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Janio de Freitas: Decisão da Justiça sobre Flávio Bolsonaro merece uma investigação

Nada acontece por acaso nesse inquérito sobre anos de apropriação de salários no gabinete do filho do presidente

A mais recente decisão da Justiça sobre Flávio Bolsonaro, favorecendo-o contra a investigação que mais abala seu pai, merece ela mesma uma investigação. Nada acontece por acaso nesse inquérito sobre anos e anos de apropriação de salários no gabinete de Flávio quando deputado estadual.

Em torno desse tema, emergem interações com milícias, exóticos negócios imobiliários e outros indícios. Todos do tipo que, nas ocorrências de combinação entre submundo e política, em geral são causa de ameaças, chantagens e subornos.

Os desembargadores Mônica Oliveira e Paulo Rangel têm comprovado conhecimento do acórdão do Supremo contra o qual votaram para transferir o inquérito, do juiz de primeira instância ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça-RJ. Como desejado por Flávio. E com possível anulação de tudo até agora apurado por decisões do juiz Flávio Itabaiana, como movimentações financeiras anormais e a reveladora prisão de Fabrício Queiroz.

Em tentativa anterior da defesa de Flávio, Mônica Oliveira negou a transferência do caso. Como fixado pelo Supremo para o investigado que deixou a função privilegiada com instância especial. Hoje senador, Flávio não pode ter os privilégios dos deputados estaduais. Paulo Rangel deixou em livro seu apoio à norma contra a qual votou agora. Contradições tão acintosas, em oposição também à relatora Suimei Cavalieri (Flávio foi favorecido por dois votos a um), precisam de mais do que recurso ao Supremo para repor o respeito à norma, lá mesmo decidida e já aplicada.

Há mais do que a razão óbvia para estranheza e suspeição. A reviravolta expõe a Justiça ao mesmo comprometimento moral, e quem sabe legal, a que militares da reserva e da ativa estão expondo o Exército, como participantes diretos ou indiretos nos danos ao país causados pelo quarteto Bolsonaro e seus contribuintes. Os conselhos nacionais de Justiça e do Ministério Público, no entanto, notabilizaram-se, até agora, por sua tolerância com ilegalidades nas respectivas áreas, muitas delas gravíssimas como violação e nos efeitos. Resta contar, sem exagero, com o reencontro iniciado entre o Supremo e sua dívida com o país que tanto lhe dá.

Por sua conta, procuradores da República dão ao procurador-geral, Augusto Aras, um sinal da justa indignação que grassa entre eles: sua maioria sente, e repele, o incipiente reaparecimento de um Geraldo Brindeiro, o procurador-geral de Fernando Henrique batizado de engavetador-geral, símbolo de indignidade na Procuradoria e no governo de então.

Os procuradores elegem agora para o Conselho Superior do Ministério Público Federal o colega Mario Bonsaglia, o mais votado pela classe e preterido por Bolsonaro para substituir o dúplice Rodrigo Janot. Como reforço da mensagem, Nicolao Dino, já conselheiro, foi reeleito. Foi outro dos mais votados que Bolsonaro preteriu pelo sem voto Augusto Aras.

O primeiro teste pós-sinal já bate na porta de Aras, o relutante. Não há dúvida de que Ricardo Salles, ministro contra a preservação ambiental, já fez mais do que o necessário para responder por vários crimes de responsabilidade. Providência pedida à Procuradoria-Geral da República por nove ex-ministros do Meio Ambiente.

Ricardo Salles, invenção política de Geraldo Alckmin, é condenado por improbidade administrativa. Credencial que foi o mais provável motivo, à falta de qualquer outro, para ser o escolhido de Bolsonaro com a missão de destruir reservas indígenas, propagar o garimpo ilegal e os recordistas desmatamentos e incêndios amazônicos. Quase ignorado pela imprensa, abaixo de Bolsonaro é o maior causador de danos ao Brasil nas relações econômicas, diplomáticas e culturais do Brasil com o exterior.

Mas o próprio Bolsonaro iniciou nova fase: entrou em confinamento verbal. Desde a prisão de Queiroz, o que é uma prova irrefutável, e mesmo uma forma confessional, do perigo que agora lhe vem dessa longa ligação pessoal e funcional. Com novo dispositivo e novas figuras para remendar sua imagem, borrada por Wassef, Queiroz e o fugitivo Weintraub, Bolsonaro seguiu a recomendação de uma visita bem popularesca ao Nordeste. E foi celebrar, até com variadas mímicas de entusiasmo, um feito para a vida nordestina. A irrigação com águas do São Francisco. Obra de Lula e Dilma.


Ascânio Seleme: Silêncio, medo e ameaças

Bolsonarinho Paz e Amor apareceu de repente, graças ao tranco que o Bolsonarão sofreu com a prisão do amigo Fabrício Queiroz

Mais uma vez sua excelência tenta dar um ar de sobriedade ao seu governo bizarro. Bolsonarinho Paz e Amor apareceu de repente, graças ao tranco que o Bolsonarão sofreu com a prisão do amigo Fabrício Queiroz. Reina uma paz no Palácio do Planalto somente vista nos primeiros 45 dias de governo. Naquela época, contudo, havia uma euforia decorrente da nova investidura que hoje não se vê. Todos os gabinetes agora estão calados, esperando para ver se a coisa se consolida de verdade. Melhor mesmo fazer pouco barulho para não assustar a fera. Vai que ela se irrita e desperta outra vez aquela ira insana.

Os generais acham que a paz pode ser duradoura. A nomeação de Carlos Alberto Decotelli para o Ministério da Educação mostra que há uma disposição do presidente de buscar um pouco de calmaria no meio da tempestade. A ameaça sobre o mais velho dos seus zeros parece ter refluído um pouco depois da decisão do Tribunal de Justiça do Rio de tirar o caso das rachadinhas da primeira instância e dar ao acusado foro especial. Até por estar contaminada politicamente, a decisão do TJ, mesmo contrariando determinação do Supremo Tribunal Federal, colabora para manter o farol baixo do capitão. Da mesma forma que ninguém se mexe no Planalto para não despertar o bicho por ora acorrentado, Bolsonaro talvez ache melhor ficar quietinho em favor da segurança do filho.

O problema, todos sabem, é que o instinto belicoso do presidente é maior do que ele mesmo. Basta o cenário se deteriorar um pouco para que ressurja em toda a sua pujança. Imaginem o que pode ocorrer quando (não se trata de se, mas quando) a mulher de Queiroz for encontrada e presa. Márcia não vai se calar. Queiroz vai espernear e ameaçar. O zerinho vai chorar e o papai dele com certeza vai estourar. Tomara que eu queime a língua, ou a ponta dos dedos, mas não consigo ver a menor chance deste estado de espírito prosperar e durar. Se não for hoje, a explosão vai acontecer amanhã ou depois de amanhã. Não pense que se trata de torcida, não é. Pelo Brasil, o ideal seria que este governo chegasse ao fim, sem maiores solavancos, e depois se dissipasse.

