Raquel Dodge

Bernardo Mello Franco: Raquel Dodge merece o Troféu Barrichello

A cinco dias de deixar o cargo, a procuradora-geral da República descobriu que a democracia brasileira corre riscos. “O esforço do século XXI é o de impedir que ela morra”, disse

Raquel Dodge não conquistou a sonhada recondução, mas merece o Troféu Rubinho Barrichello. A cinco dias de deixar o cargo, a procuradora-geral da República descobriu que a democracia brasileira corre riscos. Chegou atrasada, como costumava acontecer com o antigo piloto da Fórmula 1.

Em sua última sessão no Supremo, Dodge denunciou o avanço do autoritarismo no país. Ela pediu que os ministros “permaneçam atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal”.

A procuradora traçou um cenário sombrio para o futuro das liberdades civis. “Se o esforço do século XX foi o de erguer a democracia liberal brasileira, o esforço do século XXI é o de impedir que ela morra”, afirmou.

Ela também alertou contra o surgimento de “vozes contrárias ao cumprimento das leis”. Em outra passagem, disse ter mandado plantar um jardim de camélias “como símbolo contra a opressão”.

“Quero lhes fazer um pedido muito especial. Protejam a democracia brasileira, tão arduamente erguida”, encerrou, depois de um punhado de autoelogios.

A procuradora tem razão ao apontar riscos à Constituição e à independência do Ministério Público. A questão é saber por que ela demorou tanto a notá-los.

Enquanto acreditou que poderia ser reconduzida, Dodge flertou abertamente com o grupo que está no poder. Quando Jair Bolsonaro ameaçou “fuzilar a petralhada”, ainda na campanha eleitoral, ela se recusou a denunciá-lo por injúria. Alegou que a incitação à violência não continha “referência a pessoas”.

Em janeiro, a procuradora festejou o início de “um mandato de mudanças”, que renovaria “a esperança dos brasileiros”. Nos meses seguintes, segurou investigações que envolviam o presidente e virou figurinha fácil em solenidades no Planalto.

Ontem Dodge afirmou que a democracia depende do sistema de freios e contrapesos. Faltou dizer que ajudou a miná-lo em benefício próprio. Na luta pela recondução, ela legitimou a escolha de um procurador-geral fora da lista tríplice e barganhou apoio com políticos que deveria investigar.


Eliane Cantanhêde: O Brasil em choque

Na guerra entre esquerda e direita, que só piora, quem vence é o descaso e a morte

Este ano de 2019 começou com 339 mortos e desaparecidos em Brumadinho, dez lindos talentos dizimados no Flamengo, sete vítimas da tempestade no Rio, 13 mortos num único tiroteio também no Rio, o presidente da República internado em São Paulo em função de uma facada brutal, o ex-presidente mais popular da história preso e condenado pela segunda vez por corrupção e os senadores dando vexame ao vivo e em cores.

O Brasil está perplexo, irritado, desanimado e a palavra-chave por trás das três catástrofes foi dada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge: “Estamos vendo fatos e desastres evitáveis, preveníveis e precisamos estar atentos a eles”. De todas as tragédias, a maior tragédia é descobrir que todas aquelas perdas seriam perfeitamente “evitáveis” se todos e cada um cumprissem com responsabilidade suas funções.

O que foi Brumadinho? De certa forma, uma repetição espantosa do crime de Mariana, em que setor público, companhias privadas e legisladores se embolaram numa valsa macabra de descaso, negligência, omissão, quem sabe embalada pela velha e arraigada corrupção. Uma represa ultrapassada, fiscalização precária, alertas frágeis e ignorados, refeitório e administração como alvo diretos. Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que foram soterrados, agonizando na lama.

O que foi o fogo voraz no Ninho do Urubu? De certa forma, uma repetição aterrorizante do que ocorreu na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Mete-se um monte de jovens numa arapuca e lá se vão os craques mais promissores e saudáveis universitários cheios de sonhos. Locais precários, fechados, sem alvará, sem fiscalização. E o CT do Flamengo com pedido de interdição ignorado desde 2017.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que seriam a saída para o futuro e arderam em chamas, sem chance de escapar.

O que foi o temporal que matou sete pessoas na cidade maravilhosa? A história anunciada de desabamentos, destruição e mortes que se repete a cada ano, a cada verão, a cada temporal, embalada pela incapacidade dos governos, pela má-educação da população, por erros que se eternizam.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que afundaram na água, asfixiados, impotentes para reagir.

O que foi a morte dos 13 bandidos no bucólico (e perigoso) morro de Santa Tereza? Armados até os dentes e cada vez mais audaciosos, eles montaram um bunker para reagir à polícia. Foram dizimados, na maior chacina de criminosos desde 2007 no Rio. Por trás dessa única cena, uma realidade carioca e nacional: a violência fora de controle. Não se combatem as causas, se passa a eliminar o efeito. Na “nova era”, vão ter de matar milhões de bandidos. Uma carnificina.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas das vítimas daqueles criminosos, mas também os dos próprios criminosos mortos. Por trás de cada um, provavelmente há a história de uma criança sem futuro.

Nós, a Nação dessas mães, pais, avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas de toda essa tragédia coletiva, nos perguntamos: onde foi que erramos? São muitas respostas, uma dor que dói na alma e estremece o corpo, mas uma coisa é certa: os representantes do povo, os funcionários do povo e quem deveria proteger o povo estavam mais preocupados em combater os adversários do que garantir a segurança e o bem-estar das pessoas.

Na guerra entre direita e esquerda - que não acabou, só piora -, os vencedores são o descaso, a incompetência, a corrupção e a impunidade. O Brasil está em choque.


Fernando Limongi: A semana em revista

Dodge defende a categoria como uma líder sindical o faria

"A Constituição é um documento vivo, em constante processo de significação e ressignificação, cujo conteúdo se concretiza a partir das valorações atribuídas pela cultura política a que ela pretende ser responsiva. Por sua vez, tais valorações são mutáveis, consoante as circunstâncias políticas, sociais e econômicas, o que repercute diretamente no modo como o juiz traduz os conflitos do plano prático para o plano jurídico, e vice-versa."

