rachadinha

Luiz Carlos Azedo: A política como negócio

O senador Flávio Bolsonaro acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões

Max Weber, em sua antológica palestra A política como vocação, divide os políticos em duas categorias: os que vivem para a política e os que vivem da política. No primeiro caso, estão aqueles que veem a política como bem comum; no segundo, como negócio. As duas espécies se digladiam na democracia, faz parte do jogo na ordem capitalista. Mas no Brasil é diferente: todos dizem defender o bem comum, ninguém assume que está na política para defender interesses empresariais. Como temos um pé no Oriente, em razão de nossas raízes ibéricas, muitos estão na política para formar patrimônio.

Parece o caso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões. O imóvel tem área total de 2,4 mil metros quadrados. O registro em cartório da aquisição do imóvel revela que houve o pagamento de R$ 2,87 milhões à vista, além do valor da parcela do financiamento, entre R$ 18,7 mil e R$ 21,5 mil. Para justificar a operação, o filho primogênito do presidente Jair Bolsonaro disse que vendeu um apartamento na Barra da Tijuca (RJ) e a franquia de sua loja de chocolates para dar a entrada no imóvel na capital federal.

Um blogueiro gozador, rapidamente, fez as contas, comparando o valor do imóvel com a quantidade de Nhá Benta (merengue coberto por chocolate), equivalentes aos R$ 6 milhões: 182.370 caixas de 90 gramas, de acordo com os preços da loja virtual da Kopenhagen. O financiamento obtido no Banco de Brasília (BRB) para aquisição do imóvel foi bem camarada. Pelas regras do sistema financeiro habitacional, a prestação não pode ultrapassar 30% da renda bruta. Do valor total do imóvel, R$ 3,1 milhões foram financiados, em 360 parcelas, a uma taxa de juros de balcão efetivos de 4,85% ao ano. No cartório em Brazlândia, onde foi registrada a operação de compra e venda, consta que Flávio Bolsonaro tem renda de R$ 28,3 mil e sua esposa, R$ 8,6 mil.

A notícia da compra do imóvel pegou de surpresa os aliados do presidente Jair Bolsonaro, pois o senador tem direito a apartamento funcional. Logo, repercutiu nas redes sociais, porque o imóvel havia sido anunciado por corretores e havia abundância de imagens em vídeo da mansão na internet (https://youtu.be/TrzNkaBgYE4). Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por 4 votos a 1, havia anulado a quebra de sigilo das contas do senador, que é investigado no escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, supostamente, por ter movimentado cerca de R$ 2,3 milhões. De acordo com a denúncia do Ministério Público, o dinheiro teria sido lavado com aplicação em uma loja de chocolates no Rio, da qual o senador era sócio, e em imóveis.

Preconceitos

Para o senso comum, as pessoas ricas poderiam se dedicar inteiramente à política de forma genuína, pois não teriam interesses econômicos nela. As pessoas que vivem da política seriam aquelas que veem na política sua profissão. Essa é uma visão preconceituosa, que não é bem o que Max Weber quis dizer, porque dá margem à ideia de que pessoas ricas estariam mais habilitadas a entrar na política, pois não roubariam, enquanto uma pessoa pobre não poderia fazer o mesmo, pois veria na política um meio de garantir sua vida financeira.

O que Weber quis dizer é que políticos que vivem para a política atuam em defesa do bem comum, não importa se são ricos ou pobres. A remuneração de um parlamentar existe exatamente para permitir que um assalariado possa exercer seu mandato sem pôr em risco a sobrevivência de sua família. De igual maneira, há pessoas que entram na política não porque vão ganhar um alto salário como deputado, por exemplo, mas, sim, porque esse cargo lhe permitirá participar da cúpula do poder, com a possibilidade de tomar decisões que favoreçam um grupo específico ao qual pertence ou ao qual deva favores, o que é legítimo na democracia. Mas também há inúmeros casos de homens ricos que estão na política para fazer seus próprios negócios e que se notabilizaram como políticos corruptos.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-politica-como-negocio/

Bruno Boghossian: Clã Bolsonaro tem alívio nos tribunais, mas 'rachadinha' já é uma marca política

País já conhece depósitos fracionados, dinheiro vivo e cheques na conta da primeira-dama

O clã Bolsonaro fez o diabo para fugir do fantasma da "rachadinha". Flávio foi ao STF para tirar o caso da Justiça do Rio. O Planalto organizou uma reunião com o chefe da Abin em busca de brechas para anular as investigações. E o presidente tentou intimidar investigadores ao lançar suspeitas de tráfico de drogas contra o filho de um promotor.

As apurações que cercavam a família presidencial meteram medo em Jair e companhia. Não à toa, a prisão de Fabrício Queiroz, em junho de 2020, é considerada uma linha divisória: logo depois que o operador do esquema passou um tempo na cadeia, o presidente baixou as armas contra o Supremo e foi ao altar com o centrão, em busca de blindagem.

Bolsonaro está perto de se livrar desse pesadelo no campo judicial. A decisão do Superior Tribunal de Justiça de anular a quebra de sigilo de Flávio e outros 94 investigados, nesta terça (23), obriga a investigação a voltar uma dezena de casas no tabuleiro e pode livrar a família de responder pelas acusações de desvio de dinheiro em seus gabinetes.

O caso pode ser praticamente enterrado na próxima semana, quando o STJ deve decidir se invalida também os relatórios financeiros que deram origem à apuração. A defesa das duas anulações tem como porta-voz o ministro João Otávio de Noronha, por quem Bolsonaro já disse ter sentido "amor à primeira vista".