Ocorre que há outra bomba à espreita do presidente e de seus filhos. Trata-se de mais um velho amigo, o advogado fanfarrão Frederick Wassef. Ele já mandou avisar que não vai aceitar ser abandonado, que não gosta que lhe voltem as costas. Na entrevista que deu à revista “Veja”, Wassef disse que recolheu Queiroz em sua casa de Atibaia porque “o presidente simplesmente cortou contato ou relação com ele (…) da mesma forma Flávio se distanciou completamente”. Ele acrescentou que deu guarida ao operador das rachadinhas no gabinete do zero porque passou a ter “informação de que Fabrício Queiroz seria assassinado (…) ele seria executado no Rio (…) quem estivesse por trás desse homicídio iria colocar isso na conta da família Bolsonaro”.

Fala sério, alguém acredita nesta ajuda “humanitária”, como o próprio Wassef a definiu? Difícil de engolir. O que se viu na entrevista do advogado outrora falastrão foram recados claros para o presidente. Primeiro, se ele não aceita que se abandonem outros, como fizeram com o Queiroz, imaginem o que pode fazer se abandonarem a ele. Depois, essa história de queima de arquivo foi uma inequívoca lembrança da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, amigo de Queiroz, Flávio e Jair Bolsonaro. Encurralado numa casa de fazenda na Bahia, era fácil mantê-lo sob vigilância até que se entregasse. Mas, não, a PM invadiu a casa e metralhou o miliciano.

E tem mais. O miliciano deveria ser usado por Wassef para dar fuga a Queiroz e família, caso fosse necessário. Márcia, a mulher do chefe das rachadinhas, foi à casa da mãe de Adriano no interior de Minas Gerais tratar dessa questão. A bagunça é grande. Envolve um advogado inescrupuloso, um assassino profissional, um funcionário ladrão e um primeiro filho corrupto. É um prato cheio capaz de desestabilizar qualquer um. Imaginem o efeito que produzirá sobre Jair Bolsonaro quando suas pontas mal aparadas começarem a ser reveladas no inquérito em curso.

Francamente, doutor
Um juiz deveria ser afastado compulsoriamente das suas funções sempre que fossem apresentadas denúncias contra ele. Um magistrado denunciado por associação com uma pessoa que superfaturou serviços prestados à saúde pública, por exemplo, deveria parar de julgar casos até ele próprio ser julgado e inocentado. Continuaria recebendo até o julgamento. Se condenado, seria demitido sumariamente. Se for fotografado empunhando uma arma de uso exclusivo das forças policiais, da mesma forma deveria ser retirado da sua vara até que se esclarecessem as circunstâncias em que a imagem foi obtida. Suspeitos não podem julgar.

Embaixada para quê?
Foi-se o tempo em que as embaixadas americanas tinham em seus quadros pessoal de inteligência que informava ao Departamento de Estado sempre que um fato apresentava algum risco para os Estados Unidos. Vejam o caso Weintraub. Menos de uma semana antes de viajar para Miami com passaporte diplomático fajuto ele esteve numa manifestação em Brasília, sem máscara, cercado por pelo menos uma dúzia de outras pessoas também sem máscaras. Todo o brasileiro que entra nos EUA tem que se recolher em quarentena, a menos que seja uma autoridade em viagem de trabalho, obviamente. O filhote de Olavo se enquadra no primeiro grupo mas age como se fosse do segundo. Comete um crime pelo qual poderia ser deportado. Mas já não se fazem mais embaixadas como antigamente.

Aos trancos
Maria Cristina Boner Leo, a ex-mulher de Frederick Wassef, vem se envolvendo em rolos com órgãos públicos pelo menos desde 1999. Em abril daquele ano, a empresa TBA, da qual era dona, foi acusada de vender equipamentos da Microsoft para órgãos federais sem concorrência pública. Maria Cristina alegava ser representante exclusiva da Microsoft e amiga de Bill Gates. O caso foi parar no Congresso e na Secretaria de Direito Econômico.

Não adiantou
O secretário de Educação do Paraná, “o jovem” Renato Feder, fez um enorme esforço para assumir o posto do sinistro Abraham Weintraub. Chegou ao ponto de chamar de estadista o pior presidente da História da República brasileira. De nada adiantou o puxa-saquismo explícito, além de colar para sempre em seu perfil a embevecida admiração que tem por Bolsonaro.

Quem manda mais?
Já tem gente dizendo que o deputado Arthur Lira (improbidade administrativa, obstrução de Justiça, enriquecimento ilícito, desvio de recursos públicos, violência doméstica), líder do centrão, manda mais hoje na Câmara que o presidente da casa, Rodrigo Maia. Se ficar nessa leveza toda nos seis meses que restam de sua presidência, Rodrigo corre o risco de não conseguir fazer seu sucessor, imagina tentar uma reeleição.

Já Alcolumbre…
Legalmente, Rodrigo e Davi Alcolumbre não podem se reeleger para a mesa. O regimento impede dois mandatos na mesma legislatura. Rodrigo cumpre o segundo mandato seguido porque o primeiro foi na legislatura passada. Antes, teve um mandato tampão com a saída de Eduardo Cunha, e o STF julgou que aquele termo não deveria ser considerado. Mas há um precedente e nele se agarra Alcolumbre. O falecido Antônio Carlos Magalhães conseguiu, em 1999, se reeleger numa mesma legislatura graças a um parecer da advocacia do Senado que foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça. O poder de ACM então era imenso, tanto que se reelegeu com 70 votos a favor e apenas três contra. Resta saber se Alcolumbre reúne tanta força. Na Câmara, Rodrigo parece já ter jogado a toalha.

O cálculo do centrão
Ao bater o pé na manutenção das datas do primeiro e segundo turnos das eleições municipais deste ano, o centrão trabalha com cálculos eleitorais bem específicos. Diabolicamente, torce para que a epidemia perdure até outubro, o que afugentaria muitos quarentenistas das urnas, mas não impediria a presença em massa de embandeirados negacionistas. Por quê? Porque estes votam a favor e aqueles votam contra.

Entreouvido por aí
“Dois anos depois de sair do governo, Temer segue aprovando mais reformas do que Bolsonaro”. A frase é do jornalista Felippe Hermes, do Spotniks, e foi pronunciada depois da aprovação do marco regulatório do saneamento, que tramita no Congresso desde 2018. Rs.

Se fosse no Brasil
O presidente de Portugal deu uma aula on-line para crianças portuguesas. Tratou da pandemia de coronavírus, deu um show. Se fosse no Brasil, nosso presidente talvez preferisse outro tema, já que sabe nada de Covid-19. Poderia ser uma corriqueira aula de tiro ao alvo. Ou lições de interrogatórios, modeladas pelos exemplos deixados pelo coronel Brilhante Ustra, seu herói. Poderia ser também uma aula de homofobia ou de machismo, com foco na humilhação de terceiros e na agressão aos mais frágeis.