Por meio deste raciocínio tortuoso, o ministro Luiz Fux justificou a suspensão da liminar concedida quatro anos atrás, que, como todos sabem, garantia o pagamento do auxílio-moradia a juízes e promotores de todo o Brasil. Todos sabem também que a decisão do ministro fez parte da negociação que garantiu o aumento salarial da categoria obtido na semana passada. Ou seja, o ato monocrático do ministro Fux nada mais foi que o jeitinho encontrado para que os membros da corporação pudessem engordar seus contracheques. Com a manobra, obtiveram aumento salarial sem o necessário respaldo da lei. Todos, mesmo os mais jacobinos e moralistas, participaram da jogada e receberam o seu.

O despacho do ministro é de uma desfaçatez assustadora. Em última análise, Fux sustenta que juízes têm o direito de interpretar a Constituição para atender às suas necessidades práticas. Assim pensa (e pauta suas decisões) um dos 11 juristas cujo papel institucional é agir como o guardião da Constituição. Por vezes, não há como fugir do chavão: e quem nos guardará dos guardiões?
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"Sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento de auxílio-moradia, fato é que esta ação restringe-se ao pagamento ou não do benefício em causa para os juízes, nos termos da legislação que rege a magistratura judicial brasileira, limitando-se o julgado àquelas carreiras."

Este foi o despacho da procuradora-geral da República visando assegurar que os promotores não percam o direito a receber o penduricalho tão arduamente conquistado. Dodge, portanto, atua na defesa dos direitos da categoria que lidera, como uma líder sindical o faria. Mais do que isto, ao se furtar de discutir a legalidade da medida - o que em si só parece indício de que a medida carece de amparo legal -, Dodge escancara que o formalismo é um recurso meramente protelatório. Quando se trata de encher os bolsos da categoria, vale tudo.
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"A corrupção mata. Mata na fila do SUS. Mata na falta de leite. Mata na falta de medicamentos. Mata nas estradas, que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas, que não são educadas adequadamente, na ausência de escolas, deficiências de estruturas e falta de equipamento." Com estas palavras, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a manutenção da suspensão do indulto de natal concedido pelo presidente Temer no ano passado.

É indiscutível que a corrupção desvia dinheiro de destinações mais nobres e eficientes. Isto está fora de questão. Contudo, isto não significa que, controlada a corrupção, desaparecerão as filas do SUS, todas as estradas terão manutenção adequada e que todas as crianças serão educadas em escolas bem aparelhadas.

Recursos são escassos e, se a corrupção for eliminada, continuarão a ser. Salários dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público saem da mesma fonte que paga médicos, repara estradas e custeia a educação. Assim, recorrendo à retórica de que se valeu o ministro, seria possível dizer que penduricalhos garantidos pela interpretação que dá vida ao texto constitucional aumentam as filas do SUS e tiram recursos da educação.
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"Quem é Osmar Terra comparado ao Magno Malta?" A pergunta feita pelo deputado Silas Malafaia procede. Pela vontade de Bolsonaro, Malta seria seu companheiro de chapa e só não ocupou o posto em razão das maquinações de Valdemar Costa Neto.

Bolsonaro continua firme na sua disposição de fugir ao toma-lá-dá-cá das indicações partidárias, privilegiando a competência e a lealdade dos selecionados. Os critérios, contudo, não têm se mostrado suficientes para aplacar conflitos, para decidir se Terra ou Malta é mais preparado para o cargo. Como declarou o presidente, há escassez de cargos e excesso de amigos leais a premiar.

Mas nem todos ficarão no sereno. Com a criação de Secretarias Especiais de Articulação Política, o governo visa assegurar colocação para aliados punidos pelas urnas. Serão duas secretarias especiais, comandadas por Carlos Manato e Leonardo Quintão, cada uma delas com o direito a empregar dez deputados não reeleitos. Pelo que foi noticiado, caberá a estes parlamentares a tarefa de organizar a base de apoio do presidente e garantir a aprovação da reforma da Previdência.
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"Essa que está aí não está sendo justa, no meu entender. Não podemos querer salvar o Brasil matando o idoso." Esta é a opinião de Jair Bolsonaro sobre a reforma da Previdência enviada por Michel Temer ao Congresso. Como é de seu feitio, o presidente eleito saiu pela tangente, quando perguntado sobre detalhes da proposta que defende.

Marcos Cintra, nomeado secretário da Previdência e da Receita Federal, tampouco tem detalhes a oferecer. Em entrevista à "Folha de S. Paulo", declarou que "evidentemente, ainda não houve discussão em detalhes com o Paulo Guedes, nem com o próprio presidente. O presidente tem emitido sinais que não quer uma reforma previdenciária que gere grandes descontinuidades ou grandes tumultos, quer uma coisa menos acelerada e disruptiva. Então, o que vamos fazer é construir isso e apresentar para o debate."

Em outras palavras, a equipe de transição sequer começou a atacar a questão e, quando o fizer, não será fácil atender as demandas do presidente. O fato é que, fosse outra a disposição dos agentes econômicos, as duas declarações teriam derrubado o índice Bovespa.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Merval Pereira: Rapidez e rigor

A decisão de Raquel Dodge, na qualidade de procuradora-geral eleitoral, de divulgar instrução normativa orientando todos os procuradores a ingressarem com ações para impugnar candidaturas de políticos condenados em segunda instância, conforme prevê a Lei da Ficha Limpa, é mais uma sinalização da Justiça de que não permitirá que a insegurança jurídica embaralhe o resultado das eleições de outubro.

Mesmo que tenha ressaltado que a legislação admite candidaturas sub judice, quando ainda há possibilidades de recursos, a decisão, acrescentada da advertência do atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro do STF Luiz Fux, de que a Justiça Eleitoral será rigorosa contra os candidatos fichas-suja, indica que a tentativa do PT de tentar ganhar tempo através de recursos protelatórios para conseguir colocar o nome de Lula na urna eletrônica tem tudo para dar errado.

