retrocesso

Elio Gaspari: A teimosia ignorante de Bolsonaro

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais

Jair Bolsonaro administra a própria ignorância com o pior dos temperos, a teimosia. Em março passado ele disse que a Covid-19 era uma “gripezinha”, vá lá que fosse, os mortos em Pindorama eram apenas cinco. Em dezembro, ele disse que a pandemia estava no “finalzinho” (os mortos passavam de 150 mil) e um mês antes classificara a segunda onda de contágios de “conversinha”. Veio a tragédia do Amazonas, os mortos já são mais de 233 mil, e a média móvel ficou acima de mil por dia por mais de duas semanas. Conversinha?

O ministro da Saúde, um general da ativa, gosta de brigas. Seu secretário-executivo, um coronel, disse que o governador João Doria estava “sonhando acordado” quando anunciou que a vacinação começaria em janeiro no seu estado. Começou.

Bolsonaro acredita em muitas coisas. A cloroquina ajuda contra a Covid-19, a Amazônia não pode ter queimadas porque é úmida, e a eleição americana foi fraudada. Todas essas crenças têm devotos e, salvo os agrotrogloditas que tocam fogo na mata, nenhum deles causa grandes prejuízos aos outros. No caso da pandemia, a superstição presidencial causa danos. O coronel do Ministério da Saúde talvez não tivesse pulado na jugular de Doria se o Planalto falasse outra língua. Talvez o general Pazuello também não saísse por aí com sua maleta de cloroquina.

O estrago feito, feito está. A eleição para as presidências do Senado e da Câmara mostrou que Bolsonaro não está condenado a perder todas. Ele pode ganhar mais uma: basta esperar o dia em que começará a vacinação dos sexagenários e, em vez de ir a uma padaria numa de suas sortidas cenográficas, para entrar no fim de uma fila de vacinação.

Será um gesto de humildade, exemplo para sua infantaria e desestímulo a seus guerreiros sem causa.

O capitão encantou-se com a popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial e agora está correndo atrás de uma forma de alívio social para as vítimas da crise econômica agravada pela “gripezinha”. Melhor assim, até porque viu sinais de fumaça que poderiam lhe custar um retorno antecipado ao condomínio Vivendas da Barra.

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais. Escravizado pela marquetagem, seu projeto tem um slogan incompreensível — Benefício de Inclusão Produtiva — e vem sendo concebido como uma árvore de Natal de jabutis para serem digeridos pelo Congresso.

A ideia de um benefício acompanhado de contrapartidas voluntárias perdeu-se na confusão da marquetagem. Afinal, um governo que se apresenta como se fosse capaz de fazer um “Plano Marshall” brasileiro é capaz de tudo. Se o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e pai da marca de fantasia, levasse uma ideia dessas ao general George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército americano durante a Segunda Guerra, seria atingido por um dos acessos de fúria daquele grande chefe militar. E as broncas de Marshall eram mais pesadas que a de Paulo Guedes: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.

Por falar no general Marshall, vale repetir a orientação que ele deu ao diplomata George Kennan quando o chamou para dirigir o planejamento político do Departamento de Estado: “Evite trivialidades”.

Se Bolsonaro e suas falanges evitassem trivialidades, o governo seria outro.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro ganhou fôlego

Jair Bolsonaro ganhou fôlego. Apesar do desastre na gestão da pandemia, o presidente recuperou força no Congresso e afastou, ao menos por ora, o fantasma do impeachment. Seus adversários, que precisavam se organizar para incomodá-lo, queimam energia com intrigas e guerras fratricidas.

Em poucos dias, a ideia de uma frente ampla virou miragem. No campo da centro-direita, o fracasso de Baleia Rossi foi o menor dos males. Partidos como DEM, PSDB e MDB, que ensaiavam se distanciar do bolsonarismo, parecem mergulharar numa espiral de autodestruição.

