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RPD || Henrique Brandão: Uma noite de autógrafo sem autor e livro

Jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista, dramaturgo, autor de Poema Sujo, sua obra-prima. Assim era Ferreira Gullar que, se vivo fosse, teria completado 90 anos no último mês de setembro

Quem é quem na foto - Rio de Janeiro, livraria Rubayat, 1976.  De pé, da esquerda para a direita: Cacá Diegues, retrato de Ferreira Gullar, Zuenir Ventura, Tereza Aragão (mulher de Gullar), Oswaldo Loureiro, Leon Hirszman, Bete Mendes, Mary Ventura, Arnaldo Jabor, Neném Werneck de Castro, Moacir Werneck de Castro, Mario Cunha, Helena Furtado, João Saldanha, Teresa Cesário Alvim, Neusa Amaral. Sentados: Mario da Silva Brito, Mario Lago, Sergio Augusto, Antonio Pitanga, Ziraldo, Darwin Brandão e Guguta Brandão

No mês de setembro deste ano, o poeta Ferreira Gullar completaria 90 anos. Não conseguiu receber as devidas homenagens. Faleceu em dezembro de 2016, dois meses depois de completar 86 anos.

José Ribamar Ferreira, seu nome de batismo, era um homem de hábitos simples. Sua figura, no entanto, chamava atenção. Magro, com a cabeleira escorrida ao longo do rosto, o nariz adunco e as mãos expressivas – que gesticulavam sem parar enquanto falava – não passava despercebido onde quer que estivesse.

Gullar era muitos. Além de poeta, foi jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista, dramaturgo.

Participou ativamente do Concretismo e do Neoconcretismo, movimentos importantes no cenário da cultura brasileira, nos anos 1950.

Gullar entrou tarde na política. Já rompido com o Neoconcretismo, participava do Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), quando ocorreu o golpe de 1964. “Eu me filiei ao PCB no dia do golpe de 64. Eu queria participar da resistência a um regime que se impunha ao país pela força”. Após o fechamento da UNE, Gullar e seus companheiros do CPC fundaram o grupo Opinião, que teve grande repercussão com suas peças e shows musicais.

Após o AI-5, em 1968, o regime militar apertou o cerco. Sobrou para todo mundo que se opunha à ditadura, até mesmo para os comunistas ligados ao PCB, que não defendiam a luta armada. A essa altura, Gullar fazia parte do Comitê Cultural do PCB.

Quem avisou que a barra tinha pesado foi Leandro Konder, também membro do Comitê Cultural, com a notícia de que um companheiro havia caído e, sob tortura, entregara todo mundo. Gullar deveria se esconder, pois estava na mira da repressão.

Depois de um tempo escondido, não restou alternativa a não ser o exilio. Clandestino, Gullar seguiu para a União Soviética e, de lá, para o Chile; depois para o Peru e, por fim, para a Argentina. Triste sina: a cada país que chegava, as condições políticas, passado algum tempo, pioravam. A direita ganhava corpo na América Latina.

A Argentina era então presidida por Isabelita Perón, que, pressionada pelos Montoneros à esquerda, preferiu se aliar ao peronismo de direita. O clima se radicalizava. Com o passaporte cancelado pelo consulado brasileiro e com todo o Cone Sul sob ditaduras – além do grave quadro de esquizofrenia de seu filho no Brasil –, a angústia e o desespero tomaram conta do poeta. Gullar achou que era hora de, segundo suas palavras, “expressar num poema tudo o que ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais – o poema final”.

Assim nasceu o Poema Sujo, sua obra-prima. Gullar trabalhou nele de forma visceral, de março a setembro de 1975. “Nada me fez interromper o poema. Estava entregue a ele todas as horas do dia e da noite”, registrou em Rabo de Foguete, seu livro de memórias do exílio.

Na época, Vinícius de Moraes fazia muito sucesso em Buenos Aires. Em uma das ocasiões em que esteve por lá, na casa de Augusto Boal, também exilado, Gullar leu o poema para Vinícius. “Esse poema é uma coisa muito séria. Quero levar para o Brasil e mostrar para o pessoal. Não há tempo a perder”, disse o poetinha. E assim nasceu a famosa fita, que veio na bagagem de Vinícius e, no Brasil, foi reproduzida entre os amigos.

