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“O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil” - Foto: Christian Parente | Divulgação

Silvio Almeida: “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”

Osvaldo Lyra | A tarde

O professor Silvio Almeida é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo e advogado tributarista, ele estuda as relações raciais no pais e é enfático ao afirmar que “o racismo é uma questão estrutural, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro”.

Integrante da equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ele diz, nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, que o “bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo”. “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”, disse o filósofo, ao enfatizar que “a vitória de Lula abre espaço para a recomposição da democracia”.

Questionado sobre como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual, Silvio Almeida diz que a “segurança tem que ser repensada sob o prisma da igualdade racial”. “Política de segurança pública é política de direitos humanos”.

Confira:

Vivemos em uma sociedade ainda muito preconceituosa, onde a capacidade das pessoas muitas vezes é medida pela cor da pele. No entanto, a gente está no mês da consciência negra. É importante pensar em ações afirmativas, ainda mais falando para a Bahia, falando para Salvador, que é a cidade mais negra fora da África?

Eu acho que o mês da consciência negra tem papel crucial para que nós possamos mergulhar na compreensão da condição negra não só no Brasil, mas no mundo. Porque a condição negra daqui também se conecta fortemente com o ser negro no mundo. E mais do que isso, as circunstâncias em que o mundo se encontra expande a importância do mês da consciência negra e a própria ideia de consciência negra. Eu digo isso porque nós estamos vivendo um contexto de crise. Quando a gente fala de crise, nós estamos falando, portanto, de um contexto em que a grande baliza civilizatória, as grandes crenças... Eu não falo de religião, eu falo das nossas crenças das instituições políticas, da regularidade da vida econômica, das nossas balizas éticas. Tudo isso está em xeque agora diante de um desarranjo que vai levando as pessoas ao desamparo, ao desespero. As condições precárias, as condições de vida, de existência rebaixadas que o racismo renegou aos negros do mundo passam a servir de parâmetro para a destruição de outras vidas que não apenas vidas negras. Isso é importante. Então, o mês da consciência negra é uma reflexão sobre a condição negra no mundo, mas é uma reflexão, e quando eu falo de reflexão não é só um olhar passivo, mas também a formulação de estratégias políticas para que nós possamos, ao pensar na condição negra, pensar também na superação dos grandes problemas da humanidade. Por isso que esse mês da consciência negra, principalmente no contexto brasileiro, em que nós estamos no período de transformação, de mudanças, uma nova fase do Brasil, é também o chamado para que nós pensemos a condição negra como condição existencial, e nesse sentido, pensar também os rumos da humanidade e do Brasil. E não é só pensar sobre as ações afirmativas. Mas pensar também em como o racismo cria um déficit naquilo que nós chamamos de humanidade. Como ele inviabiliza a criação de uma humanidade que seja projetada em direção ao futuro. 

Em seu livro “Por uma outra globalização”, o professor Milton Santos reflete sobre a globalização com fábula, com perversidade, a globalização como possibilidade, nos convidando justamente a uma nova construção global. É chegada a hora de acabarem as barreiras que impedem a igualdade entre os povos, com mais oportunidade e acesso a todos?

Sim. O professor Milton Santos, que é uma grande referência intelectual, há muitos anos enxergou isso que a gente falava. Ou seja, quando ele anunciou a necessidade de se pensar numa nova globalização, ele estava justamente falando sobre pensar uma nova forma de relações econômicas e sociais a partir desse modelo existente hoje. ]

Eu estou falando do quê? Eu estou falando que o professor Milton Santos está nos convidando a pensar como vai ser fundamental que nós mudemos a forma com que nós reproduzimos a nossa economia, além da maneira com que nós organizamos nossas instituições políticas e como elas são baseadas na violência, na repressão, na discriminação. Isso em nome de um determinado modo de organização da economia.

 Ele está nos convidando, portanto, a redesenhar, a reconfigurar a nossa forma de relação uns com os outros e a nossa forma de relação com o planeta. Ele está olhando para o regional, para o local, mas ele entende que tanto o regional como o local são resultado de uma interação com o global. Genial. 