Apesar do provável alívio nos tribunais, Queiroz e a "rachadinha" já são uma marca política do clã, mesmo que as provas não sejam usadas em processos. Os depósitos fracionados, a fortuna gasta pelo filho do presidente em dinheiro vivo e os cheques na conta da primeira-dama contaram uma história que Bolsonaro gostaria de esconder.

A fantasia do discurso anticorrupção já havia ficado pelo caminho antes que o presidente chegasse ao Planalto. Ainda que consiga contornar o cerco judicial com base em aspectos técnicos, Bolsonaro pagará o preço político dessas suspeitas. Agora, o país conhece os métodos da família em décadas de vida pública.


Ricardo Noblat: Um caso de amor correspondido livra Flávio Bolsonaro do pior

Dois anos de suplício e de muita galhardia

Em 29 de abril último, ao dar posse a André Mendonça, o sucessor do ex-juiz Sergio Moro no Ministério da Justiça, o presidente Jair Bolsonaro assim referiu-se a João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, presente à cerimônia:

– Prezado Noronha. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência.

Menos de três meses depois, Noronha aproveitou as férias do Judiciário para soltar Fabrício Queiroz. Mandou-o para prisão domiciliar. Para não parecer pouco, estendeu o benefício à mulher de Queiroz, que havia fugido. A ela caberia cuidar do marido.

O caso de amor à primeira vista entre o presidente e o juiz culminou com a decisão tomada pela Quinta Turma do tribunal de anular a quebra do sigilo fiscal e bancário do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), acusado de desvio de dinheiro público.

Noronha foi o primeiro dos quatro votos favoráveis ao filho mais velho de Bolsonaro. O voto do relator da ação foi contra. Flávio celebrou a decisão ao lado do seu advogado, Frederico Wassef, em cuja casa, no interior de São Paulo, Queiroz fora preso.

Em seu voto, que deixou eufórico o presidente da República, Noronha acusou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão vinculado ao Banco Central, de promover “indevida intromissão na devida intimidade e privacidade” de Flávio.

O Coaf monitora atividades financeiras consideradas suspeitas. Foi com base num relatório seu que o Ministério Público do Rio denunciou Flávio por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Um esquema que lhe rendeu 6 milhões de reais.

O mutirão para tirar Flávio do sufoco envolveu muita gente dos três Poderes da República. A saída de Moro do governo deveu-se à interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, segundo o ex-ministro. A Agência Brasileira de Inteligência deu uma mão.

A Receita Federal foi pressionada para que não criasse problemas. O Conselho de Ética do Senado ficou desativado para não ter que examinar pedidos de abertura de processos contra Flávio por quebra de decoro. Até o Supremo Tribunal Federal ajudou.

Em setembro próximo, com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, será aberta uma vaga de ministro no Supremo. Noronha sonha com ela, mas também Mendonça, Augusto Aras, Procurador-Geral da República, e outros nomes menos cotados.

Aras já tem quem o substitua na Procuradoria-Geral: Lindôra Araújo, a procuradora que com muito orgulho não esconde os telefonemas que recebe de Bolsonaro. Ela liderou a investigação que resultou na queda de Wilson Witzel, governador do Rio.

O Superior Tribunal de Justiça voltará a julgar a partir da próxima terça-feira novas ações movidas pela defesa de Flávio. A tendência é aceitar todas. E assim será posto um ponto final no suplício de dois anos vivido com galhardia pela família presidencial brasileira.

Lucrar com a divulgação de informações falsas é pecado mortal

A imprensa e o seu labirinto

Se foi por descuido, um descuido grave, os jornais que publicaram o informe publicitário deveriam reconhecer o erro e devolver o dinheiro. Se foi porque entenderam que era expressão de pensamento, desataram um debate que não lhes dará razão.

Um grupo chamado Médicos pela Vida publicou nos principais jornais impressos do país um manifesto em defesa do “tratamento precoce” contra a Covid-19. O texto usa informações falsas ao citar hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outras drogas.

Segundo o informe, haveria evidências científicas que comprovam os benefícios do uso desses remédios, mas não há qualquer estudo de metodologia rigorosa que tenha chegado a essa conclusão. É isso que a mídia brasileira e mundial tem dito com rara insistência.

Como é possível criticar dia sim, e o outro também, o governo e quem mais recomenda um ineficaz tratamento precoce à base de drogas receitadas para outras doenças e, na contramão dos fatos, lucrar com a publicação de um informe mentiroso?

Com a palavra, os jornais. Em seu site, o grupo Médicos pela Vida se define como um movimento civil apartidário que luta contra o aborto e divulga fotos de manifestações políticas promovidas na Avenida Paulista, em São Paulo.


O Estado de S. Paulo: Líder do governo na Câmara, Ricardo Barros defende nepotismo no setor público

Ricardo Barros afirma ser favorável à contratação de parentes de políticos para cargos na administração pública; Centrão quer mudar lei que pune a prática

Breno Pires, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – No momento em que o presidente Jair Bolsonaro faz mudanças no primeiro escalão, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), ressuscitou um tema polêmico e defendeu a contratação de parentes de políticos para cargos públicos. Proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por violar o princípio constitucional da impessoalidade na administração, o nepotismo vem sendo questionado em várias frentes. Mas, com a vitória de Arthur Lira (Progressistas-AL) para presidir a Câmara, o Centrão ganhou musculatura para pregar mudanças na lei que hoje pune a prática. 

“O poder público poderia estar mais bem servido, eventualmente, com um parente qualificado do que com um não parente desqualificado”, afirmou Barros ao Estadão. “Só porque a pessoa é parente, então, é pior do que outro? O cara não pode ser onerado por ser parente. Se a pessoa está no cargo para o qual tem qualificação profissional, é formada e pode desempenhar bem, qual é o problema?”, completou o líder do governo, que também integra o Centrão, grupo de partidos aliados ao presidente Jair Bolsonaro. 

