pinochet

Clóvis Rossi: Chile, o que sobrou foi só o banho de sangue

Democracia, não a ditadura, deu estabilidade ao Chile

Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro, festeja o fato de o ditador Augusto Pinochet ter lavado com sangue as ruas de Santiago (o que é verdade), mas ter promovido o sucesso econômico que perdura até hoje.

Sou obrigado a republicar aqui texto que saiu em dezembro para demonstrar, com estatísticas, que quem fez do Chile o que é foi a democracia, não a ditadura.

Antes, é sempre preciso deixar claro que, do meu ponto de vista, ditaduras são sempre nefastas, façam o que fizerem, tenham algum sucesso econômico ou sejam um miserável fracasso como é o caso da Venezuela.

Não vale, pois, dizer que Pinochet matou, torturou, exilou, fez desaparecer milhares de pessoas, mas arrumou a economia. Bobagem.

Aos números comparativos que importam:

1 - Crescimento econômico - De 1973, ano do golpe que entronizou Pinochet, a 1988, ano do plebiscito que vetou sua continuidade, o Chile teve um crescimento interessante, de 54,7%.

Mas, na democracia, a partir de 1990 e por um período equivalente, o crescimento foi mais do que o dobro (exatos 110%).

Consequência inevitável: a renda per capita chilena em 1990, na volta à democracia, era igual à do Brasil. Quinze anos, passou a ser 60% maior.

Logo, democracia, 1 x Pinochet, 0.

2 - Desemprego - Depois de um pico de 25% da população economicamente ativa, o desemprego na ditadura girou em torno de 18%, o triplo do que ocorria nos anos 1960.

O desemprego só voltou a patamares mais civilizados com a democracia. Terminou 2018 com 7,3%, menos da metade, portanto, dos trágicos índices do período Pinochet.

Logo, democracia, 2 x Pinochet, 0

3 - Pobreza e desigualdade - Nos anos finais da ditadura, a pobreza afetava quase a metade da população chilena. Com a democracia e o investimento público redirecionado para a área social, foi se reduzindo paulatinamente.

Em 2017, afetava 8,6% da população, um dos registros mais baixos da América Latina.

Já a desigualdade continua a ser uma chaga aberta na sociedade chilena, mas, de todo modo, se reduziu com a democracia. Quando medida pelo coeficiente de Gini (quanto mais perto de 1, maior a desigualdade), passou de 0,46 ao se instalar a ditadura, em 1973, para 0,57 quando a democracia chegou, em 1990.

Só em 2015, voltou aos níveis vigentes antes do golpe (estava então em 0,48).

Logo, democracia, 3 x Pinochet, 0.

4 - Política - Se a ditadura tivesse sido de fato o sucesso em que acreditam Lorenzoni e os Bolsonaros, Pinochet não teria perdido o plebiscito de 1988 sobre sua continuidade ou não. Tinha tudo na mão: absoluto controle dos meios de comunicação, partidos proscritos, opositores perseguidos, mortos, presos ou exilados.

Não obstante, 54,71% dos chilenos preferiram vetar o ditador. No ano seguinte, na eleição presidencial determinada pelo resultado do plebiscito, nova derrota do pinochetismo: ganhou o oposicionista Patricio Aylwin.

Mais: nas três eleições presidenciais seguintes, três novas vitórias dos oposicionistas, com Eduardo Frei (democrata cristão), Ricardo Lagos e Michelle Bachelet (socialistas).

Foi preciso esperar até 2010 para que assumisse um presidente conservador, no caso Sebastián Piñera. Com um detalhe relevante: ele votara pelo não à permanência de Pinochet no plebiscito de 1988.

Só neste quesito, portanto, dá democracia, 5 x Pinochet, 0.

5 - Por fim, reforma da Previdência chilena, a que dá água na boca dos economistas liberais de Bolsonaro. De fato, a reforma feita pela ditadura ajudou a sanear as contas públicas, mas em contrapartida, arruinou as contas privadas (dos aposentados).