Reinaldo Azevedo: TJ-RJ ignora o Supremo; democracia nele!

Concessão de foro especial a Flávio Bolsonaro ignora a regra do jogo

O presidente Jair Bolsonaro descobriu a autocontenção só depois que a Justiça decretou a prisão de Fabrício Queiroz. A propósito: a concessão, pelo TJ-RJ, de foro especial a Flávio Bolsonaro afronta decisão do Supremo. Tem de ser revertida por meio de recurso especial ao STJ ou de reclamação ao próprio STF.

Fui contra o fim do foro especial —e apanhei muito dos bolsonaristas por isso—, mas o meu entendimento foi derrotado. Viva o colegiado! A menos que a 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ tenha encontrado no acórdão alguma regra excetuando filhos de Bolsonaro, esse Flávio volta para as mãos do outro, o Itabaiana. Que coisa! O apreço de certos varões de Plutarco pela democracia depende mais da polícia do que da Constituição.

A luta é longa, e estamos só no começo. Enquanto o primeiro-amigo se homiziava na realidade quântica de Frederick Wassef —o buliçoso advogado que, ao mesmo tempo, abrigava e não abrigava o subtenente de milícias--, o "capitão" nos ameaçava com a cólera das legiões, secundado por fardas e pijamas verde-oliva pendurados nos cabides do Planalto.

O Brasil anda tão doidão que debatíamos até a semana retrasada se um golpe, ou autogolpe, era ou não possível. Dar golpe para quê? Para render as Forças Armadas ao Comando de Rio das Pedras? Para transformar o país num grande Ministério da Saúde de Recrutas Zero, onde sobram coturnos e faltam médicos?

O Brasil já está levando pito até de fundos de investimento, alertando que o país não verá o verde do dinheiro enquanto não controlar a Amazônia em chamas. Entidades de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos denunciaram à ombudsman da União Europeia os retrocessos em curso. Eurodeputados enviaram carta ao presidente da Câmara conclamando o Legislativo a resistir à devastação.

O acordo Mercosul-UE está subindo no telhado; os investimentos externos, já minguados, podem nos abandonar de vez; o agronegócio de ponta é hoje prejudicado por madeireiros e grileiros de casaca mal cortada, que ousam falar pelo setor. E lá estávamos nós a interpretar falas e silêncios de generais. No país dos cemitérios eloquentes, fazíamos um debate com quase 60 anos de atraso. A prisão de Queiroz evidenciou o ridículo dentro do trágico.

Golpe? Autogolpe? Não percamos mais tempo com as ideias mortas que oprimem o cérebro dos vivos. Participo nesta sexta à noite do que pretende ser um grande ato virtual em defesa da democracia. Não se trata de frente ampla de partidos nem de ensaio geral para a deposição de Bolsonaro ou para a disputa eleitoral de 2022.

A exemplo de outras iniciativas, como o manifesto Estamos Juntos, brasileiros se articulam em defesa da garantia dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição, repudiando retrocessos no terreno institucional. Mas não só. O coronavírus não é professor nem guia moral. É um patógeno assassino. Mas também ensina.

E as milhares de vítimas da pandemia —todas sem vela e muitas sem sepultura— escancaram a necessidade de a democracia avançar além das garantias formais. A cor da morte na pandemia é preta. Seu lugar privilegiado na pirâmide das iniquidades é a pobreza. Não podemos mais tolerar um modelo que tenta harmonizar privilégios inaceitáveis com racismo, miséria e desigualdade aviltante.

O mais provável hoje é que Bolsonaro caia. E depois? Ele lidera o desastre, mas as condições que o levaram ao poder sobreviveriam. E é nelas que mora o problema. Há que se cobrar democracia em miúdos: em políticas públicas, em atendimento aos vulneráveis, em fim de privilégios. Para que ela possa existir também para os pretos e para os pobres.

E viva esta Folha, com sua campanha em defesa da democracia e com as aulas de Oscar Pilagallo sobre a ditadura militar! É preciso pensar o passado para instruir o futuro, em vez de ser esmagado por ele. Bolsonaro e seus golpistas são só o que passa.

Reitere-se: o TJ-RJ não tem licença para ignorar decisão do Supremo. É a regra do jogo, coisa dessa tal democracia.


Bernardo Mello Franco: Uma boia para Flávio Bolsonaro

Flávio Bolsonaro é um sujeito de sorte. Depois da prisão de Fabrício Queiroz, o senador parecia prestes a se afogar na lama da rachadinha. Foi salvo por uma boia arremessada pelo Tribunal de Justiça do Rio.

Para resgatar o primeiro-filho, a 3ª Câmara Criminal inovou. Os desembargadores Mônica Tolledo de Oliveira e Paulo Rangel inventaram o foro privilegiado de ex. Flávio não é mais deputado estadual, mas será julgado como se ainda fosse. Ganhará o mesmo tratamento dos atuais inquilinos da Alerj.

Para o professor Walter Maierovitch, a decisão representa um “atentado à inteligência”. Ele lembra que o nome oficial do foro privilegiado é “foro por prerrogativa de função”. “Se ele não ocupa mais a função, como pode ter a prerrogativa?”, questiona. “É o Brasil. É o faz de conta”, resumiu ontem o ministro Marco Aurélio Mello.

Graças à criatividade dos desembargadores, o caso sairá das mãos do juiz Flávio Itabaiana. Subirá para o órgão especial do TJ, que nunca incomodou figuras como o ex-governador Sérgio Cabral. Agora a defesa tentará anular os atos do magistrado de primeira instância. Entre eles, a prisão de Queiroz e a quebra de sigilo fiscal do senador.

O Zero Um já havia tentado levar as investigações para o Supremo Tribunal Federal. A manobra foi barrada pelo ministro Marco Aurélio. Ele aplicou o entendimento da Corte, que restringiu o alcance do foro e já mandou dezenas de políticos para a primeira instância.

No passado, o Supremo permitia que os políticos mantivessem o foro após o fim do mandato. A regra foi abolida em 1999 em nome do princípio da igualdade perante a lei. Ao ressuscitá-la, os desembargadores premiaram Flávio com uma viagem no tempo. Ele será julgado no século XXI como se ainda estivéssemos no século XX, resumiu o professor Diego Werneck Arguelhes.

Antes de ser flagrada no laranjal, a família Bolsonaro fazia comício contra o foro privilegiado. Era tudo marketing para tapear eleitores. Segundo o advogado Rodrigo Roca, que substituiu o enrolado Frederick Wassef, ontem o dia foi de comemoração. “O senador ficou muito satisfeito com a vitória”, contou.