Em 2008, o Supremo firmou posição contra o nepotismo e suas ramificações. Estendeu a proibição ao “nepotismo cruzado”, que é quando dois agentes públicos empregam parentes um do outro. A Súmula 13 da Corte diz que “a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau (...), para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada (...), mediante designações recíprocas, viola a Constituição”. 

Quando era deputado, Bolsonaro nomeou 13 parentes em gabinetes da família. Além disso, o clã Bolsonaro empregou 102 pessoas com laços familiares, segundo levantamento feito pelo jornal O Globo, ao longo dos 28 anos em que o atual presidente foi parlamentar. 

No primeiro ano à frente do governo, em 2019, Bolsonaro chamou de “hipocrisia” as críticas de que seria “nepotismo” a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), seu filho “03”, para o cargo de embaixador nos Estados Unidos. O presidente chegou a criticar a decisão do Supremo que proibiu contratações de parentes na administração pública. 

“Acho que quem tem de decidir sobre essas coisas é o Legislativo. Teve um parlamentar contra o nepotismo que foi pego na Lava Jato. E tem ministro, com toda certeza, que tem parente empregado, com DAS (função comissionada). E daí?”, questionou ele, na ocasião. “Que mania (vocês têm de dizer) que tudo que é parente de político não presta.” 

O Supremo não deixou claro, no entanto, se a restrição para contratar parentes deve valer também para cargos de natureza política, como os de ministros e secretários de Estado, ou apenas para funções administrativas. Nos julgamentos do plenário tem prevalecido o parecer de que essas nomeações são permitidas, exceto se houver algum tipo de fraude. Em 2017, porém, decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello barrou a indicação de um filho do então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, como secretário municipal. 

Um ano depois, em 2018, a então vice-governadora do Paraná, Cida Borghetti – mulher de Ricardo Barros –, chamou o cunhado para a equipe ao assumir o governo estadual, diante da renúncia do então governador Beto Richa. À época, Cida nomeou Silvio Barros, irmão de seu marido, como secretário de Desenvolvimento Urbano. 

Improbidade

Como a prática da nomeação de parentes por políticos não configura crime no Brasil, o caminho para punir agentes públicos por nepotismo é enquadrá-los no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa, de 1992. É com base neste artigo que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem chancelado condenações em casos de contratação de parentes. O dispositivo define como improbidade atos que violem os “deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”. 

A Câmara, porém, discute o afrouxamento da Lei de Improbidade Administrativa, que pode excluir justamente esse artigo 11, também utilizado para punir outras práticas, como furar fila no serviço público. A proposta consta do texto substitutivo de autoria do relator, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), e é apoiada por Barros. 

“Se querem que nepotismo seja crime, que façam uma lei e aprovem. É inadequado um arcabouço jurídico onde o que você quiser encaixa lá. Ah, estão preocupados com nepotismo? Então, vamos encerrar o artigo 11 e fazer uma lei de nepotismo aqui. Isso pode, isso não pode. Não é para cada promotor interpretar (a lei) do jeito que quer”, disse o líder do governo. 

Para o advogado Sebastião Tojal, especializado em ações de improbidade, o que Barros diz não se sustenta. “Existe um princípio constitucional, segundo o qual a impessoalidade deve orientar a administração pública, inclusive no processo de investidura em cargos. Não se pode chegar ao ponto de discutir se fulano, sicrano ou beltrano de fato é competente ou não”, destacou Tojal. “Nepotismo tem de ser compreendido como nomeação para cargos administrativos e políticos.” 

Autor do projeto em discussão na Câmara sobre a Lei de Improbidade, o deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP) é contra a mudança da regra que hoje permite a punição por nepotismo. “Eu me sinto contrariado com o fato de que a gente possa, retirando o artigo 11, promover um retrocesso naquilo que já está consolidado”, disse Lucena. “Essa questão já é superada. Não existe espaço para retrocessos.” 

Na avaliação do ex-advogado-geral da União Fábio Medina Osório, a Constituição não permite que parentes sejam contratados para a administração pública nem mesmo se forem competentes. “Independentemente de qualificação ou não, a proibição direcionada à contratação de parentes, refletida na Súmula 13 do STF, acarreta improbidade administrativa.” 

O procurador de Justiça Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção, disse que a experiência no Brasil mostra a necessidade de não ser permitida qualquer exceção. “Fazer louvor ao nepotismo é absurdo. Devido ao fortalecimento da cultura do compadrio, essa ideia (de exceção) não deve prevalecer. O Supremo editou a súmula porque o que se faz no serviço público é uma bandalheira.” 

Cinco perguntas para entender o nepotismo no Brasil

A prática é proibida pela Constituição pois contraria os princípios da impessoalidade, moralidade e igualdade

O que é? 

O nepotismo ocorre quando um agente público usa de sua posição de poder para nomear, contratar ou favorecer parentes. O termo nepotismo deriva do latim, mais especificamente das palavras nepos (sobrinho) ou nepotis (neto).

É proibido? 

O nepotismo é vedado, primeiramente, pela própria Constituição, pois contraria os princípios da impessoalidade, moralidade e igualdade. A prática do nepotismo se enquadra como ato de improbidade administrativa. Algumas legislações, de forma esparsa, como a Lei nº 8.112, de 1990 também tratam do assunto, assim como a Súmula Vinculante nº 13, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010.

O que dizem essas regras?

Lei nº 8.112/1990 – Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

Súmula Vinculante nº 13/2008 – Inclui todos os órgãos e entidades que compõem a Administração Pública (direta e indireta), ou seja, se aplica às esferas federal, estadual e municipal, e a todos os Poderes da União, incluindo todos os órgãos e entidades que compõem o serviço público nacional.