O jornal paranaense Gazeta do Povo citou em dezembro estudo da Fundación Sol de 2015 que mostra que quase 91% da população recebia valores inferiores a 150 mil pesos mensais (equivalentes hoje a R$ 851) em um país em que o salário mínimo chegava então a 276 mil pesos (R$ 1.565).

É tão falho o modelo admirado pelos Bolsonaros que até um governo conservador como o de Piñera está propondo modificá-lo, por meio de projeto em tramitação no Congresso.

Posto de outra forma: a tentação da equipe de Bolsonaro é copiar um modelo que está sendo alterado por um motivo bem simples, apontado pela consultoria Eurasia, que não parece fazer parte de alguma conspiração do marxismo cultural: “Amplo consenso sobre a necessidade de incrementar as pensões baixas em meio ao descontentamento do público sugere que a reforma será aprovada” (relatório divulgado em 17 de dezembro).

O que o governo está propondo é criar o que chama de “pilar de solidariedade” para aumentar os fundos para os mais pobres e mudar o sistema de contribuições individuais gerenciadas por entidades privadas.

Os empregadores teriam que contribuir com uma nova taxa (de 4% do salário de seus funcionários), além dos 10% já pagos atualmente. O custo da reforma, calcula a Eurasia, ficará em cerca de US$ 3,5 bilhões (R$ 13,5 bilhões).

Tudo somado, o que ficou foi só o banho de sangue.

*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.


Le Monde Diplomatique: Brasil, novo laboratório da extrema direita

O modelo neoliberal colocado em prática no Chile após o golpe militar de 1973 nos dá um panorama do que pode ocorrer no Brasil em um futuro governo de Jair Bolsonaro. E isso não é casual

Por Joana Salém e Rejane Hoelever

Ainda impactados pelos resultados eleitorais no Brasil, muitos se perguntam como a avalanche de votos na candidatura de Jair Bolsonaro e do general Hamilton Mourão (PSL) ocorreu e o que exatamente pode acontecer em um governo de extrema direita no país. Ainda estamos longe de ter as respostas, mas as conexões entre seu principal guru econômico, o empresário Paulo Guedes, e a ditadura de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990) nos trazem pistas valiosas sobre o modelo subjacente à sua plataforma.

Paulo Roberto Nunes Guedes, de 69 anos, era até há pouco quase desconhecido do público. Embora fosse colunista da revista Época e do Globoe fundador do Instituto Millenium, sua trajetória perfilada pela repórter Malu Gaspar mostrou que Guedes se manteve por décadas isolado do mainstream: rechaçou todos os planos econômicos e ministros da Fazenda que ocuparam a Esplanada nos últimos 35 anos, de José Sarney a Dilma Rousseff.1 Lendo alguns de seus artigos, fica claro o porquê. O economista demonstra aversão ao pacto social expresso na Constituição de 1988, que se interpõe como um obstáculo ao seu projeto político. Para ele, o Brasil sofre de uma “maldição dirigista”, que obstrui o “irreversível processo evolucionário […] rumo à Grande Sociedade Aberta” [sic].2

No Dia dos Trabalhadores de 2017, Guedes escreveu: “a direita hegemônica governou por duas décadas, e a esquerda hegemônica por três, ambas com um modelo econômico dirigista, desastroso”.3 Em sua mente, os trinta anos de democracia brasileira, com Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma, fazem parte da mesma “hegemonia de esquerda”. Diante de tal tábula rasa, não é difícil depreender suas preferências políticas. Se o sistema de direitos sociais garantidos na Constituição de 1988 chegou até o presente, pelo menos no papel, Guedes faz parte do grupo que pretende exterminá-lo, surfando na onda autoritária de Bolsonaro. Isso significa radicalizar a destruição do pacto democrático. Mas como?