Merval Pereira: Os caminhos da Justiça

Bolsonaro sabe o que está em jogo, sabe o que pode sair dali. Sabe o que fez no passado, ele seus filhos, o Queiroz

O julgamento de ontem do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mostra como são difíceis, e muitas vezes tortuosos, os caminhos da Justiça. A transferência da primeira instância para o Órgão Especial do TJ da competência para julgar o caso de Flavio Bolsonaro, acusado de ser o chefe de uma quadrilha que cometeu peculato com o dinheiro público - a vulgarmente chamada “rachadinha”, quando um parlamentar fica com parte do salário dos funcionários de seu gabinete - beneficiou o filho do presidente por um lado, mas não anulou as provas já obtidas durante a fase em que a primeira instância cuidou do caso.

A defesa queria duas coisas: tirar o caso do juiz Itabaiana e anular todas as provas obtidas nas investigações. Teve vitória parcial, e se alguém foi beneficiado foi Flavio Bolsonaro, pois existe uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de que quando o parlamentar perde o mandato, seu caso vai para a primeira instância.

A alegação de que Flavio Bolsonaro era deputado estadual quando cometeu o suposto crime, e por isso é beneficiado pelo foro privilegiado, é uma dessas interpretações distorcidas que, com os recursos, acabará sendo anulada no Supremo.

A decisão que limitou o foro privilegiado teve como relator o ministro Luis Roberto Barroso numa Ação Penal, que não produz efeito vinculante, o que quer dizer que não há obrigatoriedade de os desembargadores aderirem a ela, embora fosse recomendável.

No entanto, com a decisão de passar para a segunda instância, pela lógica todo o processo anterior deveria ter sido anulado, e o inquérito começaria da estaca zero, o que não aconteceu. Pode vir a acontecer quando a defesa de Flavio Bolsonaro recorrer ao Órgão Especial, órgão máximo do Tribunal de Justiça do Rio, formado por 25 desembargadores. Mas pode também o Órgão Especial considerar que a primeira instância é que é competente para julgar o caso, seguindo a jurisprudência do STF.

Isso tudo para dizer que Bolsonaro acusar o Judiciário de perseguir sua família por questões políticas não resiste a uma análise isenta. Desde a prisão do seu amigo Fabrício Queiroz, acusado de ter parte com às milícias e ser o coordenador da “rachadinha”, Bolsonaro está completamente diferente, a começar pela feição. Sua postura no vídeo da saída do Weintraub, no mesmo dia da prisão do Queiroz, mostra como está impactado com a notícia, que o envolve diretamente, porque seu amigo foi preso na casa de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro.

Desde então, está calado, evita fazer aqueles mini comícios na saída do Alvorada, baixou a crista, como se diz de um energúmeno que se submeteu à realidade. Todos seus seguidores também reduziram muito os ataques, e com ele calado, o clima político mudou muito.

Bolsonaro não passa da retórica, nunca teve um gesto para unir as pessoas, sempre trabalha na desunião, na disputa política, na guerra. E todo dia tinha assunto novo, um ataque a alguém, a alguma instituição. Ao contrário, ontem amanheceu propondo novamente a união entre os Poderes. Esse estender de mão é consequência do impacto que foi para Bolsonaro pessoalmente a prisão do Queiroz.

Ele sabe o que está em jogo, sabe o que pode sair dali. Sabe o que fez no passado, ele, seus filhos, o Queiroz, ele sabe que os inquéritos no STF são fortes, está ficando cada vez mais claro que a interferência na Polícia Federal existiu, e que o interesse era evitar processos contra o filho Flavio senador e a prisão de Queiroz. Além do caso do impulsionamento de WhattsApp no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Só há dois problemas para esse novo acordo proposto: o primeiro é a pessoa do presidente, que não é nem controlável, nem confiável. Depois, a cabeça dele não vai mudar - a busca do poder sem limitações, de que o Executivo tem que comandar, que o Legislativo e o Judiciário o impedem de governar. Ninguém ganha espírito democrático tendo sido autoritário a vida inteira.

Qual é a solução para esse caso? Que Bolsonaro esqueça a tese de golpe, esqueça a tentativa de controlar outros Poderes, se adapte à democracia representativa, ao presidencialismo de coalizão e faça acordos com partidos políticos no Congresso dentro da legalidade. Mas entendendo que isso não absolve o Queiroz, nem o Flavio, nem o Jair de nada do que fizeram.


Dora Kramer: Agora é cinza

O fracasso dos intentos autoritário não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país

Nada como os fatos. No devido tempo deram razão à percepção de que eram infundados os temores sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro golpear a democracia ao molde venezuelano, a fim de governar a plenos e absolutos poderes. Em um ano e meio, de maneira mais acentuada nos últimos quatro meses, o presidente, filhos e súditos passaram de intimidadores a intimidados.

Sinal eloquente do retraimento típico de gente acossada foram a suspensão do espetáculo, em duas sessões diárias, na porta do Palácio da Alvorada e a ausência do presidente nas performances dominicais nas cercanias do Palácio do Planalto logo após a prisão de Fabrício Queiroz.

O presidente & filhos foram acometidos de um súbito gosto por modos razoáveis, enquanto aqueles ministros ditos ideológicos perderam a loquacidade. Faz algum tempo que Damares e Araújo já não dão vazão em público a suas ideias reacionárias. Os ativistas do extremo digital reduziram drasticamente sua presença nas redes e trataram de apagar vídeos no YouTube para eliminar rastros e não facilitar a coleta de provas nas investigações acerca dos patrocínios e da organização de atos atentatórios à verdade e à Constituição.

Não foi preciso nada além da estrita observância das normas em vigor e do repúdio social aos abusos por eles mesmos cometidos para que lhes fosse cortado o fornecimento de oxigênio. Consideram-se injustiçados, vítimas de perseguição, ignorantes que se mostram a respeito de uma pergunta retórica que Sigmund Freud registrou na história da psicanálise: “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual se queixa?”. A resposta é de essencial utilidade para uma correção de rumos.

Bolsonaro pode não estar perto de perder o mandato, mas já perdeu a condição de abalar Bangu (sem referência outra, só força de expressão) com a estridência de suas cordas vocais. Dizem que a luz do sol é o melhor detergente. Aqui a substância responsável por imprimir clareza ao cenário tem sido o olho e as mãos da lei.

Não são fortes o bastante para impedir o retrocesso civilizatório cujas bases foram plantadas nos governos do PT com o menosprezo do então presidente Luiz Inácio da Silva pela educação formal, pelo uso correto do idioma e pelo respeito à ética na política e com a introdução da dinâmica do “nós contra eles” na sociedade, e seriamente agravados por Bolsonaro. Mas, se é real a ocorrência do atraso, é verdadeira também a consolidação dos mecanismos de contenção a ilegalidades. Vários deles, diga-se, reforçados na era petista.

