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Pedro S. Malan: 2021, ano 2 da era Covid, ano 3 da era Bolsonaro

É difícil imaginar o que seriam mais quatro anos do mesmo a partir de 2023

É Eduardo Giannetti quem aponta a importância de distinguir as três modalidades fundamentais de catástrofes humanas. Duas são bem conhecidas: os desastres puramente naturais, como terremotos e tsunamis, e as calamidades que o ser humano impõe ao próprio ser humano, como guerras e ataques terroristas. A terceira categoria é feita dos eventos que resultam da ação humana, mas não da intenção humana. Este artigo se propõe a discutir uma vertente deste último tipo de catástrofe: os desastres provocados por consequências não intencionais de ações e omissões de governos, combinados com excesso de complacência e desinteresse pela coisa pública por parte expressiva da sociedade.

Nos EUA, o húbris de Donald Trump encontrou sua nêmesis em Joe Biden. A arrogância, imoderação, ganância e audácia excessiva de Trump perderam a eleição para Biden, que personifica o oposto simétrico dessas características: ausência de arrogância e ganância, moderação, audácia sem excessos. Mas Trump resta um fenômeno cuja compreensão justifica esforço detido. Seus quatro anos culminaram, em 6 de janeiro, com a inacreditável invasão do Congresso por uma turba por ele insuflada. Bolsonaro, também ele um fenômeno, perde agora seu ídolo e modelo político. Talvez tenha registrado o repúdio claro das instituições norte-americanas ao inédito desvario de Trump e seus fiéis, cujo comportamento mostra absoluta falta de espírito democrático e deixa clara a propensão ao autoritarismo. Que poderia funcionar, como já funcionou, em dezenas de países desprovidos de freios, filtros e contrapesos institucionais, e de uma mídia profissional independente, como há nos EUA. E como esperamos manter no Brasil, apesar de tudo.

Nos últimos três quartos de século o Brasil teve, antes de Bolsonaro, oito presidentes eleitos diretamente pelo voto popular: Dutra, Getúlio, Kubitschek e Jânio, antes do regime militar, e depois deste, Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Desses oito, quatro não concluíram o mandato para o qual haviam sido eleitos. O placar está em 4 x 4 e será em algum momento desempatado por Jair Bolsonaro. Dos presidentes mencionados, apenas três (JK, FHC e Lula) transmitiram o cargo a outro presidente também eleito diretamente pelo voto popular. Apenas um (Lula) não só recebeu, como passou o cargo a alguém também eleito (eleita, no caso) pelo voto popular.

Dores do processo de consolidação de uma jovem democracia, dirão. Mas essa instabilidade, e a própria eleição de Bolsonaro, tem raízes profundas, que cumpre identificar, quanto mais não seja para tentar evitar em 2022 a reedição da polarização que se viu em 2018, na qual tanto se empenham Bolsonaro e seus seguidores fiéis, incluindo a ativa e agressiva militância das redes sociais.

Repetidas vezes comento neste espaço as aspirações do eleitorado e da sociedade desta que é a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. São demandas por infraestrutura física e humana (saúde, educação) e, crescentemente, por combate à pobreza e à desigualdade de renda e de oportunidades. A capacidade do poder público de oferecer respostas a todas essas demandas é sempre insuficiente. Nesse espaço de frustração, populistas e demagogos apresentam suas promessas eleitorais, fadadas ao descumprimento.

Marcus André Mello refere-se ao “lado da oferta” desse descompasso: a medida em que a capacidade de atender às aspirações e expectativas é limitada por problema político-institucional fundamental. A saber, a combinação de presidencialismo forte, multipartidarismo fragmentado, federalismo robusto e partidos fracos, que dificulta sobremaneira ao Poder Executivo qualquer esforço voltado para a construção de base de sustentação parlamentar capaz de aprovar sua agenda. A tarefa já é momentosa quando o governo federal é capaz de se coordenar internamente para, então, dialogar com o Congresso. Quando nem isso consegue, acentua-se a incapacidade de dar respostas adequadas. Aqui estamos, e é difícil imaginar o que seriam mais quatro anos do mesmo, a partir de 2023.