Rapidez e rigor são as palavras que acompanham sempre as declarações das autoridades encarregadas de zelar pela lisura das eleições presidenciais. Nossa expectativa é fazer prevalecer a Lei da Ficha Limpa, garantiu a procuradora-geral da República. Ontem o futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, no plantão judiciário, confirmou à Justiça Eleitoral de Goiás que o ex-senador Demóstenes Torres pode se candidatar ao senado nas próximas eleições.

A decisão fora tomada por 3 votos a 2 na Segunda Turma do Supremo, e foi confirmada ontem por Toffoli. A alegação para passar por cima da Lei da Ficha Limpa, que prevê que, além dos condenados em segunda instância, também os políticos cassados, como é o caso de Demóstenes, estão inelegíveis, é que o ex-senador não poderia ser considerado inelegível porque as provas que justificaram sua cassação acabaram anuladas pela Justiça.

A decisão abre um precedente perigoso, pois a Lei da Ficha Limpa não prevê nenhum recurso ao STF. O Senado que cassou Demóstenes foi simplesmente ignorado na decisão. Mas também é improvável que o processo que condenou Lula venha a ser anulado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quem cabe analisar os recursos.

Precedente histórico
A interferência da Rússia na eleição de Donald Trump, alvo de uma investigação independente nos Estados Unidos, tem um precedente histórico revelado no livro de memórias de Nikita Khrushchev, secretário-geral do Partido Comunista da então União Soviética.

Ele se gaba de ter ajudado John Kennedy a vencer Nixon na eleição presidencial de 1960, retardando a liberação do piloto do U2 Gary Powers, preso acusado de espionagem. Com isso, evitou que Nixon, reconhecido como um anticomunista feroz, pudesse anunciar que só ele sabia como lidar com os soviéticos.

Na estimativa de Khrushchev, a manobra resultou em mais de 500 mil votos para Kennedy, que ganhou a eleição com 303 votos contra 219 no colégio eleitoral, com apenas 112.827 votos de diferença, ou 0,1% do voto popular.

Powers era piloto de um avião espião U2 abatido pelos mísseis soviéticos quando sobrevoava Sverdlovsk. O avião caiu quase totalmente intacto, e os soviéticos recuperaram seus equipamentos, que foram analisados minuciosamente durante o que se chamou de “a crise do U2”. Powers foi interrogado exaustivamente pela KGB durante meses, e acabou confessando que era um espião.

Sua libertação antes da eleição poderia dar um trunfo para Nixon, que servira durante oito anos como vice de Eisenhower. Outra coincidência com a eleição de Trump contra Hilary Clinton em 2016 é que Nixon dedicou-se a uma campanha em todos os distritos eleitorais, enquanto Kennedy empenhou seu esforço nos chamados estados indecisos

(swing states), do mesmo modo que Trump fez. Hilary Clinton ganhou no voto popular e perdeu no colégio eleitoral. Kennedy ganhou nos dois, mas, pelas contas de Khrushchev, perderia no voto popular se não fosse a ajuda da União Soviética. Não há como provar que não ganharia no colégio eleitoral, que é o que vale, se a União Soviética não tivesse evitado que o anticomunista Richard Nixon pudesse angariar popularidade com a liberação do prisioneiro.


Míriam Leitão: Cenário eleitoral

Doador de dinheiro sujo sabe que agora CEO vai para a cadeia. O quadro eleitoral fica mais presente, ainda que não tenha nitidez. A semana terá lançamento de pré-candidaturas e julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no STJ. Isso depois de uma semana em que Lula deu a entrevista acenando para Michel Temer e o presidente passou a ser investigado em mais um processo, por pedido de sua escolhida Raquel Dodge e decisão do ministro Edson Fachin.

Há vários motivos pelos quais esta será uma eleição diferente das outras. Uma delas é o financiamento. A doação legal das empresas foi proibida, a ilegal está sendo constrangida fortemente. Hoje, as empresas sabem que o CEO vai pra cadeia, que dono e herdeiro de empresa podem passar uma longa temporada na prisão. Estão todos avisados. E isso, no mínimo, terá o poder de dissuadir muita gente que em outros tempos não hesitaria em encher malas de dinheiro e enviá-las para candidatos. Caso nada disso constranja o dinheiro sujo, quem fizer uma campanha cara ficará exposto.

Os dois partidos que têm o maior volume de dinheiro do fundo partidário e do fundo eleitoral são o MDB, com R$ 304,9 milhões, e o PT, com R$ 300,9 milhões, segundo estimativa feita pelo cientista político Jairo Nicolau. Desses, o MDB ainda não disse com que candidato vai. O PT aferra-se à candidatura de Lula, que muito provavelmente será declarado inelegível. Dois candidatos que têm pontuado bem em todas as pesquisas, Jair Bolsonaro e Marina Silva, terão apenas R$ 14,8 milhões (PSL) e R$ 14,6 milhões (Rede), 23º e 24º lugares na distribuição de recursos públicos. O Podemos receberá R$ 41 milhões. Os grandes partidos ficam com a parte do leão. Ao todo serão 35 partidos recebendo o valor de R$ 2,362 bilhões do dinheiro do contribuinte. Pela estranha legislação brasileira de recursos públicos para as eleições, até os muito nanicos ou que acabaram de se formar terão direito a um bom bocado. Os três últimos serão PCO, PMB e Novo, cada um com em torno de R$ 2 milhões. A lei concentra os recursos nas oligarquias partidárias, e distribui um cala-boca para partidos sem qualquer viabilidade eleitoral.

O MDB não tem candidato a presidente desde 1994, quando Orestes Quércia ficou com 4,4% dos votos, atrás de Enéas. Desta vez, o partido tem um poder inédito: o da máquina da Presidência. Além do maior volume de recursos públicos, num tempo de vacas magras de financiamento. Resistirá ao apelo de ter um candidato mesmo que seja Temer e sua terrestre popularidade?