“Bolsonaro e companhia passaram do papel de intimidadores à condição de intimidados”

Jair Bolsonaro não contava com o peso dessa engrenagem na imposição de limites ao exercício do poder. Felizmente é com esse aparato legal que o país conta para dissipar apressadas e inapropriadas comparações com o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Lá, Judiciário, Legislativo e Forças Armadas foram tomados de assalto como pré-requisito para transformar a Venezuela numa democracia de fancaria. Aqui, fica a cada dia, a cada fato, a cada reação mais patente: isso é impossível.

Portanto, que se recolham de um lado esperanças e de outro temores. Não vai ter golpe. Entre os motivos já explicitados, porque o candidato a golpista está identificado e queda-se refém dos próprios blefes. A cada dobra de aposta nesse jogo o presidente perde mais espaço no tabuleiro onde se posicionam as instituições, a massa crítica de setores organizados e a maioria da sociedade, conforme atestam as pesquisas de opinião.

O fracasso dos intentos autoritários, contudo, não significa que esteja tudo bem. Não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país. Impôs enormes. Em decorrência do já citado retrocesso civilizatório tivemos o prejuízo das vidas perdidas por causa da atitude negacionista em relação à pandemia, a perda de importância no campo diplomático, os monumentais riscos ao comércio exterior e aos investimentos devido ao desprezo pela preservação do meio ambiente e à depreciação de questões relativas a direitos humanos. O Brasil era um, hoje é outro bem pior aos olhos do mundo, motivo de piadas e lamentações.

Assalta-nos, então, a dúvida: a situação tem remédio ou remediada está? Nenhuma das duas hipóteses. Para a segunda, que implicaria o impedimento, ainda não se encontrou um caminho eficaz. Para a primeira, dependeríamos de uma mudança radical nos atos e no pensamento de Jair Bolsonaro, num repente transmutado em líder. Resta, portanto, o aguardo de um milagre.

Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693


Fernando Gabeira: Uma pausa para avançar

Além da pandemia, por décadas vamos sentir os efeitos da passagem de Bolsonaro pelo pode

A leitura da História da Europa nos anos 30 mostra uma longa tensão bélica entrecortada por pausas que enchiam de esperança os que sonhavam com a paz. Poucos percebiam, como Winston Churchill, quão importante era aproveitar os momentos de tensão para se preparar para um confronto inevitável.

Guardadas as proporções, o Brasil entra numa pausa com a prisão de Fabrício Queiroz. Jogado na defensiva pelos diferentes processos no Supremo, um contra fake news, outro contra manifestações com bandeiras ilegais, Bolsonaro tende a se acalmar por alguns dias.

Toda a sua energia certamente estará concentrada em se defender do pepino do tamanho de um cometa que ronda seu governo. A presença de Fabrício Queiroz na casa do advogado da família Bolsonaro levou, de novo, não só os problemas de Flávio Bolsonaro, mas a incômoda questão das milícias cariocas para o terceiro andar do Palácio do Planalto.

Dificilmente, nesse período, crescerão as manifestações pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Muito menos Bolsonaro, Mourão e o ministro da Defesa devem lançar novas notas afirmando que as Forças Armadas não aceitam julgamentos políticos. Isso agora soaria como um blefe.

Muito possivelmente Bolsonaro perdeu terreno nas Forças Armadas e também na faixa de seu eleitorado que esperava a luta contra a corrupção. Nesta última ele já havia perdido com a saída de Sergio Moro do governo denunciando suas tentativas de intervir na Polícia Federal do Rio. E as perdas se acentuaram quando firmou aliança com o Centrão, uma espécie de seguro contra o impeachment, que nem sempre é honrado pelos contratantes.

Quando a prisão de Queiroz apertou o botão “pausa” a sociedade estava se organizando para deter o golpe e fazer frente à política nefasta de Bolsonaro. Manifestações de rua surgiram aos domingos e manifestos brotaram de vários setores, indicando a possibilidade de uma frente democrática em gestação.

Nesse momento também a pandemia atingia seu auge, ultrapassando a casa de 1 milhão de contaminados e 50 mil mortos. O Brasil tornou-se um país a ser evitado. O fracasso no combate à pandemia, impulsionado pelo negativismo de Bolsonaro, afasta os potenciais visitantes.

A destruição da Amazônia, que pode alcançar 16 mil km2 no prazo de um ano, por sua vez, afasta os investidores. Fundos de pensão responsáveis por investimentos gigantescos podem voltar as costas ao Brasil, por causa da destruição da floresta e a cruel política para os povos indígenas.

Bolsonaro não torna o País inviável apenas simbolicamente, arrasando a cultura e atropelando nosso patrimônio histórico. Ele nos coloca nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica, agravada pela pandemia. Embora o ministro Paulo Guedes veja um futuro brilhante pela frente, grandes economistas brasileiros, ao contrário, veem no horizonte uma das grandes privações por que passará o Brasil em sua História.

Quem se preocupa com a democracia apenas quando se aquecem os motores dos tanques militares pode ter uma falsa sensação de alívio. A democracia continuará exposta a pequenos golpes cotidianos Além disso, quanto menos margem de manobras Bolsonaro encontrar, mais possibilidade de buscar ações desesperadas.

Enquanto a sociedade se move, ainda lentamente por causa da pandemia, o confronto com as aspirações golpistas concentrou-se na reação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o Congresso recuou para segundo plano, talvez temeroso da agressividade da militância bolsonarista.

É preciso que os deputados e senadores superem a fixação numa salvação individual nas eleições. Os deputados da extrema direita, segundo a PGR, usam verbas parlamentares para mobilizar o fechamento do próprio Congresso. Não há como se esconder atrás das togas negras do Supremo. É necessária uma frente democrática no próprio Congresso.

“Somos poucos”, dirão os deputados. Mas não importa tanto o número, o importante é começar. Se a pausa acionada com a prisão de Queiroz for entendida como um momento de distensão, uma época para simplesmente deixar andar o processo judicial, ela pode trazer surpresas desagradáveis…

Naturalmente, os processos legais têm de ser acompanhados. Mas os danos ao País continuam a ocorrer. E a chegada de momentos mais dramáticos da crise econômica pede a construção de redes de solidariedade.

Diz a OMS que o mundo sentirá por décadas os efeitos da pandemia de coronavírus. No caso brasileiro, além da pandemia, vamos também sentir por décadas a passagem de Bolsonaro pelo poder.

No trabalho de reparo dos estragos e reconstrução do futuro não pode haver pausa. Mesmo porque as desgraças não nos abandonam nem no cotidiano. O mínimo que esperamos de novo, nessa pausa, é uma voraz nuvem de gafanhotos que nos invade pelo sul do País.

Um aumento de chances de vitória é uma razão suficiente para intensificar a luta. Quanto menos nos preparamos para ela, mais difícil será o desfecho. Sem necessariamente estabelecer um paralelo com o nazismo, a História dos anos 30 é uma aula sobre as hesitações da democracia diante de um perigo no horizonte.