Decreto nº 7.203/2010 – Trata da vedação do nepotismo direto e cruzado no âmbito da administração pública federal, ou seja, somente dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal e de forma mais detalhada que a referida Súmula Vinculante. Nepotismo direto é aquele em que a autoridade nomeia seu próprio parente. Nepotismo cruzado é aquele em que o agente público nomeia pessoa ligada a outro agente público, enquanto a segunda autoridade nomeia uma pessoa ligada por vínculos de parentescos ao primeiro agente, como troca de favores, também entendido como designações recíprocas.

Qual grau de parentesco é considerado pelas regras?

As três regras vedam a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau. Ou seja, quando falamos de consanguinidade, fica proibida a nomeação pai/mãe, avô/avó, bisavô/bisavó, trisavô/trisavó, filhos, netos, bisnetos, irmãos, tios ou sobrinhos do servidor público. Por afinidade, ficam proibidas as nomeações de sogro (a), genro/nora; madrasta/padrasto, enteado (a) do agente público, bem como avô/avó, neto/neta, bisavô/bisavó, bisneto/bisneta do cônjuge ou companheiro do agente público.

Casos de nepotismo no Brasil

Em 2016, o ex-governador  do Distrito Federal Agnelo Queiroz (PT) teve os direitos políticos suspensos por três anos, além de ficar obrigado a pagar multa, após condenação por improbidade administrativa. De acordo com ação do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), ele violou os princípios da administração pública ao nomear e autorizar a permanência de Lânia Maria Alves e Stefânia Alves Pinheiro, respectivamente, mãe e filha, em cargos comissionados no Poder Executivo local. Recentemente, no início do mês, o Ministério Público do Rio de Janeiro recomendou ao prefeito de Magé (RJ), Renato Cozzolino (PP), a exoneração de quatro parentes (irmã, noiva, cunhado e tio) nomeados por ele em seu secretariado. Há ainda outros três primos de Cozzolino indicados para a chefia de órgãos municipais.


O Estado de S. Paulo: Ministro do STJ prepara saída jurídica que pode beneficiar Flávio Bolsonaro

Turma do tribunal retoma análise de pedidos da defesa do senador no caso das rachadinhas; João Otávio de Noronha deve atender a recurso de Flávio e votar por nulidade de relatórios do Coaf

Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Alinhado ao Palácio do Planalto, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJJoão Otávio de Noronha preparou uma saída jurídica que pode beneficiar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso das “rachadinhas” – desvio ilegal de salários de assessores. Na tarde desta terça-feira, 23, a Quinta Turma do STJ retoma o julgamento de três recursos apresentados pela defesa do filho do presidente da República que podem afetar os rumos do inquérito que apura um esquema de peculato e lavagem de dinheiro em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). 

Segundo o Estadão apurou, Noronha vai votar para decretar a nulidade tanto das decisões de compartilhamento de relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) com o Ministério Público do Rio quanto das quebras de sigilo fiscal e bancário envolvendo o senador, apontando um suposto “direcionamento” da investigação para atingir o parlamentar. Integrantes do STJ ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato interpretaram o voto como uma implosão do caso das rachadinhas, o que obrigaria o retorno da apuração à estaca zero. 

Isso porque os relatórios e as informações obtidas pela quebra do sigilo fundamentam a denúncia do Ministério Público contra o senador. O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro foi denunciado no Judiciário fluminense por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. 

Noronha e o relator do caso, ministro Felix Fischer, já indicaram em linhas gerais como devem se posicionar, mas ainda não detalharam os votos. Relator da Lava Jato no STJ, Fischer é considerado “linha dura” e admirado pelos colegas pelas decisões bem fundamentadas – o ministro indicou que vai votar contra os recursos da defesa de Flávio Bolsonaro. Noronha, por outro lado, tem perfil garantista, mais inclinado a ficar ao lado dos direitos de réus, e já se envolveu em uma troca de farpas com o colega em novembro do ano passado, no início do julgamento sobre Flávio. 

Reservadamente, integrantes da Corte avaliam que Noronha busca se cacifar para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) ou no Ministério da Justiça, se o ministro André Mendonça for indicado para o STF. Durante o período em que presidiu o STJ, Noronha atendeu aos interesses do governo do presidente Jair Bolsonaro em 87,5% das decisões individuais tomadas, conforme levantamento do Estadão. 

Em abril do ano passado, Bolsonaro chegou a dizer que “ama” Noronha. Além de Fischer e Noronha, outros três ministros integram a Quinta Turma do STJ: Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e José Ilan Paciornik. Em junho do ano passado, Paciornik esteve no Palácio do Planalto, mas não informou na sua agenda. Integrantes do STJ apontam que a transmissão ao vivo do julgamento, pelo canal do tribunal no YouTube, pode servir como instrumento de pressão sobre os magistrados e influenciar o placar final. 

A defesa de Flávio Bolsonaro joga com o tempo e tem feito uma intensa ofensiva jurídica, inclusive no Supremo, para contestar decisões tomadas pelo juiz Flávio Itabaiana Nicolau – e para garantir a prerrogativa do foro privilegiado ao senador no caso. O STF já decidiu que o foro se aplica apenas para os casos cometidos no exercício do mandato e em função do cargo, mas como o Estadão mostrou em setembro do ano passado, um precedente a favor da deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR) pode ajudar o parlamentar agora. 

Itabaiana atua na primeira instância fluminense. Foi dele que partiram as decisões mais importantes do caso, desde a primeira quebra de sigilo até a prisão preventiva do ex-assessor Fabrício Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar. Para a defesa de Flávio, a decisão do juiz, que autorizou a quebra de sigilo de Flávio e outras 94 pessoas e empresas em 2019, teria sido mal fundamentada. 