A briga no DEM é a mais ruidosa, devido à troca de insultos entre Rodrigo Maia e ACM Neto. No entanto, as outras legendas não estão menos divididas. No PSDB, o governador João Doria passou a enfrentar oposição aberta. O grupo de Aécio Neves, que ressurgiu das cinzas como aliado do Centrão, agora ameaça melar suas ambições presidenciais.

No MDB, articula-se um movimento para tirar a burocracia partidária das mãos de Baleia. Viciado em cargos, o partido poderia acabar no colo do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Ele construiria a ponte para um futuro governista, alinhado aos interesses eleitorais do capitão.

O arrastão no Congresso também fez estragos na esquerda. Pela primeira vez, o PT se dividiu na eleição da Mesa Diretora da Câmara. A deputada Marília Arraes se aliou a Arthur Lira para disputar a segunda-secretaria, que distribui medalhas e passaportes diplomáticos. Levou o cargo e desmoralizou a burocracia petista.

Depois da derrota, o ex-presidente Lula indicou Fernando Haddad para concorrer ao Planalto em 2022. Sem ouvir ninguém, irritou correligionários e aliados tradicionais do partido. Guilherme Boulos, do PSOL, pôs o dedo na ferida: antes de apresentar nomes, a oposição precisa discutir projetos.

Sem isso, Bolsonaro terá um caminho mais fácil para a reeleição.


Vinicius Torres Freire: Se barrar auxílio, Bolsonaro cria crise com plano de governo do centrão

Novo comando do Congresso quer criar novo benefício mesmo sem corte de outra despesa

Se quiser evitar uma crise precoce com o novo comando do Congresso, o governo de Jair Bolsonaro vai ter de engolir a criação de um novo auxílio emergencial sem contrapartida de corte de outras despesas, ao menos de imediato.

Seria, no entanto, uma solução do gosto de Bolsonaro, embora não de Paulo Guedes.

A oferta de contrapartida do centrão, por ora, é aprovar “reformas” sem custo político, tal como a autonomia do Banco Central, que já foi para o forno, e outras medidas regulatórias setoriais (por exemplo, a lei do gás, do petróleo, talvez do setor elétrico).

Se o comando novo do Congresso azeitar a relação com suas bases, se o governo não confrontar o centrão e a popularidade Bolsonaro não for para o vinagre, é possível aprovar também uma reforma administrativa para as calendas e algum remendo mais duradouro, mas procrastinado, de aperto fiscal.

É esse o programa para 2021. Líderes partidários próximos de Artur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, dizem que o projeto do novo auxílio será pautado, ponto, e apenas vai cair se houver grande resistência no chão do Congresso, o que é bem improvável.

As dúvidas maiores entre os parlamentares:

1) saber qual instrumento utilizar para aumentar a despesa sem estourar o teto de gastos na letra da lei (se por crédito extraordinário, emenda constitucional de “calamidade” ou variante de “orçamento de guerra” etc.);

2) definir o critério de acesso ao benefício;

3) em quanto aumentar a meta de déficit no Orçamento de 2021.Quanto maior seria o déficit por causa do novo auxílio? O governo imaginava não gastar mais de R$ 20 bilhões (três parcelas de R$ 200 para algo em torno de 30 milhões de pessoas).

Há parlamentar com voz na nova ordem para quem deve ser mais, talvez R$ 25 bilhões.A aprovação do projeto de auxílio não estaria vinculada à redução imediata de qualquer outra despesa, o que não quer dizer que alguma compensação (não necessariamente financeira) possa ser acertada para “depois”.

No fim do ano passado, a prorrogação do auxílio foi para o vinagre porque o Ministério da Economia e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), queriam compensação em redução de despesa ou método de aperto fiscal mais duradouro.

Entre as opções estavam redução de salários e jornada de servidores, fim do abono salarial e fim do reajuste obrigatório dos benefícios da Previdência e dos gastos mínimos em saúde e educação. Foi quando Bolsonaro matou a conversa com aquele “não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos”.