*Jornalista


Carlos Andreazza: Anjo do anjo

Será Wassef o Queiroz do futuro?

Quem ouvir o senador Flávio Bolsonaro terá de repente a impressão de que nunca foi deputado estadual e de que o gabinete na Alerj era de Fabrício Queiroz. Não era; isto embora — justiça seja feita — fosse mesmo o ex-policial quem trabalhasse à vera ali. Nada a ver com a atividade parlamentar.

Quem ouvir, nos próximos dias, a família Bolsonaro terá de repente a impressão de que o destituído Frederik Wassef nunca foi advogado de Flávio e Jair Bolsonaro, e de que sua presença nos palácios onde mora e trabalha o presidente da República jamais houve. Houve; isto embora — justiça seja feita — nada de errado haja em cliente se reunir com defensor, tanto mais sendo este um amigo daquele.

Junta-se o útil ao agradável; assim se ergueu o patrimonialismo neste país.

O destino já uniu Queiroz e Wassef, o novo ex. Tudo a ver com o fato de este ter escondido aquele. Será Wassef o Queiroz do futuro? E quem seria, no caso, o Wassef de Wassef? Wassef deseja saber. Como Queiroz no passado, o advogado manda recados. Não quer ser abandonado. Teria até celular exclusivo para contatos com a família. Verbaliza mesmo a fé — pura mensagem — de que armariam contra ele para atingir o presidente. A acusação de armadilha é gentileza para com Bolsonaro; mas não turva a clareza da missiva: “eu sou você”.

Funcionou com Queiroz — logo lhe apareceu o anjo. Quem será o anjo de um anjo falador que — debatendo-se contra o fado — não parece ter vocação para Queiroz?

Seria mesmo Wassef o anjo de Queiroz?

Queiroz não foi descoberta de Flávio; uma aquisição sua para a gestão, em dinheiro vivo, do gabinete. Não. Queiroz, amigo de Jair desde que 01 era guri, foi designado pelo pai — que sempre dispôs dos mandatos dos filhos como extensões do seu. Queiroz é tanto Jair Bolsonaro quanto Flávio é Jair Bolsonaro.

Wassef tampouco foi descoberta de Flávio; uma revelação sua para a defesa judicial da família. Não. Wassef foi designado pelo pai para a defesa do clã — e ora reivindica ser Jair tanto quanto Queiroz é Jair. Intui que será investigado. A fotografia captura flagrante comprometedor: o então advogado de Flávio guardando em casa, homiziado, um outro investigado no inquérito, cuja detenção preventiva impôs-se por estar ele, desde o covil, movendo-se para obstruir a Justiça.

Isto mesmo: Wassef, defensor de Flávio até ontem, abrigava Queiroz — operador num esquema de corrupção no gabinete de seu cliente — enquanto o abrigado cuidava de interferir para dirigir testemunhas; nenhuma delas maior do que a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega.

A senhora Raimunda Veras Magalhães esteve — longamente, assim como a nora — na folha de pagamento do gabinete; e sua movimentação em espécie é capítulo à parte. É quando entra na equação a mulher de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar, ora foragida, talvez a principal agente no esforço para lesar as investigações, possivelmente incumbida de comandar o silêncio dos que compunham a vertente miliciana em que também se investiria o dinheiro amealhado por aquele modelo de rachadinha.

Lembremos. No único depoimento que deu ao MP, em fevereiro de 2019, Queiroz admitiu que o sistema de rachadinha era regra no escritório de Flávio. Apresentou, porém, ressalva que supunha atenuante: os recursos colhidos ali não iriam para o bolso do chefe, mas para um caixa paralelo destinado a ampliar, informalmente, o número de colaboradores do mandato. Ao serem contratados, os assessores eram informados de que teriam de dar parte da remuneração para sustentar aquela expansão. Tudo pago por fora — num exercício que chamou de “desconcentração de remuneração” e que seria desconhecida pelo deputado.

Com Queiroz preso, será natural que os investigadores lhe cobrem a lista desses auxiliares informais — e quanto ganhavam. Isto porque, em face do volume girado no esquema, ainda que gabinete estendido houvesse, seria algo marginal; e o MP tem como norte que esse programa de rachadinha alimentaria — aí, sim — uma indústria de lavagem de dinheiro por meio sobretudo de operações imobiliárias, entre as quais estariam contidos investimentos no ramo empreiteiro das milícias.

Exatamente: o dinheiro daquele caixa paralelo seria destinado também a financiar construções ilegais de prédios em localidades como a Muzema — ali onde dois edifícios irregulares caíram em 2019.

Rachadinha é recurso delinquente comum em legislativos Brasil adentro — já dizem os passapanistas para relativizar o crime. A prática, no entanto, agrava-se quando se questiona com que frequência terá servido para financiar a atividade econômica de milícias. Essa é, aliás, a razão por que sou cético acerca da possibilidade de Queiroz delatar. Para quê? Qual vantagem teria? Ou não será o delator aquele que entrega outrem em busca de se safar? E que alívio teria em liberdade aquele que delata uma organização criminosa conhecida por ter mui eficiente esquadrão da morte?

Haja anjo.


José Casado: Entre parentes e milicianos

Vínculos a Queiroz e ao falecido capitão do Bope Adriano da Nóbrega levaram o clã Bolsonaro a introduzir o submundo das milícias na rotina do Planalto e do Congresso

Resumir o atual governo talvez não venha a ser difícil para historiadores. Há 20 meses a prioridade de Jair Bolsonaro tem sido a mesma de três décadas na política, proteger a parentela, nutrida no orçamento público. “Defendemos a família”, escreveu no domingo 7 de outubro de 2018, no epílogo da primeira etapa da campanha. “Tratamos criminosos como tais e não nos envolvemos em esquemas de corrupção.”

Lá se foram 80 semanas, e o presidente continua refém da agenda que aprisionava o candidato.

Ela começa no uso do erário para acolher parentes e amigos. Vício antigo. Nos últimos 28 anos, ele e seus filhos parlamentares abrigaram mais de uma centena de pessoas com parentesco ou relação familiar.

Somaram a afinidade com lobbies de armas e de cassinos, neste caso refletindo a disputa entre grupos americanos, como o de Sheldon Adelson, e asiáticos, como o Shun Tak. Na campanha Bolsonaro se reuniu com Adelson, financiador do Partido Republicano. Entrou no hotel pela cozinha.

Até agora, o governo só conseguiu acenar ao país sob pandemia com um futuro baseado na abertura de cassinos e no comércio de armas, com isenção de rastreamento.

A retrospectiva mostra o presidente concentrado na guarida ao filho senador e ao antigo companheiro paraquedista Fabrício Queiroz, hoje em Bangu 8. Vínculos a Queiroz e ao falecido capitão do Bope Adriano da Nóbrega levaram o clã Bolsonaro a introduzir o submundo das milícias na rotina do Planalto e do Congresso.