A entrevista de Lula à Monica Bergamo esclareceu muitos pontos. Ele criou a versão fantasiosa de conspiração americana contra a Petrobras porque essa ginástica nos fatos talvez sirva para os palanques. Com um mínimo de honestidade não dá para explicar o ataque do PT e seus aliados aos cofres da Petrobras sobre o qual há evidências acima de qualquer dúvida. Melhor dizer que tudo é culpa da cobiça americana atrás das reservas do pré-sal. O outro delírio também tem um propósito. Quando ele diz que Temer resistiu ao que ele definiu como tentativa de golpe da Globo está evidentemente querendo construir uma ponte para o futuro com seu velho aliado nas últimas campanhas, o partido do Temer.

Na campanha de Jair Bolsonaro, o economista Paulo Guedes deu entrevistas longas para explicar seu pensamento. Continua sem solução o mistério de como as ideias liberais de Guedes serão colocadas na mente intervencionista do candidato. Já nas ideias políticas, parece haver mais harmonia. À “Folha de S. Paulo”, Guedes declarou: “O Ustra disse que não torturou ninguém. Quem está falando a verdade, quem não está?” Mais de quarenta pessoas que passaram pelo Doi-Codi, entre 1970 e 1974, então sob o comando de Ustra, não podem sequer dar suas versões, porque não saíram vivas.

A eleição cuja campanha oficialmente não começou é um tabuleiro em que as pedras se movem a cada dia, mas ainda está muito longe de se saber como será o jogo para valer.

* Em 2017, exceto por uma semana, passei o ano mergulhada no trabalho neste país intenso e esqueci das férias. Por isso, sairei agora por três semanas. Vocês ficarão com o talento dos colunistas Alvaro Gribel e Marcelo Loureiro.

 


Merval Pereira: Cai a blindagem

Ao acatar o pedido da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, de incluir o presidente Michel Temer na investigação sobre o suposto pagamento de R$ 10 milhões em propinas da Odebrecht para o PMDB, acertado em um jantar no Palácio Jaburu quando ainda era vice-presidente, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin confirmou uma jurisprudência que havia sido interrompida na gestão de Rodrigo Janot.
Temer fora excluído do inquérito, que inclui os ministros palacianos Moreira Franco e Eliseu Padilha, porque o antecessor de Dodge argumentava que a Constituição proíbe a responsabilização do presidente por crimes cometidos antes do início do mandato.
Dodge é de uma linha diversa, que conta com o apoio de jurisprudência do Supremo segundo a qual o presidente pode ser investigado, mas não denunciado por crimes cometidos fora de seu mandato presidencial.
O ex-ministro Teori Zavascki, relator no Supremo da Lava-Jato na ocasião, concordou com Janot, mas voltou atrás meses depois, admitindo que o entendimento consolidado da Suprema Corte permitiria a abertura de investigação contra a então presidente Dilma Rousseff na Lava-Jato, caso houvesse indícios do envolvimento dela em irregularidades:

“Não se nega que há entendimento desta Suprema Corte no sentido de que a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no parágrafo quarto do artigo 86 da Constituição (o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções) não inviabiliza, se for o caso, a instauração de procedimento meramente investigatório, destinado a formar ou a preservar a base probatória para uma eventual e futura demanda contra o chefe do Poder Executivo.”
A principal proteção é a chamada “relativa e temporária irresponsabilidade” pela prática de atos estranhos ao exercício de suas funções, como está previsto no art. 86, § 4º da Constituição. Essa regra surgiu pela primeira vez no Brasil durante o regime do Estado Novo de Getulio Vargas na Carta Autocrática de 1937. As demais constituições republicanas jamais contemplaram a imunidade penal temporária, de tal modo que, sob todas as outras constituições, o presidente da República poderia ser processado até por fatos estranhos ao desempenho do mandato presidencial.
A Constituição de 1988 trouxe de volta esse dispositivo, que é compatível com a lógica autoritária do Estado Novo. No entanto, outras constituições de Estados democráticos também conferem ao chefe de Estado essa imunidade temporária. Na França, só é permitido que se instaure processo criminal contra o presidente da República na hipótese de crime de traição.
A posição que orienta a jurisprudência é a do decano do Supremo, ministro Celso de Mello, na época em que Fernando Collor era presidente da República, em que dizia que não poderia ser processado, a não ser por atos praticados durante seu mandato, mas ressaltava: [...] De outro lado, impõe-se advertir que, mesmo na esfera penal, a imunidade constitucional em questão [aquela do presidente da República] somente incide sobre os atos inerentes à persecutio criminis in judicio. Não impede, portanto, que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal”.
Os que defendem a blindagem completa lembram que uma investigação, que eventualmente aponte crimes contra presidentes, pode gerar uma crise institucional, mesmo que não haja a condenação. Os defensores das investigações alegam que, muitas vezes, a prova se dilui com o passar do tempo, testemunhas morrem, documentos são destruídos, e é preciso preservar a capacidade de a Justiça obter informações no prazo certo, para usá-las mais adiante se for o caso.

Luiz Carlos Azedo: O conjunto da obra

Para sair do abismo que cavou com as próprias mãos, Lula quer ser absolvido pelos eleitores. Acredita que o veredicto das urnas se sobreporia às sentenças judiciais

O ex-presidente Luiz Inácio da Silva foi condenado a 12 anos e 1 mês de prisão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, por causa de um sonho de consumo familiar: o tríplex de Guarujá. Pode ser que ainda sofra nova condenação por desejo da mesma ordem, no caso do sítio de Atibaia, que ainda está em curso na 13ª Vara Federal de Curitiba, cujo titular é o juiz federal Sérgio Moro. Suas ambições pequeno-burguesas acabaram desaguando em processos de natureza criminal. Para evitar a prisão, que considera injusta, Lula resolveu politizar seu julgamento e manter a qualquer custo uma candidatura natimorta à Presidência. A rigor, não poderá concorrer por causa da Lei da Ficha Limpa.