Os novos líderes também acham inviável “colocar os penduricalhos do Guedes” no novo auxílio, nas palavras de um deputado do centrão, tal como exigir cursos profissionais dos novos auxiliados. Não negam que se possa aprovar algo parecido com a “carteira verde amarela” (emprego quase sem direitos trabalhistas de Guedes), mas também não associam tal projeto à renovação do auxílio.

Nova CPMF, a fim de evitar déficit maior? Até pode ser. Mas Bolsonaro não quer aumento de imposto.Os novos líderes do Congresso parecem muito firmes no que dizem, mas haverá conflito, que dependerá da resistência de Guedes e do tamanho do salseiro que possa ocorrer na praça financeira.

​Talvez não seja grande coisa, se não exagerarem no tamanho do auxílio. Muito bancão já dava de barato desde o ano passado que viria um “fura-teto” de algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões em 2021, por causa da persistência da epidemia.Vinicius Torres Freire

*Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).


Cristovam Buarque: É preciso saltar

O Brasil assiste, nestes dias, às tragédias da epidemia e da educação, e das duas entrelaçadas asfixiando o futuro do país. Mas o presidente da República apresentou ao Congresso Nacional ações que deseja aprovadas como seu legado ao futuro sem a presença desses assuntos. O presidente quer que o Brasil tenha milícias com indivíduos cada vez mais armados, substituindo polícias e Forças Armadas. Ele propõe também reduzir a proteção aos nossos povos indígenas e inocentar previamente policiais que matam civis durante operações.

Ele não põe a educação como prioridade, salvo desobrigar os governos de oferecerem escola e transferir essa responsabilidade para que as famílias possam dar instrução em casa. Ignora 50 milhões de crianças em idade escolar cujas famílias não têm condições de educar os filhos em casa, como era no período medieval, com tutores, e ainda despreza o futuro da nação a ser construído por elas.

A análise das propostas do presidente assusta pela ausência de preocupação com a educação nos dois anos iniciais do governo. A ponto de isentar importações de armas e taxar importação de livros, porque seus ministros dizem que livros são comprados por ricos e armas por pobres. Se tivesse interesse em fazer com que o Brasil desse o salto na educação, ele teria apresentado as propostas já conhecidas, mas é forçoso dizer que seus antecessores também não quiseram pôr em prática. Apresentar uma estratégia para que em alguns anos, ou décadas, o Brasil atinja duas metas: ter um sistema educacional com máxima qualidade e que a educação tenha a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança. Para tanto, seriam necessários alguns passos.

É preciso concentrar o trabalho do MEC na educação de base. Instalar uma agência para a proteção da criança e do adolescente capaz de cuidar desse público em todos os setores como saúde, cultura e bem-estar. Educação é mais que um direito de cada brasileiro, é também o vetor fundamental do progresso, sobretudo nestes tempos da economia e segurança nacional baseadas no conhecimento e a justiça social dependente da distribuição de conhecimento a todos, com a mesma qualidade.

É necessário retomar a implantação de um sistema nacional de educação de base, com proposta de adotar as escolas das cidades sem condições de oferecer a educação que suas crianças necessitam e merecem. Assumir para o governo federal a responsabilidade pela educação de base nas cidades que assim desejassem e na velocidade que os recursos federais permitirem, enviando professores de uma carreira federal, muito bem remunerados, selecionados com rigor depois de cuidadosa formação,

todos com dedicação exclusiva à escola onde estiverem lotados, aceitando substituir a estabilidade plena por estabilidade com responsabilidade, sujeita à avaliação periódica.

 Nessas cidades, as novas escolas seriam construídas com as instalações necessárias no padrão das escolas federais, especialmente as militares federais. Essas escolas iniciariam a evolução das atuais “aulas teatrais”, do professor com quadro e giz, para “aulas cinematográficas”, onde o professor utilizaria bancos de dados e de imagens. Todas as escolas das cidades adotadas teriam horário integral.