O advogado Rodrigo Roca, um dos defensores de Flávio Bolsonaro no caso, disse que confia no embasamento técnico das teses levantadas nos recursos apresentados a favor do senador. “Estamos convencidos de que todas as decisões proferidas pela 27.ª Vara Criminal (onde atua o juiz Flávio Itabaiana) são nulas e portanto, configuram prova ilícita.” 

Procurado pela reportagem, Noronha não se manifestou.

Depoimento

O Supremo tem marcado para amanhã o julgamento sobre a controvérsia envolvendo o depoimento de Jair Bolsonaro no inquérito a respeito da interferência política do chefe do Executivo na Polícia Federal. Integrantes do STF, no entanto, avaliam que, diante do ambiente político, com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), o mais prudente seria deixar a análise do caso para depois. 


Ana Maria Machado: Quebradeira, rachadinha e ruptura

A incompetência do governo passa dos limites. Outros países já vacinam há mais de um mês, enquanto aqui se enrola

 ‘O Brasil está quebrado, e eu não posso fazer nada’, afirmou o presidente. E jogou a culpa na mídia por exagerar a pandemia. Já se falou na leviandade e nas possíveis consequências econômicas dessas palavras. Não faltou quem, com todas as letras e dados numéricos, demonstrasse que, além de irresponsabilidade, trata-se de mentira pura e simples. Afinal, ele corta impostos de videogames, armas e igrejas, dá aumentos a policiais, anistia desmatadores e criminosos ambientais, multiplica privilégios a militares. Tudo em crescente aumento de gastos públicos e perda de arrecadação. E, ainda por cima, não faz nada para melhorar o ambiente de negócios ou diminuir o custo Brasil — o que ficou evidente com os anúncios da saída da Mercedes e da Ford do país, ou o PDV do Banco do Brasil.

No entanto a aparente besteira dita por Sua Excelência atinge seu objetivo — sempre o mesmo. O de criar polêmica, fazer discutir o irrelevante, distrair a plateia e desviar as atenções dos problemas de sua família na área criminal. Enquanto se discute a quebradeira, não se fala em rachadinha. E ele manobra para manter o cargo, ser reeleito e assegurar impunidade a todos os seus.

Entre quebras e rachaduras, adquire proporções nacionais o fenômeno da cidade partida. Na sociedade dividida deste país partido, de riqueza não repartida, multiplica-se a segregação, apartando privilegiados e ferrados. De quebra, o pessoal das quebradas se vira como pode, multiplicando quebra-galhos. Juntando os cacos. Ora caindo no papo furado, ora indiferente. Por quanto tempo mais vai funcionar esse lero-lero?

Os mortos da Covid-19 se aproximam de 210 mil. A incompetência do governo passa dos limites. Outros países já vacinam há mais de um mês, enquanto aqui só começou ontem. Até quando essa conversa para despistar ainda vai colar?

Chega uma hora em que os trincamentos viram ruptura, e os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras. Então eles quebram a cara. Ou tudo se esfacela de uma vez.


Conrado Hübner Mendes: 'Operação Kopenhagen' quer salvar Flávio Bolsonaro

Instituições estão funcionando, mas não se esqueça de perguntar para quem

Desenhar o xadrez da imunização criminal de Flávio Bolsonaro é para profissionais. A teia de corrupção institucional costurada por Jair Bolsonaro deveria ser reconstruída por instituições de controle, a começar pelo Ministério Público. Mas estão em processo de fechamento. Apesar das ameaças, ainda resta jornalismo com coragem moral e recursos. E alguns promotores. Só não se sabe até quando.

Eu pediria a ajuda de Constança Rezende e Patrícia Campos Mello, ou de Malu Gaspar e Juliana Dal Piva. Também de Chico Otavio, Rubens Valente e Guilherme Amado. E de tantos repórteres que estão no varejo da microcoleta de informações sobre essa "nova era" que extirpou corrupção do país. O prêmio internacional Corrupto do Ano já foi dado a N. Maduro, R. Duterte e V. Putin. Jair recebê-lo em 2020 foi conspiração globalista.

Reportagens históricas vão se diluindo na torrente de notícias e na incredulidade gerada por governo incapaz de comprar seringas enquanto zomba da pandemia. Esses cacos factuais comporão no futuro um dos aposentos desse castelo de terror político, um dos capítulos do livro "Brasil Nunca Mais" do inverno bolsonarista.

É fundamental não perder a visão do conjunto. Há 17 atores envolvidos na blindagem criminal de Flávio Bolsonaro, sob regência da Presidência da República: STF, Senado, Abin, GSI, PF, Receita Federal, PGR, MJ e AGU; TJ-RJ, MP-RJ, Polícia Civil, Alerj, governador interino, governador afastado, ex-prefeito do Rio. O 17 é ideia fixa do time.

Flávio é acusado do crime de peculato (modo "rachadinha") por anos a fio. Provas são caudalosas. Os gabinetes do pai e dos três filhos teriam movimentado R$ 29 milhões confiscando salários. O quarto filho não entrou para a política, mas já é investigado por iniciativas empresariais sob o carinho presidencial.

A "Operação Kopenhagen" de proteção a Flávio se faz assim: 
TJ-RJ confere foro privilegiado a Flávio e contraria posição do STF; procuradora bolsonarista faz MP-RJ perder prazo de recurso; STF ainda recebe reclamação do MP-RJ, mas, distribuída a Gilmar Mendes, ação fica na gaveta; TJ-RJ adia julgamento ao infinito.