Lula não se imagina na mesma situação do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, que pôs uma meteórica carreira política a perder em razão de sonhos de consumo e hoje está preso em Curitiba, para onde foi transferido com mãos algemadas e pés acorrentados. A rigor, porém, os meios utilizados para viabilizar os respectivos projetos de poder foram iguais, com vasos comunicantes no cartel das empreiteiras que desviaram recursos da Petrobras, da construção de estádios de futebol e de obras de infraestrutura para financiar projetos de poder e de enriquecimento pessoal. Zero diferença em relação a adversários que também se beneficiaram do desvio de recursos públicos para chegar e se manter no poder.

Lula sofreu uma derrota judicial acachapante em Porto Alegre, mas manteve a estratégia de confronto com o Judiciário, que desperta dois tipos de solidariedade da elite política. A mais sincera é dos que estão sendo processados pela Operação Lava-Jato e temem, como Lula, o chamado efeito Orloff do exemplo de Cabral: “eu sou você amanhã”. A mais falsa é a dos demais pré-candidatos a presidente da República que defendem o direito de Lula ser candidato, “mesmo que esteja preso”, por que estão de olho nos votos dos eleitores órfãos do petista. É bem típico da política. O principal objetivo de Lula é criar tal comoção no eleitorado que o livre da prisão.

Legado

Para sair do abismo que cavou com as próprias mãos, Lula quer ser absolvido pelos eleitores. Acredita que o veredicto das urnas se sobreporia às sentenças judiciais. Mesmo que Lula seja impedido de disputar as eleições com base na lei da Ficha Limpa, haveria o julgamento do seu legado político no processo eleitoral. Um “dedazo” na convenção petista indicaria seu substituto na sucessão presidencial, que faria apologia de suas realizações no governo de 2002 a 2010. A ex-presidente Dilma Rousseff, coitada, será jogada às feras da oposição. E responsabilizada pelo fracasso da chamada “nova matriz econômica”, como se Lula não tivesse nada a ver com isso.

Dilma ficaria com o ônus do desemprego, da inflação e da recessão na qual o país mergulhou, o legado de Lula seria a geração de emprego e renda numa economia que chegou a crescer 7% em 2010, ano em que deixou o poder, e a gratidão dos 52 milhões de pessoas beneficiadas pelo programa Bolsa Família. Vem daí a sua força eleitoral resiliente. Essa estratégia é vulnerável por causa da crise ética. A gênese da Lava-Jato foi o “mensalão”. No governo de Lula e sob seu comando político, montou-se o maior esquema de corrupção de que se tem conhecimento no Ocidente. O sistema de poder que se alicerçava no capitalismo de Estado e nos mecanismos de financiamento político desnudados pela Operação Lava-Jato também faz parte do chamado “conjunto da obra”.

Pode tirar o burrinho da sombra o político enrolado na Operação Lava-Jato. A condenação de Lula é a demonstração de que ninguém está acima da lei, pelo menos se estiver sem mandato. Houve uma mudança de postura do Ministério Público Federal sob comando de Raquel Dodge, a nova procuradora-geral, com o fim do vazamento das investigações, que continuam. Houve um “alto lá” nas delações premiadas, com o caso da JBS, mas outras delações de vulto estão para acontecer. A Polícia Federal emite sinais trocados sob nova direção, como aconteceu na transferência de Sérgio Cabral, na qual o agente japonês deu lugar a policiais ninjas das operações especiais. Mas os escândalos continuarão sendo investigados, inclusive no exterior, por onde Lula passou. O sinal veio ontem mesmo, com a apreensão do passaporte vermelho do ex-presidente da República, que estava com viagem marcada para a Etiópia, país que não tem tratado de extradição com o Brasil, por causa do caso da compra dos aviões de caças suecos pela Aeronáutica.


O Globo: Raquel Dodge vai ao STF contra R$ 99 milhões para comunicação do governo

PGR pede que destinação para comunicação instucional seja suspensa

POR RAYANDERSON GUERRA

RIO - A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a destinação prevista de R$ 99 milhões, em favor da Presidência da República, para a comunicação institucional do governo. Na Ação Direta de Insconstitucionalidade (ADI), Dodge argumenta que o governo não pode se valer de dinheiro público para convencer a população sobre uma "proposta polêmica", como a reforma da Previdência. A procuradora pede que seja concedida uma liminar para suspender a destinação dos recursos para a comunicação institucional.

“É natural que cada governo busque a implementação de uma dada ordem de propostas políticas. Se, porém, o governo entende que deve esforçar-se por persuadir a população do acerto de uma proposta polêmica, não pode valer-se de recursos financeiros públicos para promover campanha de convencimento que se reduza à repetição de ideias, teses e juízos que não são de consenso universal", diz na ação.

Para Dodge, a comunicação pública deve ter caráter estratégico não apenas para os governos, mas, e sobretudo, para a cidadania.

“O dever de transparência abrange, inclusive, o dever de clareza quanto a posições de governo expressas em propagandas denominadas institucionais”.

Do ponto de vista constitucional, a procuradora-geral argumenta que a Constituição atribui à publicidade dos órgãos públicos um caráter educativo ou de orientação social e veda a promoção pessoal de autoridades públicas.

“A publicidade em favor de uma medida notoriamente controvertida é substancialmente distinta de uma publicidade em favor da conscientização da população sobre a necessidade de cuidados, por exemplo, para evitar a proliferação do mosquito da dengue”, compara. “Neste caso, há consenso em que a saúde pública se beneficia das medidas propugnadas. No caso da reforma da previdência, esse consenso não existe – por isso mesmo não se pode verter recursos públicos exclusivamente para favorecer um dos polos da controvérsia”.

Dodge pede que o STF conceda uma liminar para suspender a eficácia da norma quanto à destinação da verba. Ela argumenta que o dano gerado aos brasileiros pode ser irreparável.