É possível fazer isso em dois anos em algumas cidades pequenas e, em 20 ou 30 anos, em todas as escolas do Brasil para todas as crianças brasileiras. É possível e é preciso. Os governos anteriores deram passos proativos, mas tímidos ainda na educação de base.

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil foi melhorando sua educação, mas aumentando quatro brechas que nos fazem melhorar ficando para trás: brecha entre a educação dos ricos e pobres, entre cidades ricas e cidades pobres, entre os outros países e o Brasil e entre o que é preciso conhecer e o que é ensinado.

O atual governo parece decidido a piorar nossa educação. Os governos anteriores optaram por apenas melhorar, não saltar. O Brasil precisa interromper a marcha insana do atual governo sacrificando o progresso, a segurança e a sustentabilidade do país, mas também substituir a melhoria lenta, que nos deixa para trás, e adotar uma estratégia que permita saltar aos padrões de qualidade das melhores do mundo, com equidade para todas as crianças.

Para dar o salto necessário precisamos saltar este governo. Mas a simples substituição dele não basta se os próximos vierem com a mesma perspectiva de apenas melhorar nos deixando para trás e com brechas ampliadas.

*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília


Bernardo Mello Franco: O PT diante da derrota

Foi um tombo histórico. Pela primeira vez, o PT não conquistou a prefeitura de nenhuma capital. Um desempenho ainda pior que o de quatro anos atrás, quando só venceu em Rio Branco.

Em 2016, o desastre era inevitável. O partido havia acabado de enfrentar o impeachment de Dilma Rousseff e as prisões espetaculares da Lava-Jato. Agora não há como culpar os outros. O petismo sucumbiu aos próprios erros — e parte da sua cúpula ainda está em negação.

A presidente Gleisi Hoffmann tentou dourar a pílula. Exaltou a vitória em quatro cidades no segundo turno, embora a sigla tenha perdido em nove. Ela classificou o fiasco como uma prova de que a esquerda “sabe lutar”.

“Não se pode converter derrota em vitória. Derrota é derrota”, reagiu Alberto Cantalice, do diretório nacional do PT. Ele disse em público o que outros dirigentes repetem em privado: sem uma renovação radical, o partido arrisca perder de vez a ligação com o eleitor.

“O antipetismo ficou maior do que o petismo”, desabafa um ex-ministro. Ele considera que houve um “erro grave de leitura” em 2020. O PT apostou tudo na imagem desgastada de Lula, subestimando sua rejeição nos grandes centros. Além disso, recusou-se a apoiar outras siglas para lançar candidatos pouco competitivos.

Em São Paulo, a tática deu errado. Jilmar Tatto ficou em sexto lugar, com menos de metade dos votos do PSOL. Em Belo Horizonte, Nilmário Miranda também acabou em sexto, com 1% dos votos. No Rio, Benedita da Silva amargou a quarta colocação.

“Nós envelhecemos”, admite outro ex-ministro que participou da fundação do PT. Ele ressalta que as novas caras da esquerda emergiram fora da legenda: Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB. A exceção foi Marília Arraes, derrotada no Recife.

O veterano diz que o PT precisa se reciclar e entender as mudanças da sociedade. As fábricas se esvaziaram, os sindicatos perderam força e os trabalhadores foram empurrados para a informalidade. Um dos públicos a conquistar agora seriam os entregadores de aplicativos. “Nosso drama não é só eleitoral. Para sair do fundo do poço, temos que nos reconectar com o povo”, resume. 


El País: PT não conquista nenhuma capital pela primeira vez desde 1985 e volta ao tamanho ‘pré-Lula’

Com estratégia focada em chapas próprias e enfrentando a força do antipetismo, partido segue o encolhimento que já protagonizava desde 2016 e deverá enfrentar debate sobre futuro da sigla

Beatriz Jucá e Joana Oliveira, El País

Partido dos Trabalhadores (PT) não elegeu nenhum candidato próprio nas capitais brasileiras nestas eleições até agora ― está ainda na disputa em Macapá, onde as eleições foram adiadas. É a primeira vez que isso acontece desde a redemocratização do país, em 1985. Em todo o Brasil, o partido conquistou apenas 183 prefeituras, enquanto outras siglas tiveram resultados muito superiores, como MDB e PP, que superaram as 600 prefeituras cada uma. Seguiu o encolhimento que já protagonizava desde 2016, quando fez 254 prefeitos e voltou, neste ano, a um tamanho semelhante ao que tinha antes dos Governos de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciados em 2003 - cerca de 200 cidades com comando do partido.