Enquanto isso: ex-assessora de Flávio é empregada por Crivella; irmãos Flávio e Carlos ajudam a derrotar pedido de impeachment contra o prefeito; na Alerj, servidores fraudam ponto e regularizam retroativamente presença de funcionárias-fantasma de Flávio; Cláudio Castro está prestes a ignorar lista tríplice e escolher comissário de Flávio para chefiar MP-RJ.

Segue: concerto entre PF, GSI, Abin e Receita Federal presta serviços a Flávio na busca de invalidar relatórios de auditores; PGR e AGU se manifestam em favor do foro privilegiado de Flávio e se reúnem com Gilmar; André Mendonça pede investigação "independente" do ilícito da Abin; eleição do Senado se negocia à luz do caso de Flávio na Comissão de Ética.

Jair faz ameaça de máfia siciliana contra MP-RJ, insinuando "caso hipotético" de filho de promotor (com base em informações "hipotéticas" da polícia civil). Wilson Witzel, afastado, concluiu: "A República gira hoje em torno da proteção a Flávio Bolsonaro".

"As instituições estão funcionando" é a frase mais estéril da análise política brasileira. Esse espasmo descritivo não indica como ou para quem "estão funcionando" nem pondera erros e acertos, omissões, obstruções e usurpações. Não leva a sério a legalidade. Se há juristas dos "dois lados", basta para a "controvérsia". Não importam conflitos de interesse e a qualidade do que falam. Pouco importa o padrão de legalidade autoritária que emerge no agregado.

A frase não é vazia só pela indolência intelectual que a automatiza, mas pela falsa divisão que induz. Reduz o debate ao sim ou não. Virou jargão jornalístico binário e entrou no último estágio de seu ciclo de vida analítico. Morre quando deixa de dizer qualquer coisa sobre o mundo real, mesmo que siga dizendo muito sobre quem a boceja.

Antes de incorrer nesse hábito, estude a "Operação Kopenhagen". E faça perguntas mais elaboradas do que "instituições estão funcionando?". Por um segundo, imagine se o esforço fosse replicado, de forma não corrupta, na coordenação federativa da vacinação de brasileiros.

Inspire. Expire. Inspire de novo e sinta o cheiro do beco em que nos metemos.

*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Ricardo Noblat: O fantasma que há mais de dois anos assombra Bolsonaro

A rachadinha de Flávio

O risco de o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) acabar um dia condenado por lavagem de dinheiro, organização criminosa e desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio atravessou 2020 e amanheceu junto com o novo ano. É o fantasma que tira o sono do pai dele.

Todas as tentativas feitas até aqui pelo pai e o filho para enterrarem o assunto foram frustradas, e algumas delas deram ensejo a novos escândalos. Foi o caso, por exemplo, da mobilização da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que ajudou a defesa de Flávio com relatórios e conselhos.

A Abin é um órgão de Estado. Ela assessora o presidente da República. É proibida de se meter em questões que fogem aos seus objetivos definidos em lei. Acontece que Bolsonaro pôs lá um delegado que cuidou de sua segurança pessoal depois da facada em Juiz de Fora e que se tornou amigo da família.

Segundo o Ministério Público do Rio, foram desviados R$ 6,1 milhões entre 2007 e 2018 por meio de funcionários fantasmas empregados no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio. Parte desse dinheiro foi usada para pagar despesas pessoais do atual senador e de sua mulher.

Somente a Justiça, ao cabo das investigações, poderá declarar o filho mais velho de Bolsonaro inocente ou culpado. Mas isso não impede que as pessoas que a tudo acompanham com interesse possam formar sua opinião desde já. Foi o que procurou descobrir uma recente pesquisa do Instituto Datafolha.

Um total de 58% dos brasileiros considera Flávio culpado no caso da “rachadinha”, 11% inocente e 31% não souberam responder. O percentual dos que o culpam é maior entre os entrevistados com ensino superior (67%), renda familiar maior que 10 salários mínimos (76%) e que reprovam o governo do pai (85%).

Mas mesmo entre os que aprovam o governo Bolsonaro, é maior o percentual dos que apontam o senador como culpado: 37%, contra 23% que o acham inocente e 40% que não sabem responder. Entre os que dizem sempre confiar em Bolsonaro há um empate técnico: Flávio é culpado para 30% e inocente para 29%.

Sete em cada dez (71%) entrevistados afirmaram ter tomado conhecimento do caso. Declararam estar bem informados 23%, enquanto 34% disseram estar mais ou menos a par do tema, e outros 14%, mal informados. O Datafolha ouviu em dezembro 2.016 brasileiros por telefone em todas as regiões do país.


Marco Antonio Villa: Bolsonaro é a maior ameaça à democracia

Às Forças Armadas, o presidente fomenta a indisciplina dos oficiais com a intenção de ter apoio para uma aventura golpista

Jair Bolsonaro encerra politicamente o terrível ano de 2020 da mesma forma como iniciou. Conspirando diuturnamente contra o Estado Democrático de Direito. Se a prisão, em junho, de Fabrício Queiroz, interrompeu a marcha golpista, nos últimos dias de dezembro, Bolsonaro voltou à carga. Atacou a imprensa, ameaçou jornalistas, desqualificou a importância da informação livre e responsável, caluniou ministros do STF — como na sua live do dia 17, quando afirmou que o ex-ministro Celso de Mello é defensor da poligamia —, caluniou o deputado Rodrigo Maia imputando a ele uma suposta ação contra o décimo-terceiro pagamento do Bolsa-Família — acabou sendo desmentido não só pelo próprio presidente da Câmara dos Deputados, como também pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

As agressões sistemáticas às instituições geralmente ocorreram em atos públicos — excetuando as lives, obviamente — onde encontrou plateias amestradas, inclusive em próprios da União, especialmente das Forças Armadas. Há uma clara estratégia de, ao mesmo tempo em que solapa os princípios da Constituição de 1988, buscar sempre um lócus adequado de onde pronuncia seus vitupérios. A escolha recai geralmente nas cerimônias das Forças Armadas. Lá fomenta a indisciplina dos oficiais e busca aparentar que detém apoio para uma aventura golpista. Já com os policiais militares insinua que podem se transformar em milícias auxiliares do seu projeto autoritário. Um exemplo: o violento ataque à imprensa e às instituições na cerimônia de formatura de soldados da PM fluminense, em 18 de dezembro.