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, no plantão durante o recesso judiciário, requisitou informações com urgência e prioridade sobre a matéria aos presidentes da República, Michel Temer, e do Congresso Nacional, Eunício Oliveira (PMDB-CE), no prazo de dez dias. O relator é o ministro Marco Aurélio Mello.

A Advocacia-Geral da União (AGU) ainda não se manifestou sobre o assunto.

 

 


Fernando Gabeira: Anos de poder atrás das grades

Saí do Rio arrasado com a história de Picciani e dos outros deputados soltos pela Assembleia. Amigos tristes, desolação com o Brasil, enfim, a história de sempre. Sabia que a estrada e o trabalho atenuariam a dor. Em poucas horas, já estava em Brasília, tentando achar um veículo 4 por 4 para chegar até aqui e visitar o Refúgio da Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano. Minha pousada nesta pequena cidade de Goiás não tem TV. Na primeira noite, vi rapidamente, no bar, uma declaração do novo chefe da PF que pareceu estranha. Ele acha que apenas a mala cheia de dinheiro ainda é pouco como prova. Mas na terça à noite, ao chegar moído pelos buracos, lamas e poças da estrada, soube que Picciani e os dois outros estavam presos de novo. E que Raquel Dodge questionaria o STF sobre a a autonomia da Alerj para libertar os seus.

Sempre imaginei que a Constituição, ao dizer que o Congresso pode soltar um parlamentar, em certas condições, refletia um momento: o país acabava de sair de um longo período autoritário. Era uma pequena salvaguarda política. Da mesma forma, o foro privilegiado surgiu da necessidade de se poder votar e falar com liberdade. Seu sentido foi desvirtuado, assim como o poder de libertar um congressista.

Eles começaram a roubar descaradamente e a usar os instrumentos que, teoricamente, protegiam ideias para proteger assaltos e outros crimes. A Constituição acabou se voltando contra nós, sobretudo porque os políticos corruptos souberam encontrar apoio entre ministros do STF.

No passado, o Congresso decidia sobre prisão. O STF resolveu ampliar esse poder, estendendo-o, no caso Aécio Neves, também para medidas cautelares, como, por exemplo, não sair de casa à noite. Os ministros podem até alegar ingenuidade. Mas era evidente para os que conhecem a vida política no Brasil que a sua decisão iria se espalhar como um rastilho de pólvora. Nas assembleias estaduais, a disposição é a de libertar os deputados sempre, independentemente do que fizeram de errado.

Não tenho condições de prever em detalhes a saída para esse impasse. Vendo as coisas de forma realística, o STF é o lugar onde é possível corrigir algo. O movimento dos ministros foi o de agravar o problema, pois estavam em vias de reduzir o foro privilegiado e acabaram dando uma ajuda à impunidade no caso Aécio Neves. Eles precisariam voltar atrás e concluir a votação da reforma do foro privilegiado. Ela foi suspensa porque o ministro Alexandre de Moraes pediu vista, possivelmente para agradar aos políticos que o colocaram lá. Seria a boa notícia da semana.

O movimento, na verdade, é apenas uma etapa na luta contra a corrupção no Brasil. Algumas pessoas pensavam que a batalha seria simples: bastava denunciar, comprovar e prender. Isso só seria pensável num outro sistema mais avançado. Os políticos que desviam dinheiro público no Brasil o fazem há muitos anos. São eles que escolhem cargos de confiança, indicam e aprovam ministros para o STF.

Seria fácil expulsá-los se fossem estranhos no ninho. Mas foram eles que construíram o ninho, ajuntaram cada pedaço de palha: um ministro aqui, um chefe de polícia ali, o controle dos meios de comunicação em seus remotos estados. A arquitetura é sólida e complexa.

Para derrubar isso tudo, será preciso tempo e muita luta. Se as pessoas acham que a trama será desfeita por si própria, apenas com a descoberta dos escândalos, estarão enganadas. O Brasil é dominado por esquemas criminosos. Essa dominação foi fortemente atingida pela Lava-Jato e outras operações. Mas os próprios juízes, procuradores e delegados sempre advertiram que seu trabalho não basta para resolver o problema.

A situação é tão desanimadora que, às vezes, há gente defendendo uma quadrilha no governo com o argumento de que a quadrilha afastada pode voltar. Nisto há uma certa resignação. No entanto, nos países que, de certa forma, superaram a fase aguda do problema, é impensável escolher quadrilhas mais ou menos devastadoras.

A esta altura da vida, com a precária conexão, não sei se Picciani e os outros seguirão presos. No meio da semana, foi a vez de Garotinho e Rosinha. Detrás das grades, 20 anos de poder no Rio nos contemplam. Assim como acontece aqui, é possível desmontar progressivamente o gigantesco esquema de corrupção montado no Brasil.

Isso passa por melhores escolhas eleitorais, mas também por uma nova atitude no cotidiano. Muitos grupos dedicados à transparência já existem. Se cada pequena unidade de trabalho conseguir romper seu isolamento, se houver um permanente intercâmbio sobre o tema, é possível encontrar uma estratégia que transcenda as eleições, pois todos sabemos que santos não se candidatam a cargos públicos.

O movimento caiu na armadilha da aceitação da imprensa. Os comentaristas pensam claramente como um engenheiro: se houver muita gente, sucesso, menos gente, fracasso. Não é assim que se escreve a história dos protestos. Se dependesse de multidões, por exemplo, o Greenpeace já tinha morrido.

 


Míriam Leitão: Nos direitos humanos, não há como agradar a todos

A ex-secretária Flávia Piovesan disse que em direitos humanos há “derrotas e avanços no governo”. Derrotas, sabe- se bem. Avanços, procura- se. Já a procuradora- geral da República, Raquel Dodge, foi direta ao esclarecer, no encontro do MP, o que pensa sobre corrupção e retrocessos sociais. Em certos temas, não há caminho do meio, não há como agradar a dois lados quando as diferenças são antagônicas.