A gente vive um tempo de retrocessos, nas mais variadas áreas, ao longo dos últimos anos do governo Bolsonaro. Qual o impacto desses acontecimentos nas discussões raciais do país, em especial nos partidos progressistas e nas instituições democráticas de direito?

Bolsonaro é um sintoma. É importante dizer isso. O bolsonarismo é um sintoma de um país que tem problemas estruturais muito graves, que carrega consigo pendências que não se resolveram ao longo da história, que se juntam mais uma vez em um contexto global de crise que vai certamente levando à ascensão de fascismos e de versões mais diferentes da extrema direita. E a nossa versão da extrema direita, a nossa versão do fascismo damos o nome de bolsonarismo.

Ou seja, é a soma das nossas deficiências estruturais, da decadência das nossas instituições políticas, e também de uma soma de sentimento de precarização da vida. O Brasil é um país que não consegue vencer a dependência econômica, o que se reflete na desigualdade profunda, reflete na precarização do trabalho, reflete nessa tentativa frequente de captura do orçamento público por parte de grupos específicos, grupos privados, empresários. E isso reflete também na violência social. Isso é a dependência econômica.

O segundo problema é a nossa aversão à participação popular nos processos políticos, ou seja, uma aversão à democracia, o autoritarismo. Nós não conseguimos criar espaços públicos de resolução de processos, formas de participação popular efetiva. ]

Então, vejam como o bolsonarismo se alimenta muito disso. E, por fim, a questão fundamental que é sua pergunta: o racismo. O racismo é uma questão estrutural no Brasil, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, organiza a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro. 

Então, não tenha dúvida. O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil, ao racismo escancarado, e eu vou ser mais direto ainda. Eu acho que o bolsonarismo traz para o Brasil de maneira aberta, de uma maneira mais forte algo que é tipicamente dos países como os Estados Unidos, países da Europa e África do Sul.

Ou seja, o que você tem com o bolsonarismo é o flerte com a extrema direita racista nazifascista internacional e uma construção de um pensamento de supremacia branca no Brasil. O detalhe é que eles não estavam bem delineados na realidade brasileira. Nós estamos falando de supremacismo branco, e uma espécie de demonstração escancarada de que se pensa os negros, indígenas a partir de um prisma de inferioridade.

Então, eu acho que está tudo ligado. A dependência econômica, a aversão à democracia, o autoritarismo, o racismo são problemas estruturais no Brasil que se aprofundam no momento de crise e que o bolsonarismo é o veículo fundamental disso. Uma coisa que eu acho que é nossa tarefa nos próximos anos é, tal como os alemães tiveram a tarefa de desnazificar a Alemanha, nós vamos ter que desbolsonarizar o Brasil.

Qual o papel do poder público no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no Brasil e como o senhor viu a vitória do presidente Lula para o combate a intolerância e ao próprio racismo estrutural do país?

O poder público tem papel fundamental. Mais uma vez, nós temos que aprender a trabalhar com as contradições e até com os paradoxos. O racismo só consegue se reproduzir se houver a participação das estruturas políticas estatais.

Ou seja, na criação de um imaginário permanente de racismo, de inferioridade dos negros e indígenas no Brasil... É fundamental que haja uma ação estatal em torno disto. As desigualdades que se refletem na vida das pessoas negras no Brasil são também parte de uma ação ou de uma omissão estatal, porque no fim das contas o estado age também se omitindo. E nesse sentido o estado é fundamental, é um território em permanente disputa. E, portanto, é fundamental uma ação estatal no combate ao racismo. Isso tem efeitos mais perversos, que é o extermínio da juventude negra que ocorre no país, nas periferias, nas favelas.