Por um lado, é uma amostra que o antipetismo segue como uma força política significativa. De outro, trata-se do resultado de uma estratégia que optou por, quase sempre, lançar chapas próprias em detrimento de alianças com outras siglas de esquerda. É o caso de São Paulo, onde o candidato Jilmar Tatto amargou menos de 10% dos votos no primeiro turno, assistindo à ida de Guilherme Boulos, do PSOL, à segunda rodada eleitoral. O resultado foi a fragmentação dos votos e a consolidação de partidos como o PDT e o próprio PSOL como novas opções ao eleitorado de esquerda.

Apesar do resultado das urnas, analistas políticos afirmam, no entanto, que é prematuro falar em uma derrocada política completa. O PT ainda demonstra alguma força. Foi novamente às urnas em 20 das 57 cidades que tiveram segundo turno ― todas elas com colégios eleitorais significativos. E venceu em quatro delas: Contagem, Juiz de Fora, Diadema e Mauá.

Na maioria das cidades, o PT apostou em candidaturas de ex-prefeitos que contavam com a marca da experiência. O objetivo do partido era retomar espaço dentre os 96 maiores colégios eleitorais brasileiros, grupo que inclui as 26 capitais de estados e 70 cidades de interior com mais de 200 mil eleitores, um contingente em que, há quatro anos, o partido venceu apenas em Rio Branco (AC). A maior cidade que será governada por um petista a partir do ano que vem é Contagem, a terceira maior de Minas Gerais, onde a ex-prefeita Marília Campos venceu o advogado Felipe Saliba (DEM) por margem estreita (51,35% dos votos).

“Não posso cravar uma derrocada do PT, mesmo porque esteve em 15 das 57 grandes cidades que tiveram segundo turno. Não é porque perdeu em 11 que vou desconsiderar esta força e dizer que vão esquecer o partido”, declara o cientista político Rudá Ricci. Feita esta ponderação, Ricci avalia que o partido sai diferente destas eleições e prevê que deverá enfrentar um embate interno pela mudança de perfil de seus filiados com mandato. Isso porque candidaturas que tiveram êxito nas urnas, como por exemplo em Contagem e Juiz de Fora, não representam a ala majoritária do PT, ligada ao ex-presidente Lula. “Acho que vai ter um embate interno muito importante porque a corrente majoritária saiu derrotada. Mudou a conjuntura política de quem tem mandato no PT. E não dá pra fazer mais a narrativa que coloca a culpa nos outros”, analisa Ricci.

Já Wilson Gomes, filósofo, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, diz que “o PT estancou a sangria de 2016, mas teve uma grande perda nos dez maiores colégios eleitorais do país [São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Manaus, Recife, Porto Alegre e Belém]”, explica

A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, tentou defender os resultados alcançados. Destacou que o PT venceu em quatro das 15 cidades que disputava neste domingo e que teve mais de 40% dos votos em nove delas. “Vencemos com o PSOL em Belém, lutamos ao lado de Boulos e Manuela. E o Brasil viu o q fizeram p/ barrar Marília em Recife. O PT segue junto com o povo”, acrescentou. E arrematou dizendo que o “segundo turno mostrou que a esquerda sabe lutar”.