“Escravos e corruptos nos lembram que, em uma sociedade desigual, e onde o patrimônio público, comum a todos, tem sido corrompido na elevada proporção revelada pela Lava- Jato, o Ministério Público ( MP) deve sempre agir com firmeza e coragem no cumprimento de suas atribuições civis e criminais, sob as balizas da lei”, disse Raquel Dodge. Esse encontro, ao qual ela compareceu, é tradicional. Uma vez por ano, a Associação Nacional dos Procuradores da República reúne associados para três dias de debate. Ela é frequentadora desses encontros, e desta vez concentrava todas as atenções. É natural. Desde que assumiu, falou pouco, e dela muito se falou.

Uma das dúvidas que o silêncio de Raquel Dodge levantou foi a de não ter usado a palavra “Lava- Jato” no seu discurso de posse. No encontro dos procuradores, ela falou da operação como emblemática, pelo que revela. Para quem disse que Dodge enfraqueceria o MP, ela deixou o recado de que os procuradores devem agir com firmeza e coragem, principalmente quando há tanta corrupção e desigualdade. Ao mesmo tempo, lembrou aos procuradores das balizas da lei, fundamentais limites para a ação da autoridade pública em um estado democrático.

O Brasil vive tempos de óbvio retrocesso na área social. O governo Temer teve acertos na área econômica, tanto que conseguiu um alívio na crise. Caíram a inflação e os juros. O nível de atividade começa a se recuperar. Houve até uma pequena queda no colossal desemprego brasileiro. Nada disso mitiga o fato de que em questões sociais ele representa um flagrante retrocesso. O governo reduziu unidades de conservação, enfraqueceu órgãos de defesa de indígenas e do meio ambiente, perdoou multas ambientais, e, no pior dos seus atos, baixou a portaria que redefine trabalho análogo à escravidão.

Por isso é estranha a ideia da ex- secretária de direitos humanos de que há no governo Temer um revezamento de avanços e retrocessos. Explicou que não foi demitida por ter criticado a portaria do trabalho escravo. Saiu porque vai assumir a função que buscava na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Depois de ser eleita, avisou que deixaria o governo. A procuradora Flávia Piovesan tem credenciais para o novo cargo na OEA porque fez currículo na defesa dos direitos humanos. Lamentável foi apenas a sua passagem pelo governo Temer, em que ela tentou equilibrar- se em um muro que separa duas partes.

“Houve batalhas que ganhamos, houve batalhas que perdemos.” Ela não citou um exemplo sequer que pudesse confirmar a tese de vitórias dos dois lados. Disse nutrir “respeito e gratidão” pelo presidente Temer e afirma que ele lhe deu independência e carta branca. O problema é que no jogo de cartas em Brasília ela perdeu sistematicamente e aceitou as perdas mesmo quando elas eram inaceitáveis. Há um velho dilema em se participar de governos: até que ponto transigir com convicções para evitar o pior? No caso do governo Temer, em direitos humanos, claramente não há o que se possa fazer para atenuar coisa alguma.

Prova disso é o que acaba de acontecer no Ministério de Direitos Humanos. A ministra Luislinda Valois fez críticas à portaria, mas permaneceu no governo. Agora se sabe que a sua definição de trabalho escravo é ela ganhar menos do que R$ 61 mil. Voltou atrás ontem após a divulgação pelo “Estado de S. Paulo” do teor do seu documento de 207 páginas em causa própria.

Às vezes, há dois lados e eles têm que estar juntos. É isso que a procuradora- geral, Raquel Dodge, tem deixado claro. Defende que o MP deve continuar sua ações contra a corrupção na área criminal e contra as ameaças aos direitos humanos. Neste caso não deve haver escolha. Em tempos como o atual, o combate sem trégua tem que ocorrer nas duas frentes porque a luta é complementar.

 

 


Luiz Carlos Azedo: Raquel investiga 

Com Lúcio arrastado para o olho do furacão, teme-se no Palácio do Planalto que Geddel resolva falar para salvar o irmão

O estilo soft power da nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, alimentou expectativas no Congresso de que as operações de busca e apreensão da Operação Lava-Jato contra políticos eram uma página virada. Errado. No mesmo dia em que o presidente Michel Temer (PMDB) distribuía uma carta aos seus aliados denunciando uma suposta conspiração para destituí-lo da Presidência capitaneada pelo ex-procurador-geral Rodrigo Janot, a Polícia Federal fazia uma devassa no gabinete do deputado Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA) e nas residências do parlamentar.

Foi a primeira operação contra um político na gestão de Raquel Dodge, que deu continuidade às investigações sobre os R$ 51 milhões encontrados em setembro, pela Polícia Federal, num apartamento de Salvador, supostamente pertencentes ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, irmão do parlamentar, que está preso preventivamente no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Durante toda a manhã os policiais permaneceram na Câmara, deixaram o gabinete de Lúcio com uma mala e um malote de documentos.

A operação foi realizada a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Os mandados de busca e apreensão foram expedidos pelo ministro Luiz Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF. Investiga se há relação entre Lúcio e os R$ 51 milhões. Os investigadores querem saber se ele poderia ser beneficiário ou intermediário do dinheiro, daí as buscas na residência em Brasília e no apartamento em que ele vive com a família em Salvador.

Job Ribeiro Brandão, secretário parlamentar lotado no gabinete de Lúcio, é o suposto elo entre o parlamentar e as malas de Salvador. Foram encontradas digitais dele no apartamento em que estavam escondidos os R$ 51 milhões e até em parte do dinheiro. Lúcio é um dos mais influentes parlamentares do PMDB na Câmara, destacando-se como articulador da base do governo. Sempre bem-humorado, não se deixou alquebrar pela prisão do irmão e descarta qualquer possibilidade de ele recorrer à “delação premiada”. Agora, porém, com Lúcio arrastado para o olho do furacão, teme-se no Palácio do Planalto que Geddel resolva falar para salvar o irmão.