De Chicago para o Chile

Guedes doutorou-se em Economia na Universidade de Chicago em 1978, um centro da corrente austro-americana do neoliberalismo, onde figuras como Milton Friedman já eram proeminentes.4 Como lembra o próprio Friedman no livro Liberdade de escolha, eram tempos em que seus “apóstolos” estavam “pregando no deserto”. Forjada em Chicago, a visão econômica extremista de Guedes não encontrou representatividade suficiente no Brasil até agora. Mas o contrário ocorreu no Chile. Primeiro laboratório da “doutrina do choque”, como Naomi Klein5 designou o processo resultante da aliança Friedman-Pinochet, lá os correligionários de Guedes encontraram pares perfeitos para seu plano econômico após 11 de setembro de 1973: o militarismo e o fascismo chilenos prometiam ao mesmo tempo repressão e “inovação”.

Vem da ditadura de Pinochet a inspiração das recentes propostas de Guedes para previdência e educação, alicerçadas na ideia de um “Estado subsidiário”. Antitética em muitos aspectos à Constituição brasileira de 1988, a Constituição chilena de 1980 foi imposta pela ditadura e preservada até hoje. Ao contrário do Estado garantidor de direitos, o Estado subsidiário chileno é desresponsabilizado de promover bem-estar e convertido em fiador da expansão dos mercados, o que ocorre por meio de transferências volumosas de recursos públicos ao setor privado e de um perverso endividamento popular.

Em Chicago, Paulo Guedes doutorou-se com uma tese de 63 páginas datilografadas.6 Seu trabalho, segundo apurou a Folha de S.Paulo, “nunca foi publicado nem teve repercussão no Brasil”,7 o que teria gerado em Guedes um ressentimento com colegas mais destacados. Essa amargura tornou-se pública recentemente, quando ele chamou sua ex-aluna, a economista Elena Landau, de “medíocre”,8 alegando que havia sido reprovada em seu curso de mestrado na PUC-Rio. Elena Landau, nove anos mais jovem que Guedes, foi uma das mais importantes economistas das privatizações de FHC, quando coordenou a venda da Eletrobras nos anos 1990, pela Comissão Nacional de Desestatização. Com o histórico escolar em mãos, Landau desmentiu o antigo desafeto: “Paulo é que era um péssimo professor. Faltava às aulas, não corrigia exercícios”.9

Também desperta suspeitas a forma como o professor Paulo Guedes ingressou na Universidade do Chile, no início dos anos 1980, auge da ditadura, após uma larga onda repressiva que varreu intelectuais críticos. Como mostra Federico Fullgraf,10 as universidades foram vistas pela ditadura chilena como um dos principais “teatros de guerra”, um território a ser retomado do “inimigo marxista”. No lugar dos opositores, foram colocados professores alinhados com o pensamento único que se impôs manu militari no ambiente acadêmico chileno. Desde a década de 1950, Milton Friedman e seus consortes atraíram economistas chilenos para Chicago, buscando reinseri-los em postos acadêmicos nas principais universidades do país. Contudo, foi apenas com Pinochet que a experiência política dos Chicago Boys se consolidou. E Guedes se integrou a esse fluxo.

Junto com ele, o colega e empresário chileno de origem árabe Jorge Constantino Demetrio Selume Zaror, de 67 anos. Ao voltar de Chicago, onde conheceu Guedes, Selume também integrou a cátedra de Economia da Universidade do Chile, mas em poucos anos tornou-se diretor de Orçamento da ditadura Pinochet e dirigiu operações de privatização de empresas estatais, como a Chilectra e a Entel. Simultaneamente, construiu um império financeiro que incluía bancos e propriedades. Entre elas, a fazenda Rupanco, de 47 mil hectares, que havia sido entregue aos trabalhadores pela reforma agrária durante o governo de Salvador Allende, mas em 1979 foi apropriada pelos militares e transferida para a companhia El Cabildo S.A., que mais tarde passou para as mãos do clã de Jorge Selume.11 Segundo Fullgraf, “Selume é uma espécie de porta-voz oficioso do núcleo duro empresarial pinochetista”.12

Foi assim, ocupando o lugar de professores arbitrariamente expulsos de seus cargos pela ditadura, que Guedes abandonou seus empregos parciais na PUC-Rio, no IMPA e na FGV-Rio, recebendo, segundo ele próprio, um “irrecusável” salário de US$ 10 mil. Perguntado sobre seus vínculos com a ditadura chilena, entretanto, tergiversa: fala sobre suas supostas qualidades acadêmicas para ser contratado e menciona um episódio no qual sua sala teria sido inspecionada pela polícia política de Pinochet.13