As reuniões para ouvir o Poema Sujo se multiplicaram. O poema circulava em audiências domésticas, enquanto seu autor permanecia na Argentina, onde a situação política se deteriorava.

Foi então que um grupo de amigos resolveu fazer uma noite de lançamento do poema, sem a presença do autor e sem livro. Seria um ato político, a fim de ajudar na operação de trazer Gullar de volta ao Brasil. Em um mundo distante das redes sociais, a mobilização era feita por telefone ou no boca a boca, nas mesas de bar. Diante das circunstâncias, acabou virando um feito relevante. Várias pessoas compareceram para demonstrar solidariedade e manifestar repúdio ao regime militar.

Dessa noite de autógrafos, sem livro e sem autor, restou a fotografia feita ao fim do evento, que dá a dimensão daquele momento histórico. A trajetória política dos que aparecem na imagem ganhou rumos diferentes, após a derrocada da ditadura. Muitos, inclusive, já morreram. Mas, naquele momento, importava marcar posição contra o regime militar. De um lado, armas e repressão; de outro, um livro de poesia que ainda não existia e cujo poeta estava exilado.

A mensagem não podia ser mais clara.
*Jornalista e escritor


Ferreira Gullar: A luta poética

Documentário - Ferreira Gullar, nasceu em 1930, em São Luís, Maranhão. Criado na periferia operária da cidade, Gullar trabalhou como radialista, até vir para o Rio de Janeiro, em 1951. Mas já trazia na bagagem o esboço do livro A luta corporal. Jornalista, dramaturgo, crítico de arte, Ferreira Gullar foi um militante das causas sociais e políticas. Faleceu em 04 de dezembro de 2016, aos 86 anos, no Rio de Janeiro.


Marcus Vinícius: O Homem ainda está na cidade

Ferreira Gullar, no grandioso Poema Sujo, pensando sobre as várias velocidades e tempos pelos quais as existências se desenrolam afirmou que “variados são os modos como uma coisa está em outra.”. Hoje, Gullar não está mais na cidade, não caminha mais pelas quitandas, nem observa as bananas que apodrecem como a própria vida. Todavia, Gullar permanece em nós, uma voz firme como um relâmpago capaz de gerar os espantos necessários à criação.

No escuro desses tempos difíceis, a voz de Gullar continua ressoando como um alerta contra as simplificações e os dogmatismos. Sua última crônica, publicada hoje na Folha de São Paulo o demonstra, revelando o homem que aprendeu, a partir dos traumas e das derrotas, a falência da revolução e do socialismo, mas que manteve, inabalável, a perspectiva da construção de uma sociedade mais igualitária e justa.

Sua trajetória, a qual acompanhei durante alguns anos como objeto de pesquisa, acompanha as grandes transformações e angústias do século XX e início do XXI. Em todos os momentos, Gullar esteve disposto a se lançar ao debate público, seja com sua poesia ou suas intervenções políticas.

Nos anos 1950, recém chegado ao Rio, se engaja nas vanguardas artísticas, fazendo parte dos movimentos concretista e neoconcretista. Na breve e profunda mudança para Brasília no início dos anos 1960 percebe que as vanguardas o levaram ao silêncio e no contato com os trabalhadores candangos preenche o silêncio com a política. Assume a presidência do CPC e, no dia do golpe de 1964, filia-se ao Partidão.

Sempre contrário a via armada para a derrubada do regime militar, Gullar se contrapôs aos militares no terreno em que eram mais fracos, a política. Apesar disso, terminou clandestino e exilado no início dos anos 1970.

No exílio, experimenta o autoritarismo dos comunistas da URSS e dos militares chilenos e argentinos. Na busca pela sobrevivência, imerso em sua própria trajetória, compõe em Buenos Aires sua maior obra, o Poema Sujo. O poema emociona a todos e chega ao Brasil como uma ausência, em uma fita cassete com a voz do poeta, que retorna somente alguns anos mais tarde.