Em seu belo artigo de final de ano, Desafios para 2021 e depois, na Folha de S.Paulo, Arminio Fraga externou um pingo de otimismo: “As deficiências são tantas que há um amplo espaço para melhorias. Um (outro) governo, com visão e capacidade de execução, poderia acelerar bastante o crescimento”. Tendo a concordar. Mas para tal seria necessário que o eleitorado brasileiro estivesse preparado em 2022 para, pelo voto, tornar aquele o último ano da era Bolsonaro.

Como fez o eleitorado norte-americano ao barrar o ano 5 da era Trump. Desfecho alcançado a duras penas, em larga medida pela desastrosa condução do combate à covid-19. Até então Trump estava em marcha batida para a conquista do segundo mandato. Havia razões para crer que lograria êxito: o bom desempenho da economia, seu inegável apelo político-eleitoral e, não menos importante, as divisões do campo adversário, até a tardia consolidação em torno de Biden. Para países obrigados a lidar com aqueles que têm Trump como modelo, há relevantes lições a extrair. Ainda há tempo – mas não muito.

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Quadriênios: Trump e Bolsonaro

É duro imaginar que possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil exibe ao mundo

Na campanha eleitoral de 2014, em discurso feito para a militância do PT, Lula afirmou que já se via “com Dilma, em 2022, nas comemorações dos 200 anos da nossa independência, defendendo tudo o que haviam conseguido conquistar nos últimos 20 anos”. Referi-me a essa fala de Lula na abertura do artigo publicado neste espaço há exatos seis anos, Quadriênios: velhos e novos. Apontei então que é perfeitamente legítimo qualquer pessoa expressar de público suas “memórias do futuro”, a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos.

Antes de chegar às eleições de 2022 haveria, no entanto, que vencer em 2018. Era óbvio que já não seria fácil explicar, então, as conquistas dos “últimos 16 anos” (2002-2018) como se fossem um período singular, um todo coerente, como havia feito a marquetagem política em 2014 a propósito dos “últimos 12 anos”. Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1, diferente de Lula 2; e (afirmei) Dilma 2 seria muito diferente de Dilma 1, “e o mais difícil dos quatro quadriênios”. Como escrevi à época, “quem viver verá, ou já está vendo”.

Quem viveu viu até mesmo as consequências – notadamente a vitória de Bolsonaro em 2018 e o início de outro problemático quadriênio. Volto ao tema de “quadriênios”, agora a propósito de Trump e Bolsonaro. Este último estará agora privado de sua fonte inspiradora e modelo de comportamento. O quadriênio de Trump terminou de facto na primeira semana de novembro, com as claras evidências da vitória de Biden.

Contudo parte expressiva dos 74 milhões de americanos que votaram em Trump acredita ter havido fraude eleitoral; que Trump fez bem em se recusar a reconhecer o resultado das urnas. “Frankly, we won” foi o tuíte com que se declarou vencedor na madrugada de 4 de novembro, quando ainda faltavam milhões de votos a contar, em vários Estados-chave. Advogados a seu serviço ajuizaram dezenas de ações nesses Estados, enquanto o candidato anunciava sua ida à Corte Suprema, com a qual disse “estar contando” para lhe dar um segundo quadriênio.

Foi e perdeu. No dia seguinte (9/12) chegava à Corte Suprema outra ação, ajuizada pelo procurador-geral do Texas contra vários Estados-chave que haviam certificado a vitória de Biden. Sua tese é de que a alteração, feita por esses Estados neste ano de 2020 de forma supostamente ilegal, teria diluído os votos do Texas no colégio eleitoral. É, talvez, a última tentativa judicial. Até o momento em que este texto está sendo escrito, Trump recusa-se a admitir a vitória de Biden. E os presidentes de Rússia, México e Brasil não cumprimentaram o presidente eleito dos EUA.

O fato é que em 20 de janeiro de 2021 termina o inacreditável quadriênio de Donald Trump. Quatro anos de “fatos alternativos”, de relação conflituosa com a verdade. Mas foram 74 milhões de votos, 10 milhões a mais que em 2016. “74 milhões” é o título do imperdível artigo de Moisés Naim publicado neste jornal (23/11). São 74 milhões, escreve Naim, que “não se importaram em votar em um presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que (…) não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou não se importam com isto, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.