Então, se o estado é capaz de provocar isso, esse mesmo estado em disputa e nas suas contradições, ele tem papel fundamental também para barrar isso. Então, a vitória do presidente Lula é, de fato, uma abertura de caminhos e acho que se abre também a possibilidade de uma disputa por esse território, um estado que a sociedade brasileira tanto clama... Abre-se, com o presidente Lula, a possibilidade de organizarmos programas de redução da desigualdade, abre-se a possibilidade de disputarmos sim programas de proteção à juventude negra.

Ou seja, o presidente Lula nos coloca da melhor maneira possível em uma encruzilhada. O que quer dizer isso? Ele nos coloca, portanto, diante de caminhos e possibilidade, o que é uma coisa boa. Porque até então nós estávamos sem esse caminho, sem essa possibilidade. Então, agora nós precisamos escolher os melhores caminhos, disputar os melhores caminhos nessa encruzilhada que a vitória do presidente Lula nos colocou. Portanto, acho que a perspectiva em torno de um efetivo combate à desigualdade racial no Brasil agora se faz no campo da disputa institucional, o que é muito importante para nós.

O senhor é uma das grandes vozes antirracistas do país e tem boas chances, inclusive, de se tornar ministro do presidente Lula, caso a pasta da Justiça seja desmembrada da Segurança Pública e pode também lá na frente ser indicado para uma vaga no Supremo. Como estão essas articulações?

São especulações. Nada foi conversado a respeito disso. Isso é uma decisão que cabe única e exclusivamente ao presidente Lula, que pelo que eu saiba ainda não tomou nenhum tipo de decisão. O que eu posso dizer pessoalmente é que eu estou na equipe de transição para ajudar o Brasil da melhor maneira possível. E a equipe de transição serve para fazer um diagnóstico sobre o estado de coisas que se encontram no Brasil, depois da devastação que foi o governo Bolsonaro nos últimos 4 anos.

Então, o que nós vamos fazer, junto com os companheiros e companheiras da equipe de transição, é entregar ao presidente Lula esse diagnóstico, colocando todos os nossos melhores esforços para que ele possa tomar as decisões que lhe cabem e que são resultado do mandato que o povo brasileiro deu a ele.

Em relação a mim, nada posso dizer, nada foi decidido, nada foi resolvido. Não há nenhuma articulação nesse sentido e, mais uma vez, essas decisões são tomadas única e exclusivamente pelo presidente Lula e a sua equipe e estou à disposição para servir ao Brasil agora na equipe de transição na área de direitos humanos.

Como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual do Brasil, além dos problemas estruturais, sistêmicos, históricos e sociais das causas da violência que sempre acaba penalizando jovens, negros e a população menos favorecida?

Não existe política de segurança pública que não passe por uma redistribuição do que nós entendemos por segurança. Segurança de quê? Segurança para quem? Nós pensamos segurança no Brasil como segurança para o patrimônio e segurança para as instituições e para o estado. O que nós temos que pensar agora é segurança para as pessoas. Segurança para os negros, para os indígenas.

Então, veja, o estado brasileiro historicamente tem sido veículo de desorganização da vida comunitária. O estado tem entrado nas comunidades, desorganizado a vida das pessoas em nome da segurança. Segurança dos mais ricos, dos brancos, dos moradores dos centros urbanos e das localidades mais ricas e mais abastadas da sociedade.

O que nós precisamos fazer a partir de agora é redefinir a ideia de segurança para pensar a segurança como um veículo, primeiro, de organização comunitária. Segundo, a segurança tem que ser pensada a partir de um prisma necessariamente antirracista.

Não existe a possibilidade de pensar segurança se não pensar também como a gente consegue colocar na agenda da chamada segurança pública políticas antirracistas. Eu quero dizer que o racismo é um fator de insegurança social, um fator de conflito.

Então, toda política de segurança pública que não pense na questão racial está simplesmente realimentando os instrumentos de violência e fazendo com que o estado, mais uma vez, desorganize a vida comunitária e coloque as pessoas dentro de um prisma de insegurança. Então, a gente tem que rever isso. Rever a nossa noção de segurança e, a partir daí, criar os instrumentos sociais para proteger a vida das pessoas mais pobres, para proteger a vida dos negros. E parece uma coisa muito comum, parece uma coisa trivial, mas não é trivial.