As iniciativas presidenciais desses 20 meses foram balizadas pela proteção à parentela e amigos. Daí o repentino silêncio sobre o fim da prisão para condenados em segunda instância, a remoção do Coaf da Justiça, os acordos para bloqueio da CPI da Lava-Toga, o rompimento com o governador Wilson Witzel e a crise da demissão do ex-ministro Sergio Moro.

Na raiz está uma peculiar visão de Estado, sintetizada pelo filho Flávio numa homenagem a milicianos: “Não podemos generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão.”


O Estado de S. Paulo: ‘Prisão de Queiroz é mais do que um sinal amarelo’

Em entrevista ao GLOBO, Pereira avalia que iniciativa do governo de se aproximar dos partidos do Centrão pode não ser suficiente diante do impacto causado pela prisão de Queiroz

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO - A iniciativa do governo de tentar construir uma barreira de proteção ao se aproximar dos partidos do centrão pode não ser suficiente para segurar um naufrágio diante do impacto causado pela prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Esta é a opinião do cientista político Carlos Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas.

Qual o impacto da prisão de Queiroz no governo Bolsonaro?

O sistema político brasileiro é muito virtuoso na sua capacidade de se livrar de corpos estranhos, de atores que não entendem como o presidencialismo partidário funciona. Isso ocorreu com o governo Collor e com o governo Dilma. Acho que está acontecendo o mesmo processo com o governo Bolsonaro. Há um mosaico de instituições, como Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, mídia independente, sendo ativado. Essa prisão do Queiroz foi mais que um sinal amarelo para o governo Bolsonaro na questão de governabilidade. A sustentação política do governo está muito fragilizada. Nem mesmo a iniciativa de construir uma suposta barreira de proteção com o centrão pode ser suficiente agora, após a prisão do Queiroz. Os partidos do centrão vão começar a avaliar se vale a pena continuar. Agora as chances do impeachment do presidente se tornam bem reais.

O tesoureiro Paulo César Farias, no governo Collor, pagava despesas da família e essa descoberta abriu caminho para o impeachment. Agora, as investigações sugerem que um dos filhos de Bolsonaro teve despesas pagas por Queiroz.

Ele (Queiroz) já é uma espécie de PC Farias. Ele já era a pessoa de confiança do presidente antes de ser a pessoa de confiança do filho dele. Já há evidências de R$ 2 milhões que passaram de forma suspeita pelas contas do Queiroz. Parentes do Queiroz atuavam no gabinete do presidente. As conexões são muito grandes, não resta dúvida que o Queiroz é um capa preta da família Bolsonaro. Até a coalização com o centrão fica muito fragilizada, os deputados vão começar a questionar o custo. Bolsonaro começará a ter uma dimensão tóxica.

Como ficam os militares diante desta situação?

Dependendo do que ainda for revelado, os militares vão pular fora do governo. Eles têm muito a perder, demoraram muito para limpar a imagem, mais de 30 anos, pois haviam saído muito desgastados da ditadura. E o governo Bolsonaro os arrastou de volta para a linha de tiro. Talvez este evento Queiroz facilite a situação para que os militares caiam fora. Principalmente os da ativa, para preservarem o nome da instituição. E o governo ficaria muito mais frágil.

O vice-presidente, Hamilton Mourão, ganha força como eventual solução?

Não resta dúvida. Os militares arriscaram muito com este governo, o nome das Forças Armadas ficaram muito comprometidos com este governo. Sair junto com o governo Bolsonaro seria um sinômimo de fracasso. Então é possível que setores das Forças Armadas comecem a considerar um governo intermediário em torno do vice-presidente. Mas para que isso aconteça o vice-presidente precisa dar sinalizações. Ele já havia dado sinais de sua disposição, depois recuou, ficou mais próximo do presidente, então temos que observar se o próprio Mourão está disposto a isso. Do ponto de vista do grupo que dá sustentação ao governo, seria muito mais vantajoso o impeachment que a cassação da chapa (pelo TSE), pois isso seria o fracasso completo do projeto.

A prisão de Queiroz é mais impactante politicamente que a saída de Moro do governo, o vídeo da reunião ministerial, a investigação do Supremo, a minimização da pandemia?

Não dá para dizer se é o mais importante, é mais um elemento. O impeachment não é fruto de uma bala de prata, de um único evento, mas de um desgaste cumulativo. No momento inicial o que deve ocorrer é o centrão inflacionando o preço do apoio. Eu não me surpreenderia se ocorrer, nas próximas semanas, uma reforma ministerial mais ampla, no sentido de tentar acomodar os representantes claros dos partidos que estão dispostos a dar sustentação a este governo.

O senhor acredita que o Congresso começará de fato a avaliar a ideia do impeachment?

Lembro que para impeachments ocorrerem, é necessário povo na rua. A literatura que existe sobre isso identifica que todos os impeachments que ocorreram no mundo tinham quatro elementos presentes. Três estão presentes: uma crise econômica muito forte, um governo minoritário, casos de corrupção. O que está faltando é povo na rua. A pandemia está sendo uma aliada do Bolsonaro.


Fernando Gabeira: Do tamanho de um cometa

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade

Ironicamente, um governo machista que cultua armas pode descrever seu maior abalo com um poético símbolo fálico: um pênis do tamanho de um cometa. Foi assim que Fabrício Queiroz descrevia o futuro que esperava o grupo em torno de Bolsonaro.

Ironicamente, Fabrício se escondeu no sítio de um amigo em Atibaia. E a operação que o encontrou foi denominada Operação Anjo, em homenagem ao advogado da família Bolsonaro, acusado, no passado, de bruxaria.

O Brasil é um desafio para os romancistas. A tempestade perfeita acabou se abatendo sobre Bolsonaro: inquéritos sobre fake news e manifestações ilegais, militantes presos, deputados com sigilo bancário quebrado.

E, finalmente, a prisão de Queiroz. Não era o homem mais procurado do país. Mas era o mais solicitado. De todos os cantos brotava a pergunta: onde está Queiroz? Queiroz estava escondido na casa do advogado da família Bolsonaro. Para uma operação no nível de segredo de Estado, é de um amadorismo comovente.

A exposição dessas operações suspeitas de Bolsonaro talvez o enfraqueça nas Forças Armadas, bicho-papão com que ele nos ameaça a cada momento. Os militares têm aceitado tudo. Desde os ataques à República até a necropolítica de Bolsonaro na pandemia de coronavírus. Nos ataques à Proclamação da República pelo menos ficaram calados, não os endossaram. Mas a política de Bolsonaro é executada por um general da ativa que quer nos entupir de cloroquina porque seu líder assim o determinou.