Afastamento
A operação foi como uma bomba para os governistas, que durante o fim de semana planejaram uma contraofensiva às denúncias envolvendo o presidente Temer e dois de seus mais importantes auxiliares, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, e o secretário-geral da Presidência, Moreira Franco. Ao mesmo tempo em que procuram “fulanizar” e desacreditar as acusações, administram a crise de relacionamento com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que subiu de temperatura no fim de semana, em vez de baixar.

Às vésperas da Comissão de Constituição e Justiça apreciar os termos da denúncia, a Câmara divulgou a íntegra dos áudios da delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, que citam Temer. Os anexos da delação foram enviados pelo ministro Fachin para Maia, que entendeu não haver restrição e o liberou na página da Câmara dos Deputados internet.

A defesa de Temer incluiu a divulgação dos áudios na sua teoria conspiratória e fez duras acusações contra o suposto “vazamento” dos áudios. Maia meteu a carapuça e deu um chega para lá no advogado de Temer, Eduardo Carnelós, que agiu como macaco em casa de louças no episódio.

A carta de Temer de certa forma corroborou a acusação de Carnelós, pondo mais lenha na fogueira: “Tenho sido vítima desde maio de torpezas e vilezas que pouco a pouco, e agora até mais rapidamente, têm vindo à luz. Jamais poderia acreditar que houvesse uma conspiração para me derrubar da Presidência da República. Mas os fatos me convenceram. E são incontestáveis.”


Luiz Carlos Azedo: O time de Dodge

A nomeação de Branquinho foi um discreto recado para o Palácio do Planalto de que não haverá cavalo de pau na Operação Lava-Jato

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, escalou a colega Raquel Branquinho para ser a nova supervisora da equipe de investigadores da Operação Lava-Jato. Sua tocaio, como dizem os gaúchos, comandará uma equipe de procuradores dedicados a essa tarefa, dos quais dois são remanescentes da equipe do ex-procurador-geral Rodrigo Janot: Maria Clara Barros Noleto e Pedro Jorge do Nascimento Costa. Acumula a função de secretária de Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal (STF), órgão que acompanha a Lava-Jato.

A nomeação de Branquinho foi um discreto recado para o Palácio do Planalto de que não haverá cavalo de pau na Operação Lava-Jato. Ou seja, a troca é mais ou menos como substituir o arco pela zarabatana: saem as flechas incendiárias e entram as setas envenenadas. São novos integrantes da equipe os procuradores José Alfredo de Paula Silva, novo coordenador do grupo, Marcelo Ribeiro de Oliveira, Hebert Reis Mesquita, José Ricardo Teixeira Alves e Luana Vargas Macedo. Como Branquinho, José Alfredo atuou na investigação do mensalão; também participou da Operação Zelotes.

O desafio é a transição da investigação da equipe de Janot para a de Dodge. O ex-coordenador da investigação Sérgio Bruno Cabral Fernandes foi escalado por Janot para a equipe de transição. Nos bastidores do Judiciário, a grande questão é a contaminação que possa ter havido nas investigações em decorrência da atuação do ex-procurador Marcello Miller, que deixou o Ministério Público Federal para atuar como advogado prestando serviços à JBS.

Advogados que atuam na Lava-Jato esfregam as mãos a cada relato da participação de Miller nas negociações de delações premiadas, como a de Fernando Baiano, por exemplo. A estratégia das bancas é utilizar o caso Miller para anular o maior número de provas possíveis. O Palácio do Planalto tenta anular as provas da primeira denúncia contra o presidente Michel Temer, que foi rejeitada pela Câmara, e forçar a devolução da segunda para a nova procuradora-geral. Além disso, quer transformar a CPI da JBS instalada na Câmara numa espécie de pelourinho para o ex-procurador Rodrigo Janot.

Existe massa crítica no Congresso para isso, mas também há uma opinião pública vigilante, que pressiona deputados e senadores toda vez que se articulam contra a Lava-Jato. Como esse é um jogo de perde-perde em termos eleitorais, o tempo corre a favor da Lava-Jato.

Pesquisas

Mesmo condenado a nove anos e seis meses de prisão pelo juiz federal Sergio Moro, de Curitiba, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lidera todos os cenários para as eleições de 2018 na pesquisa CNT/MDA divulgada ontem pela Confederação Nacional de Transportes (CNT). Nas três simulações do primeiro turno, oscila entre 32% e 32,7% das intenções de voto. Jair Bolsonaro (PSC-RJ) passou de 11% para mais de 18% nos três cenários. Marina Silva (Rede) aparece em terceiro lugar em todos os cenários.

Ontem, o juiz Vallisney Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, aceitou denúncia contra Lula, que virou réu mais uma vez, por corrupção passiva. A situação do PSDB varia de acordo com o nome pesquisado: o senador Aécio Neves (MG) tem o apoio de apenas 3,2% dos eleitores, enquanto o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito paulistano, João Doria, têm 9,4% e 8,7% respectivamente. As intenções de voto no ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) vão de 4,6% a 5,3%, dependendo do cenário.

Na pesquisa espontânea, Lula lidera com 20,2% das intenções de voto; Jair Bolsonaro tem 10,9%. João Doria vem em terceiro, com 2,4%. Na sequência, Marina Silva tem 1,5%; Geraldo Alckmin e Ciro Gomes, 1,2%; o senador Álvaro Dias (Podemos), 1,0%; o presidente Michel Temer (PMDB), 0,4%; e Aécio Neves, 0,3%. Do total, 37% se disseram indecisos, brancos e nulos somam 21,2% e outros são 2,0%. A pesquisa ouviu 2.002 pessoas e tem margem de erro de 2,2%.

Ou seja, tudo como antes, mas a pesquisa aumenta a pressão em relação à definição de candidatos majoritários. Enquanto o Palácio do Planalto empurra o assunto com a barriga, na base do governo atuam forças centrífugas, que tendem a se reposicionar em razão da reforma política e do fato de que as melhorias na economia não são capitalizadas pelo governo nem melhoram os índices de aprovação de Michel Temer. O estresse político maior é no PSDB, onde Alckmin e Doria se digladiam.

(Coluna de 20 de setembro de 2017)