Aposentadoria privatizada e choque de pobreza

Nos anos em que Guedes viveu no Chile, José Piñera, o mais poderoso Chicago Boy e irmão do atual presidente, Sebastián Piñera, colocava em prática a privatização completa da previdência, decretada pelo ditador Pinochet em 13 de novembro de 1980. Nesse sistema, formado hoje por um oligopólio de seis fundos privados de pensão (AFP), os assalariados são obrigados a entregar 10% do salário para especulação capitalista, sem contribuição patronal. Atualmente, após trinta anos de contribuição, 90% dos chilenos recebem aposentadorias que valem metade do salário mínimo do país, cerca de 154 mil pesos (R$ 821).14 Sintomaticamente, a privatização da previdência excluiu os militares.

Impulsionado por um discurso pró-capitalização que pautou as fracassadas tentativas de reforma da previdência de Michel Temer em 2017, o sistema AFP chileno representa o confisco da aposentadoria de mais de 10 milhões de trabalhadores. Hoje, cinco das seis AFPs existentes administram nada menos que 69,6% do PIB do país e 94,6% das contribuições previdenciárias, tendo acumulado em 2017 lucros de US$ 1,5 milhão por dia, segundo calculou a Fundación Sol.15

O sistema de arrecadação é individualista, não solidário, pois cada trabalhador depende exclusivamente de si mesmo para “incrementar” o valor de sua pensão. Para piorar, os pensionistas ficam suscetíveis à volatilidade do mercado, aprisionados a uma modelagem matemática blindada pelas próprias AFPs. Nos últimos anos, a crise da aposentadoria tem levado a dramáticos números de suicídio de idosos no Chile: quase mil em apenas cinco anos. Desde 2016, a indignação popular contra a previdência privada no Chile ganhou as ruas em gigantescas manifestações, com o movimento #No+AFP.

No Brasil, o projeto que aprofundaria a deterioração da previdência pública foi rechaçado pela população em 2017. Mas a resistência popular foi apenas um dos fatores que obstruiu sua aprovação no governo Temer, que se viu emaranhado com as custosas dinâmicas de chantagens de um sistema partidário corrupto. Não é demais lembrar que o próprio Paulo Guedes é investigado na Operação Greenfield da Polícia Federal, sob suspeita de gestão fraudulenta de sete fundos de pensão, que lhe teria rendido R$ 6 bilhões entre 2009 e 2013. Há indícios de lavagem de dinheiro com uso da empresa HSM Educacional S.A., por meio da qual o anunciado futuro ministro recebeu quantias milionárias por “palestras”.16

A cruzada privatista de Paulo Guedes encontra, de um lado, a resistência das ruas e, do outro, uma máquina emperrada da governabilidade, na qual todos querem participar do butim. Por isso, saudosista de Pinochet, a ele convém que seu “choque de capitalismo”17 se imponha com militarismo. E em benefício próprio.

Clãs neopinochetistas e big data

Em Santiago, o Instituto Millenium possui um irmão ideológico com muito mais influência sobre a política do seu país: o Instituto Libertad y Desarrollo (LyD), um aparelho privado, de caráter empresarial, fundado em 1990 no luxuoso bairro de Las Condes. Organizado por empresários e ministros do alto escalão da ditadura Pinochet, entre eles Hernán Buchi, Carlos F. Cáceres, Cristián Larroulet e Luis Larrain Arroyo, o instituto é reconhecido por sua habilidade de realizar portas giratórias, isto é, quando executivos de grandes corporações entram no governo e consolidam, por dentro do Estado, suas posições no mercado.18