Mudança de perfil

Neste ano, o eleitor que votou nas candidaturas de centro-esquerda não mais associou este campo diretamente ao PT, pontua Ricci. Este eleitorado votou de forma mais plural, em candidatos do PSOL e do PDT, por exemplo. “O PT vinha crescendo desde os anos 1980 e fez quatro vezes a presidência, então ofuscava estes partidos, que agora cresceram”, avalia. O cientista político vê uma transição se formando no campo de centro-esquerda brasileiro, cujas inovações estariam sendo protagonizadas especialmente por mulheres e suas candidaturas coletivas às câmaras municipais. O campo começa, ainda, a apresentar uma pluralidade de lideranças. Ele cita como exemplo nomes como Manuela D’Ávila (PCdoB)Guilherme Boulos (PSOL) e Marília Arraes (PT). Embora nenhum deles tenha vencido no segundo turno, ganharam destaque e foram competitivos. Seria, portanto, uma pluralidade de lideranças que o cientista político não vê no campo de centro-direita.

O Partido dos Trabalhadores começou a crescer nos anos 1980, mas a partir do final dos anos 1990 afastou-se do “modo petista de governar” no âmbito local, representado, por exemplo, pela ideia de um orçamento participativo, conselhos e inversão de prioridades. Com a chegada de Lula ao poder, em 2002, o partido montou um modelo de coalizão ampla que o aproximou do modelo de centro-direita que tradicionalmente domina as prefeituras brasileiras. Nunca chegou a ser um partido majoritário nas municipais, mas ganhou fôlego. Em 2008, fez 557 prefeitos e se tornou a terceira força política do país. Em 2012, chegou a 632 prefeituras. No âmbito nacional, se afastou das bases e dos movimentos sociais e foi se parlamentarizando, com deputados em postos de liderança interna. A partir de 2016, voltou a encolher nos municípios. “Lula não mudou essa lógica do centro-direita da política brasileira. Ele a reforçou. É como se tivéssemos uma cabeça de esquerda e o corpo todo de centro-direita”, compara Ricci. Esta trajetória, para o cientista político, soma uma sucessão de erros estratégicos.

Para Wilson Gomes, um dos maiores equívocos é a resistência a olhar o espelho. “O PT está muito envelhecido, sua cúpula está envelhecida, mas o partido não faz nenhuma mudança em sua autoimagem, nenhuma autocrítica, nada”, diz.

“O PT se tornou um partido com a lógica tradicional, mas que tinha relações com a base marginalizada. É um partido funcional do sistema, mas a base não romperia com este sistema porque tinha o PT e as instituições como canal. Chegou um momento que este canal ficou interditado”, aponta Ricci.Gomes, que considera que o “antipetismo foi o maior eleitor em 2016 e em 2018″, avalia que esse sentimento demonstrou ter ainda grande poder eleitoral em 2020.“Vimos, por exemplo, até um vídeo de Silas Malafaia apoiando João Campos, um candidato supostamente progressista, só para fazer oposição ao PT de Marília Arraes, mesmo em um estado em que ele não tem interesses diretos”.

Mas os resultados deste ano pouco apontam para a discuta de 2022, considera Ricci. “O eleitor está procurando outros caminhos”, analisa. Após uma decepção com o bolsonarismo, o eleitor médio voltou à moderação e ao conhecido e fez dos partidos de centro-direita os grandes vitoriosos desta eleição. “Ele está em transição, abandonando a extrema direita e o totalmente novo de 2016 e de 2018. Ao mesmo tempo, o campo do centro-esquerda também está tendo uma transição importante”, diz.

O antibolsonarismo cresceu e tornou-se uma força política. Prova disso é que 11 dos 13 candidatos apoiados pelo presidente da República não foram eleitos. “Mas isso não significa que o antipetismo diminuiu”, pondera Gomes. “A questão é que o que demorou 13 anos para chegar para o PT chegou em apenas dois para Bolsonaro. Não sei se o que mais prejudicou ele foram as eleições nos Estados Unidos ou as municipais brasileiras”, acrescenta.


Bolívar Lamounier: O primeiro passo é conhecer o Brasil

No atual cenário social, econômico e político, hipótese de retrocesso não pode ser descartada

Se você acredita que o Brasil está progredindo a um ritmo medíocre, está certo; se pensa que estamos na iminência de um retrocesso grave, é provável que esteja certo também.