A sorte é que nem sempre acertará no alvo. Confunde hemisférios e coloca o Nordeste acima da linha do Equador, e chama Rio Branco de estado. Sua imprecisa pontaria geográfica talvez nos ajude a sobreviver.

Também entre os que esperavam um combate à corrupção, Bolsonaro vai se enfraquecer. Aliás já estava se enfraquecendo com a queda do Moro. Caiu nos braços do centrão e agora vem à tona o esquema de Queiroz e seus milicianos.

Não creio, entretanto, que a situação ficou menos tensa. Ao contrário. Quem se sente encurralado tem mais chances de buscar ações desesperadas.

Antes da queda de Queiroz, comecei a escrever um artigo partindo de uma frase de Skakespeare em Hamlet: “Ai ai de mim por ver o que vejo.”

Era um artigo para lembrar que falhamos na pandemia, apesar do tempo de preparação. Perdemos mais gente, empregos e tempo por causa de nossa incapacidade nacional.

Estamos às vésperas de um novo desafio: uma profunda crise econômica e social. Onde Paulo Guedes vê um futuro brilhante, vejo suor e lágrimas, mais suor do que lágrimas, adaptando a famosa frase de Churchill aos trópicos.

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade e construção da mínima rede social num país que se dissolve.

Costumo dar como exemplo Paraisópolis. Imagino que sejam contra Bolsonaro, pois estive lá e vi como sofreram com a violência policial. Agora na crise, conseguiram uma ambulância, médicos, lugares para isolamento, criaram um sistema defensivo. Eles sabem que são tarefas do Estado, mas não podem esperar.

Uso esse pequeno exemplo para mostrar que em escala nacional não basta a grande batalha para derrotar o projeto autoritário de Bolsonaro. É uma luta que tomará tempo e, enquanto isso, o país continuará sangrando.

Tenho andado pouco pelas ruas. Mas percebo um número maior de gente em dificuldade. Conheço muitos moradores de rua do meu bairro. Alguns documento com fotos ao longo dos anos.

Nas poucas saídas, percebi que mudou a população de rua. Procuro alguns que conhecia e suspeito que morreram. Ao mesmo tempo, surgiram muitos novos, famílias inteiras.

A pandemia ainda nem acabou, e estamos diante de uma situação em que não podemos perder de novo. A imagem no exterior se evaporou. Nosso soft power — cultura, simpatia, natureza — foi para o espaço. O Brasil se isolou.

Mas ainda não desapareceu. Dai a histórica dimensão da tarefa. O único consolo é acreditar que a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.


Afonso Benites: Após flerte com golpe, Bolsonaro diz que missão de militares é a defesa da democracia

Presidente participou de cerimônia de sepultamento de soldado paraquedista morto em acidente, no Rio. Ele tem evitado ator públicos desde a prisão de aliado Fabrício Queiroz

Em sua primeira aparição pública após a prisão de seu amigo Fabrício Queiroz, o presidente Jair Bolsonaro amenizou o tom crítico de seus discursos e afirmou que a missão das Forças Armadas é defender a democracia. A fala de Bolsonaro ocorreu neste domingo, no Rio de Janeiro, durante a cerimônia de sepultamento do corpo de Pedro Lucas Ferreira Chaves, um soldado paraquedista do Exército morto em treinamento. “A nossa missão, a missão das Forças Armadas, é defender a pátria, é defender a democracia”, disse o presidente. No mesmo evento, o presidente afirmou que ele e os militares estão “a serviço da vontade da população brasileira”.

Nos últimos meses, ele tem radicalizado e flertado com uma espécie de autogolpe com o apoio dos militares para se manter no poder. Já disse, por exemplo, que não aceitaria um “julgamento político” de seu mandato. E sugeriu, em mais de uma ocasião, que, conforme o artigo 142 da Constituição Federal, as Forças poderiam agir como um poder moderador para intervir em outros poderes. Essa tese já foi rejeitada em ao menos duas decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal nos últimos dias. O ministro Roberto Barroso, do STF, classificou esse entendimento de “terraplanismo constitucional”.

Ex-paraquedista, Bolsonaro se mostrou emocionado na solenidade que contou com dezenas de pessoas em um período em que o país enfrenta uma pandemia do novo coronavírus, com mais de 50.000 óbitos registrados. O gesto contrasta com a atitude do presidente diante da pandemia no Brasil. Desde o início da crise sanitária jamais fez alguma manifestação direta de condolências aos familiares das vítimas da enfermidade como a deste domingo, direcionada aos parentes do soldado. “Todos nós, ao lado do Chaves, devemos nos preparar para, se um dia a nação assim o pedir, se preciso for, darmos a vida pela nossa pátria e pela nossa liberdade”, disse Bolsonaro.

Em Brasília, o discurso é visto como uma tentativa de pacificação, ainda que temporária, com parte do Congresso e, principalmente, com o Judiciário, de onde tem partido as principais derrotas de Bolsonaro e na qual ele sofreu uma série de ataques nas últimas duas semanas.

Entre as derrotas do presidente está exatamente a prisão do ex-policial militar Queiroz na quinta-feira passada na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef. Queiroz foi assessor do senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente. É investigado por comandar um esquema de rachadinha, no qual se apropriava de parte dos salários dos servidores do gabinete de Flávio.

O presidente também se deparou com o avanço de dois inquéritos que resultaram na apreensão de documentos, computadores e celulares de 50 apoiadores seus, testemunhou a quebra de sigilo de 11 parlamentares governistas e de quatro empresários suspeitos de financiarem manifestações antidemocráticas. Atos estes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo e, em alguns casos, de intervenção militar.

Neste domingo, foi registrado mais um ato em Brasília, um dos poucos em que o presidente não participou. O ato foi esvaziado, assim como em outras cidades, como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Além de evitar participar do ato da manifestação, o presidente também mudou, ainda que provisoriamente, o hábito de se aproximar de seus apoiadores. Faz quatro dias que ele não conversa com os fãs que o aguardam na entrada do Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência da República.

Nos bastidores, ele fez dois movimentos. Sinalizou aos militares que ainda o apoiam que tomará mais cuidado com o que fala, para não radicalizar os discursos, e pediu para três de seus ministros se encontrarem com o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes. Ele é o relator de duas investigações que atingem bolsonaristas.

O encontro entre os ministros ocorreu na sexta, 19, e contou com a participação de André Mendonça (Justiça), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral) e José Levi do Amaral (Advocacia-Geral da União). Moraes também é ministro no Tribunal Superior Eleitoral e está nas mãos dele a continuidade do julgamento de dois dos oito processos que pedem a cassação da chapa presidencial eleita em 2018 por disseminação de desinformação, fake news.

Se antes Bolsonaro falava muito para o seu extremista público, com a perda de apoio e os ataques vindos de diversos flancos que podem resultar na perda de mandato, agora, ele ameniza os seus discursos. Só não está claro quanto tempo dura essa trégua.