Pedro S. Malan: Saltos no escuro

A superação desta crise – de saúde, econômica, social – exige engenho, arte e serenidade.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

A superação desta crise – de saúde, econômica, social – exige engenho, arte e serenidade

“Com Jânio no poder, o Brasil dá um salto no escuro”, registrou premonitoriamente ao final de 1960 Carlos Castelo Branco, o mais influente jornalista político de sua geração, a propósito da eleição de Jânio Quadros. Como é sabido, o próprio Jânio deu o seu salto no escuro em agosto de 1961, ao que tudo indica, esperando voltar por demanda do povo e/ou das Forças Armadas. A História nunca se repete, mas por vezes rima, com frequência ensina e, de quando em vez, a muitos desatina.

A chegada do coronavírus, com sua exponencial velocidade de disseminação e as exigências que impôs à nossa limitada capacidade hospitalar, representa um tipo de salto no escuro com dor, sofrimento e angústia, especialmente para os mais vulneráveis, que são maioria. A ideologia negativista e o achismo multiplicam, também exponencialmente, custos humanos e sociais da crise, e tornam ainda mais assustador esse salto no escuro.

Pressão estrutural por gastos públicos foi o título comum a uma série de três artigos que publiquei neste espaço entre março e maio de 2017. Em meio a uma pandemia, o aumento expressivo de gastos e o endividamento público são inevitáveis para salvar vidas e mitigar os efeitos da parada súbita da oferta, da demanda e de suas consequências sobre pessoas e empresas. É também fundamental, embora menos consensual, evitar que se tomem agora decisões de gastos que assumam depois caráter permanente.

O Brasil será, apontei naqueles artigos, um “estudo de caso” de interesse e relevância globais pela rapidez de sua transição demográfica, tanto no crescimento populacional dos anos 1950 aos anos 1990 quanto na redução posterior nas últimas duas décadas. Nosso bônus demográfico está a se exaurir: a população em idade ativa cresce a uma taxa menor que a de crianças e idosos e vai se estabilizar na próxima década. Somos um país que corre sério risco de ficar velho antes de superar a armadilha da renda média. A urbanização (sem paralelo no mundo) que conheceu o Brasil gerou, por outro lado, demandas que exigiram e exigem de governos respostas em três grandes áreas: em infraestrutura física, em infraestrutura humana e, por fim, com especial força após a democratização, respostas com relação à pobreza e distribuição de renda e oportunidades.

O coronavírus, com suas consequências, acentuará a pressão estrutural por maiores gastos públicos nessas três grandes áreas. E o fará com uma força inédita em razão da forma como veio escancarar, como fraturas expostas, nossas enormes carências, pobreza e desigualdade. Na resposta a essas carências reside o risco de que governos extrapolem os limites de suas capacidades – de tributar, de bem gerir seus gastos, de se endividar, de reformar e de investir. O risco de que adotem cursos de ação que agravem os problemas e os transfiram, acentuados, para futuras gerações. É fundamental, ao longo daqui até 2022, que haja debate sério, baseado em evidências, sobre a composição de gasto público, nos três níveis de governo, e sobre sua eficácia operacional, o que exige avaliação rigorosa dos resultados de planos e programas, e não apenas de intenções e promessas.

Há escolhas particularmente difíceis a fazer. Como sabem todos os que tiveram alguma experiência na vida pública, nem tudo é possível, ou factível, porque desejável. Nunca será demais apontar, como fez recentemente o ministro Barroso (citando Holmes), que “políticas e programas se julgam por seus resultados, não por suas intenções”. Entre ambos, com frequência, “desce a sombra”, como disse um poeta, e por vezes “uma sombra ambulante”, como escreveu, sobre a vida, o dramaturgo maior.

A superação desta crise, que é a um só tempo de saúde pública, econômica, social e humana, exigirá serenidade, engenho e arte. Exigirá o exercício da política entendida como a arte de (tentar) tornar possível amanhã o que parece impossível hoje, ou, como gosta de vê-la Paulo Hartung, entendida como a “arte de pensar as mudanças e fazê-las efetivas”. Na difícil quadra em que nos encontramos, parece definição especialmente apropriada.

Em democracias, a frustração com promessas não cumpridas sempre pode ter solução por meio de eleições regulares, nas datas previstas. No período que media uma eleição e outra é comum surgir assimetria importante entre aspirações e a capacidade de materializá-las. Pensar as mudanças e, sobretudo, fazê-las acontecer no mundo real exigem esforço coletivo, capacidade de articulação, coordenação, convencimento, e busca das convergências possíveis. Só por meio de diálogo, compromissos e mediação entre inevitáveis conflitos de interesses será possível avançar. A última coisa que precisa o Brasil é de uma Presidência da República que, em vez de protagonista da solução, seja parte ativa do problema “quase” político-institucional do País.

“O homem sábio ajusta suas crenças às evidências”, escreveu David Hume. Os negacionistas, com dissonância cognitiva, reforçam ainda mais suas crenças diante de quaisquer evidências contrárias a elas. Isso inclui o risco de novos saltos no escuro, além daqueles que já demos. Até quando o faremos?

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC

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