Só estará errado se achar que dispomos do tipo e do montante de conhecimentos de que vamos precisar para sair desta enrascada em que há anos nos vimos arrastando. Afirmação arrojada, bem o sei. No transcurso das últimas três ou quatro décadas, as pesquisas de opinião e os levantamentos do IBGE têm nos proporcionado uma montanha de informações de altíssimo valor. O problema, creio eu, é que tais informações não respondem em sua inteireza às indagações que se imporão quando nos depararmos com o inexorável desafio de reformar a sério nossa sociedade e nossas instituições políticas.

Ao dizer “inexorável”, peço permissão para passar ao largo do mar de mazelas que debatemos dia sim e outro também: estagnação econômica, desigualdades abissais, nível médio de escolaridade abaixo da crítica e condições sanitárias cujas deficiências conhecíamos de longa data, mas sobre as quais agora, com a pandemia, não cabe mais discussão. Tampouco me parece caber dúvida quanto à persistente perda de consistência das instituições: da alta administração pública, civil e militar, assim como do Legislativo e do Judiciário.

Volto aos conhecimentos de que necessitamos. A montanha de informações de que dispomos se compõe basicamente de dados “atomizados”, quero dizer, colhidos por meio da aplicação de questionários a indivíduos isolados e depois agrupados em categorias (classes A, B, C, D, diferenças entre grandes e pequenos municípios, etc.). Os resultados de tais operações não são grupos reais. Se nosso objetivo é evitar retrocessos e construir um sistema político capaz de impulsionar o desenvolvimento, informações desse tipo não são suficientes. Sociedades e sistemas políticos assentam-se sobre estruturas, vale dizer, sobre tramas de relações interindividuais e intergrupais, por sua vez amalgamadas por valores e crenças que não se dão a conhecer ao primeiro estímulo de um entrevistador.

Quem deu um passo adiante foi o antropólogo Roberto DaMatta, ao dissecar a expressão “você sabe com quem está falando?”. De fato, a proverbial “carteirada” é um retrato da estratificação autoritária que permeia nossa sociedade. Penso, no entanto, que a necessidade de um indivíduo de status superior se dirigir a um de status inferior ordenando-lhe pôr-se “em seu lugar” indica que a estratificação já está sendo questionada. Não precisaria fazê-lo caso se tratasse de uma estratificação estática, imemorial.

Façamos uma comparação com a França. Em 1920, em sua maravilhosa Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust evoca “... a ideia um tanto indiana que os burgueses (de algum tempo atrás) formavam a respeito da sociedade, considerando-a composta de castas fechadas, onde cada qual se via, desde o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde nada os poderia tirar para que penetrassem numa casta superior, a não ser raros acasos de uma carreira excepcional ou de um casamento inesperado” (vol. 1, pág. 21).

Vinte anos mais tarde, em sua igualmente maravilhosa Suíte Francesa, Irène Némirovsky trafega por um labirinto praticamente igual, o da França invadida pelos nazistas. Claro, não tendo tido escravidão, os pobres franceses não eram miseráveis desprovidos de tudo, como os nossos, nem precisavam as camadas mais altas de recorrer à “carteirada”. A estratificação, os limites prescritos nas interações e nos modos que os indivíduos observavam ao se dirigirem uns aos outros, tudo era rígida e minuciosamente regulamentado.

Voltando ao Brasil, o que mais chama a atenção é a inexistência sequer de uma classe média claramente delineada, com valores e padrões próprios de comportamento. Nunca tivemos uma petite bourgeoisie assentada sobre a pequena propriedade urbana ou rural. A maioria das camadas que têm o privilégio do vínculo empregatício vive de empregos instáveis e de má qualidade. Na área educacional do atual governo tivemos três ministros, mas nenhum plano.