Sobre o quadriênio Bolsonaro. Meu mais recente artigo neste espaço (Faltam dois anos, 8/11) perguntava: dois anos é muito? É pouco? Bolsonaro está a aprender a diferença entre disputar uma eleição e governar um país da complexidade do Brasil. Como notaram vários analistas, nosso presidente atuou sem partido e sem base no Congresso até abril/maio de 2020. Deu-se conta, então, de que a sobrevivência política e sua reeleição dependiam de aceitar o que sempre negara, como pedra de toque de sua campanha eleitoral: a necessidade de abrir espaços para indicações de partidos de sua futura “base” na máquina pública.

Marcus André Mello (O futuro de Bolsonaro, FSP, 7/12) chamou a atenção para o paradoxo: “Um chefe do Estado populista irá se deparar com um sistema institucional que imporá limites à sua discricionariedade. E o apoio do bloco só existirá se Bolsonaro for popular”. Política, afinal, é expectativa de poder, de preservação de espaços ocupados e de expectativas de espaços por ocupar. Como veremos nos próximos meses.

Naquele mesmo artigo chamei a atenção para as importantes lições das transições de 2002/2003 (FHC/Lula) e de 2016 (Dilma/Temer). Em excelente artigo publicado desde então (Um Acordo de Transição, Globo/Estado, 29/11), Gustavo Franco nota que “o Brasil possui vasta experiência em transições turbulentas (…) mas não dentro de um mesmo governo”. Gustavo lista razões a explicar a dificuldade para fazê-lo “no atual estado de polarização, quando o governo (…) não consegue fazer acordo nem com ele mesmo”.

E dizer que metade de seu quadriênio já se foi… Em áreas cruciais como saúde, educação, meio ambiente e relações exteriores, é duro imaginar que na segunda metade possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil hoje exibe ao mundo. E não é por falta de gente competente nessas áreas em nosso país.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Faltam dois anos

Cumpre trabalhar para que a moderação com visão de futuro prevaleça no Brasil pós-2022

Em política, como na guerra e, por vezes, na economia, dias podem valer semanas; semanas, meses; e meses, anos. Dois anos são prazo suficiente para pôr em marcha as medidas de que precisa o País para enfim conhecer crescimento razoável e sustentado e com isso atender às necessidades da população?

Muitos sustentam que é preciso aguardar a marcha dos acontecimentos: as eleições municipais iminentes ditarão os contornos das futuras coligações, partidárias ou não. Em dezembro e janeiro a atenção será consumida por eleições para as presidências da Câmara e do Senado, e então, de lideranças, mesas diretoras e presidência das principais comissões das duas Casas do Congresso. Aí já estaremos em março de 2021, abril talvez, caso o Executivo decida promover reforma ministerial para refletir o cenário resultante das urnas e com isso construir base de apoio mais sólida no Congresso. O restante de 2021 e o início de 2022 é quanto haveria para a gradual constituição de alianças e chapas com vista às eleições de outubro. E então, seis meses de intensa campanha.

É muito ou pouco tempo? Do ponto de vista político, pareceria prazo razoável fosse outra a situação econômica e social – menos incerta, tensa e volátil. Mas não é esse o caso. A complacência, essa característica tão nossa, é luxo a que não nos podemos dar. Em meu artigo mais recente (Corredor estreito, tempo curto) apontei a exiguidade do espaço de manobra na área econômica. Para muitos, a política ditará o ritmo em que se pode avançar. Como se, conhecidos os resultados das eleições de novembro no Brasil e nos EUA, 2020 estivesse, como ano político, encerrado. Seria diferente caso o Executivo fosse capaz de definir, em diálogo consistente com as lideranças e presidências da Câmara e do Senado, conteúdo e timing da agenda legislativa, pela qual se bateria então com determinação e articulação. No entanto, o chefe do Poder Executivo parece ter outras prioridades em mente, agora talvez acentuadas pelo resultado das eleições norte-americanas e pelo destino de seu modelo ideal de presidente da República.