Diferentemente dos atos antidemocráticos que promoveu no primeiro semestre — e que estão sendo investigados no STF —, desta vez há um agravante: não há como esconder o avanço da Covid-19, seus efeitos — mais de sete milhões de infectados e 190 mil óbitos —, a irresponsável conspiração contra a vacinação, isto em um cenário que aponta um rápido avanço da pandemia. Tudo caminha para uma confluência de crises: a institucional, a sanitária e a econômica. É uma tragédia anunciada. Bolsonaro necessita, para sobreviver politicamente e esconder o desastre do seu governo, confrontar e ameaçar as instituições, apontando até, no limite, para um golpe. A pandemia tende a ficar incontrolável no primeiro trimestre do próximo ano. E a economia caminha para uma recuperação tímida, muito abaixo do que seria necessário frente ao tombo de 2020. É o cenário perfeito para a explosão de uma crise social. Quem viver verá.


O Estado de S. Paulo: Seguranças da campanha de Bolsonaro foram para Abin

Agentes da Polícia Federal trabalharam com o atual diretor-geral da Abin durante eleição presidencial em 2018

Felipe Frazão e Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O diretor-geral Alexandre Ramagem levou para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ao menos cinco integrantes da Polícia Federal – parte deles envolvidos na segurança do presidente Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018. Nos bastidores do órgão, servidores de carreira têm apontado o grupo de Ramagem como os responsáveis por orientar informalmente a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso das rachadinhas.

Além de Ramagem, no topo da hierarquia está o delegado da PF Carlos Afonso Gonçalves Gomes Coelho. Ele exerce o cargo de secretário de Planejamento e Gestão da Abin e é uma espécie de braço direito de Ramagem.

A exemplo do diretor-geral, Coelho teve uma passagem pelo Palácio do Planalto no início do governo Bolsonaro. Os dois foram assessores especiais na Secretaria de Governo. Ministro à época, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz disse que são “profissionais qualificados”, mas que não sabe se “estão sendo mal orientados”. O general diz não se recordar quem o recomendou a Ramagem, mas conhecia Coelho do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O delegado fora diretor de Inteligência na Seopi, a Secretaria de Operações Integradas, no governo Michel Temer. Santos Cruz era secretário Nacional de Segurança Pública.

O ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência Gustavo Bebianno, morto em março, denunciou a tentativa de implantar uma espécie de “Abin paralela” no Planalto por parte de Carlos Bolsonaro. Filho do presidente e vereador no Rio pelo Republicanos, Carlos é influente no Planalto e controla as redes sociais do pai. Ramagem tem a confiança dele dos demais irmãos.

Outra delegada da confiança de Ramagem com passagem recente no órgão foi Simone Silva dos Santos Guerra. Ele a escolheu como assessora de Assuntos Internacionais na Abin em agosto do ano passado. Ela, no entanto, não completou um ano na agência. Em junho, retornou à direção executiva da PF, onde exerce o cargo de coordenadora-geral de Cooperação Internacional.

Assim como Ramagem, Simone tem larga experiência com segurança pessoal de autoridades, tendo trabalhado na área na PF e como coordenadora de segurança do Conselho Nacional de Justiça. Em 2018, era a responsável por chefiar cerca de 280 policiais envolvidos na “Operação Presidenciáveis”. Cuidou da segurança de seis candidatos, entre eles Bolsonaro, que sofreu um atentado e passou a ser protegido pela equipe de Ramagem.

Também na Abin estão outros dois agentes que trabalhavam no núcleo que socorreu Bolsonaro na facada em Juiz de Fora (MG). São eles Marcelo Araújo Bormevet, que faz militância virtual e elogia os filhos do presidente nas redes sociais, Flávio Antônio Gomes, atualmente requisitado para assessor a Superintendência da Abin em São Paulo. Mais um agente da PF na Abin é Felipe Arlotta Freitas.

Outros dois ex-guarda-costas de Bolsonaro ganharam cargos de confiança no governo. O papiloscopista João Paulo Dondelli, requisitado no ano passado para a Presidência, e o agente Danilo César Campetti, assessor especial de Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários e elo do presidente com os ruralistas.

Abin nega que diretor tenha feito relatório a senador

Em nota, a Abin nega o envolvimento de seus diretores com orientação à defesa de Flávio. A agência afirma que “nenhum relatório foi produzido com tema, assunto, texto ou o título exposto, tampouco a forma e o conteúdo dispostos correspondem a relatórios confeccionados na Abin”. A agência alega que os textos encaminhados pelo do WhatsApp foram “mal redigidos, com linguajar atécnico e sem relação com a atividade de Inteligência”.

“Nenhum documento, relatório ou informe de defesa em processo criminal foi transmitido por qualquer meio a parlamentar federal”, afirma a nota da assessoria da Abin. “A imputação por qualquer pessoa de vinculação dos supostos relatórios à Abin ou ao diretor-geral é equivocada ou deliberadamente realizada para desacreditar uma instituição de Estado”, completa.