Tampouco temos elites no sentido positivo da palavra, ou seja, grupos de pessoas (com ou sem recursos econômicos vultosos) com vocação de exemplaridade, devotados em alguma medida ao bem comum, e capazes de transitar pelos diferentes setores funcionais da sociedade, agregando atitudes e balizando o modo de agir dos três Poderes. Não estranha, pois, que estejamos presenciando um processo de “desinstitucionalização”, com sinais bem perceptíveis de deterioração em toda a extensão do tecido político.

Sem uma classe média robusta, sem elites no sentido que acabo de expor, com um ritmo pífio de crescimento econômico e um sistema de ensino de péssima qualidade, a hipótese do retrocesso não pode ser descartada. Nas condições aventadas, as instituições democráticas tendem a perder respaldo e robustez, permanecendo incapazes de impulsionar a economia, vulneráveis às formas de corrupção mais obscenas e aumentando a possibilidade de crises graves.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Zulu Araujo: Em defesa da cultura, da democracia e da liberdade de expressão

Nunca imaginei que no limiar do aniversário de 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, onde a liberdade de expressão foi categoricamente inscrita, tivéssemos que gritar em alto e bom som, mais uma vez, os versos acima, contidos no hino da proclamação da República: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”.

A sucessão de fatos que tem ocorrido no Brasil, nas últimas semanas, agredindo de forma violenta o direito inalienável do povo brasileiro de liberdade expressão é de preocupar. Num dia, um grupo de direitistas confessos tentam impedir a todo custo a exibição de uma apresentação artística num museu em São Paulo, acusando o artista de pedofilia. No outro, o Prefeito do Rio de Janeiro, proíbe os museus da cidade de receberem a referida exposição, sob o mesmo pretexto.

Mais adiante, um grupo de vândalos, tenta agredir artistas num museu em Belo Horizonte, onde encontra firme reação dos artistas locais, liderados pelo Secretário de Cultura Juca Ferreira. No último final de semana, em Salvador, um juiz, a pedido de um deputado evangélico, suspende a apresentação de um espetáculo que era protagonizado por uma artista trans, apenas pelo fato dela ser trans. Nesse interim, um movimento conservador, liderado por um artista pornô xinga, calunia e ameaça artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, pelas redes sociais. E por fim, o absurdo dos absurdos, uma juíza, em São Paulo, proíbe a apresentação do artista Caetano Veloso, num acampamento de sem tetos, sob a alegação de que poderia gerar violência.

Ironia do destino, Caetano foi um dos grandes protagonistas na luta pela liberdade de expressão no Brasil, no período da ditadura e contribuiu enormemente para a conquista das liberdades democráticas em nosso país. Aliás, sua frase, singela e direta, que expressa um misto de surpresa e indignação diz tudo: “É a primeira vez que sou impedido de cantar no período democrático”.

Aparentemente isto não tem nada a ver com as causas negras, ou com o movimento negro. Ledo engano. Tem tudo a ver sim. Estas manifestações são em verdade, extensões das ações de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, das discriminações e atitudes racistas que os artistas, futebolistas e personalidades negras tem sofrido nas redes sociais, assim como são parte integrante dos mesmos grupos que patrocinam o extermínio da juventude negra. É tudo farinha do mesmo saco.

Não se enganem os protagonistas são os mesmos. Os objetivos são os mesmos. E a metodologia é a mesma. Ou seja, a intimidação, o uso da emoção enquanto catalizador de processos antidemocráticos e sobretudo o completo desrespeito as liberdades democráticas tão duramente conquistadas em nosso país.

Por isso mesmo, cabe a todos nós, pretos, brancos, mestiços, mas sobretudo aos democratas de todas as cores, de todas as idades e de todas as religiões e de todos os gêneros a reagirem veementemente contra essa onda conservadora que tenta se apossar do país.

Mais, do que reagir, precisamos nos mobilizar para fazer valer aquilo que está inscrito em nossa constituição federal. Daí, mais que nunca ser necessário gritarmos em alto e bom som – “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós..”.

Toca a zabumba que a terra é nossa!

* Zulu Araujo foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.