Porque, veja, o aparato de segurança não é utilizado para que as pessoas negras, as populações mais fortes sejam protegidas. Então, como é que a gente consegue criar formas, sistemas de proteção? Outra coisa que eu acho fundamental: no Brasil, precisamos ressignificar a relação entre segurança e território.

Nós precisamos estender aos territórios das favelas, das periferias, dos lugares mais pobres, mais afastados, precisamos estender também essa possibilidade de que as pessoas sejam respeitadas. Eu estou dizendo isso porque eu considero, por exemplo, que uma política de direitos humanos no Brasil não pode ser só uma política que levante bandeiras éticas e diga o seguinte: olha, nós respeitamos os direitos humanos. Não é isso. Nós precisamos, portanto, fazer da política de direitos humanos, que é uma política de segurança pública, tem que estar conectado.

Política de segurança pública é política de direitos humanos. Nós precisamos, portanto, fazer com que isso seja difundido também ideologicamente. Então, é uma disputa ideológica. No sentido de dizer que a forma correta de se pensar segurança é pensar a partir de uma política que respeita os direitos humanos. E quem não entender isso, eu falo inclusive das autoridades, tem que ser responsabilizado. Falar de direitos humanos não quer dizer que não tenhamos que usar a força do estado, que nós não tenhamos que ser mais duros. Mas essa dureza, essa força tem que ser usada para proteger as pessoas de populações mais vulneráveis.


Paulo Fábio Dantas Neto: Povo e sociedade civil - Prudência e vontades; voto e palavras de ordem

Permitam-me, essa semana, fazer pouca análise. Há momentos em que de tão abundantes, elas se tornam contraproducentes, em seu objetivo de criar uma base racional comum para a discussão política. Quero, como muitos de nós neste instante, fazer uma exortação. Parto da premissa de que a mensagem pode se dirigir tanto a governantes quanto a governados, sem minimizar a óbvia diferença de papeis de uns e outros. Numa república democrática, todos fazem escolhas políticas, embora sejam bem distintas suas aplicações.

Faz menos de dois meses que brasileiros e brasileiras foram às urnas e deixaram um claro recado. Valorizaram bom governo em suas cidades e a política da moderação. Puseram em segundo plano a retórica e as performances populistas, bem como a polarização ideológica.

O que fazer diante disso? Seguir o recado ou tentar modificá-lo? Ambas as opções são possíveis e têm sua legitimidade e sua justificação racional.  Seguir o recado das urnas tem como argumento o respeito a um senso comum, que deve orientar a conduta de qualquer democrata genuíno e dotado de bom senso. Tentar modificá-lo pode ter como argumento a razão fundada num dever ser alternativo a tudo isso que aí está a exigir mais contestação que moderação, e o objetivo, derivado dessa razão, de mobilizar a sociedade para essa luta.

Optar por um caminho ou outro depende, é claro, de circunstâncias. Mas não só. Existem diferentes modos de encarar a política que, uma vez adotados por uma pessoa, ou por uma organização, levam essa pessoa, ou organização, a tender para esse ou aquele caminho. Há quem deseje realizar suas ideias no mundo e, assim, encara a política como instrumento de uma causa projetada ao futuro, como alternativa abrangente aos males do presente. Há quem assume, como causa, a preservação do nosso mundo construído em comum, sendo a política uma atividade mais contida, capaz, porém, de aperfeiçoá-lo, de modo sustentável. Para os primeiros a palavra-chave é vontade. Para os segundos, prudência. O que não quer dizer que toda vontade política é imprudente nem que todo prudente abdica da vontade.