Defesa de Flávio tenta provar irregularidade na Receita

Estadão consultou as mensagens de aconselhamento encaminhadas ao senador por Ramagem, segundo relatou à revista Época a advogada Luciana Pires. Defensora de Flávio, ela tenta provar que o filho do presidente teria sido investigado ilegalmente em órgãos do governo, como a Receita Federal. Procurada pela reportagem, ela não se manifestou.

O clima na Abin é de desconfiança e tensão. Oficiais e agentes de inteligência, a carreira de Estado, manifestam preocupação com a repercussão do caso e possíveis investigações, como uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que pode enfraquecer a imagem da instituição - e não só Ramagem.

Reservadamente, eles relatam que os policiais federais formam um feudo na agência, trabalham em grupos fechados, em volta do Ramagem e Bormevet. Por natureza, as apurações de inteligência são compartimentadas – um agente não costuma compartilhar com outros suas tarefas – o que dificulta que eles colham evidências de quem de fato fez o que.


Merval Pereira: Com a boca na botija

 “Prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa”. Essa é a lista de crimes e ações administrativas ilegais que o suposto auxílio da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) à defesa do senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente da República, pode acarretar, na opinião da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmem Lúcia, que mandou que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, saísse de sua inércia para investigar o caso.

Aras havia considerado “grave” a denúncia do repórter Guilherme Amado, da revista Época, confirmada por outros órgãos de imprensa, mas disse que não era possível tomar providências, pois não havia provas. Foi o que a ministra Carmem Lucia mandou que fizesse: investigar para tentar descobrir tais provas, ou demonstrar que a denúncia é inepta.

A situação é muito grave, as próprias advogadas de defesa do senador Flavio confirmaram que receberam dois relatórios sobre como atuar na tentativa de invalidar as provas conseguidas pelo Ministério Público do Rio sobre a “rachadinha” no gabinete de Flavio da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, coordenada pelo notório Fabricio Queiroz.

Elas alegam que não seguiram nenhuma das sugestões, pois estariam fora de sua capacidade de intervenção. Da mesma maneira que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, admitiu que participou de uma reunião no gabinete do presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto, ao lado do diretor-geral da Abin, delegado Alexandre Ramagem, e das advogadas de Flávio Bolsonaro para tratar do assunto.

Segundo Heleno, como o assunto não dizia respeito à segurança institucional, como achava anteriormente, mandou que não se fizesse nada. O General Heleno e o delegado Ramagem, assim como as advogadas do senador Flavio, agiram como o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, que admitiu que fumou maconha, mas garantiu que não tragou.

De acordo com a revista eletrônica Crusoé, os relatórios partiram do delegado Marcelo Bormevet, apelidado de “homem do capitão” devido à proximidade com Jair Bolsonaro desde que participou, com Ramagem, da segurança pessoal do então candidato eleito. Uma reunião com órgãos de inteligência governamental para tratar de problemas legais do filho do presidente é, no mínimo, desvio de finalidade e improbidade administrativa.

Um dos documentos, conseguido pela Época e confirmados por outras publicações, tinha um título explícito: "defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj, demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB". A sugestão que as advogadas comentam que estava fora de seus controles se referia à substituição de "postos", provavelmente da Receita Federal, lembrando que desde 2019 haviam sugerido esse procedimento: "Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior.

Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB [Receita Federal]".

As investigações do Procurador-Geral Augusto Aras não serão difíceis. Basta que ele requisite às advogadas cópias dos relatórios que elas confirmam ter recebido. A gravidade da situação já levou a que a palavra “impeachment” volte a circular no Congresso, e deu tons mais dramáticos à sucessão da presidência da Câmara dos Deputados, que é quem dá início a um processo desse tipo. O atual presidente, Rodrigo Maia, tem mais de 30 pedidos de abertura do processo de impeachment contra o presidente, nenhum tão grave e consubstanciado quanto este, que o futuro presidente da Câmara terá certamente que avaliar.


Gabriela Prioli: Os arroubos de Jair são propositais

Presidente ampliou seu poder na Abin, acusada agora de ajudar na defesa de Flávio Bolsonaro

Era abril desse perturbador 2020 quando o então ministro da Justiça Sergio Moro convocou uma coletiva para comunicar a sua saída do governo. Disse que não poderia mais continuar, pois teria ouvido expressamente do presidente da República que ele “queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, que ele pudesse colher relatórios de inteligência, seja diretor, seja superintendente”. Era a admissão da tentativa de aparelhar a Polícia Federal. Segundo Moro, Bolsonaro queria só uma das 27 superintendências da PF, a do Rio.

Moro saiu do governo rompido com Bolsonaro e sua acusação gerou o inquérito no âmbito do qual o STF decidiu pelo acesso ao vídeo da reunião ministerial ocorrida em 22 de abril.

Na ocasião, Bolsonaro reclamava da falta de informações e dizia querer trocar alguém da ponta da linha: “Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.

E foi o que ele tentou fazer. Bolsonaro nomeia Alexandre Ramagem para a direção geral da Polícia Federal em 27 de abril e Alexandre de Moraes barra a nomeação no dia 29. Mas Bolsonaro, nas suas palavras, não poderia ser surpreendido com notícias. Não podia viver sem informação.

Sem Ramagem na PF, restou ao presidente ampliar o seu poder dentro da Abin. No dia 30 de julho de 2020, Bolsonaro assinou o decreto 10.445 eliminando condicionantes para a requisição de informações pela Abin que constavam no decreto anterior (vejam, no STF, a ADI 6529).

A Abin dirigida por Ramagem atualmente se vê envolvida em acusações de atuar para ajudar na defesa do senador Flávio Bolsonaro. Voltemos à reunião de 22 de abril. O presidente disse expressamente: “Não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu”. Enquanto isso, o Brasil, sem a condução da Presidência no enfrentamento à pandemia, segue distraído pelos arroubos de Jair.