Na área econômica, ocorre-me apontar possíveis lições das transições de 2002-03 e de 2016. Entre abril e outubro de 2002 o câmbio foi de 2,3 a 4 reais por dólar e o risco Brasil multiplicou-se por mais de quatro vezes. Era o resultado de preocupações de investidores internos e externos, ditadas por dúvidas quanto à condução que daria à economia o governo a ser eleito em outubro de 2002. A resposta, prática, veio por meio da escolha dos nomes que estariam à frente da condução da política econômica. Ganhou credibilidade concreta o compromisso, assumido durante a campanha, com o esforço fiscal necessário para estabilizar a relação dívida-PIB, preservar a inflação sob controle e respeitar contratos. Ao final de dezembro o câmbio havia passado para 3,5 e 3,3 ao final de março, e o Brasil foi em frente, ajudado por contexto internacional extraordinariamente favorável.

Também 2016 oferece lições úteis. O governo Temer teve início sob situação extraordinariamente adversa. O investimento havia começado a declinar no terceiro trimestre de 2013, a recessão começara em abril de 2014. 2016 seria o terceiro ano de déficit primário e a pressão estrutural por gastos públicos era crescente. Situações difíceis não são sinônimo, no entanto, de falta de opções. A primeira, na área econômica, envolvia – uma vez mais – escolher pessoas certas para posições-chave, que, por sua vez, pudessem atrair e reter outros profissionais competentes. Na área política, criar base de sustentação no Congresso e com isso definir agenda legislativa que atendesse a prioridades claras.

Os dois episódios encerram lição útil para a situação atual e para 2022 – que pode parecer muito distante, mas não está, dada a gravidade da situação nos três níveis de governo. Lição útil, caso queiramos evitar a reedição em 2022 da polarização que marcou as eleições de 2018; que ocorreria em circunstâncias ainda muito mais difíceis nas áreas econômica e social que as daquele momento.

São dois anos para construir apoios, com serenidade e humildade, mas também com o sentido de urgência que impõe a crise das finanças públicas. Para adotar medidas difíceis, em diálogo com o Congresso e com o Judiciário. Para explicar a ambos e à opinião pública não só por que é preciso enfrentar a situação atual, mas também como fazê-lo. Não apenas por necessidades fiscais, mas para que o País possa conhecer crescimento razoável e sustentado; para que o setor público possa prestar melhores serviços à população, especialmente em saúde e educação; por maior inclusão social e igualdade de oportunidades; para que seja possível investir mais e melhor em infraestrutura, ciência e tecnologia. Para aumentar a confiança de investidores domésticos e externos no Brasil e em seu futuro.

Ao que tudo indica, o resultado eleitoral da semana passada significa que o presidencialismo de confrontação foi derrotado nos Estados Unidos. Cumpre trabalhar para que a moderação com visão de futuro possa prevalecer também no Brasil pós-2022.

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: O segundo inverno do governo Bolsonaro

O presidencialismo de confrontação vem encontrando resistência crescente na sociedade

“The life so short, the craft so long to learn” - Geoffrey Chaucer

“A vida tão curta, o ofício tão longo de aprender”, poderia ser essa a tradução para nossa língua do belo inglês medieval com que Chaucer traduziu o conhecido e um tanto insípido original em latim: “Ars longa, vita brevis”.

Em junho do ano passado escrevi neste espaço texto que tinha por título O primeiro inverno do governo Bolsonaro. O artigo tratava da importância de estimular debates políticos “vigorosos e eficazes” (Rorty) e notava que isso exigiria a superação da excessiva polarização vigente e um gradual deslocamento para o centro, de forma que pudessem restar atenuadas as posições extremadas que marcavam o precário debate nas redes sociais. O texto comentava ainda que esse sonho teria de ser construído ao longo dos meses e anos seguintes, porque era difícil imaginar que pudéssemos seguir com o grau de polarização, surpresas e incertezas que marcaram os primeiros seis meses do governo.

E, no entanto, as incertezas, dubiedades e contradições, em lugar de arrefecer, só fizeram acentuar-se desde então. A polarização acerba que aquele texto apontava terá sido a marca dos primeiros 18 meses do governo Bolsonaro, que serão alcançados ao fim deste mês e correspondem a 40% do tempo de que dispõe até as eleições de outubro de 2022.