Para entender isso, distingamos o que são visões sobre a política (como instrumento de uma causa ou como ferramenta de melhoria), do que são atitudes políticas - modos, prudente ou voluntarista, de intervir politicamente, decidindo ou influindo sobre decisões. Assim, a visão política pode ser cheia de vontade, no sentido forte do progressismo e isso levar, de fato, a uma atitude voluntarista, mas é possível que um progressista adote uma atitude prudente, submetendo sua vontade a uma gradação, para mudar construindo. Já uma visão política de conteúdo prudencial pode assumir um sentido conservantista, até reacionário, o que constitui atitude política imprudente quando uma situação clama por mudanças. E pode ser prudencial no sentido moderado, acolhendo a mudança sustentável, aquela que não destrói o edifício, caso em que se combinam visão e atitude prudentes.   

Imaginemos a diferença que faz a escolha entre essas duas atitudes (prudente e voluntarista) ser feita por quem governa e por quem faz oposição, não vindo ao caso aqui se cada um dos dois pode ser classificado como de direita, de esquerda ou de centro. É intuitivo esperar de quem governa uma atitude mais prudente e da oposição uma atitude mais animada pela vontade política. Mas é próprio da atividade e da vocação política, em ambos os campos, buscar o equilíbrio entre os dois impulsos. Pois nada muda, sempre que a vontade política da oposição é anulada. E nada funciona, sempre que a prudência falta no palácio.  O recado das urnas de 2020 foi exatamente no sentido desse equilíbrio. Oposição sim, polarização forte não, para que as coisas mudem sem pararem de funcionar.

Prometi pouca análise, logo, não discutirei aqui se as elites políticas (governo e oposições) estão atendendo ao recado das urnas ou tentando alterar o script. No caso do governo, porque é óbvio, no das oposições, porque é controverso e espicharia demais a conversa. Vou tratar é de outra grande diferença que há em a atitude prudencial ou voluntarista ser adotada, não por políticos, de governo ou oposição, mas por cidadãos comuns, que pertencem à classe dos governados, em seu papel bem mais limitado de influir sobre decisões políticas. Sendo ainda mais preciso, vou me referir ao caso da opção por uma das duas atitudes ser feita por cidadãos quase comuns, isto é, governados que não são apenas eleitores - como todos os demais governados são – mas que, além disso, possuem situação social, e/ou informação cultural, e/ou organização política que lhes permitem tomar parte da chamada sociedade civil. É a essas pessoas que a exortação se dirige. Antes dela, porém, vamos pensar em mais um aspecto do problema da decisão sobre qual das atitudes tomar.

É intuitivo, mais uma vez, que se espere mais prudência dos governantes do que dos governados, pelo fato óbvio de que na mão dos governantes é que estão os principais instrumentos de poder. O fato de que numa democracia esse poder é legitimado pelo voto e limitado por uma Constituição só aumenta essa expectativa quanto à atitude política de quem governa. Mas, ai da república democrática que se fiar apenas nessa expectativa racional! É preciso que instituições constranjam a vontade política e obriguem os políticos a serem prudentes, do ponto de vista das atitudes. A vontade dos governos precisa ser sempre contida para que as de todos os governados sejam respeitadas. E a vontade das oposições também limitadas pela lei, para que a vontade da maioria seja cumprida. 

Por fim, é intuitivo também que o mundo dos governados seja a residência das vontades saídas do livre pensar e do agir sem a responsabilidade de governar. E é bom que assim seja. Por ter sido delegado poder a representantes, a cidadania consiste em lembrá-los sempre desse laço original da representação, para que representantes não se sintam donos do poder político, não natural nem hereditário, mas criatura histórica da República. A mobilização de vontades, no eleitorado comum ou na sociedade civil (relembro aqui a distinção, que devo ao professor Cícero Araújo), não é alvo dos mesmos freios institucionais. Sua liberdade é regrada também, mas aí as regras são para assegurar seu exercício, não para limitá-lo.  O que limita é outra coisa, chamada pluralidade social, aliada a pluralismo político, que todos são obrigados a respeitar, para que nenhuma organização social ou visão de mundo possa legitimamente pretender o timbre de estatal, ou oficial.

De tudo isso resulta legítimo e mesmo vital que eleitores e sociedade civil se manifestem com ampla liberdade e de modos distintos daqueles, mais forçosamente moderados, que se deve impor a políticos e mais ainda aos que ocupam governos. A radicalidade das manifestações não pode variar segundo o desejo de quem representa e governa e sim de acordo com o grau de satisfação dos governados. Se satisfeitos, calam; contrariados, reclamam; indignados, gritam. Contudo, todos os cidadãos, sem exceção, precisam ter responsabilidade social e lei como limites, a segunda comparecendo para coagir, caso falte a primeira. Vale tanto para crimes ambientais de empresas, como para greves selvagens.

A responsabilidade social varia também de acordo com a capacidade, de quem se manifesta, de afetar a vida e a opinião dos demais e de influir sobre decisões políticas. Participantes da sociedade civil têm uma responsabilidade a mais do que o eleitor comum. Esse algo mais tem um significado político que não é institucional, mas é importante como contribuição ao fomento de uma atitude cívica prudencial ou voluntarista, na medida em que são, ou podem ser, formadores de opinião.  Não no sentido hierárquico, ultrapassado pela horizontalidade das redes, mas no de uma interação onde níveis de informação e experiências de organização podem ser trocados, em benefício maior de quem, a princípio, possua menos de ambas as coisas. Aqui começa, enfim, a prometida exortação.

Retorno ao recado das urnas, que é o meio primordial, senão o único, pelo qual o eleitor comum pode se manifestar. Penso ser animador que, em 2020, ele tenha valorizado a experiência política e administrativa, ao lado do equilíbrio e da moderação política. O desgoverno federal - que a pandemia escancarou - e a polarização extrema que grassava no país desde 2014, cobraram seus mais altos preços sobre o cotidiano dos cidadãos comuns, dentre eles os mais pobres, que são também pretos. Historicamente desprivilegiados no acesso a políticas financiadas pelo fundo público, distantes de redes de autoproteção social difusas na sociedade civil, são eles que morrem mais de Covid e são eles os que mais sofrem com as lacunas de ação resultantes do desvio de energias da política para embates ideológicos e guerras culturais.  É racional que queiram mudanças na saúde, no emprego e na segurança e que esse seja um querer pragmático, próprio de quem, prudentemente, quer preservar seu mundo comum, tão duramente sustentado por uma labuta cotidiana, em ambiente inóspito. E que sua indignação cívica mais genérica se oriente menos a conflitos institucionais e mais a temas como desigualdade social e racial.  

Sabemos que esse modo do mundo popular sentir a crise que atravessamos não coincide em muitos pontos com aquele que predomina na chamada sociedade civil. Mais uma vez nos pouparei de análise e me aterei ao explicitamente óbvio. No mundo da sociedade civil o que mais conta é o dever ser. Visões de mundo alternativas alimentadas por mentalidades progressistas, bastante inclinadas a ver política como vontade. Sentem os políticos e seu pragmatismo como adversários, ou melhor, concorrentes bem estabelecidos que não deixam os projetos alternativos vingarem. Gente empoderada que chegou antes e maneja os instrumentos que poderiam – imaginam - concretizá-los. Trata-se de conflito de interesses, mas a sociedade civil é também uma usina ideológica e, assim, nas universidades e em outras agências, vigoram teorias de que se trata só de bem comum.

Nesse terreno ativo e imaginativo, que se encontra a uma distância mediana e não a anos-luz dos centros de decisão, prospera, no momento, a ideia de que as 200 mil mortes que a incúria programada do governo provocou exigem a remoção imediata do chefe da organização criminosa. Acompanho sem ressalvas o diagnóstico, embora não essa conclusão política que dele vem sendo deduzida. Aqui não farei a discussão desse ponto porque não faltará oportunidade, uma vez que a palavra impeachment e o comando “Fora Bolsonaro” (ambos acompanhados do advérbio já) demorarão, pouco ou muito, na agenda do debate nacional.  O que quero enfatizar neste texto é o desencontro entre essa leitura política da conjuntura, que avança na sociedade civil e busca pressionar a sociedade política, e o recado moderado das urnas, ainda fresco, de menos de dois meses atrás.  Em si mesmo esse desencontro preocupa, ainda que seja possível e legítimo contra-argumentar que a posição do eleitorado pode mudar, seja pelo agravamento da crise, seja pelas luzes de uma sociedade mobilizada. Preocupa porque a experiência brasileira ensina que esse tipo de desencontro costuma dar em soluções autoritárias. É o tipo do jogo bruto, entre poderosos e desvalidos, no qual não se deve pagar para ver, muito menos blefar.

Friso (não devia ser preciso, mas é) que simpatizo muito com a ideia de impedir Bolsonaro de prosseguir destruindo e matando. Mas se ele me responder “e daí?”, não sei como poderia treplicar sem ser bravata. Ainda assim não me fecho à possibilidade de que o aceno, hoje inconsequente, possa vir a ser consequente amanhã. Mas aqui se trata de exortar, não de especular e a minha exortação é para que não se queime as pontes entre a vontade política que esquenta seus motores e o recado prudencial que recebemos das urnas. Que venham carreatas, mas não em detrimento da energia pacificadora que precisa ser prioritariamente carreada para a decisiva eleição, daqui a pouco mais de uma semana, da Mesa da Câmara dos Deputados, palco aliás de um virtual início de processo de impeachment. Quem disser que é briga de branco ou, mais educadamente, trabalho para a política “tradicional” e não para cidadãos ativos, está cego à alma participativa da democracia brasileira pós 88, comprovada em vários episódios cruciais. E quem candidamente disser que não há risco de uma coisa empatar a outra, pois, ao contrário, a campanha pelo impeachment só pode ajudar a vitória da frente democrática na Câmara, respondo com um “depende”.  A justificativa dessa resposta é o arremate da exortação.

Carreatas estão programadas para esse final de semana. Se forem grandes e unitárias, na composição e no sentido das mensagens deixadas no trajeto, podem mesmo ajudar, de algum modo. Se forem pequenas, apenas deixarão de ajudar, mas não farão mal. Mas há uma hipótese em que podem atrapalhar não apenas ajudando a encalhar a baleia no seco como armando nuvens no horizonte que as eleições de 2020 começaram a desanuviar.

Manifestações por impeachment atrapalharão se essa palavra der lugar a gestos políticos paralelos ou concorrentes, manifestações da “esquerda” e da “direita”, tal como cogitado na imprensa. Implicará em que o restante das palavras proferidas, bem como as intenções comunicadas pelos gestos permaneçam opostas. Os discursos sobre o presente são ambos ácidos, mas não se entendem sequer sobre o passado, recente ou remoto, muito menos sobre o futuro. Os dois campos ideológicos exibirão suas feridas. Mas irão à rua como água e óleo, como se estivessem medindo forças para um confronto entre si, daqui a pouco.

Que País resultará disso senão o da reiteração da tragédia que vivemos hoje? País ao molde de estádios de futebol que só se pode frequentar conferindo a cor da camisa de quem se senta ao lado. Mundos demarcados por paralelas, sem ângulos, vértices, intersecções. Cada qual procura sua turma e grita, não importa se o grito lhe une ou lhe separa do irmão, do filho, do vizinho, do colega de trabalho, do conterrâneo, do concidadão. Do outro enfim, sem o qual você não pode viver.

Vacina, emprego, liberdade, sossego. Essas palavras criam pontes e derrubam muros. É preciso elegê-las, priorizá-las, ao nos comunicar, responsavelmente, com o público mais amplo, seja usando um microfone, apertando uma tecla ou participando de uma carreata. São palavras mais eficazes que o “Fora Bolsonaro” para nos livrar do desgoverno. Com a vantagem de que não só nos libertam, mas constroem algo bom para o lugar da tragédia.

*Cientista político e professor da UFBa.


Ferreira Gullar: Entendo o povão, mas é difícil explicar a atitude dos intelectuais de esquerda.

Cada dia que passa me convenço mais de que, sobretudo quando se trata de política, as pessoas, em geral, têm dificuldade de aceitar a realidade se ela contraria suas convicções.

Recentemente, durante um almoço, ouvi, perplexo, afirmações destituídas de qualquer vínculo efetivo com a realidade dos fatos. Minha perplexidade foi crescendo tanto que, após tentar mostrar o despropósito do que afirmavam, fingi que necessitava ir ao banheiro e não voltei mais ao tal papo furado.

Não resta dúvida de que, até certo ponto, essa dificuldade de aceitar a realidade decorre do momento que estamos vivendo, tanto no Brasil como no mundo em geral.

Tem-se a impressão de que atravessamos um período de mudanças radicais quando os valores, sejam ideológicos, econômicos ou éticos, entram em crise.

Isso parece ter a ver tanto com as utopias quanto com a implantação de novos meios de comunicação. Estes tornaram o mundo menor ou, dizendo de outro modo, é como se todos os povos, nos diversos pontos do planeta, vivessem uma mesma atualidade. Sabemos, a todo instante, de tudo o que ocorre em qualquer região, em qualquer país, em qualquer cidade do planeta.

No caso de nós, brasileiros, acresce o fato de que chegamos ao fim de uma fase que culminou no afastamento da presidente da República e na implantação de um governo interino, agora permanente. Acresce o fato de que o governo que findou era a expressão de um regime populista, caracterizado por um ideologismo demagógico, apoiado no setor pobre e carente da população. Na verdade, versão primária de um regime dito de esquerda em aliança com o capitalismo corrupto, que ele fingia combater.

Pois bem: que o povão desinformado se deixe levar pelas benesses recebidas é compreensível. Difícil de explicar, porém, é a atitude de intelectuais de esquerda que aceitam a burla como verdade.

E era isso que transparecia na tal conversa do encontro a que me referi no começo desta crônica. Uma das pessoas presentes, dizendo-se contra Dilma Rousseff, tampouco admitia o governo Michel Temer. Quando a lembrei que o governo de Temer tinha apenas um mês de existência e que herdara do anterior uma situação crítica com mais de 11 milhões de desempregados, ela respondeu: "Na cidadezinha onde moro não há desemprego. Duvido muito desses números".

Lembrei-a que aqueles eram dados do IBGE, divulgados havia três meses, quando ainda era Dilma quem presidia o país, ela respondeu: "E o IBGE não podia estar infiltrado por adversários do governo?"

É que essa senhora se diz de esquerda e, embora não possa negar o estado crítico a que o PT conduziu o país, usa de argumentos infundados para colocar em dúvida o fracasso petista. Já observaram que os que defendem esse populismo nunca tocam nos escândalos revelados pela Lava Jato, no assalto à Petrobras, nas propinas dadas a funcionários e políticos inclusive do PT? É que têm dificuldade de aceitar a realidade dos fatos e admitir que estão errados. E se alguém faz referência a tais escândalos, gritam: "Mas isso é mentira!" Ou seja, para quem não suporta a realidade, só é verdade o que lhe convém.

Saí dessa roda e fui me sentar com outro grupo, que falava de futebol, particularmente do Vasco, meu time do coração, que anda mal das pernas, pois acabara de ser desclassificado, ainda na primeira rodada da Copa do Brasil. Mas eis que chega um velho companheiro, simpatizante do PC do B, do finado PCB e muda o assunto da conversa, de futebol para a polícia. Foi então que um dos presentes afirmou que o comunismo já acabara, uma vez que a própria China era hoje a segunda maior potência capitalista do mundo.

– Isso não, contestou o velho comuna. O comunismo está mais vivo do que nunca. A China encarna a nova forma que o regime socialista ganhou.

– Sim –brinquei eu–, é o comunismo capitalista! Todos riram, menos o autor daquela tese surrealista.

Ferreira Gullar é cronista, crítico de arte e poeta.


Fonte: http://folha.com/no1829768