No contato com o autoritarismo e a derrota de Allende, Gullar percebe os problemas da esquerda revolucionária e afirma não estar mais disposto a conciliar com os radicalismos tolos. Nos anos 1980, em um poema em homenagem aos 60 anos do PCB, acerta as contas com a cultura política pecebista, mantendo em si aquilo de mais essencial, a vontade de justiça e a necessidade da política.

Mesmo fora da política partidária, Gullar nunca abandona a política. Prossegue intervindo no debate político nacional, apontando desde o início os problemas do petismo e mantendo-se firma na defesa da democracia e do espírito republicano, pensando a necessidade da transformações da sociedade brasileira a partir de uma chave reformista.

Assim, o que fica em nós de Gullar, além, é claro, da sensibilidade incrível de sua poesia, que certamente será ressaltada por muitos, a figura de um homem que sempre combateu pela igualdade, por aquela vida banal que descreveu milimetricamente em seus versos.

Em muitos poemas, Gullar abordou a morte e suas relações com o tempo dos vivos. Escrevendo sobre a morte de Clarice Lispector, Gullar observou as pedras e pensou que existiam independentes e exteriores à morte da amiga. Todavia, feitos de carne, continuamos a existir, numa tarde de dezembro, carregando os maxilares de nossos mortos, como naquela poema de Drummond que Gullar sempre citava. O corpo de José Ribamar Ferreira morreu, Ferreira Gullar certamente está presente.

* Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é Historiador, mestre em História na Unesp/Franca e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História e Cultura


Poeta Ferreira Gullar morre de pneumonia aos 86 anos no Rio

O escritor, poeta e teatrólogo Ferreira Gullar morreu na manhã deste domingo, 4, no Rio de Janeiro, aos 86 anos. Gullar estava internado no Hospital Copa D'Or, na Zona Sul do Rio com um quadro de insuficiência respiratória e pneumonia, apontada como a causa da morte. Ainda não há informações sobre o velório.

Um dos mais importantes literatos da história da literatura brasileira, Ferreira Gullar passeou por vários campos da expressão poética, literária e crítica, quase sempre com um forte tom político. Avesso a rotulações binárias, usualmente se colocava no sentido contrário ao do poder em questão.

Seu primeiro livro, depois renegeado pelo autor, foi Um Pouco Acima do Chão, em uma edição de autor em 1949. Cinco anos depois, veio A Luta Corporal, este já com os primeiros esboços da poesia esteticamente ambiciosa em que ele trabalharia incansavelmente até Em Alguma Parte Alguma e Bananas Podres, dois de seus livros mais recentes.

Ele estava com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos na Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, considerada o marco inicial do movimento concretista, expressão poética fundamental do século 20. Porém a contribuição foi breve: em fevereiro do ano seguinte, Gullar publicou um artigo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil questionando as teses do movimento, e o rompimento viria em seguida.

A disputa entre "concretos" e "neoconcretos" sempre ocupou um campo mais ou menos nebuloso entre a intelectualidade, mas os ecos, que influenciaram muitas das expressões artísticas nacionais desde os anos 1960, chegaram até 2015, quando Augusto de Campos e Ferreira Gullar trocaram cartas agressivas pelo jornal Folha de S. Paulo.

Em 1976, ele lançou seu trabalho mais célebre, o Poema Sujo -- cem páginas de poesia na sua mais alta expressividade política. Símbolo de resistência à ditadura, o poema chegou aos brasileiros primeiro por uma fita que pertencia a Vinicius de Moraes, trazida de Buenos Aires, onde Gullar estava exilado.

Colecionador de prêmios, Gullar venceu o Machado de Assis da Biblioteca Nacional em 2005, e o Camões, o mais importante da língua portuguesa do mundo, em 2010. Era membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2014 -- depois de anos dizendo que esta honraria ele não aceitaria.

Ele nasceu em São Luís (MA), em 10 de setembro de 1930, como José Ribamar Ferreira. Gullar deixa a esposa, dois filhos e oito netos.


Fonte: cultura.estadao.com.br/noticias/geral,morre-ferreira-gullar-aos-86-anos,10000092453