Ainda este ano o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos, e cerca de 57.800 vereadores. Essa disputa costuma dar-se em torno de agendas locais ou, no máximo, estaduais, à exceção de algumas grandes capitais. Caso queiramos tentar evitar, em outubro de 2022, uma reencenação da experiência de 2018, desde este ano de 2020 as coisas deveriam passar-se de forma diferente. Dois versos do famoso poema de Yeats The Second Coming (1939) vêm à mente: “The center does not hold/ things fall apart” (o centro não se sustenta, as coisas entram em colapso).

Há razões para acreditar que “as coisas” estão mudando, e podem continuar a mudar. O presidencialismo de confrontação permanente – com adversários que, embora legítimos, são vistos como inimigos a serem batidos, derrotados nas ruas, nas redes e, se necessário for, pelas armas – vem encontrando resistência. Resistência por parte dos outros Poderes, da mídia profissional e, crescentemente, por parte expressiva da sociedade. Daí a importância das eleições municipais deste ano. Seus resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2022.

Aplicam-se ao Brasil de hoje as palavras com que Barack Obama, em discurso recente, se referiu a seu país: “Por mais trágicas que as últimas semanas tenham sido, (…) elas também foram dias de oportunidades incríveis para que as pessoas acordem para algumas questões – e (…) para que trabalhemos juntos para enfrentá-las”. Obama referia-se à pandemia de covid-19 e ao racismo, que chamou “praga e pecado original da sociedade americana”. Ao final de seu discurso, realçou a importância do voto; ao tratar da discussão na internet sobre votar versus protestar, sobre participação política versus desobediência civil, apontou a necessidade de “ressaltar qual é o problema, fazer as pessoas que estão no poder desconfortáveis, mas também (de) traduzir isso em leis”. Lá, como aqui, nos três níveis de governo.

Gradualmente, insisto, a sociedade brasileira vem se expressando mais. Em poucos meses, com as eleições municipais, haverá ocasião especialmente relevante para fazê-lo. Será fundamental que a expressão – de vontade, de opinião – resulte de cuidadosa avaliação: sobre quem os partidos indicaram, sobre como conduziram suas campanhas, sobre as eventuais novas faces que terão surgido e se mostrado dispostas a de fato contribuir para mudar para melhor a vida das pessoas no âmbito de suas respectivas cidades, sobre quantos, enfim, terão demonstrado real conhecimento dos desafios a enfrentar – e não se limitado a expressar platitudes, chavões batidos e promessas fadadas ao descumprimento.

Volto à epígrafe deste artigo. A parte inicial da expressão medieval de Chaucer pouco se aplica a países, que só muito raramente têm a vida “tão curta”. Mas a palavra craft, quando precedida do vocábulo state, significa ofício de estadistas – statecraft. Este será sempre, para países, um ofício “longo de aprender”.

Países que não têm praticantes desse ofício e não estimulam seu surgimento tendem a ficar para trás com relação aos que os têm e que o fazem. Estes produzem – por meio do funcionamento da democracia, pelo voto – lideranças (o plural é importante). Que se caracterizam por respeito aos fatos, capacidade de coordenação, predisposição ao diálogo franco com pessoas e partidos de visões diferentes, incluídos aí adversários políticos, que podem discordar, mas também concordar em matérias de interesse geral – e não devem ser vistos, todos, como inimigos.

Statecraft, está claro, é o que não temos hoje em nosso país e, a julgar por estes primeiros 18 meses, não teremos nos 60% do tempo que resta até as eleições de outubro de 2022. O presidente – e seus fiéis seguidores – julgam que esses 60% constituem pouco tempo. Muitos outros discordam, legítima e pacificamente. Como é natural em democracias.

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Saltos no escuro

A superação desta crise – de saúde, econômica, social – exige engenho, arte e serenidade

“Com Jânio no poder, o Brasil dá um salto no escuro”, registrou premonitoriamente ao final de 1960 Carlos Castelo Branco, o mais influente jornalista político de sua geração, a propósito da eleição de Jânio Quadros. Como é sabido, o próprio Jânio deu o seu salto no escuro em agosto de 1961, ao que tudo indica, esperando voltar por demanda do povo e/ou das Forças Armadas. A História nunca se repete, mas por vezes rima, com frequência ensina e, de quando em vez, a muitos desatina.