Desse aparelho saíram dez quadros de alta relevância no atual governo de Sebastián Piñera, que recentemente declarou: “no [aspecto] econômico Bolsonaro aponta na direção certa”.19 Não é apenas a família Piñera que vê a onda bolsonarista com bons olhos. Seu concorrente de extrema direita nas eleições chilenas de 2017, José Antonio Kast, é quem mais tem investido na aliança. O empresário de origem alemã obteve 523.213 votos, alcançando o quarto lugar na última corrida presidencial. No dia 18 de outubro, Kast veio ao Rio de Janeiro para encontrar-se com Bolsonaro. Em sua conta do Facebook, publicou uma foto sorridente ao lado do capitão: “Hoje nos reunimos com Jair Messias Bolsonaro e lhe desejamos o maior êxito na eleição. Presenteamo-lo com a camisa do Chile, para que sigamos fortalecendo a relação entre ambos países e juntos construirmos uma aliança que derrote definitivamente a esquerda na América Latina”.20

Além da admiração por Pinochet, Kast e Bolsonaro compartilham uma política de clãs.21 O senador Felipe Kast, sobrinho de José Antonio Kast, concorreu às prévias dentro da coligação na qual triunfou Piñera e foi seu ministro do Planejamento no governo anterior. Na campanha das prévias, Felipe Kast contou com a colaboração especial de Jorge Selume, filho homônimo do empresário que estudou com Guedes, um psicólogo de 37 anos, recentemente nomeado secretário das Comunicações do governo de Piñera. No portfólio de Selume, o filho, há um diploma da Universidade Andrés Bello (que pertence à multinacional Laureate, dirigida por seu pai) e anos de trabalho para a Cambridge Analytica. Não menos importante é o fato de que o psicólogo Selume é dono da Artool, a maior empresa chilena de big data.

Se há indícios de que a campanha de Bolsonaro no Brasil pode ter sido agraciada – como foi a de Donald Trump nos Estados Unidos – com o roubo de milhões de dados pessoais de cidadãos nas redes sociais, entre elas o WhatsApp, e a difusão de fake news em escalas totalmente inéditas, a extrema direita chilena detém todas as ferramentas para reproduzir os mesmos métodos.

Portas giratórias da educação privada

O estreito círculo da extrema direita brasileira e chilena se fecha com o empresário Jorge Selume. Como dissemos, ele foi colega de Paulo Guedes em Chicago nos anos 1970. Nos anos 1980, construiu um império econômico graças à maior operação financeira realizada no Chile até então. Junto a Las Diez Mesquitas, um consórcio de empresários árabes, comprou o Banco Osorno e o vendeu ao Santander em 1985 por US$ 495 milhões.22 Na mesma época, ocupava a Diretoria de Orçamento do regime Pinochet.

Hoje fica cada vez mais claro que educação e cultura são fronteiras prioritárias para a expansão dos negócios neopinochetistas. O psicólogo Jorge Selume, por meio da Artool, criou uma poderosa máquina de comunicação e marketing político. Com ela, em 2016 alavancou a eleição de 46 prefeitos do partido Renovación Nacional com uso de técnicas da Cambridge Analytica. Além disso, entre os principais clientes da Artool estão o Banco de Chile e o Banco Santander, que juntos reúnem pelo menos metade da população com conta bancária no país.23

Enquanto isso, Jorge Selume, o pai, há algum tempo investe no ramo da educação e tornou-se um dos mais influentes executivos da multinacional Laureate, sob suspeitas de fraudes no sistema de acreditação da educação privada.24 No Brasil, a Laureate tem priorizado o ensino a distância. Não por coincidência, Guedes defende um “choque de inclusão digital no ensino básico”, Bolsonaro fala em ensino a distância para crianças e o nome de Stavros Xanthopoylos, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Educação a Distância, foi cotado para o Ministério da Educação de um futuro governo de extrema direita. Caso a pasta ainda exista.25

 O que nos aguarda?

Em sua primeira entrevista à imprensa internacional após a publicização de sua conexão com Bolsonaro, em novembro de 2017, Guedes afirmou: “Os últimos trinta anos foram um desastre – corrompemos a democracia e estagnamos a economia […]. Deveríamos ter feito o que os Chicago Boys defendiam”.

Questionado por associar-se a um conhecido defensor da ditadura militar brasileira, em meio a um evento organizado pelo banco Crédit Suisse em São Paulo, Paulo Guedes classificou esse tipo de pergunta como um “patrulhamento” e, ao mencionar suas longas conversas com Bolsonaro, repetiu um de seus bordões favoritos: “Quer saber se a ordem está conversando com o progresso?”.26

Não é muito difícil decifrar a mensagem por trás dessas linhas. A primeira vez que a América Latina viu uma união orgânica entre militares e Chicago Boys em um governo foi em 1973 no Chile, um capítulo da história mundial escrito com baldes de sangue. Aos brasileiros resta saber que situação essa perigosa associação ainda pode engendrar.

 

*Joana Salém faz doutorado em História Econômica na USP; Rejane Hoeleveré professora de Ciências Sociais da FGV Rio e faz doutorado em História na UFF.


Alberto Aggio: Chile, da revolução à democracia

Uma coluna de fumaça espessa e escura levantou-se na área central de Santiago do Chile na manhã de uma terça-feira, 11 de setembro de 1973. Era um estranho acontecimento. Não parecia um incêndio qualquer, mas algo mais grave e ameaçador, especialmente porque minutos antes foi possível ouvir o ruído dos caças da Força Aérea do Chile em voos rasantes sobre o centro da cidade, onde fica o Palácio La Moneda. O que ocorria não era fortuito.

O governo do socialista Salvador Allende chegava ao fim com seu suicídio no interior do palácio, que estava sendo bombardeado. O golpe militar e o regime autoritário que se instaurou em seguida alterariam profundamente a história contemporânea do Chile. Foi derrubado não apenas o governo da Unidade Popular (UP), que Allende encabeçava, mas suprimida a democracia em todos os aspectos da sociedade chilena.

O presidente deposto, que assumira o mandato em novembro de 1970, queria construir o socialismo por meio de mecanismos democráticos. Através de decretos do Executivo, Allende realizava estatizações e, em alguns momentos, procurou também fazer alianças no Parlamento com a Democracia Cristã (DC), um partido considerado de centro. Para ele e parte importante da esquerda de então, socialismo significava poder popular e estatização. Mas havia vertentes da esquerda que se opunham às vias institucionais. Fortemente influenciados pela Revolução Cubana, amplos setores da UP e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) procuraram acirrar as contradições. Queriam acelerar as mudanças, pressionando o governo. As bases sociais mobilizadas por esses setores buscavam resolver a chamada “questão do poder” para implantar mais rapidamente o socialismo.

As diferenças de estratégias e condutas no interior da esquerda afetavam o ambiente político, que cada vez mais se polarizava com a radicalização de ações da direita em oposição ao governo Allende. A falta de consenso dentro da esquerda fez com que a “via chilena ao socialismo” permanecesse apenas como um slogan, o que bloqueou a sua real transformação numa “via democrática ao socialismo”, inédita na história. Era notório que o governo buscava realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado, mas por meio dela pretendia implantar um socialismo equivalente ao que existia na União Soviética, na China ou em Cuba. A espiral crescente das contradições condenou a liderança de Allende como “disfuncional”, uma vez que o presidente nunca advogou a ruptura institucional, mas também não parecia ter completo controle do processo político. O resultado foi uma polarização catastrófica e o advento do golpe que colocou por terra o governo Allende.

Desfecho
Esse desfecho obviamente não estava estabelecido de antemão, mas acabou por comprovar que aquela proposta de revolução era impossível, ao menos no Chile da época. Salvador Allende e a UP concebiam a revolução e o socialismo a partir da cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana e mundial, com raízes marxistas, bolcheviques, maoístas e, mais tarde, guevaristas e castristas. Tais linhagens têm como referência a revolução como tomada de poder de Estado pela via armada, por insurreição ou guerrilhas. Essa cultura política revelou-se incapaz de enfrentar o ineditismo do processo, demonstrando que não estava amadurecido na esquerda chilena o significado e as implicações da adoção de uma via democrática ao socialismo. Por isso, o governo Allende não pode ser interpretado como o exemplo histórico da impossibilidade desta transição ao socialismo. A chamada “experiência chilena” apenas anunciou esta possibilidade, mas fracassou inapelavelmente.

Personificado no general Augusto Pinochet (1915-2006), a partir de 1973, o novo regime assumiu uma perspectiva fundacional — com a intenção de fundar um novo regime, e não de restaurar a democracia — e impôs ao país uma nova ordem econômica, social e política. Para isto, contou com um aparato repressivo que perseguiu, torturou e assassinou quem era considerado opositor. Em seus primeiros momentos, a ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP. Paradoxalmente, foi a partir de sua negação que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se agora de uma contrarrevolução: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não prazos. Em analogia ao “socialismo real” (da URSS e do Leste europeu), o que se estabeleceu no Chile foi uma espécie de “liberalismo real”: um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores.

O regime autoritário, que se estenderia até 1990, não foi um “parêntese” na história do Chile. Nesse período, a privatização de empresas, serviços de saúde e previdência, além da abertura comercial, do estímulo às exportações e da supressão do controle de preços redefiniram as estruturas da sociedade. O regime Pinochet transformou-se no show case dos neoliberais de todo o mundo. Até então, o neoliberalismo não havia sido implementado integralmente em nenhum país. O Chile foi, portanto, anterior à Inglaterra de Margareth Thatcher e aos Estados Unidos de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais individualista, consumista e despolitizada, ou seja, anulando traços distintivos da cultura política anterior. O reconhecimento dessa mudança profunda iria cobrar o seu preço no momento de superação do autoritarismo.

As tentativas de derrubar a ditadura por via armada fracassaram. As ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (las protestas) que eclodiram entre 1983 e 1986, pensadas como possível embrião de uma insurreição de massas, revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura.

Vitória do "No"
A surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No, que dizia “não” ao governo Pinochet, em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. O resultado do plebiscito foi de 56% dos votos válidos pelo “Não” contra 44% pelo “Sim”. Os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano seguinte. Mas Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição de 1980 acordadas entre os principais atores políticos legalizados. Nesse ponto, a submissão da transição democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou o que ficou conhecido como enclaves autoritarios: normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista que se propusesse a desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional da ditadura.

A derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988 converteu-se, portanto, numa vitória política estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas reformas superficiais na Constituição de 1980. A transição, contudo, seguiria em marcha. No início da década de 1990, os espaços políticos se democratizam e a disputa se concentra em dois polos: a Concertación, agregando os partidos de centro-esquerda — como o Partido Socialista e a DC — e a Alianza por Chile, articulando as forças de direita e neoliberais — como a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI).

Em relação às outras transições para a democracia no continente latino-americano, o Chile viveu dois aspectos peculiares: não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior e conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes à mesma coalizão política que havia derrotado a ditadura. A partir de 1990, governaram o Chile Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Os governos da Concertación conduziram com êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia chilena nesses anos, até a crise econômica mundial que abriu o século XXI, foi notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas públicas dos governos da Concertación tenham se revelado insuficientes.

A manutenção de boa parte dos enclaves autoritários, pelo menos até 2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático está consolidado, mas a presença de Pinochet no imaginário político chileno deixa a sensação de que a transição permanece inconclusa. A imagem que fica do Chile pós-Pinochet é a de uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito condicionada aos ditames do regime anterior, que só conseguiu produzir “governos de negociação” e, com eles, um “reformismo fraco”. Em 2010, o fim da sequência de governos da Concertación, com a eleição de Sebastián Piñera, da Alianza, representou uma preocupante involução.

Os 20 anos da Concertación não passaram em vão, mas deixaram muitos déficits nos planos político e social. Em meio a novos movimentos sociais de estudantes e indígenas e a um conjunto de insatisfações resultantes do excesso de privatizações realizadas durante a ditadura e do avanço de empresas capitalistas em terras indígenas, os chilenos vêm demonstrando nos últimos anos que procuram alternativas que possam resultar em reformas efetivas para uma vida melhor. Mas sabem também que essa é uma história aberta e bastante distinta daquilo que eles viveram 40 anos atrás.