em renda por trabalhador; os EUA, 48%. O Brasil cresceu apenas 19%”. De acordo com o autor do artigo, uma parte relevante de fracasso de produtividade econômica no Brasil deve-se, de um lado, à complexidade da legislação tributária e, de outro, a oportunismos fiscais que geram distorções econômicas e iniquidades tributárias entre as classes mais baixas e mais altas.

Segundo Mendes, o processo de simplificação tributária, já ocorrida nos países desenvolvidos, com a criação de um imposto único sobre o valor agregado, pode endereçar esses problemas de forma simples e eficiente. Ele lembra que, desde a promulgação da Constituição, foram editadas, em média, por dia, 3 normas tributárias federais, 11 estaduais e 17 municipais, colocando o Brasil entre os 10 piores países nos tributos (Banco Mundial).

Mesmo assim, de acordo com Mendes, a insegurança jurídica permanece. “Estima-se R$ 4 trilhões (66% Reforma tributária como condição para o aumento da renda no País do PIB) de contencioso tributário e mais bilhões em créditos tributários a empresas sem previsão de recebimento”, afirma, para acrescentar: “Isso cresce à medida que as normas não mudam, o que, aliado ao oportunismo fiscal desincentivam o investimento estrangeiro e o crescimento de empreendedores produtivos, o que prejudica o ambiente de negócios e a renda por trabalhador.”

Para o autor, endereçar a questão tributária é tão importante para o aumento da renda por trabalhador quanto a questão da educação e da infraestrutura no Brasil.

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