A chegada do coronavírus, com sua exponencial velocidade de disseminação e as exigências que impôs à nossa limitada capacidade hospitalar, representa um tipo de salto no escuro com dor, sofrimento e angústia, especialmente para os mais vulneráveis, que são maioria. A ideologia negativista e o achismo multiplicam, também exponencialmente, custos humanos e sociais da crise, e tornam ainda mais assustador esse salto no escuro.

Pressão estrutural por gastos públicos foi o título comum a uma série de três artigos que publiquei neste espaço entre março e maio de 2017. Em meio a uma pandemia, o aumento expressivo de gastos e o endividamento público são inevitáveis para salvar vidas e mitigar os efeitos da parada súbita da oferta, da demanda e de suas consequências sobre pessoas e empresas. É também fundamental, embora menos consensual, evitar que se tomem agora decisões de gastos que assumam depois caráter permanente.

O Brasil será, apontei naqueles artigos, um “estudo de caso” de interesse e relevância globais pela rapidez de sua transição demográfica, tanto no crescimento populacional dos anos 1950 aos anos 1990 quanto na redução posterior nas últimas duas décadas. Nosso bônus demográfico está a se exaurir: a população em idade ativa cresce a uma taxa menor que a de crianças e idosos e vai se estabilizar na próxima década. Somos um país que corre sério risco de ficar velho antes de superar a armadilha da renda média. A urbanização (sem paralelo no mundo) que conheceu o Brasil gerou, por outro lado, demandas que exigiram e exigem de governos respostas em três grandes áreas: em infraestrutura física, em infraestrutura humana e, por fim, com especial força após a democratização, respostas com relação à pobreza e distribuição de renda e oportunidades.

O coronavírus, com suas consequências, acentuará a pressão estrutural por maiores gastos públicos nessas três grandes áreas. E o fará com uma força inédita em razão da forma como veio escancarar, como fraturas expostas, nossas enormes carências, pobreza e desigualdade. Na resposta a essas carências reside o risco de que governos extrapolem os limites de suas capacidades – de tributar, de bem gerir seus gastos, de se endividar, de reformar e de investir. O risco de que adotem cursos de ação que agravem os problemas e os transfiram, acentuados, para futuras gerações. É fundamental, ao longo daqui até 2022, que haja debate sério, baseado em evidências, sobre a composição de gasto público, nos três níveis de governo, e sobre sua eficácia operacional, o que exige avaliação rigorosa dos resultados de planos e programas, e não apenas de intenções e promessas.

Há escolhas particularmente difíceis a fazer. Como sabem todos os que tiveram alguma experiência na vida pública, nem tudo é possível, ou factível, porque desejável. Nunca será demais apontar, como fez recentemente o ministro Barroso (citando Holmes), que “políticas e programas se julgam por seus resultados, não por suas intenções”. Entre ambos, com frequência, “desce a sombra”, como disse um poeta, e por vezes “uma sombra ambulante”, como escreveu, sobre a vida, o dramaturgo maior.

A superação desta crise, que é a um só tempo de saúde pública, econômica, social e humana, exigirá serenidade, engenho e arte. Exigirá o exercício da política entendida como a arte de (tentar) tornar possível amanhã o que parece impossível hoje, ou, como gosta de vê-la Paulo Hartung, entendida como a “arte de pensar as mudanças e fazê-las efetivas”. Na difícil quadra em que nos encontramos, parece definição especialmente apropriada.

Em democracias, a frustração com promessas não cumpridas sempre pode ter solução por meio de eleições regulares, nas datas previstas. No período que media uma eleição e outra é comum surgir assimetria importante entre aspirações e a capacidade de materializá-las. Pensar as mudanças e, sobretudo, fazê-las acontecer no mundo real exigem esforço coletivo, capacidade de articulação, coordenação, convencimento, e busca das convergências possíveis. Só por meio de diálogo, compromissos e mediação entre inevitáveis conflitos de interesses será possível avançar. A última coisa que precisa o Brasil é de uma Presidência da República que, em vez de protagonista da solução, seja parte ativa do problema “quase” político-institucional do País.

“O homem sábio ajusta suas crenças às evidências”, escreveu David Hume. Os negacionistas, com dissonância cognitiva, reforçam ainda mais suas crenças diante de quaisquer evidências contrárias a elas. Isso inclui o risco de novos saltos no escuro, além daqueles que já demos. Até quando o faremos?

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC